3
GERAÇÕES GENERATIONS
Carlos Barreira Cristina Valadas João Ribeiro
ORGANIZAÇÃO / ORGANIZATION Câmara Municipal de Chaves Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso / MACNA COORDENAÇÃO DO PROJECTO / PROJECT COORDINATORS Agostinho Pizarro Bravo António Augusto Joel Carlos França Fernando Ribeiro João Machado COMISSÁRIO DA EXPOSIÇÃO / EXHIBITION CURATOR António Augusto Joel EQUIPA MUNICIPAL DE APOIO À EXPOSIÇÃO / MUNICIPAL TEAM FOR THE EXHIBITION Agostinho Pizarro Bravo Carlos França Fernando Ribeiro Joana Coelho Vera Moura MONTAGEM DA EXPOSIÇÃO / EXHIBITION CREW Equipa do MACNA RNTrans COORDENAÇÃO DO LIVRO / BOOK COORDINATION António Augusto Joel DESIGN DA CAPA / COVER DESIGN João Machado DESIGN GRÁFICO / GRAPHIC DESIGN João Machado Marta Machado FOTOGRAFIA / PHOTOGRAPHY Fernando DC Ribeiro (Cristina Valadas, João Ribeiro) Filipe Barreira (Carlos Barreira) IMPRESSÃO / PRINTING ORGAL Impressores PRODUÇÃO / PRODUCTION João Machado Design TEXTOS / TEXTS António Augusto Joel TRADUÇÃO / TRANSLATION Alexandra Andresen Leitão ISBN (…) DEPÓSITO LEGAL / LEGAL DEPOSIT (…) TIRAGEM / PRINT RUN 500 exemplares / copies
AGRADECIMENTOS / ACKNOWLEDGEMENTS A Câmara Municipal de Chaves e o MACNA agradecem a / are grateful to: Carlos Barreira Cristina Valadas João Ribeiro António Augusto Joel agradece a / is grateful to: Academia de Artes de Chaves Agostinho Pizarro Bravo Alexandra Andresen Leitão Carlos Barreira Carlos França Cristina Valadas Ema Berta Equipa do MACNA Fernando Ribeiro Filipe Barreira Francisco Melo Isabel Penha Garcia João Machado João Ribeiro Joana Coelho Marta Machado Nuno Vaz Presidência da Câmara Municipal de Chaves © Alexandra Andresen Leitão, Traduções / Translations © António Augusto Joel, Textos / Texts © Câmara Municipal de Chaves / MACNA 2018, Livro e Exposição / Book and Exhibition © Fernando DC Ribeiro, Filipe Barreira, Fotografia / Photography Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso / MACNA Avenida 5 de Outubro, 10 5400-017 CHAVES latitude 41° 44.516’N / longitude 7° 27.915’W mail: mac.nadirafonso@chaves.pt telefone / phone +351 276 340 501 (ext. 641) / +351 276 009 137 macna.chaves.pt www.chaves.pt
ÍNDICE / INDEX
Carlos Barreira Matéria ~e Movimento Moving Matter and Movement
5
Cristina Valadas Sinais de Luz e Cor Sinais de Luz e Cor
25
João Ribeiro Metarmofoses do Sagrado e do Profano Sacred and Profane Metamorphoses
39
3 GERAÇÕES
5
Carlos Barreira ~ MATÉRIA e MOVIMENTO António Augusto Joel Poder-se-ia afirmar que um dos pressupostos essenciais em que assenta a obra escultórica de Carlos Barreira (n. 1945) é a interacção. Do ponto de vista matérico e escultural, assenta na relação entre o observador e a obra, ou entre os elementos da natureza e a obra. Do ponto de vista da sua finalidade funcional, ou mais propriamente disfuncional, enquanto máquina e não escultura, e da sua inventariação através de um título, assenta no irónico piscar de olho e no cúmplice aceno conceptual do escultor ao observador. Estes aspectos da ironia na génese da sua criatividade, e da crítica implícita no título das suas obras, traduzem parte da sua vivência pessoal e da sua visão do mundo, sendo particularmente evidentes nas esculturas Máquina de Bater Palmas (1975) e Máquina de Fazer Projectos (1978), obras contemporâneas do período pós-revolucionário da década de 1970, embora sejam aspectos que se prolongam já até à sua produção deste século, como, entre outras, acontece nas obras intituladas Meide in Xaina (2008) ou Red&Meide (2010). 1 As suas esculturas não serão, assim, apenas situações, como referiu João Fernandes (n. 1964), mas também, obviamente, obras que traduzem situações e circunstâncias do escultor, sendo um pretexto para o exercício da autobiografia e da memória. 2
MOVING MATTER AND MOVEMENT António Augusto Joel ESCULTURA II / SCULPTURE II (2011) Metal e madeira grafitada / Metal and graphite on wood 75 x 44 x 28 cm. Colecção do artista / Artist’s collection
One could say that interaction is one of the assumptions on which Carlos Barreira (b. 1945) bases his sculptural work. From a material and sculptural point of view it is based on the relation between the observer and the work, or between the elements of nature and the work. From the point of view of functional or more accurately dysfunctional finality, as a machine and not a sculpture, and its classification under a heading, it is based on an ironic wink and on a friendly conceptual nod from the sculptor to the observer. These ironic aspects at the origin of his creativity and the criticism implicit in the title of his works translate part of his personal experience and his vision of the world. They are particularly evident in the sculptures Máquina de Bater Palmas (1975) and Máquina de Fazer Projectos (1978), works dating from the 1970s post-revolutionary period, although such aspects extend to his production in this century, as is the case among others of the works entitled Meide in Xaina (2008) or Red&Meide (2010). 1 His sculptures are not therefore merely situations, as stated by João Fernandes (b. 1964), but also, obviously, works that translate situations and circumstances of the sculptor, serving as a pretext for an exercise in autobiography and memory. 2
6
3 GERAÇÕES
