EMA BERTA - A Luminosa Exaltação das Sombras

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EMA BERTA A Luminosa Exaltação das Sombras


ORGANIZAÇÃO / ORGANIZATION Câmara Municipal de Chaves Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso / MACNA COORDENAÇÃO DO PROJECTO / PROJECT COORDINATORS Agostinho Pizarro Bravo António Augusto Joel Carlos França Ema Berta Fernando Ribeiro COMISSÁRIO DA EXPOSIÇÃO / EXHIBITION CURATOR António Augusto Joel EQUIPA MUNICIPAL DE APOIO À EXPOSIÇÃO / MUNICIPAL TEAM FOR THE EXHIBITION Agostinho Pizarro Bravo Carlos França Fernando Ribeiro Joana Coelho Vera Moura MONTAGEM DA EXPOSIÇÃO / EXHIBITION CREW Equipa do MACNA RNTrans COORDENAÇÃO DO LIVRO / BOOK COORDINATION António Augusto Joel João Machado DESIGN DA CAPA / COVER DESIGN João Machado DESIGN GRÁFICO / GRAPHIC DESIGN João Machado Marta Machado FOTOGRAFIA / PHOTOGRAPHY Fernando DC Ribeiro IMPRESSÃO / PRINTING ORGAL Impressores

PRODUÇÃO / PRODUCTION João Machado Design TEXTOS / TEXTS António Augusto Joel TRADUÇÃO / TRANSLATION Allison Wright ISBN 978-989-99937-3-0 DEPÓSITO LEGAL / LEGAL DEPOSIT (…) TIRAGEM / PRINT RUN 500 exemplares / copies AGRADECIMENTOS / ACKNOWLEDGEMENTS A Câmara Municipal de Chaves e o MACNA agradecem a / are grateful to: António Prates Ema Berta Fernando Aguiar Fernando Figueiredo Ribeiro Liberto Cruz Luís Figueiredo Madalena Carretero Cruz Rui Rodrigues António Augusto Joel agradece a / is grateful to: Academia de Artes de Chaves Agostinho Pizarro Bravo Alexandra Andresen Leitão António Cabeleira António Prates Carlos França Ema Berta Equipa do MACNA Fernando Aguiar Fernando Figueiredo Ribeiro Fernando Ribeiro Francisco Melo Isabel Penha Garcia João Machado Joana Coelho Liberto Cruz Luís Figueiredo

Madalena Carretero Cruz Marta Machado Nuno Vaz Presidência da Câmara Municipal de Chaves Rui Rodrigues Tracy Mallon-Jensen A Câmara Municipal de Chaves, o MACNA e o autor agradecem ainda a todos os coleccionadores que cederam obras para esta exposição mas desejaram permanecer anónimos. / Câmara Municipal de Chaves, MACNA and the author are also grateful to all the collectors who lent paintings to this exhibition but wished to remain anonimous. © Allison Wright, Traduções / Translations © António Augusto Joel, Textos / Texts © Câmara Municipal de Chaves / MACNA 2018, Livro e Exposição / Book and Exhibition © Fernando DC Ribeiro, Fotografia / Photography Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso / MACNA Avenida 5 de Outubro, 10 5400-017 CHAVES latitude 41° 44.516’N / longitude 7° 27.915’W mail: mac.nadirafonso@chaves.pt telefone / phone +351 276 340 501 (ext. 641) / +351 276 009 137 macna.chaves.pt www.chaves.pt


ÍNDICE / INDEX A Luminosa Exaltação das Sombras The Luminous Exhaltation of Shadows Antologia Bibliográfica Bibliographical Anthology

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Álbum Fotográfico Photo Album

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Sinopse Biográfica Biographical Synopsis

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Currículo Artístico Artistical Curriculum

