O Falcao e a Formiga Ilustraรงoes Pedro Rocha e Mello
Para o meu filho Salvador, que desde sempre me inspirou
“O Falcão e a Formiga” vem juntar-se à colecção de livros infantis publicados pela Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, que têm por objectivo promover e divulgar a Falcoaria Real, dando a conhecer aos mais novos a história do concelho de Salvaterra de Magos de uma forma divertida e didáctica, incentivando a hábitos de leitura. A autora recorre a uma família de falcões para transmitir aos mais novos que nunca devem desistir dos seus sonhos, mas sim lutar por eles, aproveitando também a oportunidade para relembrar os pais que devem preparar os filhos para voar, deixando-os sair do “ninho” para viverem as melhores aventuras, com a certeza de que à sua espera têm umas asas abertas. Apresentado num género literário que difere dos outros livros já publicados, esta fábula da conceituada escritora Rita Ferro e ilustrada por Pedro Rocha e Mello é uma óptima sugestão para leitura em família. Caro leitor aceite o nosso desafio e voe connosco nesta aventura!
O Presidente da Câmara Municipal
Hélder Manuel Esménio
Nota: A autora nĂŁo segue o acordo ortogrĂĄfico.
O Falcao e a Formiga Rita Ferro Ilustraรงoes Pedro Rocha e Mello
CapĂtulo I Uma famĂlia com asas
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Era uma vez uma família muito bonita, talvez mais do que as outras por ter asas, que vivia nas Montanhas Rochosas do Canadá, na província de Alberta. Era uma região magnífica, com rios e lagos a perder de vista, onde o Inverno gelava os ossos e a neve dificultava a caça. Ainda assim, aquela família, tão unida, tão alegre, tão inteligente, ajudava a aquecer o Inverno. Junto dela ninguém se sentia infeliz e, por vezes, nas manhãs mais tristes, o sol aparecia só para a visitar. Entre pais e filhos, eram seis. Jacinto Falcão fumava cachimbo e tinha as suas manias, mas era um excelente pai de família, muito atento e responsável, com um profundo amor pela mulher e pelos filhos. A mãe Falcão, Adriana de seu nome, muito palradora e vistosa, usava sempre lenços de cores fortes na cabeça, encarnados, cor-de-rosa ou cor-de-laranja. Vaidosa, nunca voava sem batom e passava o dia a piar para que as outras aves pudessem admirar a sua voz afinada. O casal tinha quatro filhos, cheios de saúde – dois machos e duas fêmeas – e eram, todos eles, divertidos e talentosos. O Siza era o mais velho e o que mais ajudava a mãe nas tarefas domésticas. Todos os dias se oferecia para levantar a mesa, lavar a louça e limpar a casa, e conseguia ser ainda melhor do que o pai a fazer ninhos. As aves de rapina, como todas as outras, constroem-nos para guardarem os ovos e protegerem as crias recém-nascidas, mas o deles era habitado por toda a família. Não os usam para dormir, procurando cavidades nas rochas ou árvores altas para descansarem, mas o daquela família era tão requintado e espaçoso que era ali mesmo que gostavam de estar, de comer e de dormir. O Siza fazia ninhos de todos os tamanhos e feitios com uma rapidez espantosa. Era o seu dom, a sua paixão, e nascera com o chamado “bicho-carpinteiro”. Sempre que a chuva ou o vento lhes estragava a casa, e as formas do ninho, sempre as mesmas, começavam a aborrecê-lo, 3
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construía outro, sempre mais bonito e caprichado. Fazia-os em forma de taça, como a maior parte dos ninhos, mas entrançando os ramos como ninguém, ou com linhas modernas, inspirado nos modelos de casas futuristas com que se cruzava, quando viajavam todos juntos, os pais e os irmãos, alinhados no céu como setas, voando por entre o sol e as nuvens, as montanhas e a neve, com uma velocidade estonteante. Siza tinha, também, um excelente coração: se um vizinho quebrava uma asa ou magoava uma garra, e não tinha possibilidades de trabalhar, oferecia-se para lhe fazer o ninho sem lhe cobrar um cêntimo, encarregando-se, ele próprio, de procurar o material necessário para a empreitada, como galhos secos, fungos, pêlos de mamíferos, argila ou até resíduos urbanos, e ervas ou penas do seu próprio corpo para atapetar o chão. Uma vez, criou um modelo que imitava a Torre Eiffel, vertical, com quatro entradas e três janelas, tão original e assombroso que vieram falcões de todo o Mundo só para lhe admirar a obra-prima. Não vieram só falcões. Chegaram também corujas, águias reais, gaviões, patos bravos e passarada de todas as espécies, invejosos daquela proeza, que fotografaram o ninho de todos os ângulos para tentarem, depois, reproduzi-lo nos seus países e nas suas árvores. Mas, por muito que se esforçassem, não atingiam a mesma perfeição. Siza era considerado o maior tecelão de ninhos a Norte do Equador, e passariam muitos anos antes que nascesse uma ave com o mesmo engenho, o mesmo entusiasmo e a mesma imaginação. Orgulhoso, o pai dizia, mordendo o cachimbo: – Ou muito me engano ou este vai ser arquitecto! – Ah, pois vai – concordava a mãe. – Herdou o teu talento.
