Cadernos de História e Memória I: A Raret e a Glória do Ribatejo - 70 anos da primeira retransmissão

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A RARET

e a Glória do Ribatejo 70 ANOS DA PRIMEIRA RETRANSMISSÃO 4 de julho de 1951

Concelho de Salvaterra de Magos


Cadernos de História e Memória I


Ficha Técnica Propriedade Câmara Municipal de Salvaterra de Magos Coordenação Presidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, Eng.º Hélder Manuel Esménio Textos Roberto Caneira Grafismo Soraia Magriço Foto de Capa Antenas da Raret – Década de 80 (séc. XX) Execução Gráfica Gráfica Central de Almeirim, Lda Tiragem 2000 exemplares Data: Ano de 2021 Depósito legal: 481699/21 ISBN: 978-972-96915-9-1


Prefácio

Cadernos de História e Memória I

A 4 de julho celebram-se os 70 anos da primeira retransmissão da RARET e consequente instalação na Glória do Ribatejo. O Município de Salvaterra de Magos não podia deixar de celebrar esta data e elaborou várias iniciativas para relembrar a importância histórica do maior centro emissor europeu da Rádio Free Europe, que tinha como principais objetivos enviar para os países de leste da “cortina de ferro” conteúdos políticos e sociais que eram proibidos nestes países. A instalação da RARET trouxe grandes alterações socioeconómicas à localidade da Glória do Ribatejo, que à época era apenas uma pequena aldeia rural. Com a chegada dos americanos verificou-se a empregabilidade de mão de obra local masculina e feminina na RARET, o acesso à luz elétrica e água canalizada, saneamento básico, o asfaltamento da atual estrada nacional 367, a doação de terrenos para a construção da Casa do Povo, Edifício da Junta de Freguesia, Campo de Futebol, e a construção de uma Escola. Estes são alguns exemplos de beneficência por parte da RARET. A importância histórica da RARET foi recentemente alvo de interesse por parte da NETFLIX, que acolheu a primeira série portuguesa dedicada à RARET. Esta série tem como nome “Glória” e trata-se de um “thriller” passado durante a guerra fria na Glória do Ribatejo onde se localizava as instalações da RARET. Esta série certamente vai contribuir para a divulgação da etnografia e da história da Glória do Ribatejo e para o incremento do turismo local. O Município de Salvaterra de Magos requalificou o Espaço Jackson, um local que está umbilicalmente ligado à RARET, pois foi aqui que ficaram os primeiros americanos e trabalhadores, aquando da instalação das primeiras antenas, um espaço que guarda também a memória histórica da RARET. A edição desta brochura e respetiva exposição, a publicação da revista MAGOS número especial dedicado à RARET, entre outras atividades, são instrumentos para as gerações futuras compreenderem a importância da RARET na história contemporânea e nas alterações socioculturais que promoveu na Glória do Ribatejo. O Presidente da Câmara Municipal

Eng. Hélder Manuel Esménio

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A RARET

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Cadernos de História e Memória I

1951 – Início da RARET Após a 2.º Guerra Mundial, abateu-se sobre a Europa, segundo a palavras do Primeiro Ministro Britânico Winston Churchill, “uma cortina de ferro”, que dividiu a Europa Ocidental e a Europa Oriental, esta última ficou sob o domínio da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS. Vários países de Leste ficaram subjugados pela influência política soviética. Nos Estados Unidos da América é criado em 1949, o National Committee for a Free Europe (Comité Nacional para a Libertação da Europa), organização anticomunista, financiada pela CIA. Esta organização criou a Rádio Free Europe (Rádio Europa Livre), destinada à difusão de emissões radiofónicas para os países da designada “cortina de ferro”. Estas emissões continham conteúdos políticos e de propaganda para impedir o carácter expansionista da URSS. A segunda metade do séc. XX, até ao final da década de 80, é marcada pelo confronto de dois blocos ideologicamente distintos e opostos: Americanos e Soviéticos. No meio destas colossais potências é instalado na Glória do Ribatejo o maior complexo europeu de retransmissão da “Rádio Free Europe” – a RARET. A Glória do Ribatejo teve um papel preponderante e determinante na história do conflito da guerra fria que marcou o século XX.