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EMA BERTA

A Luminosa Exaltação das Sombras A expressão plástica neofigurativa de Ema Berta (n. 1944) constitui-se como um dos casos mais interessantes e mais importantes, e também como um dos casos mais negligenciados, da pintura portuguesa das últimas décadas do século XX e início do presente século. Ao analisarmos a pintura que desenvolveu ao longo das últimas quarenta décadas, perpassa perante nós toda uma evocação apaixonada e depurada, segura e consistente, das heranças cromáticas do Impressionismo, do Fauvismo, do Der Blaue Reiter ou do Expressionismo. Evocam-se ainda, quando as suas pinceladas curtas, cheias de cor e luz, se entretecem visualmente como um hipnótico padrão de tesserae translúcidas, as visões dos puros fundos brancos e luminosos, em casca de ovo, de Jean Dunand (1877-1942) ou as feéricas e emotivas malhas multicoloridas de Gustav Klimt (1862-1918). No traço, ocorrem-nos diversas imagens e diversas obras de inúmeros artistas, como as linhas curvas e distorcidas de Bengt Lindström (1925-2008), ou de Edvard Munch (1863-1944) no seu Skrik [O Grito] (1893) ou em Ansiedade (1894), ou ainda algumas linhas de Egon Schiele (1890-1918), nas cores das suas paisagens menos conhecidas ou no traço mais ondulante ou distorcido

The Luminous Exhaltation of Shadows Ema Berta, n. / b. 1944 Sem Título IV [Série Florestas e Mares] / Untitled IV [Forests and Seas’ Series] (1989) Óleo sobre tela / Oil on canvas 150 x 120 cm Colecção da Artista / Artist’s Collection

A expressão plástica neofigurativa de Ema Berta (n. 1944) constitui-se como um dos casos mais interessantes e mais importantes, e também como um dos casos mais negligenciados, da pintura portuguesa das últimas décadas do século XX e início do presente século. Ao analisarmos a pintura que desenvolveu ao longo das últimas quarenta décadas, perpassa perante nós toda uma evocação apaixonada e depurada, segura e consistente, das heranças cromáticas do Impressionismo, do Fauvismo, do Der Blaue Reiter ou do Expressionismo. Evocam-se ainda, quando as suas pinceladas curtas, cheias de cor e luz, se entretecem visualmente como um hipnótico padrão de tesserae translúcidas, as visões dos puros fundos brancos e luminosos, em casca de ovo, de Jean Dunand (1877-1942) ou as feéricas e emotivas malhas multicoloridas de Gustav Klimt (1862-1918). No traço, ocorrem-nos diversas imagens e diversas obras de inúmeros artistas, como as linhas curvas e distorcidas de Bengt Lindström (1925-2008), ou de Edvard Munch (1863-1944) no seu Skrik [O Grito] (1893) ou em Ansiedade (1894), ou ainda algumas linhas de Egon Schiele (18901918), nas cores das suas paisagens menos conhecidas ou no traço mais ondulante ou distorcido como na ondulação de Segelschiffe im wellenbewegtem Wasser (Der Hafen von


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como na ondulação de Segelschiffe im wellenbewegtem Wasser (Der Hafen von Triest) (1907). Ainda no traço, umas reminiscências muito vagas das irónicas e críticas linhas de Georg Grosz (1893-1959) ou de algumas pinceladas de Oskar Kokoshka (1886-1980). Sem dúvida, ainda as contorcidas linhas das máscaras de James Ensor (1860-1949), recordando máscaras que, em Ema Berta, já não são máscaras mas se assumem como rostos distorcidos por outras realidades alternativas e sobre-humanas. São estes reinos da fábula, do fabuloso, do monstruoso e do mito, que sustentam a assombrosa e desassossegada pintura de Ema Berta. 1 Uma pintura que assenta em inquietantes metáforas e agita as nossas sombras interiores. Sombras onde habitam medos e angústias, onde ocorrem demandas interiores, epifanias e catarses. A pintura de Ema Berta é, pois, uma representação de mitos, de arquétipos, de ritos de passagem, de símbolos. Uma pintura que expressa as inquietações e angústias viscerais da própria artista. Assim traça a pintora um percurso profundamente personalizado nas artes plásticas portuguesas, um percurso onde predomina a sinceridade e a convicção de ser a pintura o seu único destino. Um destino onde só através da exaltação de sombras interiores se consegue expressar a luminosidade da pintura.