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Tinha razão, saíra ao pai naquele aspecto, mas conseguia ser ainda mais imaginativo. Uma vez, sofreram uma tempestade que lhes destruiu o ninho, rachando-o ao meio, o que os obrigou a refugiarem-se numa gruta gelada, encostados uns aos outros para sobreviverem ao frio. A mãe até se constipou, coitadita, e, durante as duas semanas em que nevou sem parar, não cantou nem pôs batom nem usou os seus lenços coloridos – foi como se perdesse a alma. Mas foi o tempo que bastou para que Siza tratasse de oferecer à família o mais belo dos ninhos, em forma de chalé alpino, com cozinha e quartos para todos, uma sala para brincarem e estudarem, uma oficina para guardarem as ferramentas e um ateliê de desenho para ele próprio trabalhar – até lareira tinha. Era um prodígio, o Siza, mas as irmãs, embora com uma vocação distinta, não lhe ficavam atrás em competência. Diana e Artemísia, duas adolescentes cheias de força e de alegria de viver, eram caçadoras inatas. Desde pequenas que tinham aprendido com os pais a sua arte e, como o Jacinto era velho para aventuras e a Adriana se tornara preguiçosa com a idade, encarregavam-se, todos os dias, de arranjar carne para os seis, voando em par para perseguir as suas presas e, em conjunto, trazerem ratos, toupeiras, sapos, cobras e lagartos frescos para o almoço e para o jantar. Dava gosto observar-lhes o voo: pareciam torpedos a cruzar os céus ou a descer em voo picado para capturar as suas presas. A mãe tinha tanta vaidade nelas que nem disfarçava, escovando-lhe as penas todas as noites, antes de dormirem, como as aias fazem às princesas. Eram lindas e pareciam gémeas, ambas com um sinal azul na testa, arredondado como uma pequena medalha, que as tornava exemplares únicos no Mundo. – Já viste como as nossas filhas são tão bonitas e diferentes das dos nossos amigos? – perguntava ao marido. – Lindas! – respondia ele. E olhando-a, apaixonado: – Mas consegues ser ainda mais bonita do que elas! 8
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Eram alegres e faladoras e, todas as noites, à frente da televisão, tricotavam pequenas peças de vestuário para oferecer à família e aos amigos: uma camisola para o pai, uns sapatinhos para a cria de um vizinho, um gorro para o Siza ou umas meias para Verne, o mais novo dos irmãos. Mas faziam tanto alarido a falarem e a rirem-se que o pai, a precisar de sossego, tinha de as mandar calar de vez em quando. – Não as mandes calar, amor – pedia a Adriana. – Não vês que estão felizes? – Ora essa – respondia Jacinto, poisando o livro. – E na minha felicidade? Ninguém pensa? As tuas filhas são umas tagarelas como não há memória. Saem a ti na beleza, é verdade, mas também na algazarra. E eu preciso de ler. Não consigo concentrar-me em nada com o arraial que fazem aqui todas as noites. O pai tinha razão, eram irrequietas e ruidosas. Mas a verdade é que enchiam uma casa ou, mais do que isso, enchiam a própria vida com a sua agitação permanente e as suas gargalhadas tão contagiantes que espalhavam boa disposição por onde quer que passassem, deixando atrás de si um rasto de felicidade que perdurava na memória das outras aves. O pai queixava-se, mas, sempre que elas saíam para caçar, e se demoravam, a casa não parecia a mesma. Sentiam o peso da sua ausência como um luto, e o resto da família deixava-se entristecer. A mãe, tão alegre quanto elas, não cantava e não se ria, e até Verne, que era um espírito livre e não se prendia a nada, não parecia o mesmo: – Aonde foram as manas? – Caçar – respondia o irmão. – Bolas, nunca mais voltam! – Voltam, voltam – dizia o pai. – Está descansado que não se perdem! – Calma – pedia a mãe –, ainda nem há uma hora saíram! – Parece que foi há mais – respondia ele, desolado. – É que sem elas em casa fico desorientado! O Verne era o sonhador da família. Sendo o mais novo e também o mais rebelde dos 10
filhos, era robusto como um touro, salvo as devidas proporções, e, ao mesmo tempo, muito meigo e afectuoso. Era amado por todos os animais, mas tinha um problema que alarmava os pais: crescera sem grande inclinação para o trabalho e para os estudos. Não gostava muito de estar em casa, não gostava muito de caçar, e tinha, aparentemente, duas únicas paixões: as formigas e a aviação. Tão engraçado, o Verne! Ou olhava a terra para contemplar as formigas, ou olhava o céu para seguir o rasto aos aviões. Ah, o que ele admirava as formigas e invejava os aviões! Comecemos pelas primeiras. Dava-se com formigas de todas as estirpes, conversando com elas como se falasse a mesma língua, e, com o bico, riscava caminhos na terra para lhes facilitar as caminhadas. Talvez fosse uma amizade um pouco extravagante, mas, no reino animal, tal como na natureza humana, existem ligações surpreendentes. Podia dizer-se que era o único animal selvagem da Terra a preocupar-se com a fragilidade das formigas e com a desvantagem do seu tamanho. Pedia a todo o momento, numa angústia enternecedora: – Cuidado, não as pisem! As formigas também são gente. E são. Empreiteiras prodigiosas, engenheiras ainda mais especializadas do que o irmão, são a comunidade mais organizada do Mundo, construindo cidades inteiras e utilizando uma fórmula nunca superada pelos homens: o trabalho de equipa. Há tantas, tantas, no Mundo, que o peso delas, no planeta, é maior do que o de toda a humanidade. Mesmo assim, não se impõem de nenhuma forma, convivem com os outros insectos sem grandes birras e são incapazes de matar intencionalmente. Mas não são cobardes: têm ferrão e, quando as atacam, defendem-se. Diz-se que, apesar de pequeninas, são tão fortes, tão fortes, tão fortes, que conseguem sobreviver à corrente dos microondas. Todavia, ninguém as inveja: todos os dias são esmagadas com indiferença por sapatos humanos, patas animais, pneus de automóveis, pedras rolantes ou ventanias doidas. 11