Raret 1951 04


No dia 20 de abril de 1951 é publicado em Diário da República, a constituição da Sociedade Anónima de Rádio Retransmisão – RARET. A escolha do terreno para a criação do centro de retransmissão foi a aldeia de Glória do Ribatejo, concelho de Salvaterra de Magos. Havia uma propriedade designada “Herdade de Nossa Senhora da Glória”, que tinha 184 hectares, o que permitia a edificação de um grande e complexo centro de retransmissão que poderia ser ampliado no futuro. Este terreno pertencia ao Conde Monte Real, proprietário de Salvaterra de Magos, que o vendeu à RARET pelo preço total de um milhão e quinhentos mil escudos. O terreno reunia as condições ideais, estava apenas localizado a 80km de Lisboa, era discreto e acima de tudo congregava o essencial para as retransmissões, a topografia plana sem obstáculos naturais que impedissem a propagação de ondas de rádio.

Entrada do Centro Retransmissor – Década de 70 (séc. XX)

Concelho de Salvaterra de Magos

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Cadernos de História e Memória I

A primeira emissão ocorre no dia 4 de julho de 1951, data simbólica para os americanos - Dia da Independência dos EUA. Esta primeira retransmissão decorreu num camião de seu nome “Bárbara”, que possuía apenas um pequeno emissor de 7,5kw. Nesta primeira fase as ondas de rádio foram apontadas para a Polónia, Hungria, Roménia, Bulgária e a Checoslováquia. A instalação das primeiras antenas de retransmissão implicou uma grande logística, pois estes materiais vinham pelo Tejo, por via fluvial nos barcos varinos que aportavam no Cais da Vala em Salvaterra de Magos e depois seguiam em camionetas para a Glória do Ribatejo.

Emissor Bárbara

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Instalação das primeiras antenas – Década de 50 (séc. XX)

Concelho de Salvaterra de Magos

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Início das fundações do Centro Retransmissor – Década de 50 (séc. XX)

Construção do Centro Retransmissor – Década de 50 (séc. XX) 08


Antenas e Centro de Retransmissor – Década de 80 (séc. XX)

Montagem de antenas – Década de 80 (séc. XX) Concelho de Salvaterra de Magos

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Trabalhadores da Raret- Década de 60 (Séc.XX)

Manutenção do centro emissor - Década de 70 (Séc. XX) 10


Antenas de retransmissão da Raret - Década de 60 (Séc. XX) Concelho de Salvaterra de Magos

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Montagem de antenas – Década de 80 (séc. XX)

Montagem de antenas – Década de 80 (séc. XX) 12

Manutenção das antenas – Década de 70 (séc. XXD


Antenas da Raret – Década de 80 (séc. XX)

Centro Retransmissor – Década de 80 (séc. XX) Concelho de Salvaterra de Magos

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A RARET e as alterações socioeconómicas na comunidade da Glória do Ribatejo A chegada dos americanos à Glória do Ribatejo contribuiu para alteração de costumes e práticas sociais de uma comunidade predominantemente rural, que estava privada de uma eficiente rede de água, de saneamento básico, de electricidade, de saúde e possuía uma elevada taxa de analfabetismo. Com a instalação da RARET tudo isso mudou. Antes da instalação da RARET, a Glória era essencialmente uma comunidade rural, que vivia de rendimentos sazonais, conforme o ciclo agrícola, predominava a agricultura de subsistência, criação de gado vacum e caprino e a extração de cortiça. Este mundo rural, rapidamente sofre grandes mutações socioeconómicas, a população masculina participa na construção do centro emissor, e mais tarde muitos elementos são incorporados na RARET como guarda-fios, serralheiros, carpinteiros, mecânicos, condutores, entre outras profissões, o mesmo se passa com a mão-de-obra feminina que assume tarefas de limpeza ou de cozinha. Para além do emprego de mão-de-obra local, desenvolveu esforços para a instalação da rede eléctrica e de água, asfaltou a estrada de ligação à Glória, cooperou para a criação da Junta de Freguesia, doou terrenos onde se edificaram a Casa do Povo, o campo de futebol ou a Junta de Freguesia, auxiliou pobres e os mais carenciados com a distribuição de um bodo pelo Natal, construiu um posto médico com uma maternidade onde gerações 14