Triest) (1907). Ainda no traço, umas reminiscências muito vagas das irónicas e críticas linhas de Georg Grosz (1893-1959) ou de algumas pinceladas de Oskar Kokoshka (1886-1980). Sem dúvida, ainda as contorcidas linhas das máscaras de James Ensor (1860-1949), recordando máscaras que, em Ema Berta, já não são máscaras mas se assumem como rostos distorcidos por outras realidades alternativas e sobrehumanas. São estes reinos da fábula, do fabuloso, do monstruoso e do mito, que sustentam a assombrosa e desassossegada pintura de Ema Berta. 1 Uma pintura que assenta em inquietantes metáforas e agita as nossas sombras interiores. Sombras onde habitam medos e angústias, onde ocorrem demandas interiores, epifanias e catarses. A pintura de Ema Berta é, pois, uma representação de mitos, de arquétipos, de ritos de passagem, de símbolos. Uma pintura que expressa as inquietações e angústias viscerais da própria artista. Assim traça a pintora um percurso profundamente personalizado nas artes plásticas portuguesas, um percurso onde predomina a sinceridade e a convicção de ser a pintura o seu único destino. Um destino onde só através da exaltação de sombras

Ema Berta, n. / b. 1944 Amadeo [Série Elasippos / Elasippos’ Series] (1987) Técnica mista sobre papel / Mixed media on paper 151 x 100 cm Colecção MACNA / MACNA Collection



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SERES FELINOS Esta série, que Ema Berta apresentou em 1985 na Maison de l’Europe, Paris, não é habitualmente referida nas leituras diacrónicas e comparativas da sua obra, esquecimento que também tem sido encorajado pela própria artista, mas evidencia já características que haveriam de vir a ser recorrentes na sua obra posterior. Sobre um fundo aparentemente ordenado e descontraído, e ironicamente rosado, apresentam-se figuras fabulosas com sumptuosas e palacianas vestes, evocativas de uma dimensão mítica em que a bestialidade se entrecruza com a humanidade. As criaturas de feições felinas que aqui surgem prenunciam já o processo, simultaneamente destrutivo e criativo, de desfiguração e desumanização que haveria de gerar as futuras criaturas distorcidas e disformes características das décadas seguintes. Mas os focinhos felinos que surgem nestas figuras prenunciam também, claramente, os rostos vagamente humanos, mas com narizes felinos, que haveriam de surgir profusamente na sua obra, particularmente durante a década de 1990. Uma característica que, quando associada às figuras azuis que Ema Berta também criou nessa década, como Sem Título III (1996), ou outras criadas entre 1992 e 1995, onde a semelhança é ainda mais evidente, nos leva a pensar nas personagens que, anos mais tarde, haveriam de surgir no filme Avatar (2009) e nos deixa estupefactos. 2

interiores se consegue expressar a luminosidade da pintura.

SERES FELINOS Esta série, que Ema Berta apresentou em 1985 na Maison de l’Europe, Paris, não é habitualmente referida nas leituras diacrónicas e comparativas da sua obra, esquecimento que também tem sido encorajado pela própria artista, mas evidencia já características que haveriam de vir a ser recorrentes na sua obra posterior. Sobre um fundo aparentemente ordenado e descontraído, e ironicamente rosado, apresentam-se figuras fabulosas com sumptuosas e palacianas vestes, evocativas de uma dimensão mítica em que a bestialidade se entrecruza com a humanidade. As criaturas de feições felinas que aqui surgem prenunciam já o processo, simultaneamente destrutivo e criativo, de desfiguração e desumanização que haveria de gerar as futuras criaturas distorcidas e disformes características das décadas seguintes. Mas os focinhos felinos que surgem nestas figuras prenunciam também, claramente, os rostos vagamente humanos, mas com narizes felinos, que haveriam de surgir profusamente na sua obra, particularmente durante a década de 1990. Uma característica que, quando associada às figuras azuis

Ema Berta, n. / b. 1944 Sem Título [Série Elasippos] / Untitled [Elasippos’ Series] (1986) Técnica mista sobre papel / Mixed media on paper 150 x 96 cm Colecção Madalena e Liberto Cruz / Madalena and Liberto Cruz Collection