É a partir deste exercício pessoal que Carlos Barreira convida o observador a abandonar a passividade inerente a esse estatuto, criando as suas próprias circunstâncias, passando a agente, anulando a sua própria inércia e a aparente inércia da escultura. A escultura é, então, para Carlos Barreira, o postulado da matéria em movimento. Isto é, a escultura é o universo. DESENHO Um universo expresso em diversos materiais – acrílico, couro, madeira, metal, pedra, passíveis de serem esculpidos, montados, recortados, reconstruídos e accionados, mas também em papel, que, na sua imobilidade e imutabilidade, pode ser o lugar transitório do desenho, depois da sua concepção, mas antes da sua transformação numa obra escultórica, ou o lugar alternativo para esculturas-desenho, isto é, para conceitos e ensaios de escultura que nunca foram concebidos senão para o papel. O Desenho (2011) agora exibido no Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso é paradigmático dessas esculturas-desenho, desse lugar da concepção de mundos alternativos que representam o estabelecimento de uma ordem, mas também o desejo de instaurar uma ordem alternativa num mundo exterior ao papel. De algum modo, estes serão como planos para criar a criação. 3 Assim se pode entender a representação de alavancas, prumos e pêndulos integrando um fundo de organização geométrica, a que se juntarão, em esculturas do autor, bússolas e êmbolos, representação acompanhada das anotações “roda motora mandada”, “rel [ógio de] sol” e “hora velha, hora nova” neste desenho.
It is with this personal exercise that Carlos Barreira invites the observer to set aside the passivity inherent to that condition and to create his own circumstances, becoming an agent, overturning both his own inertia and the apparent inertia of the sculpture. For Carlos Barreira, then, sculpture is the postulate of matter in movement. In other words, the sculpture is the universe. DRAWING A universe expressed in different materials – acrylic, leather, wood, metal, stone – all of which can be sculpted, assembled, cut out, reconstructed and set in motion, but also paper whose immobility and immutability might be the transitory place of drawing, after its conception but prior to its transformation into a work of sculpture, or the alternative place for sculpture-drawings, that is for sculptural concepts and experiments that were never designed except for paper. Desenho (2011), now displayed at Nadir Afonso Contemporary Art Museum is a paradigm of such sculpture-drawings, of that place where alternative worlds are conceived, alternative worlds that represent the establishment of an order but also the desire to set up an alternative order in a world outside paper. In any case, these will be like plans to create the creation. 3 That is how one can understand the depiction of levers, plummets and pendulums that make up a core of geometrical organisation. To these are added compasses and pistons in works by the sculptor, a representation that is accompanied by notations: “roda motora mandada”, “rel [ógio de] sol” (sundial) e “hora velha, hora nova” in this drawing.
SONS DO DOURO [OBRA INCOMPLETA] / DOURO SOUNDS [WORK IN PROGRESS] Matéria orgânica [madeira e couro] com uma assinatura / Organic matter [wood and leather] with a signature 120 x 85 x 70 cm. Colecção do artista / Artist’s collection
3 GERAÇÕES
25
Cristina Valadas SINAIS DE LUZ E COR António Augusto Joel A obra que Cristina Valadas (n. 1965) foi convidada a criar especificamente para esta exposição no MACNA encontrava-se previamente condicionada por diversos pressupostos – as dimensões da parede disponível, a horizontalidade do Desenho (2011) de Carlos Barreira (n. 1945), que ficaria defronte do seu trabalho, a escura tonalidade predominante nessa obra do escultor e uma palavra que marca esse desenho – TERRA. Assim, a artista concebeu um tríptico – Rendição, Desejo, Ascensão (2018) que estabelece um diálogo antitético com essa obra, contrapondo à geometria e às anotações manuscritas do escultor uma outra obra que, através da sua verticalidade, projecta um movimento ascensional protagonizado por uma representação figurativa sugerindo o desdobramento gradual de uma mesma figura. As diferenças cromáticas associadas a cada uma das figuras representadas nas três tiras de papel – verde, azul e branca, sugerem aparentes mudanças ocorridas num casulo cujo invólucro tem uma aparência humana. Esta é uma interpretação sublinhada pela ascese da última figura, que simbolicamente traduzirá a sua catarse. Uma catarse, aliás, que já era previamente anunciada e sublinhada pelo despojamento de vestuário da personagem, à qual restava ainda o invólucro físico.
SIGNS OF LIGHT AND COLOUR António Augusto Joel The work that Cristina Valadas (b. 1965) was invited to create specifically for this exhibition at MACNA was conditioned from the start by various factors – the dimensions of the available wall, the horizontality of Desenho (2011) by Carlos Barreira (b. 1945), placed opposite her work, the predominant dark tones of that sculptor’s work and a word that marks that drawing – TERRA (earth). The artist designed a triptych – Rendição, Desejo, Ascensão (2018) – that establishes an antithetical dialogue with the work opposite, offering in contrast to the geometry and to the sculptor’s handwritten notes another work whose verticality projects a rising movement protagonised by a figurative representation suggesting the gradual unfolding of one same figure. The chromatic differences associated with each of the figures depicted on the three strips of paper – green, blue and white – suggest the apparent changes that have occurred in a cocoon whose casing is human in appearance. This interpretation is underlined by the ascesis of the last figure which symbolically expresses its catharsis.
