Museu escaroupim e o rio

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MUSEU

“Escaroupim e o Rio”

Câmara Municipal de Salvaterra de Magos


Escaroupim


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Prefácio O rio Tejo é um elemento de referência na paisagem e na história do concelho de Salvaterra de Magos. Esta grande linha de água que nasce em Espanha (Serra de Albarracim) e atravessa o nosso país, influenciou e potenciou a presença humana na região que compreende hoje o concelho de Salvaterra de Magos e diversificou a nossa economia com atividades ribeirinhas: pesca, trânsito fluvial, agricultura, barcas de passagem que durante séculos fizeram parte das nossas gentes. A abertura do museu “Escaroupim e o rio” é o culminar do esforço realizado pelo Município de Salvaterra de Magos na recuperação e revitalização das zonas ribeirinhas, onde se destaca os trabalhos desenvolvidos no Bico da Goiva, Praia Doce, Vala Real, Cais da Vala e Escaroupim. Durante décadas, a população e o rio estiveram de costas voltadas agora, com a revitalização ribeirinha, o Tejo foi devolvido às pessoas. O museu “Escaroupim e o rio” assume a função de repositório da ligação das nossas gentes com o rio, mas ao mesmo tempo deverá ser um veículo que consolide laços de afetividade com as comunidades ribeirinhas locais, que se reconhecem na história e na memória da exposição patente, fazendo desta forma a ligação do passado com o presente e perspetivando o futuro. O Presidente da Câmara Municipal

Eng. Hélder Manuel Esménio

Bateiras no Escaroupim


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O RIO TEJO QUE CORRE NA HISTÓRIA DE SALVATERRA DE MAGOS “D. Dinis, ao promover obras no Tejo e seu sistema adjuvante, fundando Salvaterra de Magos e Muge, contribuiu para o incremento das navegações ao longo do Tejo, o que não deixará de estar por certo em relação com o surto da cidade de Lisboa.” (Jorge Gaspar, 1970) O rio Tejo está cheio de história, tendo contribuído para a criação de uma cultura multifacetada ao longo de toda a sua bacia hidrográfica com a participação das gentes ribeirinhas: homens da lezíria do Tejo (agricultores e campinos), arrais, carpinteiros navais e calafates, pescadores, valadores… O rio Tejo apresenta-se, hoje, como um recurso natural e cultural a redescobrir, a proteger, a valorizar e a utilizar. A Câmara Municipal de Salvaterra de Magos está nesse caminho ao criar uma unidade museológica em Escaroupim, cais histórico do Tejo, e ao tornar acessíveis as praias fluviais do concelho. Na verdade, para além dos recursos naturais, o Tejo oferece um conjunto de valores culturais e económicos que podem contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos povos da Borda d’Água. Este espaço museológico, que é uma lição, oferece conhecimentos através de objetos, revelando que em todas as épocas históricas, nas terras de Salvaterra de Magos, o rio Tejo aparece como uma força atrativa de povos que se instalaram na proximidade das suas margens. Apresentou-se sempre como um fértil recurso natural que serviu as gentes que o procuraram, desde a pré-história até à atualidade: a água, como líquido essencial para a vida, a ‘estrada’ fluvial, a fauna piscícola e a fertilidade dos campos foram fortes motivos para a sua utilização. Muitos cidadãos anónimos contribuíram para a construção da história. O espaço museológico “Escaroupim e o Rio” não só lhes presta uma homenagem como transmite saberes históricos que contribuíram para a globalização promovida pelos descobrimentos portugueses nos séculos XV e XVI: esta obra cultural preserva e valoriza a identidade local num mundo global. A Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, com esta iniciativa, criou mais um farol cultural para atrair o turista e o viajante que quer descobrir Portugal. É um museu de afetos, onde a comunidade local participou com objetos e saberes Estamos perante uma parcela do território do Ribatejo onde se aplica a frase de Amorim Girão: “Paisagem modeladora do Homem, o Homem remodelador da paisagem.” Novembro de 2016 António Maia Nabais


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OCUPAÇÃO HUMANA JUNTO DE LINHAS DE ÁGUA «O Tejo une sentimentos diferentes, como se quisesse ser o ancião de uma grande família que todos admiram e respeitam.»1 No concelho de Salvaterra de Magos abundam os vestígios arqueológicos de ocupação humana, que remontam à pré-história e continuam ininterruptamente até aos nossos dias. Estudos arqueológicos revelam o fio condutor responsável pela presença humana - as linhas de água. A antropização ocorre maioritariamente junto da rede hídrica do Tejo. Os vestígios mais antigos reportamnos para o período do paleolítico, Afonso do Paço2, Mendes Corrêa3, H. Breuil e

G. Zbyszewski4, Margarida Ribeiro5 e Roberto Caneira6, são alguns dos autores que estudaram este período da pré-história e colocaram a descoberta várias estações atribuíveis ao paleolítico. No que respeita ao mesolítico, destacam-se os concheiros de Muge e de Magos. Foram descobertos em 1863 por Carlos Ribeiro, o que fez dos concheiros um dos mais importantes achados arqueológicos em Portugal do último quartel do séc. XIX. Os concheiros marcaram o percurso do estudo da arqueologia pré-histórica nacional, e ainda hoje são uma referência bibliográfica para qualquer manual de arqueologia.