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Anunciam também, estas obras desta série felina, uma acentuada sexualidade que haveria de se exacerbar e tornar cada vez mais explícita, até roçar a pornografia – uma pornografia desassombrada e claramente assumida e desvendada em alguns guaches e técnicas mistas sobre papel, nas suas criações mais recentes. Aqui, nesta série, são apenas as entumescidas cabeças de caracol, as protuberantes caudas e os inofensivos peixes flácidos que sugerem um marcado discurso pictórico e metafórico sobre a sexualidade masculina. Prenuncia-se, pois, a transgressão pictória e conceptual que haveria de começar a surgir já na série seguinte.

ELASIPPOS É nos óleos de esta série, iniciada em 1986, que Ema Berta encontra já aquela que haveria de ser uma das suas marcas distintivas na técnica pictórica – acentuados traços pastosos de óleo, um óleo quase puro e sem qualquer diluição, captando a luminosidade como uma superfície esculpida e acentuando os jogos de luz e sombra assim criados na tela. Existe aqui uma aproximação quase mítica da pintura, onde a artista se assume ela mesma como força genesíaca de um novo devir para si e para o seu universo plástico. Nada mais apropriado como metáfora do seu próprio percurso, pois esta série, denominada Elasippos, não só evoca esta obscura personagem mitológica descendente de Clito e Poseidon, como marca o

Ema Berta, n. / b. 1944 Sem Título II [Série Elasippos] / Untitled II [Elasippos’ Series] (1987) Técnica mista sobre papel / Mixed media on paper 150 x 98 cm Coleção Figueiredo Ribeiro / Figueiredo Ribeiro Collection – Quartel de Arte Contemporânea de Abrantes

que Ema Berta também criou nessa década, como Sem Título III (1996), ou outras criadas entre 1992 e 1995, onde a semelhança é ainda mais evidente, nos leva a pensar nas personagens que, anos mais tarde, haveriam de surgir no filme Avatar (2009) e nos deixa estupefactos. 2 Anunciam também, estas obras desta série felina, uma acentuada sexualidade que haveria de se exacerbar e tornar cada vez mais explícita, até roçar a pornografia – uma pornografia desassombrada e claramente assumida e desvendada em alguns guaches e técnicas mistas sobre papel, nas suas criações mais recentes. Aqui, nesta série, são apenas as entumescidas cabeças de caracol, as protuberantes caudas e os inofensivos peixes flácidos que sugerem um marcado discurso pictórico e metafórico sobre a sexualidade masculina. Prenuncia-se, pois, a transgressão pictória e conceptual que haveria de começar a surgir já na série seguinte. ELASIPPOS É nos óleos de esta série, iniciada em 1986, que Ema Berta encontra já aquela que haveria de ser uma das suas marcas distintivas na técnica pictórica – acentuados traços pastosos de óleo, um óleo quase puro e sem qualquer diluição, captando a luminosidade como uma superfície esculpida e acentuando os jogos de luz e sombra assim criados na tela.


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nascimento de um dos aspectos da identidade pictórica de Ema Berta. 3 Por outro lado, a técnica aqui adoptada se evoca pinceladas impressionistas evoca também efeitos da Op Art, ao obrigar o nosso olhar a um movimento quase constante, um movimento que dificilmente pode deixar de circular por toda a superfície da tela. Obviamente, esta característica hipnótica é ainda acentuada pelas inúmeras linhas curvas, que continuarão a predominar em subsequentes obras da artista. Do ponto de vista conceptual e da composição narrativa é também aqui que os seres humanos, ou de aspecto humano, começam a surgir acompanhados de animais, numa relação que se haveria de revelar constante no seu universo pictórico. Aliás, poucos anos depois, já no início da década seguinte, haveria de surgir uma pequena série dedicada a figuras calvas e glabras, um protótipo das quais se pode dizer que aparece já num dos óleos de Elasippos, acompanhadas de canídeos, animais que haviam surgido antes na pequena tela intitulada Oração (1985). Esta pequena série, que não teve qualquer designação específica e da qual se conhecem menos de dez telas, sublinha a relação de um único ser humano com o animal, em mundos que nada mais têm como pano de fundo senão diferentes tonalidades cromáticas, muita vezes de uma só cor, o que vem acentuar a ideia de solidão e abandono, mesmo quando os canídeos surgem na diagonal superior e sugerem uma origem celeste.