26
3 GERAÇÕES
Nesse invólucro físico, a subversão das cores, que poderiam remeter para a verosimilhança de um figurativo mais próximo do real, permite ainda uma interpretação sustentada em filosofias e religiões orientais. Assim, onde simbolicamente se começa pela rendição da força física, através de uma personagem cujo verde parece evocar um paradigma dessa força, a divindade Hanuman, pode depois progredir-se também para um desejo de transformação e aperfeiçoamento espiritual traduzido pela cor azul, que pode evocar divindades como Krishna ou Rama. 1 Esta interpretação, aliás, não se afastará certamente muito do imaginário de Cristina Valadas que, em 2010, concebeu um conjunto de ilustrações (ainda inéditas) consagradas a Krishna. Neste tríptico a artista recorre ao fundo acastanhado característico do papel kraft, uma tonalidade que quase não ocorre na maioria das obras de Cristina Valadas, para sublinhar a natureza algo diáfana da figuração e o poder transfigurador do branco associado à catarse. Para além de tudo isto, a obra é um paradigma perfeito da ousadia e do desassombro com que Cristina Valadas aproxima a sua pintura da ilustração, sem quaisquer preocupações em submeter a veracidade da sua expressão e convicção artística íntima ao jugo da crítica. Mas para entender este estado de manu missio e liberdade artística que Cristina Valadas assumiu, será interessante contextualizar este tríptico no conjunto de algumas das suas obras e séries anteriores e no cadenciado e convicto percurso que a artista tem vindo a traçar. SER OU NÃO SERES Conjuntamente com as séries Dois Olhos, Dois Mundos, de 1995, e Sonhos e Fábulas (1996), esta série, também de 1995, marca o início de um discurso pictórico em que Cristina Valadas
A catharsis that had been previously announced and underlined by the fact that, although still in its physical casing, the figure was in a state of nature. The subversion of colours in that physical casing might refer to the plausibility of a figuration much closer to reality, but also allows an interpretation sustained on oriental philosophies and religions. So, where one starts symbolically with the surrender of physical force through a personage, the deity Hanuman, whose green colour seems to evoke a paradigm of that force, one then progresses into a desire of transformation and spiritual improvement translated by the colour blue, which can evoke gods such as Krishna or Rama. 1 This interpretation is indeed not too far removed from much of Cristina Valadas’ imaginary, for in 2010 she conceived a collection of as yet unpublished illustrations dedicated to Krishna. In this triptych the artist uses a brownish background, characteristic of kraft paper, a colour that is very rarely present in her work, to underline the somewhat diaphanous nature of the figuration and the transfiguring power of white in association with catharsis. Furthermore, the work is a perfect paradigm of the daring and fearlessness with which Cristina Valadas approaches her illustrations, unconcerned about submitting the veracity of her expression and her intimate artistic conviction to the yoke of criticism. However, to understand this state of manumissio and artistic licence that Cristina Valadas has assumed, it will be interesting to contextualise this triptych with some of her previous works and series and with the cadenced and steady career outlined by the artist.
RENDIÇÃO / SURRENDER (2018) Acrílico sobre papel / Acrylics on paper 350 x 140 cm. Colecção da artista / Artist´s collection DESEJO / DESIRE (2018) Acrílico sobre papel / Acrylics on paper 350 x 140 cm. Colecção da artista / Artist´s collection ASCENSÃO / ASCENSION (2018) acrílico sobre papel / acrylics on paper 350 x 140 cm. Colecção da artista / Artist´s collection
TRÍPTICO
3 GERAÇÕES
27
procura recuperar uma expressão plástica próxima daquela que ocorre na infância, num registo multicolorido que acentua o deslumbramento pelas cores. 2 Essencialmente, regista-se aqui não só o encanto perante a possibilidade de combinar essas cores harmoniosamente, mas também perante a possibilidade de transpor materialmente as suas características visuais e imateriais para superfícies como a tela ou o papel. Claro que Cristina Valadas não recria essa expressão plástica com a inocência e o sabor do desconhecido que ocorre na infância, pelo que a sua pintura não pode deixar de funcionar como um conjunto de referências que recordam a herança cromática, e por vezes pictórica, do Fauvismo e do movimento Der Blaue Reiter, ou até a influência do movimento CoBrA e mesmo, sem as suas acentuadas e características distorções da linha e do traço, alguma influência de Bengt Lindström (1925-2008). No caso particular da obra que se reproduz neste catálogo, a composição remete claramente para a recriação do figurativo através do olhar infantil que ainda não consegue, ou não quer, traduzir o referente real de forma verosímil. Por outro lado, surge uma representação que claramente evoca parte de um peixe. Se efectuarmos a leitura desta obra conjuntamente com uma outra da mesma série, onde inquestionavelmente surge um gato, concluiremos que esta é uma série onde as diversas obras se podem assumir como fragmentos, ou narrativas fragmentadas, remetendo para o universo das narrativas orais na infância.