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As cigarras, essas folionas, fazem troça das formigas um pouco por inveja: jamais saberiam viver com a mesma ordem e o mesmo bom-senso, nem conseguir, como elas, armazenar comida para o ano inteiro ou escapar ao gelo e à neve em abrigos subterrâneos construídos a muitos metros de profundidade. – Quando olho as formigas – dizia o Verne – é como se estivesse na Lua a estudar os homens. Só a escala é que varia. Não preciso de ir para a universidade para conhecer nem os animais nem os seres humanos. Basta-me olhar a terra, onde todas as respostas foram escritas, há milhões de anos, pelas formigas. O pai, gasto e cansado, esforçava-se por entender aquele filho: – Então, se não queres estudar, queres ser o quê, quando fores grande? – Piloto-aviador! Da primeira vez que ouviu isto, o pai só não caiu da cadeira porque estava, felizmente, bem sentado. Mas sentiu um choque tal que a mãe teve que lhe fazer um chá de valeriana para o acalmar. – Estás a falar a sério? – perguntou, ainda esperançado que aquilo não passasse de uma fantasia passageira. – Sim, pai. Nunca falei tão a sério. – Mas não faz sentido nenhum, filho. És parvo? Nasceste falcão e não homem! Os homens é que tiram cursos e brevês para serem pilotos e comandantes. Não há memória de que uma ave... – Pai – interrompeu. – Se os homens já voam, por que motivo não podem os falcões pilotar? – Porque os homens têm braços e as aves têm asas, filho! Não vês a diferença? – Vejo, mas acho que uma coisa não tira a outra. De onde é que o pai pensa que vem a palavra avião? – Vem de ave – disse a mãe. Jacinto estava impaciente, mas ele também: – Desculpe lá, pai, mas acho que o pai às vezes não consegue sonhar! 13
– Sonho, pois – protestou Jacinto, ofendido. E levantando a voz: – Sonho com a melhor carreira para os meus filhos! – Pois olhe, pai, sei que o pai é generoso e deseja o melhor para mim, e agradeço-lhe muito. Mas queria que soubesse que eu, quando quero sonhar nesta casa, tenho que adormecer primeiro. – E com uma voz muito doce: – Não seria melhor desejar que os meus sonhos se realizassem comigo acordado, para me ver feliz? O pai esforçava-se ao máximo para tentar compreendê-lo, mas tinha dificuldade: – E como pode um falcão pilotar, explicas-me? – Pai, pense nisto: eu posso conseguir mais do que os homens conseguem, ou seja, ser piloto e, ao mesmo tempo, uma companhia de aviação. O pai ficou de boca aberta a olhar para ele. – Uma companhia de aviação? – E repetindo: – Uma companhia de aviação? E rindo para não chorar: – Endoideceste! Agora é que endoideceste mesmo! A mãe já não os podia ouvir: – Ai, filhos, parem lá de discutir, porque as meninas estão aí a chegar e não quero que elas vos encontrem zangados. Foi como se não a ouvissem: – E então como seria? Pilotavas-te a ti próprio, era? – Sim, pai. Qual é o problema? Sei onde é o Norte e o Sul, o Este e o Oeste, e nunca me perdi a voar. Nisso, faça-me justiça, não sou menos do que os meus irmãos. E posso transportar passageiros mais pequenos do que eu para qualquer lugar do Mundo. O pai não queria acreditar no que ouvia. Muito sério, pousou a mão no ombro do filho e olhou-o nos olhos: – O teu destino é caçares, Verne! Finalmente, o filho encontrava ali uma boa oportunidade para se defender: 14
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– Também o do Siza era, se calhar, mas a verdade é que ele hoje em dia, praticamente, só faz ninhos! E o Siza, ouvindo o seu nome, correu a defender-se: – Sim, mas sei caçar! – Também eu – respondeu Verne. – Não tão bem como os teus irmãos – disse o pai. Adriana não achou graça e ralhou ao marido: – Jacinto, não ofendas o miúdo. Nem parece teu... – Deixe estar, mãe – disse ele, já arrependido de ter falado. – Sei caçar o suficiente para sobreviver. Mas o pai acha que, se não caçar como ele ou como os manos, deixo de ser falcão. O pai não se conformava com o que ouvia ao filho. Enchia o papo, sacudia as penas e rodava a cabeça, transtornado: – Animais mais pequenos do que tu? Ora essa! Para distâncias curtas, podes carregar o máximo até três esquilos; mas, em distâncias grandes, isso não é possível. Desequilibras-te e acabas por deixar cair alguém! E curiosa: – E que tipo de animais estavas a pensar transportar, diz lá? Fez-se um silêncio e, no momento em que o pai se preparava para largar uma gargalhada, Adriana fez-lhe um sinal proibitivo. Chegava. Era hora de jantar, as filhas estavam a voltar da caça e o ambiente em casa estava de se cortar à faca. Diana e Artemísia chegaram logo a seguir, como a mãe dissera, todas risonhas, e o Siza, sempre prestável, correu a aliviá-las do peso que carregavam. Tinham trazido dois coelhos bravos e a mãe resolveu logo que, dessa vez, iria cozinhá-los com açorda e louro. Verne foi pôr a mesa, em silêncio, e o pai retomou a leitura do livro que estava a ler, fingindo que a conversa do filho o não desgostara profundamente. À noite, com os filhos já deitados, a mãe falou com o marido:
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– Jacinto, ouve uma coisa. Lá porque não consegues perceber o teu filho, não lhe cortes as asas. – Não lhe cortei as asas! – Fizeste pior: riste-te dele. – Mas ele não perceberá que eu faço isto para o bem dele? – Pode não perceber. Pode perceber apenas que não o achas capaz de ser responsável e independente. – Achas que ficou sentido comigo? – Tenho a certeza. O pai abanou a cabeça, confuso, pois não fora isso que pretendera. Quisera apenas meter juízo naquela cabeça. – E que posso fazer agora? – Confiar, mesmo sem compreender. – Achas? – Acho. – Mas concordarás que é difícil. – Ninguém disse que ser pai era fácil, ou disse? Com esta, a mulher calou-o. E, nessa noite, Jacinto teve uma insónia quase até de madrugada.