Existe aqui uma aproximação quase mítica da pintura, onde a artista se assume ela mesma como força genesíaca de um novo devir para si e para o seu universo plástico. Nada mais apropriado como metáfora do seu próprio percurso, pois esta série, denominada Elasippos, não só evoca esta obscura personagem mitológica descendente de Clito e Poseidon, como marca o nascimento de um dos aspectos da identidade pictórica de Ema Berta. 3 Por outro lado, a técnica aqui adoptada se evoca pinceladas impressionistas evoca também efeitos da Op Art, ao obrigar o nosso olhar a um movimento quase constante, um movimento que dificilmente pode deixar de circular por toda a superfície da tela. Obviamente, esta característica hipnótica é ainda acentuada pelas inúmeras linhas curvas, que continuarão a predominar em subsequentes obras da artista. Do ponto de vista conceptual e da composição narrativa é também aqui que os seres humanos, ou de aspecto humano, começam a surgir acompanhados de animais, numa relação que se haveria de revelar constante no seu universo pictórico. Aliás, poucos anos depois, já no início da década seguinte, haveria de surgir uma pequena série dedicada a figuras calvas e glabras, um protótipo das quais se pode dizer que aparece já num dos óleos de Elasippos, acompanhadas de

Ema Berta, n. / b. 1944 Sem Título I [Série Elasippos] / Untitled I [Elasippos’ Series] (1987) Técnica mista sobre papel / Mixed media on paper 150 x 97 cm Colecção Particular / Private Collection




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Já nos desenhos da série Elasippos, as pinceladas substancialmente empastadas que, em simultâneo, conferem profundidade e brilho à composição a óleo, são substituídas por traços sobrepostos que não só sugerem a desmultiplicação das figuras como acentuam um dinamismo disfuncional entre os dois gémeos mitológicos, sugerindo novamente a metáfora genesíaca da separação e da nova criação. Nesta série pode ainda incluir-se, do ponto de vista estilístico, o notável desenho Amadeo (1987), dedicado a Amadeo de SouzaCardoso (1887-1918). Uma obra que não só evoca o imaginário e o bestiário patente na obra de Amadeo como assume uma marcada afirmação sexualizada das representações figurativas. Efeito que assume curiosas significações quando a figura à esquerda do observador exibe despudoradamente o sexo, enquanto Amadeo tem o seu pudicamente ocultado. Como é óbvio, esta ocultação não é senão uma distracção daquilo que efectivamente ali se representa. Saindo do múltiplo e sobreposto bestiário da direita, aparece o dragão autor da púdica ocultação, insinuandose entre as pernas de Amadeo. Mais uma clara alusão sexual que, contudo, é ultrapassada em significado pela interessantíssima e subtil evocação de uma obra de Amadeo – a tela intitulada Procissão Corpus Christi (1913), que apresenta um dragão característico dessa festividade do Corpo

Ema Berta, n. / b. 1944 Sem Título V [Série Florestas e Mares] / Untitled V [Forests and Seas’ Series] (1989) Óleo sobre tela / Oil on canvas 180 x 150 cm Colecção Madalena e Liberto Cruz / Madalena and Liberto Cruz Collection

canídeos, animais que haviam surgido antes na pequena tela intitulada Oração (1985). Esta pequena série, que não teve qualquer designação específica e da qual se conhecem menos de dez telas, sublinha a relação de um único ser humano com o animal, em mundos que nada mais têm como pano de fundo senão diferentes tonalidades cromáticas, muita vezes de uma só cor, o que vem acentuar a ideia de solidão e abandono, mesmo quando os canídeos surgem na diagonal superior e sugerem uma origem celeste. Já nos desenhos da série Elasippos, as pinceladas substancialmente

empastadas

que,

em

simultâneo,

conferem profundidade e brilho à composição a óleo, são substituídas por traços sobrepostos que não só sugerem a desmultiplicação das figuras como acentuam um dinamismo disfuncional entre os dois gémeos mitológicos, sugerindo novamente a metáfora genesíaca da separação e da nova criação. Nesta série pode ainda incluir-se, do ponto de vista estilístico, o notável desenho Amadeo (1987), dedicado a Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918). Uma obra que não só evoca o imaginário e o bestiário patente na obra de Amadeo como assume uma marcada afirmação sexualizada das representações figurativas. Efeito que assume curiosas significações quando a figura à