SER OU NÃO SERES (BEING OR NON BEINGS) Together with the series Dois Olhos, Dois Mundos (1995) and Sonhos e Fábulas (1996) this one, which dates from 1996, marks the start of a pictorial discourse in which Cristina Valadas seeks to recover a plastic expression similar to that which occurs in childhood, in a multi-coloured register that accentuates her fascination with colour. 2 What we register here, essentially, is not only the delight of being able to combine these colours harmoniously, but also of being able to materially transpose their visual and immaterial characteristics to surfaces such as canvas or paper. Naturally, Cristina Valadas does not recreate this plastic expression with the innocence and flavour of the unknown experienced in childhood, so her painting cannot but function as a set of references that register the chromatic and sometimes pictorial heritage of Fauvism and Der Blaue Reiter, the influence of CoBrA and even some influence of Bengt Lindström (1925-2008), without his pronounced and characteristic distortions of line and stroke. In the particular case of the work reproduced in this catalogue the composition clearly refers to the recreation of the figurative through a child’s eye that is still unable or unwilling to translate the real reference in a credible way. On the other hand, a representation is present that clearly evokes part of a fish. If we read this work jointly with another in the same series, in which a cat is indubitably present, we will conclude that this is a series where the many works may be assumed as fragments or fragmented narratives, referring to the universe of the oral narratives of childhood.
3 GERAÇÕES
29
MEETING POINT Nesta série de 1997 assiste-se a uma regressão do valor e da importância da representação figurativa, embora esta surja, quase desvanecida, no esgrafitado que várias obras apresentam. Um esgrafitado em que o traço risca e elimina as cores, indo buscar a brancura da tela ou do papel como tradução dessa evanescência quase fantasmagórica da figura. Encontra-se, assim, nesta série, o assumir da preponderância da mancha colorida sobre o valor do traço, que não deixa de ocorrer nas telas da série, sugerindo universos oníricos que são essencialmente constituídos por nebulosas de cor. É o que acontece na tela aqui reproduzida, onde as percepções da flor, de uma eventual porta e mesmo de dois animais, que até poderiam evocar o movimento das lebres que surgem em Os Galgos (1911) ou no desenho Les Faucons [Os Falcões] (1912), de Amadeo de SouzaCardoso (1887-1918), são avassaladoramente submetidas à mancha vermelha e ao diálogo que esta estabelece com a filactera branca, como se, através da metalinguagem, dentro de uma narrativa ocorressem outras narrativas e dentro de um diálogo ocorressem outros diálogos, ou vários monólogos. Depois destas séries, Cristina Valadas ensaiou diferentes aproximações à composição pictórica e às representações figurativas. Assim surgiram as séries Primavera (2000) e Behind the Rainbow (2001), que marcaram indelevelmente o seu percurso e criaram uma imagem inconfundível na sua pintura. Aqui, onde as pinceladas e os traços se diluem e se assumem como sinais de luz e cor, onde a delineação cede perante as manchas de pura cor, entrecruzam-se os universos cromáticos e os imaginários pictóricos de Joan Miró (1893-1983), de Paul Klee (1879-1940) e de Wassily Kandinsky (1866-1944).
MEETING POINT In this 1997 series we witness a decline in the value and importance of figurative representation, although it appears, quite faintly, in the sgraffito of several works. A sgraffito where the line cuts through and eliminates the colours, seeking the whiteness of the canvas or the paper as an expression of that almost phantasmagorical evanescence of the figure. We find in this series an assumption of the preponderance of the coloured patch over the value of the line, which is still present here, suggesting oneiric universes that basically consist of colour nebulas. That is case in this work presented here, where the perceptions of the flower, a possible door and even two animals (which might evoke the movement of the hares we see in Os Galgos (1911) or the drawing Les Faucons (1912) by Amadeo de Souza-Cardoso, 1887-1918), are overwhelmingly submitted to the red patch and to the dialogue it establishes with the white phylactery as if, through metalanguage, there were other narratives within a narrative and other dialogues or several monologues within a dialogue. After these series, Cristina Valadas tried several approaches to pictorial composition and figurative depictions. This led to the series Primavera (2000) and Behind the Rainbow (2001) that indelibly marked her career and created an unmistakable image in her painting. Here, where the brushstrokes and lines are diluted and appear to be signs of light and colour, where the delineation cedes before the patches of pure colour, the chromatic universes and the pictorial imageries of Joan Miró (1893-1983), Paul Klee (1879-1940) and Wassily Kandinsky (1866-1944) are entwined.