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CapĂtulo II As formigas tambĂŠm sonham
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A Primavera chegara, finalmente, para derreter as neves, e os campos, antes brancos, tornaram-se verdes, roxos e amarelos. Era tão bonito ver o Mundo a mudar de cor! Adriana adorava aquela estação do ano, em que o sol brilhava, aquecendo-lhe as penas, e em que podia sair de casa sem vestir casaco. Gostava de voar sem destino, por entre os pinheiros e as flores silvestres, debicando petiscos, e de se reunir com as amigas para falarem dos maridos e dos filhos. – Como estão as tuas miúdas? – perguntava uma delas. – Muito saídas da casca, para o meu gosto. Diana e Artemísia, coquetes e namoradeiras, gostavam de fazer bailados no ar, exibindo as suas penas, para seduzir os jovens falcões das redondezas. Siza, à distância, tomava atenção ao comportamento das irmãs. Não queria que fossem no paleio de alguns falcões mais atrevidos e, sempre que via algum a arrastar a asa às irmãs, disparava como uma seta direito a eles, para acabar com a conversa e os arredar dali para fora. Elas ficavam fulas, mesmo sabendo que era o pai que mandava o irmão vigiá-las. Achavam que já tinham idade para namorar e que ele não tinha o direito de se intrometer nas suas vidas. – Queres parar de te armar em protector? – dizia Diana. – Porque é que não nos deixas em paz? – dizia Artemísia. – Arranja uma vida! – Arranja uma namorada, que deve ser isso que te falta! Siza encolhia os ombros e voltava para casa chateado, queixando-se à mãe daquele papel estúpido que o obrigavam a fazer, de proteger as irmãs. Quando elas chegaram, nessa noite, Adriana apoiou o filho: 19
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– Meninas, deixem-se de fitas. São muito novas para namorarem. E não se percam já de amores com o primeiro falcão que vos aparecer, que ainda têm muito tempo à vossa frente. Só me faltava ter filhas oferecidas, que dão troco a uns e a outros! Vá, tenham juízo. Se o vosso pai sabe que vocês andam por aí a fazer olhinhos a tudo o que voa, põe-vos de castigo e então é que não vêem ninguém. E chamando o único que não se encontrava na sala: – Siza, vem jantar! Siza estava no seu ateliê, pensando que o ninho onde viviam, depois de mais um Inverno, já estava a precisar de obras, e sugeriu ao pai, enquanto jantavam, construir uma nova residência para a família, inspirada na casa da árvore de Robinson Crusoe, aproveitando os ramos secos que se encontravam agora um pouco por todo o lado e sugerindo novas ideias: um balancé para as irmãs, um alpendre para almoços de Verão, uma cabina de sauna para os tempos frios, que fora sempre o desejo da mãe, uma cadeira de balouço para o pai, e até um novo ateliê para ele, todo envidraçado, para entrar mais luz e se inspirar na paisagem. Foi graças a ele que os ânimos se acalmaram e que as irmãs escaparam a uma reprimenda do pai. – Acho bem, filho – respondeu Jacinto. E lembrando-se: – Mas como, não tarda, vem aí o Verão, não precisa de ter telhado. – Sim – concordou Adriana. – Com bom tempo, gosto de dormir a céu aberto para ver as estrelas e ensinar as constelações às miúdas. Verne, quando o frio passava, gostava de ir ao encontro das formigas. Um dia, até levara Siza consigo, para lhe mostrar que, também elas, eram excelentes arquitectas. Construíam os seus formigueiros em vários planos, com túneis, galerias e divisões para cada finalidade, como, por exemplo, despensa para guardar os alimentos ou berçários para os ovos e para as larvas. O Siza ficou maravilhado com a fórmula de sucesso daquela sociedade e com a vocação espantosa que tinham para a construção. 21
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– E como se organizam? Verne explicou que repartiam as tarefas, consoante a idade e o tamanho de cada uma, e que só as rainhas, as formigas maiores de todas, viviam instaladas dentro dos formigueiros, quase em permanência, para receberem os machos e terem os seus filhos. Todas as outras se dividiam entre formigas-operárias e formigas-soldados; as primeiras, tomavam conta das crias, faziam a limpeza e encarregam-se de procurar e carregar os alimentos; enquanto as segundas guardavam, sem descanso, as entradas do formigueiro, defendendo-o de intrusos. – E quanto tempo vive uma formiga? – lembrou-se Siza. – Depende da espécie – respondeu Verne. – Podem viver entre três semanas e trinta anos, se ninguém as pisar entretanto. Verne estava feliz por se encontrar de novo com as amigas. Entendia-se bem com elas e sabia ouvi-las. Foi assim que se foi interessando pela sua vida e compreendendo as suas queixas. Coitadas, tinham razão. O Inverno, naquela região montanhosa, arrastava-se durante meses a fio, e elas, para sobreviverem ao gelo, tinham de ficar durante demasiado tempo enfiadas debaixo da terra, sem verem a luz do dia. Verne gostava, em especial, de falar com Laurinda, a formiga-rainha daquela colónia, uma das mais giras que conhecera na vida, com duas antenas vibrantes, uns olhos muito expressivos e um jeito espevitado de falar. – Olá, Laurinda, como estás? Ah, como ela gostou de reconhecer a voz de Verne, que não via há meses e de quem já tinha saudades! – Viva – disse ela, rindo-se toda. – E respondendo à pergunta: – Olha, estou aliviada com este sol! Ufa! Já não via a hora. Só agora pudemos sair das nossas casas e passear um bocado, para arejar. Vocês, aves, não imaginam a prisão que isto é. Algumas das nossas primas também 23