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Santo celebrada na região entre Douro e Minho. 4

MENINAS A série Meninas parece constituir um contraponto de luz e serenidade face à turbulência, à rudeza, ao colorido e até a alguma da múltipla delineação e caótica sobreposição apresentadas em Elasippos. Pura ilusão, claro. Estas meninas, de membros robustos e roliços, anunciam sem pudor a sua celulite e não se coíbem sequer de desvendar uma provocante lingerie, combinando esse inesperado strip-tease com um olhar malicioso e um sorriso que nada tem de casto ou inocente. Particularmente nos óleos desta série, como Le Dejeuner sur l’ Herbe (1988) ou Les Grandes Baigneuses (1988), o que nos é mostrado é um jogo de olhares que leva o observador a interpretar a relação entre personagens como algo mais do que aquilo que ali se representa e a criar narrativas exteriores à obra. Nos desenhos desta série Ema Berta retoma o traço múltiplo e sobreposto, que já havia surgido anteriormente em Elasippos, tornando evidentes símbolos e representações sexualizadas que não surgiam nos óleos. Isto é particularmente notório no desenho Sem Título (1988), onde as pernas e braços da boneca assumem conotações fálicas e

esquerda do observador exibe despudoradamente o sexo, enquanto Amadeo tem o seu pudicamente ocultado. Como é óbvio, esta ocultação não é senão uma distracção daquilo que efectivamente ali se representa. Saindo do múltiplo e sobreposto bestiário da direita, aparece o dragão autor da púdica ocultação, insinuando-se entre as pernas de Amadeo. Mais uma clara alusão sexual que, contudo, é ultrapassada em significado pela interessantíssima e subtil evocação de uma obra de Amadeo – a tela intitulada Procissão Corpus Christi (1913), que apresenta um dragão característico dessa festividade do Corpo Santo celebrada na região entre Douro e Minho. 4

MENINAS A série Meninas parece constituir um contraponto de luz e serenidade face à turbulência, à rudeza, ao colorido e até a alguma da múltipla delineação e caótica sobreposição apresentadas em Elasippos. Pura ilusão, claro. Estas meninas, de membros robustos e roliços, anunciam sem pudor a sua celulite e não se coíbem sequer de desvendar uma provocante lingerie, combinando esse inesperado strip-tease com um olhar malicioso e um sorriso que nada tem de casto ou inocente. Particularmente nos óleos desta série, como Le Dejeuner sur

Ema Berta, n. / b. 1944 Retábulo de Santa Luzia / Retable of Saint Lucy (1994) Óleo sobre tela e madeira, estrutura de madeira e ferro / Oil on canvas and wood, wood and iron structure 150 x 140 x 90 cm Colecção da artista em depósito na Pousada de São Francisco, Beja / Artist’s Collection on loan to the Pousada de São Francisco, Beja




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o clímax dessa representação se consubstancia na lagarta que surge entre as pernas da menina. Assim, poder-se-ia dizer que nesta série se ensaia a evocação da infância e da inocência, ou da sua perda, como se estivéssemos perante memórias autobiográficas onde os laços das meninas nos remetem para a própria imagem da pintora enquanto criança. Laços que continuarão a surgir na série Florestas e Mares, onde as meninas perpassam por um mundo assumidamente estranho e fabuloso. Uma vez mais, um mundo alternativo, de contornos míticos. Esta série das meninas consolida ainda a consciente opção de Ema Berta pelos pastiches e paráfrases pictóricas, com composições que não só recriam e homenageiam obras de outros pintores como traduzem ainda as suas influências na artista e comprovam a sua capacidade plástica de adaptação e inovação.