3 GERAÇÕES
31
Esses sinais de cor pura pairam sobre a luminosa leveza do branco, que ora ocorre como espaço total do fundo de cada obra, ora se intromete como sugestão de delineações e de dinâmicos interstícios entre as manchas de cor que apenas têm como fundo tonalidades claras, em desmaiados tons de pastel. Esta cosmogonia cromática sui generis, que emerge dos fundos claros como uma explosão de casulos de cor, haveria de dar lugar, pouco depois, à série Ajustes (2002), onde a artista recupera os valores simbólicos e criativos da mão e do rosto, que já haviam sido abordados nas anteriores séries In and Out (2000) e Sopros (1998-1999). Curiosamente, é na série In and Out que surgem surpreendentes tons de castanho e ocres, tão característicos da obra de Joaquim Rodrigo (1912-1997), mas tão invulgares na obra de Cristina Valadas, como se a artista colocasse um desafio a si própria e se encontrasse perante uma encruzilhada e um ponto de viragem na sua obra. QUANTO MAIS O TEMPO ME TIRA MAIS A VIDA ME DÁ Com esta série de 2004, Cristina Valadas retoma os referenciais da expressão e do imaginário infantil, quase sugerindo, em algumas destas obras, uma viagem até ao século XIX e ao desenho infantil, e sua representação, que surge na famosa tela Esperando o Sucesso (1882), de Henrique Pousão (1859-1884). 3 Apresenta, também, dois aspectos que transitam das séries anteriores. Do ponto de vista cromático, os ainda significativos espaços ocupados pelas manchas brancas e a manutenção
Those signs of colour hover over the luminous lightness of the white that appears as total space in the background of each work, or makes an appearance as a suggestion of delineations and dynamic interstices between the patches of colour, whose only background are clear shades in faded pastel hues. This sui generis chromatic cosmogony, which emerges from the lighter backgrounds like an explosion of coloured cocoons, later gave rise to the series Ajustes (2002) in which the artist recovers the symbolic and creative values of the hand and the face, already present in previous series, In and Out (2000) and Sopros (1998-1999). Curiously, it is in In and Out that we see surprising shades of brown and ochre, so characteristic of the work of Joaquim Rodrigo (1912-1997), but so unusual in that of Cristina Valadas, as if the artist had set herself a challenge and was now at a crossroads and a turning point in her work. QUANTO MAIS O TEMPO ME TIRA MAIS A VIDA ME DÁ (THE MORE TIME TAKES FROM ME THE MORE I GET FROM LIFE) In this 2004 series Cristina Valadas resumes the references of childhood expression and imaginary, in some of these works almost suggesting a voyage to the 19th century and a child’s drawing and its representation as seen in the famous painting Esperando o Sucesso (1882) by Henrique Pousão (1859-1884). 3 Present also are two aspects that carry over from previous series. From a chromatic point of view, the still significant spaces occupied by the white patches and the brown and ochre tones, from the time of the In and Out series, have been kept.
32
3 GERAÇÕES
de alguns tons de castanho e ocres, que já vinham da série In and Out. Do ponto de vista formal e técnico acrescenta uma inovação – o aparecimento parcial da tessitura e da textura da tela, não tratada, em algumas das obras, criando assim janelas para uma realidade exterior à representação pictórica. PARA LÁ DO OLHAR FÍSICO As grandes surpresas desta série de 2015 assentam na quase ausência do recurso à cor, com as obras a desenvolverem-se em tons de cinzento e preto sobre o fundo branco do papel, e na descomplexada abordagem da pintura como uma aproximação híbrida entre o desenho e a ilustração, aspecto sublinhado, aliás, pelas médias dimensões do seu suporte em papel. Nestas obras Cristina Valadas converge para uma representação que se aproxima da interpretação xamânica das forças interiores e do efeito da fotografia Kirlian, que, em determinadas circunstâncias, permite registar a aura que circunda todos os seres vivos. É esta uma aproximação conceptual que permite, também, contextualizar a representação espiritual ensaiada pela artista no seu tríptico. TUDO-NADA-SEMPRE O inesperado acontece nesta pequena série sobre papel que Cristina Valadas concebeu para uma exposição realizada em 2017. 4 Entre as suas luminosas telas e as suas caixas de luz, que ultimamente são recorrentes nas suas exposições, explode uma narrativa fragmentada, crua e cruel, onde incontáveis lágrimas
From a formal and technical point of view there is an innovation – the partial appearance in some works of tessitura and texture on the untreated canvas, thus creating windows to the reality outside the pictorial representation. PARA LÁ DO OLHAR FÍSICO (BEYOND THE PHYSICAL LOOK) The great surprises of this 2015 series lie in the almost absence of colour, as the works develop in shades of grey and black on the white background of the paper and in the uncomplicated approach to painting as a hybrid approximation between drawing and illustration, an aspect that is indeed underlined by the medium size of her paper support. In these works Cristina Valadas converges to a representation that is close to the Shamanic interpretation of interior forces and the Kirlian photographic effect that in certain circumstances enables the aura surrounding all living beings to be captured on film. This is a conceptual approximation that makes it possible also to contextualise the spiritual representation rehearsed by the artist in her triptych. TUDO-NADA-SEMPRE (ALL-NOTHING-ALWAYS) The unexpected happens in this small series on paper that Cristina Valadas conceived for an exhibition held in 2017. 4 Between her luminous canvases and her lightboxes, which have lately been recurrent in her exhibitions, there is an explosion of a crude, cruel, fragmented narrative, where untold tears of blood are present, although not constituting the most terrifying or the most shocking of the images.