têm asas, mas, coitaditas, ao pé das vossas não valem um caracol. Voam muito baixo e por pouco tempo, de modo que os nossos horizontes são muito, muito, limitados. – “Limitados”? – indignou-se ele. – Não acho nada! Vocês dão cartas ao Mundo, com o vosso modelo de autonomia e subsistência! – Pois – disse ela, coçando a cabeça. – Isso é tudo muito bonito de dizer, mas a verdade é que somos maltratadas por todas as espécies e pela própria Natureza que, ao cumprir-se, não se lembrou, por exemplo, que não resistimos a certas temperaturas e que, sendo deste tamanho, nos tornamos invisíveis. Além de que os nossos formigueiros, construídos com toda a paciência e dedicação que aqui vês, são diariamente pisados, queimados, maltratados e destruídos. E desesperada: – Estou tão saturada que não imaginas. Ainda ontem perdi uma amiga num acidente. – Que tipo de acidente? – Olha, foi à horta buscar uma folha de alface, passou um urso e comeu as duas. – Escuta – disse Verne –, tenho muita pena da tua amiga. Mas não faz sentido comparar aves com insectos ou animais com pessoas. Cada um tem o seu papel na Natureza, todos são fundamentais, e o vosso é, tenho a certeza, provar aos homens, que se acham donos disto tudo, que é possível viver-se bem em sociedade e sobreviver sem guerras. E perguntando-lhe: – Que te faria feliz, Laurindinha? – Feliz, Verne? Queres mesmo saber? – perguntou enquanto pensava. E lembrando-se: Olha, a felicidade para mim seria viver num clima tropical. – No Rio de Janeiro? – perguntou, sorrindo. – Por exemplo – respondeu. – Não percebes? Podíamos sair à rua todos os dias, ir à praia e apanhar sol. Já viste bem o sonho que era? Aqui, no Inverno, o gelo dá cabo de nós. Só este ano matou-nos mais de duas mil irmãs. – Tchhhh – fez ele. – Que massacre! 24
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Mas, enquanto o dizia, começou a desenhar-se no seu espírito uma ideia luminosa: – Espera, Laurinda. Quantos indivíduos tem a vossa comunidade? – Neste momento... – pensou ela, fazendo contas. – Devemos ter aí umas quinhentas mil formigas. Verne admirou-se: – Tantas? É possível? – Claro que é possível – disse ela. E nem são muitas. Aqui há uns anos, descobriu-se um formigueiro gigante, com cerca de seis mil quilómetros de extensão, que se estendia desde Portugal até à Itália e era habitado por biliões e biliões de formigas. – Bom – interrompeu Verne, olhando as horas. – É tarde e tenho que me ir embora. Voltamos a falar um dia destes, combinado? – Claro que sim – prometeu Laurinda, estranhando aquela pressa repentina. – Arranja aí um dia bom para vires aqui comer uma salada! – Boa, boa, combinado! Na verdade, Verne não se despedira por ter alguma coisa para fazer, mas porque a sua cabeça começou a trabalhar tão depressa que não conseguia falar e pensar ao mesmo tempo. Dera uma desculpa, de facto, mas por um bom motivo. Sem querer, a conversa que tiveram sugerira-lhe aquilo que podia ser o projecto da sua vida e que, a partir daquele momento, começava a tomar forma. Emocionado, voou cinquenta metros para logo poisar num ramo alto, sacudir as asas, respirar fundo, esticar o pescoço e admirar a paisagem soberba que, daquele ponto onde se encontrava, nenhuma câmara poderia captar. Ainda bem que nascera com asas! O espectáculo que se admirava dali só era acessível, talvez, aos anjos e às aves. E aos aviões, claro. Isto é, aos pilotos e passageiros que, com eles, cruzavam os céus. Rodou a cabeça mais uma vez e pasmou com a beleza natural do seu país. Eram cordilheiras a perder de vista, montanhas de neve lembrando sorvetes de baunilha, 26
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renas passeando, ursos bebendo, e, pensou, só talvez mesmo as formigas, por serem minúsculas, é que não se enxergavam dali. Não se enxergavam nem enxergavam, coitadas, por viverem ou rente ao chão, ou debaixo dele. Laurinda tinha razão. Que abençoado fora, à nascença, por ser mais livre do que os homens, e que azar, o das formigas, por lhes ser negada essa oportunidade. Planando depois, devagar, de volta a casa, como um lenço dançando ao vento, foi fazendo contas. O pai contara-lhe que os falcões-peregrinos da Gronelândia voavam quase onze mil quilómetros para migrar até São Paulo; ora, a distância entre Alberta, no Canadá, e o Rio de Janeiro, no Brasil, era sensivelmente a mesma. E ele era um falcão-peregrino! E logo um que se aguentava horas e horas no ar, capaz de travessias tão grandes como as dos aviões, sem se cansar. Está bem que podia estar destreinado, mas faria exercício várias horas por dia, se fosse preciso. E se, por um lado, era verdade que os irmãos e os pais tinham aptidões que ele não tinha, a caçar e a tecer, por exemplo, ele, em compensação, tinha uma vantagem sobre todos os outros membros da família: era ainda jovem, mas tão forte ou mais do que o pai, aguentando-se mais do que todos eles em percursos longos.