PARÁFRASES PLÁSTICAS Como se referiu anteriormente, Ema Berta começara os seus conscientes e ostensivos pastiches na obra Oração (1985), onde os canídeos, para além de remeterem para uma simbologia que se pode aproximar do sagrado e dos seus guardiães, representam uma interpretação pós-moderna, mas também arquetípica, de anjos da guarda. Surgem, assim, como uma inesperada transposição simbólica das duas figuras femininas que Georges de La Tour (1593-1652)

Ema Berta, n. / b. 1944 Sem Título [Série Meninas] / Untitled [Girls’ Series] (1988) Técnica mista sobre papel / Mixed media on paper 100 x 70 cm Coleção Figueiredo Ribeiro / Figueiredo Ribeiro Collection – Quartel de Arte Contemporânea de Abrantes

l’ Herbe (1988) ou Les Grandes Baigneuses (1988), o que nos é mostrado é um jogo de olhares que leva o observador a interpretar a relação entre personagens como algo mais do que aquilo que ali se representa e a criar narrativas exteriores à obra. Nos desenhos desta série Ema Berta retoma o traço múltiplo e sobreposto, que já havia surgido anteriormente em Elasippos, tornando evidentes símbolos e representações sexualizadas que não surgiam nos óleos. Isto é particularmente notório no desenho Sem Título (1988), onde as pernas e braços da boneca assumem conotações fálicas e o clímax dessa representação se consubstancia na lagarta que surge entre as pernas da menina. Assim, poder-se-ia dizer que nesta série se ensaia a evocação da infância e da inocência, ou da sua perda, como se estivéssemos perante memórias autobiográficas onde os laços das meninas nos remetem para a própria imagem da pintora enquanto criança. Laços que continuarão a surgir na série Florestas e Mares, onde as meninas perpassam por um mundo assumidamente estranho e fabuloso. Uma vez mais, um mundo alternativo, de contornos míticos. Esta série das meninas consolida ainda a consciente opção de Ema Berta pelos pastiches e paráfrases pictóricas, com composições que não só recriam e homenageiam obras de outros pintores como traduzem ainda as suas influências


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colocou na cena da natividade concebida em Le Nouveau Né (c. 1648), a obra que possivelmente terá inspirado esta composição de Ema Berta. A luminosidade da obra seiscentista, gerada através de uma vela escondida pela mão direita da criada, reflecte-se no vestuário das figuras femininas, no seu rosto e no branco do capuz e das faixas que envolvem o bébé. Na sua obra de 1985, a artista optou por reflectir a luminosidade através das pinceladas brancas espalhadas por quase toda a tela, como se as figuras estivessem envolvidas por múltiplas e caleidoscópicas reverberações de luz. Estas paráfrases de obras clássicas continuaram obviamente em Le Déjeuner sur l’herbe (1988), que evoca a obra homónima de Édouard Manet (1832-1883), datada de 1863, e Les Grandes Baigneuses (1988), evocando a obra homónima de Auguste Renoir (1841-1919), datada de 1884-1887. Continuam ainda com a evocação dos peixinhos vermelhos de Henri Matisse (1869-1954), muitos deles pintados em 1912, na obra Sem Título I (2000), ou em As Engomadeiras (1994), obra que remete para A Engomadeira (1938) de Almada Negreiros (18931970), As Engomadeiras (1915), de Carlos Reis (1863-1940), e também para As Engomadeiras [Repasseuses] (c. 1884-1886) de Edgar Degas (1834-1917). 5 Claramente, no entanto, a obra de Carlos Reis é a referência directa de Ema Berta, subvertendo a artista a brancura feérica e

na artista e comprovam a sua capacidade plástica de adaptação e inovação.