SER OU NÃO SERES (1995) Acrílico sobre tela / Acrylics on canvas 150 x 120 cm MEETING POINT (1997) Acrílico sobre tela / Acrylics on canvas 150 x 120 cm QUANTO MAIS O TEMPO ME TIRA MAIS A VIDA ME DÁ (2004) Acrílico sobre tela / Acrylics on canvas 160 x 110 cm
3 GERAÇÕES
39
João Ribeiro METAMORFOSES DO SAGRADO E DO PROFANO António Augusto Joel As duas obras que João Ribeiro (n. 1955) agora apresenta no Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso – Oratório I (2007) e Oklahoma (2009), traduzem vários aspectos característicos do seu percurso artístico. Embora aqui possam surgir antiteticamente consubstanciados, quer nos recursos técnicos e nas opções estéticas, quer nas opções conceptuais e nas diversidades temáticas, há fios condutores e constantes que nos permitem entrar nesse hipotético e assombroso labirinto que é a sua pintura. Por um lado, encontramos em Oratório I o esgrafitado comum a muitas das suas obras, os cordões que interligam inúmeras personagens no seu universo pictórico, as diversas camadas cromáticas sobrepostas como matéria quase escultórica, o tratamento filigranado das componentes desenhadas, a presença de múltiplas personagens, complementada por signos e símbolos, o gosto pela pequena ou média dimensão do suporte. 1
SACRED AND PROFANE METAMORPHOSES António Augusto Joel ORATÓRIO / HOUSE OF PRAYER (2005) Técnica mista sobre aglomerado de madeira / Mixed media on plywood 62 x 44 cm. Colecção do artista / Artist´s collection
Oratório I (2007) and Oklahoma (2009), the two works by João Ribeiro (b. 1955) now on display at the Nadir Afonso Museum of Contemporary Art, translate several characteristic aspects of his artistic career. Although here they may emerge consubstantiated antithetically, either in their technical resources and aesthetic options or in their conceptual options and thematic diversities, we do find a constant thread enabling us to enter into the hypothetical and astonishing labyrinth of his painting. On the one hand, we find in Oratório I the sgraffito that is common to many of his works, the cords connecting innumerable characters in his pictorial universe, the many superimposed chromatic layers like almost sculptural matter, the filigreed treatment of the drawings, the presence of multiple characters, complemented by signs and symbols, the taste for the small and medium-sized support.1 In Oklahoma, on the other hand, we are surprised by the overwhelming dimension of the five panels making up the polyptych and by the use of collage, less common aspects that nevertheless are based also on the recurrent polychromatic layers characteristic of his works.2 Furthermore, his primeval angels of Bruges, whose figuration calls to mind the grammar of representation and neoclassical sculptural models, and even something of the angelical putti by
40
3 GERAÇÕES
Já em Oklahoma, surpreendem-nos a avassaladora dimensão dos cinco painéis que constituem o políptico e o recurso às colagens, aspectos menos comuns que, apesar de tudo, não deixam de assentar nas recorrentes camadas policromáticas características das suas obras. 2 Mas, para além disto, os seus primevos anjos de Bruges, cuja figuração evoca a gramática de representação e os modelos escultóricos neoclássicos, e até algo dos angelicais putti de Raffaello Sanzio (1483-1520), não deixam de ecoar nas figuras aladas do Oratório I nem de subtilmente perpassar por Oklahoma, tal como acontecera regularmente em alguma da sua produção da década de 1990. Estas ocorrências, transversais à sua obra, não obstam a que João Ribeiro tenha ensaiado, e continue a ensaiar, diferentes percursos representativos, narrativos e conceptuais. Com efeito, desde as suas naus com figuras jacentes, até às recentes obras sobre a Síria, a múltipla criação de João Ribeiro abordou na pintura e na gravura, muitas vezes com mordacidade e ironia, muitas outras com dramática preocupação e inquieta crítica, aspectos tão diferenciados como a história de Portugal e a identidade portuguesa, o circo e as figuras amestradas, os valores dos solutos alquímicos na actualidade, o défice, as questões kafkianas, a problemática da Palestina ou a santidade da água. Nos domínios da técnica e da matéria, para além das recorrentes camadas policromáticas e do esgrafitado, ensaiou a colagem de papel e tecidos, na série Whispers, o uso da madeira, a reciclagem de materiais e iniciou, nos últimos anos, um hipnotizante e vertiginoso, na sua sequência e na sua velocidade de criação, diário desenhado a tinta-da-china sobre papel.
Raphael (Raffaello Sanzio, 1483-1520), are also echoed in the winged figures of Oratório I and indeed migrate to Oklahoma, a regular occurrence in some of his work in the 1990s. These occurrences cut across his work but do not prevent João Ribeiro from assaying and continuing to assay still, different representative, narrative and conceptual paths. Indeed, from his ships with recumbent figures to his recent works on Syria, João Ribeiro’s multiple creation in painting and engraving, has touched on such different aspects as the history of Portugal and Portuguese identity, the circus and domesticated figures, the values of alchemical solutes today, the deficit, Kafkian issues, the problem of Palestine or the sanctity of water, at times with mordacity and irony, and at others with dramatic preoccupation and unquiet criticism. In the fields of technique and materials, in addition to the recurrent polychromatic layers and the sgraffito, he has produced paper and fabric collages in his Whispers series, using wood and recycled materials and in the last years began a diary in China ink on paper whose sequence and speed of creation is hypnotic and vertiginous. Considering their distinct nature and execution, Oratório I and Oklahoma establish paradoxical complementarities in João Ribeiro’s pictorial career, as if the artist were alchemically testing sacred and profane metamorphoses. ORATÓRIO This Oratório I is clearly assumed as heir to the medieval tradition of portable oratories. In the context of the approach to Portuguese identity that João Ribeiro illustrated in his series Reis, Castelos e Caravelas (Kings, Castles and Caravels), he conveys - quite temptingly so – our
3 GERAÇÕES
41
Considerando a sua distinta natureza e execução, Oratório I e Oklahoma estabelecem paradoxais complementaridades no percurso pictórico de João Ribeiro, como se o artista ensaiasse, alquimicamente, metamorfoses do sagrado e do profano. ORATÓRIO Este Oratório I assume-se claramente como herdeiro da tradição medieval dos oratórios portáteis e, no contexto da abordagem da identidade portuguesa que João Ribeiro ilustrou na sua série de Reis, Castelos e Caravelas, não deixa de, tentadoramente, remeter a nossa memória colectiva para o icónico oratório de D. João I de Castela (1358-1390), abandonado no campo da batalha de Aljubarrota após a vitória portuguesa e hoje conservado na colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães. Aqui, transgride-se voluntariamente a pintura, privilegiando-se a memória, os arquétipos, a forma escultórica e a simbólica, na sua evocação do cristianismo mas também na sugestão de sincréticas sobreposições que remetem para outros valores culturais e religiosos e outras simbólicas multiculturais. A madeira sobre a qual foi depositada a pintura alia-se ao invulgar formato em que foi talhada e perfurada, para desafiar no seu conjunto, se exceptuarmos os tondi, as formas tradicionalmente rectangulares ou quadradas associadas à pintura durante séculos. Contudo, nesta obra, estamos a ser propositadamente remetidos para os formatos dos painéis e polípticos adaptados, anos a fio, aos altares das igrejas, bem como para diversas representações do cristianismo.