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Sentiu uma pancada no coração ao descobrir que ele, Verne Falcão, filho de Jacinto e Adriana Falcão, irmão de Siza, Diana e Artemísia, era capaz de pilotar e transportar, debaixo das suas asas, pequenas legiões de formigas que, até então, nunca se tinham atrevido a sonhar com outra sorte! Tratava-se de um plano perfeito: ao mesmo tempo que satisfazia o seu sonho, cumpria também o desejo da sua amiga Laurinda, a formiga-rainha, a sua grande amiga, e de milhares de outras como ela, obrigadas a viver debaixo de terra para não morrerem congeladas. Quando chegou a casa, já tarde, não disse nada. Teve medo de que alguém, por alguma razão, pudesse roubar-lhe a alegria que sentia naquele momento. Assim, pediu desculpa aos pais e recolheu-se no quarto, sem jantar. Nunca, na sua vida, sentira uma felicidade tão grande! Com o peito inchado, os olhos brilhantes, o coração a rebentar de emoção e uma ventania na alma que não sabia descrever, lembrava um cuco, um rouxinol apaixonado, um canário a escapar, enfim, da gaiola, um cisne nadando ao sol! Agora, finalmente, já não precisava de adormecer para sonhar. Agora, mesmo acordado, podia sonhar com o que sempre desejara, seguindo a sua vocação e provando à família que tinha tanto talento como os irmãos e que poderia ser alguém na vida, fazendo aquilo para que nascera: voar como piloto e, ao mesmo tempo, ter a sua própria companhia aérea.
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CapĂtulo III O melhor de todos os natais
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O mês de Julho chegou, bem-humorado, e trouxe com ele as férias, as tão desejadas férias depois de mais um Inverno difícil. Todas as aves de Alberta andavam felizes e descontraídas, fazendo programas que não faziam há muitos e muitos meses, por causa da neve e do gelo. O contentamento, entre os animais selvagens, em meses de calor, tem cor e cheiro, música e movimento, poesia! Agora, que o tempo aquecera, podiam, todos os dias, tomar banho nos lagos, pescar e passear no rio Peace, navegando sobre troncos velhos, aproveitando as correntes, desde as montanhas quase até à sua foz, no oceano Árctico. Viajavam durante dias, em grupos, apeando-se nas margens quando começavam a ter fome e arrastando as cestas dos piqueniques até às clareiras dos bosques, espalhando as deliciosas guloseimas trazidas de casa sobre esteiras de caruma e organizando concursos de voo acrobático, em que os concorrentes tinham que fazer piruetas no ar, rabiscando o céu com efeitos espectaculares. Também promoviam concursos de canto, de machos contra fêmeas, e qualquer turista que ali passasse, e escutasse aquele concerto, ficava maravilhado com o talento dos coros e o efeito das diferentes vozes, mais ou menos afinadas, ecoando pelas montanhas e chegando à cidade. Os quatro filhos de Adriana e de Jacinto, com um jeito especial para recrutar e animar grupos, eram indispensáveis naqueles encontros de boas-vindas ao Verão. Dizia-se mesmo que, sem os irmãos Falcão, as férias não eram férias. Siza estudava os itinerários minuciosamente, calculando as distâncias e desenhando mapas e rotas. Diana e Artemísia formavam os grupos corais de vozes adultas e infantis, masculinas e femininas, dividindo-as em baixos, tenores, contraltos e sopranos, como nas óperas das fábulas. Finalmente, Verne, com a sua vocação de aviador, organizava os concursos de acrobacias 31
no ar, recrutando todas as espécies de aves de rapina que habitavam a região, dirigindo-se aos seus ninhos e esconderijos para os convocar pessoalmente: não só falcões como eles, mas também águias, gaviões, abutres, açores, milhafres e francelhos. Nesse ano, desafiou a Rainha Laurinda para voar nas suas asas até ao Lago Utikuma, de onde os grupos partiam, para, durante a viagem, lhe contar a sua ideia. Não cabia em si de excitação: – Laurinda, diz-me uma coisa. Se eu conseguisse arranjar-te passagens de avião para o Brasil, já em Janeiro, como reagirias? Pasmada, Laurinda não queria acreditar: seria possível que Verne, o seu amigo Verne, se tivesse lembrado do seu maior desejo? – Estás a brincar. – Não, não estou a brincar – respondeu, emocionado. Laurinda arregalou os olhos: – Sim, sim – gritou ela. – Nesse caso, sim! Oh, meu Deus, queria tanto que fosse possível! Os olhos dela brilharam, mas logo se entristeceram: – Espera – lembrou-se. – Não posso ser egoísta, pensar só em mim e abandonar a família! Tenho uma mãe velhota, uma tia cega e cem irmãos pequenos de quem cuido! E coçando a cabeça naquele jeito tão dela: – Quer dizer, isto sem contar com o resto do formigueiro que, por ser mais frágil, se apoia em mim! Verne voltou a sorrir: – Não estás a perceber, Laurindinha. Posso levar-te a ti, à tua mãe, à tua tia e a quem mais quiseres, porque sou eu mesmo que irei transportar-vos! Depois de ouvir bem a explicação do amigo, depois de entender que Verne também tinha um sonho, e que, realizando o seu, realizaria o dela, pôs-se aos saltos de contentamento. – Não acredito! E quando partimos? 32