e gerações de glorianos nasceram, edificou a escola industrial, que permitiu que muitos glorianos prosseguissem o estudos, foi certamente devido ao rigor e seriedade do ensino na RARET que muito alunos ingressaram na Universidade. A RARET foi uma instituição benemérita, que muito contribuiu para o progresso social, cultural e económico da Glória do Ribatejo.

“Praça” de Trabalho – Década de 60 (séc. XX)

Rancho de “Farnel aviado” – Década de 60 (séc. XX


Cingeleira Ana “Reboca” junto do Chaparrão – Década de 60 (séc. XX)

Cingeleiro a dar de comida ao gado Década de 60 (séc. XX)

Recolha de lenha nos terrenos da Raret – Década de 70 (séc. XX)

Concelho de Salvaterra de Magos

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Escola da Raret - Década de 80 (Séc.XX)

Turma da Raret - Década de 80 16


Entrega de diploma a aluno da Raret - Década de 60 (Séc.XX)

Alunos da Raret - Década de 60 (Séc.XX) Concelho de Salvaterra de Magos

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Professora Ester, Benvinda e Rui - Década de 80 (Séc.XX)

Professor Bragança

Campo de jogos - Década de 80 (Séc.XX) Escola da Raret - Década de 80 (Séc.XX)

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A queda do Muro de Berlim e as alterações nos países de Leste Em 1974, a revolução de Abril trouxe ventos de mudança políticos ao País. Numa época de algum extremismo político que surgiu a seguir à revolução dos cravos, a RARET continuou a sua retransmissão para os países de Leste. Neste período conturbado destaca-se, porém, uma ação terrorista que envolveu um engenho explosivo colocado na base de uma antena de transmissão. Atentado que segundo se consta esteve associado às FP-25, mas que nunca foi confirmado, nem sequer trouxe consequências à transmissão da RARET. No início da década de 90, grandes alterações políticas ocorreram na Europa, a queda do muro de Berlim, a perestroika do Gorbachev que provocou o colapso da URSS e a consequente democratização dos países de Leste, lentamente ditaram o fim das transmissões e o progressivo abandono das instalações da RARET. Nos primeiros anos da década de 90, vários empregados da RARET começam a sair, recebem avultadas indemnizações negociadas entre o estado português e americano e todos os trabalhadores receberam um diploma assinado pelo Presidente dos EUA, Bill Clinton, onde enaltece o trabalho desempenhado na RARET. A 4 de julho de 1996 é desligado oficialmente o complexo de retransmissão da RARET, após 45 anos de retransmissões. Durante décadas as grandes antenas de transmissão que faziam parte integrante da paisagem gloriana, contrastavam com a pacatez e a ruralidade da charneca gloriana, foram desmanteladas e hoje não existe infelizmente nenhum registo histórico que relembre a importância que este complexo de transmissão teve ao nível internacional no contexto da guerra fria.

Queda do muro de Berlim - 1989 Concelho de Salvaterra de Magos

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Cartoon de Desmenbramento da União Soviética