ANJOS E IMAGENS DA RELIGIÃO Anjos 2 (1990) Tinta-da-china sobre papel / Indian ink on paper 29 x 20 cm
collective memory to the iconic oratory of King João I of Castile (1358-1380), which was abandoned on the field of the battle of Aljubarrota in the wake of the Portuguese victory and today is preserved at the collegiate church of Nossa Senhora da Oliveira in Guimarães. Here, painting is voluntarily transgressed, giving priority to memory, archetypes, sculptural and symbolic forms, in its evocation of Christianity but also in the suggestion of the syncretic superimpositions that refer to other cultural and religious values and other multicultural symbolisms. The wood used to take the paint combines with the unusual and perforated form of its carving, and, if we except the tondi, the whole challenges the traditionally square or rectangular shapes associated for centuries with paintings. However, in this work we are deliberately being referred to the forms of the panels and polyptychs that for years on end were adapted to church altars and to various representations of Christianity. The side panels, when almost entirely closed, clearly suggest a bishop’s mitre and, if slightly more ajar, unquestionably suggest a Latin cross, with their indentations. These ingenious indentations, which do not coincide with the openings, provide for the creation in the central panel of a voided square inserted in another square that is pictorially outlined, the two crowned by a triangle, the preeminent symbol of divinity. In these side panels the representation of the two arms also reinforces the evocation of Christian imagery, by referring to the many reliquaries, some in this shape, that proliferated for hundreds of years and were even made of precious metals adorned with similarly precious or semi-precious stones.
42
3 GERAÇÕES
Os painéis laterais, quando quase completamente encerrados, sugerem claramente uma mitra episcopal e, quando ligeiramente mais entreabertos, sugerem indubitavelmente, através dos seus recortes, uma cruz latina. Os engenhosos recortes desencontrados das aberturas propiciam também, no painel central, a criação de um quadrado vazado inserido num outro quadrado pictoricamente delineado, ambos sobrepujados por um triângulo, símbolo por excelência do divino. Nestes painéis laterais, a representação dos dois braços reforça ainda a evocação do imaginário cristão, ao remeter para os diversos relicários, alguns com esta forma, que proliferaram durante centenas de anos e chegaram a ser executados em metais preciosos e adornados com pedras também preciosas, ou semipreciosas. No entanto, estes braços, ao evocarem igualmente os guantes das armaduras medievais, servem como pretexto para a introdução ao profano, que se representa numa das faces do painel principal. Aqui, o troço amuralhado que debrua como uma renda a parte inferior do painel serve de fundo a dois rostos que se interligam entre si através de dois objectos vagamente identificáveis e de um braço, que se constitui como forma central. Acima do troço de muralha, com se fôssemos introduzidos num jogo de xadrez sem tabuleiro, surge uma figura coroada, quase uma medieval estátua jacente, de mãos unidas, em comunicação com um cavalo – rei, cavalo e torre, peças incompletas de um xadrez sem outro tabuleiro que não o oratório, ele próprio
However, by also evoking the gauntlet in medieval suits of armour, these arms serve as a pretext to introduce the profane, represented on one of the sides of the main panel. Here, the walled stretch that, lace-like, decorates the bottom part of the panel serves as the background for two faces interconnected by two vaguely identifiable objects and one arm, which stands as the central form. Above the stretch of wall, as if we found ourselves in a game of chess minus the board, there is a crowned figure, almost a recumbent medieval statue, with joined hands, communicating with a horse – king, horse and tower, are incomplete pieces of a chess game with no board other than the oratory, which is itself an episcopal evocation. In the rest of the composition, at the base of these panels, myriad small cubic sgraffiti like almost metaphorical pawns. Hovering over the entire scenario is the absence of any queen. Capping this microcosm is a figure that is characteristic of nautical charts, representing the wind and suggesting a volte-face in the reading. On the other side, fish and angels, traditional symbols of Christianity, appear linked together through multiple cords, in apparently organised chaos. Above this territory is a triangle, alchemically in black, and a figure with a tripartite face – the space of the divine. The plot thickens here. Everything converges to the divine triads, for “things happening in threes”, to the medieval iconography of the Holy Trinity. But also to
3 GERAÇÕES
45
uma evocação episcopal. E em todo o restante conjunto, na base destes painéis, miríades de pequenos esgrafitados cúbicos, quais metafóricos peões. Pairando sobre todo este cenário, a ausência de qualquer dama. Encimando todo este microcosmos, uma figura característica das cartas de marear, representando o vento e sugerindo um volte-face na leitura. Na outra face, símbolos tradicionais do cristianismo, peixes e anjos, surgem interligados entre si através de múltiplos cordões, num aparente caos organizado. Sobrepujando este território, surge um triângulo, alquimicamente ao negro, com uma figura de rosto tripartido – o espaço do divino. E aqui o mistério intensifica-se. Tudo converge para as tríades divinas, para a “conta que Deus fez”, para a iconografia medieval da Santíssima Trindade. Mas também para a paganíssima Hécate, a deusa das três cabeças. E para as três Parcas. Vida e Morte. Duas faces com três secções cada. Mas o rosto tripartido não contém em si dois, qual Janus que olha o passado e o futuro? E não sugerirá um quarto rosto, oculto, e visível apenas se imaginarmos um Profilo Continuo, em eterno movimento e transformando todos estes rostos num único rosto? 3 A que deuses se consagrará, afinal, este oratório? Será esta uma ara que, como um espelho, consagra os consagradores? É a sugestão desta dialéctica e destas interrogações esfíngicas (… será a Esfinge a ausente mas omnipresente dama?), requerendo múltiplas hipóteses de leitura – dos esgrafitados, dos cordões, das figuras aos símbolos adensados pelas camadas policromáticas, como se de uma