– Em Janeiro, porque no Brasil está calor. O tal calor tropical com que sempre sonhaste! – E porquê só em Janeiro? – estranhou ela. – Porque, até lá, tenho de criar músculos e exercitar melhor as asas. Sou muito rápido a voar e tenho confiança na minha resistência, mas há muito que não faço viagens de longo curso e não quero falhar. Pelos meus cálculos, preciso de seis meses até ficar nas melhores condições físicas. Ela pensou um bocadinho, e resolveu: – Não faz mal, até me dá jeito! Ainda tenho que arranjar uma nova rainha para me substituir, armazenar comida suficiente para a viagem, ajudar todos a fazerem as malas, não vão eles levar demasiada bagagem e pesarem-te com mercadoria inútil, e deixar as coisas bem organizadas no formigueiro para que a minha ausência não seja tão sentida. E melancólica: – Coitados dos que ficam – suspirou. – Não vão ter a mesma sorte e morrerão sem conhecer a beleza daquelas praias. – Não te preocupes – disse Verne, sorrindo. E empurrando-a ao de leve com o bico, num gesto brincalhão: – Não percebes? Esta vai ser a minha profissão. Não será a única viagem que farei. Será a primeira de muitas. Voltarei todas as vezes que quiseres para levar ou trazer formigas! E entusiasmado: – Começarei com vocês, mas, depois, poderei alargar a oferta a outros insectos, como abelhas, borboletas, joaninhas e libelinhas! – E o teu salário, Verne? Será que conseguiremos pagar-te? Verne rasgou um sorriso: – Não preciso de salário, Laurinda! Bem vês, não tenho despesas nenhumas, porque só conto comigo. Sou eu, a minha vontade, a minha força e as minhas asas. Ao contrário dos homens, não preciso de dinheiro para realizar os meus sonhos ou os dos outros! 33
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Laurinda despediu-se, comovida: – Obrigada, Verne. Nunca me desiludiste. És um falcão muito especial e, acredita, serás reconhecido pelas tuas qualidades. E, dizendo isto, apanhou boleia de um alce que passava por ali e ia para as suas bandas, saltando-lhe para o dorso e acenando ao amigo até o perder de vista: – Deus te abençoe, Verne! Foi só em Dezembro que contou ao pai a sua decisão. Toda a família estava presente, aliás, porque era Natal, e ele próprio, Verne, fazia anos. Os avós, os tios e os primos chegariam a qualquer momento. Depois da ceia, dos doces e dos presentes, Verne pensou que já tinha passado tempo suficiente. Assim, saltou para as costas de uma cadeira e pediu silêncio. – Tomei uma resolução e quero partilhá-la convosco. E só depois de todos se calarem, contou, com calma e clareza, todos os pormenores do seu projecto. Quando terminou, já cansado, disse: – Pronto, era só isto. Enquanto falara, Jacinto ouvira-o sem nunca o interromper, por entre cachimbadas, balouçando na cadeira que Siza lhe oferecera. Por seu lado, a mãe, os irmãos e o resto da família também não soltaram um som. Nem um pio se ouvia, naquela nova casa, tão bonita, que fora o presente de Natal de Siza para a família. Todas as atenções se viravam agora para o pai, pois sabia-se que era dele que dependeria o sucesso daquele Natal. Foram quase três minutos sem ninguém falar, o que, para a Adriana e as duas filhas, foi uma tortura. Verne suava como um cavalo no fim de uma corrida: seria que o pai lhe iria estragar a noite, com sermões e proibições? Não aconteceu.
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Primeiro, Jacinto preparou mentalmente um longo discurso destinado ao filho, cheio de conselhos e de teorias, mas, por fim, respirou fundo e disse simplesmente: – Parabéns, filho. Segue a tua estrela! Adriana saltou para o pescoço do marido, beijando-o todo, avaliando o esforço que ele fizera para confiar no filho, e, no fim daquela manifestação espontânea de amor, todos bateram palmas e desejaram a Verne a melhor sorte para o seu futuro. Por fim, fez-se um brinde e todos beberam champanhe. Foi o Natal mais feliz da vida de Verne. Não só descobrira a sua vocação, como em casa ninguém a contrariava. Mesmo assim, não se escapou a uma saraivada de perguntas, que revelavam não apenas o profundo amor que lhe tinham, como algumas preocupações: – E se te constipas? – perguntou a mãe. – E se te faltarem forças para voar tantas horas? – perguntou o Siza. – E se apanharem nevoeiro e chocarem com algum avião? – perguntou de novo a mãe. O pai zangou-se: – Deixem-no – pediu. – Em todas as profissões há riscos. Mesmo nós, que ficamos, podemos sofrer um acidente e ir desta para melhor mais depressa do que ele. Apoio a tua decisão, Verne, e dou-te todo o apoio. És o meu filho mais novo e preocupo-me com o que te possa acontecer, mas nada farei para te desencorajar. E olhando o filho, emocionado: – Dá-me, um abraço, vá! Desculpa ter duvidado das tuas capacidades. Desejo-te toda a sorte do Mundo, filho! Invejosas, as duas flauzinas, Diana e Artemísia, imaginando o irmão a banhos nas praias de Copacabana, perguntaram ao mesmo tempo, num alvoroço: – Pai, pai, também podemos ir? – Esta semana, se a mãe quisesse, podíamos ir a Alberta comprar biquínis! O pai riu-se: 36
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– Mas agora querem todos fugir de casa, é? Só faltavam estas! E quem, sem vocês aqui, nos traria bifes? Tenham calma, que a vossa hora chegará. Agora, trata-se do vosso irmão. Feliz, grato pelas palavras do pai, Verne foi deitar-se nessa noite com uma alegria indescritível. Cansado de tanta emoção, aliviado com a autorização do pai, satisfeito com as reacções da família e seguro de que, doravante, o seu destino seria realizar o sonho de muitos, adormeceu ferrado como uma pedra, sem pensar em mais nada. A mente trabalha continuamente, mesmo quando dormimos. E, durante as seis horas em que Verne repousou na sua cama macia, atapetada de musgo, pôde imaginar nos seus sonhos, cena por cena, a sua aventura com Laurindinha e os amigos, primeiros passageiros da sua companhia aérea, a que chamou