PARÁFRASES PLÁSTICAS Como se referiu anteriormente, Ema Berta começara os seus conscientes e ostensivos pastiches na obra Oração (1985), onde os canídeos, para além de remeterem para uma simbologia que se pode aproximar do sagrado e dos seus guardiães, representam uma interpretação pós-moderna, mas também arquetípica, de anjos da guarda. Surgem, assim, como uma inesperada transposição simbólica das duas figuras femininas que Georges de La Tour (1593-1652) colocou na cena da natividade concebida em Le Nouveau Né (c. 1648), a obra que possivelmente terá inspirado esta composição de Ema Berta. A luminosidade da obra seiscentista, gerada através de uma vela escondida pela mão direita da criada, reflecte-se no vestuário das figuras femininas, no seu rosto e no branco do capuz e das faixas que envolvem o bébé. Na sua obra de 1985, a artista optou por reflectir a luminosidade através das pinceladas brancas espalhadas por quase toda a tela, como se as figuras estivessem envolvidas por múltiplas e caleidoscópicas reverberações de luz. Estas

paráfrases

de

obras

clássicas

continuaram

obviamente em Le Déjeuner sur l’herbe (1988), que evoca a

Ema Berta, n. / b. 1944 Sem Título I [Série Florestas e Mares] / Untitled I [Forests and Seas’ Series] (1989) Óleo sobre tela / Oil on canvas 90 x 70 cm Colecção Particular / Private Collection



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cegante do original ao colocar como fundo um conjunto de pinceladas policromáticas que ampliam a luminosidade tal como brilhante e multicolorida pastilha de vidro. Multiplicam-se ainda as referências a outras obras clássicas, até de escultura, como na tela Santíssima Trindade (1994) que, tal como Sem Título II (2001), evoca esculturas tardo-medievais, e na tela Pietà (2001) que obviamente evoca a famosa escultura de Michelangelo Buonarroti (1475-1564), datada de 1499, referências ocorridas já em obras suas da primeira metade da década de 1990. Recuam outras referências, ainda, a divindades da antiguidade clássica, com acontece em Sem Título III (2000), uma evocação de Artemis Ephesia, não só deusa da caça mas também da abundância, cujas características terão evoluído sincreticamente de uma divindade mais antiga, Ishtar. Com a série Índios essa evocação remete ainda para obras de outras culturas, como o totem representado em Xamã e Totem (2002), ou a escultura Xamã (1997), inspirada na escultura Shaman (1989), da autoria do escultor David Ruben Piqtoukun (n. 1950), um canadiano de origem Inuit. 6 Este percurso de paráfrases pictóricas manteve-se constante e é possível documentá-lo ainda num esboço datado de 2007, onde, como memória das suas estadias no litoral da Bretanha, surge uma figura evocativa da icónica obra Dans le vent (1905-

obra homónima de Édouard Manet (1832-1883), datada de 1863, e Les Grandes Baigneuses (1988), evocando a obra homónima de Auguste Renoir (1841-1919), datada de 18841887. Continuam ainda com a evocação dos peixinhos vermelhos de Henri Matisse (1869-1954), muitos deles pintados em 1912, na obra Sem Título I (2000), ou em As Engomadeiras (1994), obra que remete para A Engomadeira (1938) de Almada Negreiros (1893-1970), As Engomadeiras (1915), de Carlos Reis (1863-1940), e também para As Engomadeiras [Repasseuses] (c. 1884-1886) de Edgar Degas (1834-1917). 5 Claramente, no entanto, a obra de Carlos Reis é a referência directa de Ema Berta, subvertendo a artista a brancura feérica e cegante do original ao colocar como fundo um conjunto de pinceladas policromáticas que ampliam a luminosidade tal como brilhante e multicolorida pastilha de vidro. Multiplicam-se ainda as referências a outras obras clássicas, até de escultura, como na tela Santíssima Trindade (1994) que, tal como Sem Título II (2001), evoca esculturas tardomedievais, e na tela Pietà (2001) que obviamente evoca a famosa escultura de Michelangelo Buonarroti (1475-1564), datada de 1499, referências ocorridas já em obras suas da primeira metade da década de 1990. Recuam outras referências, ainda, a divindades da antiguidade clássica, com acontece em Sem Título III (2000),

Ema Berta, n. / b. 1944 Sem Título III [Série Florestas e Mares] / Untitled III [Forests and Seas’ Series] (1989) Óleo sobre tela / Oil on canvas 90 x 70 cm Colecção António Prates / António Prates Collection



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