the very pagan Hecate, the three-headed goddess. And to the three Parcae. Life and Death. Two sides with three sections each. But does not the tripartite face itself contain two faces, like Janus looking to past and to future? And might it not suggest a fourth occult face, visible only if we imagine a profilo continuo, a continuous profile, eternally moving and transforming all these faces into one single face? 3 To which gods is this oratory dedicated, after all? Is this an ara which, like a mirror, is dedicated to the dedicators? What constitutes one of the more interesting plastic and conceptual messages of this oratory is the suggestion of this dialectic and these sphinx-like interrogations (…maybe it is the Sphinx who is the absent but omnipresent queen?), requiring multiple hypotheses of interpretation – of the sgraffiti, the cords, the figures and the symbols densified by polychromatic layers, as if this were an archaeological investigation and excavation. OKLAHOMA As João Ribeiro has already said, the polyptych Oklahoma is based on readings of works inspired by Kafka, most particularly on the reading of a fragment of America, by Franz Kafka himself (1883-1924). 4 This work by Kafka is a fragmentary, incomplete novel that dedicates about twenty pages to the great circus of Oklahoma, a Utopian space that is ever suggestive of a latent dystopia or even a space where bureaucracy exists but is permanently circumvented to enable everyone
46
3 GERAÇÕES
REIS, CASTELOS E CARAVELAS Caravela (1993) Pastel de óleo sobre tela / Oil pastel on canvas 60 x 110 cm.
3 GERAÇÕES
47
investigação e escavação arqueológica se tratasse, que constitui uma das mais interessantes mensagens plásticas e conceptuais deste oratório. OKLAHOMA Como João Ribeiro já referiu, o políptico Oklahoma baseia-se em leituras de obras de inspiração kafkiana, e muito particularmente na leitura de um fragmento de América, do próprio František Kafka (1883-1924). 4 Esta obra de Kafka é um romance fragmentário e inconcluso que dedica cerca de duas dezenas de páginas ao grande circo de Oklahoma, um espaço utópico que nunca deixa de sugerir uma distopia latente ou mesmo um espaço onde a burocracia existe mas é permanentemente contornada para permitir que todos ali possam ser admitidos, incluindo os tolos que queiram embarcar ad narragoniam. Isto é, Oklahoma parece consubstanciar o sonho de uma outra Cocanha, de uma sublime terra das delícias, tal como o sumptuoso banquete de boas-vindas aos novos membros do circo, longamente descrito por Kafka, dá a entender. 5 A modernidade de Oklahoma, de João Ribeiro, assenta em parte na reconstrução, ela mesma fragmentária, de um fragmento literário e na reinterpretação de um universo, imaginado por Kafka cem anos antes, que incorpora colagens de posteriores figuras icónicas da América – Albert Einstein (1879-1955), Andy Warhol (1928-1987), Elvis Presley (1935-1977), Ernest Hemingway (1899-1961), John Wayne (1907-1979), Marilyn Monroe (1926-1962), Michael Jackson (1958-2009), Muhammad Ali (1942-2016), juntamente com imagens de Kafka e do próprio pintor.
there to be admitted, including the fools who want to embark ad narragoniam. In other words, Oklahoma appears to consubstantiate the dream of another Cockaigne, a sublime land of marvels, such as the sumptuous banquet to welcome new circus members, described at length by Kafka. 5 The modernity of João Ribeiro’s Oklahoma is partly based on the similarly fragmentary reconstruction of a literary excerpt and on the reinterpretation of a universe imagined by Kafka one hundred years before, incorporating collages of later iconic figures of America - Albert Einstein (1879-1955), Andy Warhol (1928-1987), Elvis Presley (1935-1977), Ernest Hemingway (1899-1961), John Wayne (1907-1979), Marilyn Monroe (1926-1962), Michael Jackson (1958-2009), Muhammad Ali (1942-2016), together with images of Kafka and the painter himself. Oklahoma offers us the redundant American dimension of “thinking big”, through five panels having Andy Warhol travestied as Uncle Sam as the central figure. Curiously, indeed ironically, the same Warhol who actually said “buying is more American than thinking”… This American dimension is also accentuated in the enormous sparsely populated surface of the polyptych, evoking the vastness of the West and the Midwest, in an ironic metaphor alluding to the State of the Union, through the union of five separate panels that translate the isolation in the unit. This characteristic is actually underlined by the absence of cords, the characteristic cords of many of João Ribeiro’s works, linking the figures present in the work.
OKLAHOMA (2009) Colagem e técnica mista sobre aglomerado de madeira, com molduras em ferro / Collage, mixed media on plywood and iron frames 5 painéis com / 5 pannels with 200 x 120 cm Colecção do artista / Artist´s collection