ASAS DE FALCAO Um mês depois, exactamente, na sua viagem inaugural, a realidade ultrapassaria o sonho. Na hora do embarque, todas as formigas convidadas por Laurinda se instalaram ordeiramente debaixo das asas de Verne, o que teve um inconveniente: faziam-lhe cócegas. Mas isso não impediu que a viagem tivesse sido um êxito. Pernoitaram várias vezes durante os quase onze mil quilómetros que percorreram, por frio ou cansaço, mas, essa parte, Verne deixou ao cuidado de Laurinda, que além de se encarregar individualmente de cada passageiro, sempre atenta às necessidades de todos, dividiu a comida em doses para que o alimento não faltasse até chegarem ao destino. E quando, muitas horas depois, finalmente, sobrevoaram o Pão de Açúcar espreitando por entre as asas de Verne a imensidão do oceano Atlântico e a assombrosa beleza natural da cidade, cantaram todas em coro o hino do Rio de Janeiro, uma marcha composta, propositadamente, para o Carnaval:
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Cidade maravilhosa Cheia de encantos mil Cidade maravilhosa Coraçao do meu Brasil Laurinda gostou tanto da experiência que se ofereceu para passar a integrar a tripulação da companhia de navegação, como assistente de bordo, prestando serviços de toda a ordem e assegurando o conforto dos passageiros. As formigas deliraram! Laurinda fundou uma nova colónia no Rio de Janeiro, em moldes inéditos, e foi feliz como nunca, e Verne, no regresso a casa, levou para Alberta mil moscas da neve que tinham entrado sem querer num avião para o Brasil e já estavam a agonizar de calor. Conseguiu salvar todas. Depois dessa, empreendeu mais de cinquenta viagens seguidas, assistido por Laurinda, salvando insectos de todo o Mundo de condições de vida adversa, até que, depois de chamar a atenção da imprensa internacional para a sua ideia pioneira, foi entrevistado para dezenas de jornais, rádios e canais de TV, tornando-se, rapidamente, numa celebridade à escala global, inspirando aves de todo o planeta. Tornou-se um herói mundial, e um realizador americano, fascinado com a sua história, dispôs-se imediatamente a fazer um filme da sua vida. Além disso, recebeu prémios importantes de muitas organizações internacionais de defesa dos animais e do ambiente, mas, do que mais gostou, curiosamente, foi de um convite enviado pela Falcoaria Real de Salvaterra de Magos, capital portuguesa da falcoaria, para sócio-honorável da Instituição, numa festa para que foram convidados, também, os seus pais e irmãos. 40
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A Família Falcão ficou encantada, sobretudo com a oportunidade de voarem todos juntos, outra vez, até a uma das terras mais bonitas de Portugal, e com a possibilidade de se banharem, em pleno Agosto, na Barragem de Magos. Diana e Artemísia, em particular, ficaram radiantes, porque Verne lhes trouxera, na última viagem, um lote de biquínis brasileiros que atrairiam, certamente, os animais da Falcoaria, uma série de exemplares deslumbrantes, educados e raros. Verne não tinha grande jeito para discursos, mas, por atenção aos portugueses amáveis que o tinham convidado, e também aos falcões ali presentes que o escutavam dos seus poleiros, retribuiu a distinção com algumas palavras de agradecimento, dando-se ao luxo, no final, de uma pequena, mas carinhosa, alusão a Laurinda: – Porque acham que chamaram Falcon aos primeiros aviões a jacto que se construíram para transportar reis e chefes de estado? Eu, por exemplo, transporto uma rainha!
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Todos os presentes aplaudiram de pé, e Verne viu, nos olhos do pai, o orgulho com que este sempre olhara os irmãos. Laurinda, presente na cerimónia, também bateu palmas, com os olhos cheios de lágrimas, mas, por ser pequena, ninguém a viu ou ouviu. Não se ralou. Estava sentada ao lado de uma formiga-macho portuguesa, por quem se apaixonou, e, meses depois, voltou a Salvaterra de Magos para se casarem na Igreja da Misericórdia, numa missa celebrada pelo Padre Nobre. Entretanto, a companhia de aviação “Asas de Falcão” passou a ser tão solicitada que Verne, sozinho, já não conseguia satisfazer tantos pedidos. Foi obrigado a contratar mais dez falcões para o ajudarem, uma delas fêmea, com quem se veio a casar e a ser muito feliz. No dia do casamento, Siza ofereceu ao casal um ninho em forma de avião, com rodas, hélices e mesa de navegação iguais às verdadeiras.
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Curiosidades , ,
~ de Açúcar é um Morro situado no bairro * O Pao da Urca na cidade do Rio de Janeiro no Brasil.
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* Os falcoes prestam um serviço notável no controlo de pragas na agricultura, e nao só: também nos aeroportos, impedindo que outras aves entrem nas turbinas dos avioes comprometendo a segurança dos voos.
* A Falcoaria Real foi o unico edifício da Península Iberica construído propositadamente para essa finalidade, o que lhe mereceu, desde 2014 a marca Salvaterra de Magos, Capital Nacional da Falcoaria .
* No dia 1 de Dezembro de 2017, na Falcoaria Real de Salvaterra de Magos, foi inaugurado um moderno Centro de Documentaçao, onde, para além de uma biblioteca-arquivo reunindo documentos e livros sobre património e caça se encontra tambem a sede da Associaçao Portuguesa de Falcoaria bem como um espaço destinado a Catedra UNESCO da Universidade de Évora. 47
FICHA TÉCNICA TÍTULO O Falcão e a Formiga AUTORA Rita Ferro ILUSTRAÇÕES Pedro Rocha e Mello DESIGN GRÁFICO Terra das Ideias EDIÇÃO e PROJETO Câmara Municipal de Salvaterra de Magos REVISÃO DE TEXTO Leonor Cadório REVISÃO GRÁFICA Modocromia Editora, Lda IMPRESSÃO Gráfica Central de Almeirim, Lda. ISBN 978-989-54158-2-3 DEPÓSITO LEGAL 445502/18 TIRAGEM 2000 exemplares 1.ª Edição – Setembro de 2018 Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.
Outros livros infantis jĂĄ editados pela Camara Municipal de Salvaterra de Magos
2014
2015
2016
DisponĂveis para leitura em www.falcoariareal.pt
2017