Queda do muro de Berlim - 1989 20

Cartoon da Perestroika


ESPAÇO JACKSON

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Espaço Jackson O Espaço Jackson está umbilicalmente ligado à RARET, pois aqui ficaram alojados os primeiros trabalhadores portugueses e americanos quando iniciaram a montagem das primeiras antenas de retransmissão. Este espaço foi recentemente requalificado pela Câmara Municipal de Salvaterra de Magos. Era conhecido no passado pela população gloriana como “As Carolinas” e integrava a propriedade “Sesmaria do Seabra”, cujo dono era o abastado proprietário agrícola Álvaro Ferreira Roquette de Salvaterra de Magos, que em 1934 vende esta propriedade à Família Conde Monte Real, também de Salvaterra de Magos. Os imóveis que integravam as “Carolinas” tinham como função albergar os ranchos de trabalhadores rurais: “gaibéus”, “caramelos” e “ratinhos”, que sazonalmente se deslocavam para os trabalhos agrícolas a efetuar na Herdade de Nossa Senhora da Glória, eram os designados “quartéis” onde permaneciam durante a faina agrícola. A primeira referência cartográfica às “Carolinas” está mencionada num mapa de aforamento de início do séc. XX (1904), que foi promovido pela Junta de Paróquia de Muge, onde está bem delineado este espaço. Aquando da escritura em 1934, esta propriedade é designada por Herdade de Nossa Senhora da Glória e era composta por terrenos de pasto, vinhas, sobreiros, casas para palheiros, para gado e criados: «E pelos primeiros outorgantes, Dona Maria da Luz Cardoso Pereira da Silva Melo e Faro Pessanha, e seu irmão Jorge Cardoso Pereira da Silva de Melo e Faro, foi dito: - que são donos e legítimos possuidores, em comum e partes iguais, do prédio rústico denominado de Herdade de Nossa Senhora da Glória (antiga Sesmaria do Seabra) situada na Glória, freguesia de Muge, concelho de Salvaterra de Magos, composto de terras para pasto, vinha, sobreiros, casas para palheiros, para gado e para criados, em parte da qual existe uma morada de casas com quatro divisões, que ocupa a superfície coberta de cento e noventa e oito metros quadrados, confrontando: do norte, com a Estrada Municipal; do sul, também com Estrada Municipal; do nascente, com a povoação da Glória; e do poente , com a estrada da Ribeira, sob o artigo tresentos e cincoenta e dois e na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo tresentos e quarenta e seis (…)». Em 1951, os Herdeiros do Conde Monte Real venderam a propriedade de Nossa Senhora da Glória à RARET pelo valor de um milhão e quinhentos mil escudos. A história do nome Hotel Jackson está associada a Charles Douglas Jackson, que foi Presidente da Rádio Free-Europe entre 1951 e 1952. E foi nessa qualidade que esteve em Portugal, tendo visitado as instalações do Centro Emissor da RARET na Glória do Ribatejo, por ocasião da inauguração das mesmas em novembro de 1952. Na visita guiada que então realizou, os funcionários quiseram prestar-lhe 22


homenagem e relembrando os primeiros tempos que passaram na Glória, levaram C.D. Jackson ao local onde tinham ficado provisoriamente instalados. Ao explicarem as condições das instalações precárias onde viveram, surgiu a ideia de batizar o local de “Hotel Jackson”. C.D. Jackson teria achado graça à iniciativa e logo ali prometeu que as futuras instalações teriam melhores condições para acomodar funcionários, que em muito ultrapassariam as comodidades disponibilizadas pelo “Hotel Jackson”. O nome ficou para a posterioridade como forma de relembrar o Presidente da Rádio Free Europa. Atualmente este espaço foi recuperado e é uma infraestrutura cultural polivalente, que integra o pólo da Biblioteca Municipal, um átrio para exposições, um auditório para cerca de duas centenas e meia de pessoas sentadas, apoiado por uma régie e camarins, e inclui ainda o espaço das coletividades, onde várias associações e coletividades têm a sua sede.

Charles Douglas Jackson

Perspectiva do Largo 29 de Agosto. Ao fundo o Jackson - Década de 50 (Séc. XX) Concelho de Salvaterra de Magos

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Cadernos de História e Memória I

Mapa de aforamentos da Glória já com a localização do Jackson – 1904

Planta da Raret – Arquivo da Defesa Nacional – 1953 24


Crianças a caminho da escola. Ao fundo o Jackson - Década de 60 (Séc.XX)

Rua 25 de Abril. Ao fundo o Jackson - Década de 80 (Séc.XX) Concelho de Salvaterra de Magos

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Espaço Jackson requalificado - 2020

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