Localização dos Concheiros do Vale do Tejo - Mapa de Célia Gonçalves (Universidade do Algarve) «Ribatejo», In Descobrir Portugal [Coord: Francisco Hipólito Raposo], Amadora, Ediclube, 1993, p.11 Afonso do Paço, «Paleo e Mesolítico Português», In Trabalhos de Arqueologia de Afonso do Paço (1929-1968), Vol. I, Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, 1970, pp. 171-192 3 Mendes Corrêa; «Novas estações líticas em Muge», In Congresso do Mundo Português, Lisboa, 1940. Memórias e Comunicações Apresentadas ao Congresso da Pré e Proto-História de Portugal (I Congresso), Lisboa, Comissão Executiva dos Centenários, 1940, pp. 111-127 4 Henri Breuil; George Zbyszweski, «Contribution a l’etude des industries paleolithiques du Portugal et de leurs rapports avec la geologie du Quaternaire», In Comunicação dos Serviços Geológicos, 1945, pp. 463-466 5 Margarida Ribeiro, «Breve notícia sobre o paleolítico da Glória», In Actas e Memórias do 1.º Congresso Nacional de Arqueologia, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1959, pp. 83-88; e Margarida Ribeiro, «Estudos sobre a aldeia da Glória do Ribatejo (Salvaterra de Magos) - Características geográficas da Região. Tempos pré-históricos. Notícia Histórica», In Revista Guimarães, Vol. LXXIII, n. 1 e 2, 1963, pp. 29-36 6 Roberto Caneira, O Paleolítico em Glória do Ribatejo (Cadernos Culturais I), Salvaterra de Magos, Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 1998 1 2


4 A localização dos concheiros próximos das ribeiras de Muge e de Magos comprova o nicho ecológico que as linhas de águas tinham no fornecimento de recursos aquáticos, piscícolas e cinegéticos essenciais à sobrevivência daquelas comunidades. As estações atribuídas ao neolítico confirmam a proximidades às ribeiras de Muge e Magos. Este período histórico é caracterizado pela “descoberta” da agricultura, o que implicou a sedentarização. Nos locais junto das ribeiras, os terrenos são arenosos e são fáceis de trabalhar, o que permitiu o desenvolvimento agrícola, além da abundância de pastagens para o gado. Gonçalo Lopes indica na região da ribeira de Muge as principais estações arqueológicas do neolítico: Casas Velhas do Coelheiro e Vale de Lobos.7 Na ribeira de Magos, Victor Gonçalves identifica a estação neolítica Pinhal das Teixeiras (ORZ 1)8. No período do calcolítico continua a privilegiar-se zonas próximas na ribeira de Muge. Os sítios referenciados com ocupação calcolítica são os seguintes: Sobral do Martim Afonso, Fonte do Padre Pedro II, Vila Longa e Sobreiro do Neto9. Também existem vestígios de ocupação humana das idades do bronze e do ferro. Do primeiro período destaca-se a estação arqueológica Amieira I, assinalada por A. Huet Bacelar Gonçalves10. O local que apresenta vestígios mais nítidos de ocupação da idade do ferro é o Porto de Sabugueiro11, localizado a escassos metros do Tejo.

7 Gonçalo Lopes, Carta Arqueológica da Bacia Inferior das Ribeiras de Muge e Alpiarça, trabalho apresentado na disciplina de Seminário, Universidade de Évora, 2002, (documento policopiado), p. 8 8 Informação Arqueológica, n.º 6, Lisboa, Ministério da Educação e Cultura - Secretaria de Estado da Cultura . Instituto Português do Património Cultural - Departamento de Arqueologia, 1984, pp.63-64 9 Sítios arqueológicos do concelho de Salvaterra de Magos, [em linha], consultado a 31-05-2016, disponível em: http:// arqueologia.igespar.pt/index.php?sid=sitios 10 A. Huet Bacelar Gonçalves, «Inéditos de Rui Serpa Pinto, sobre as escavações arqueológicas em Muge», In Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Porto, Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnografia, 1986, p. 215 11 Henrique Mendes; João Pimenta, «Descoberta do período pré-romano de Porto de Sabugueiro (Muge)», In Revista Portuguesa de Arqueologia, Vol. XI, n.2, Lisboa, Ministério da Cultura / IGESPAR, 2008, pp. 171-194

Machado “tipo bujões” - Escaroupim Foto de Senna-Martinez

Ânforas do Porto de Sabugueiro Foto de Guilherme Cardoso


5 Merece referência a descoberta de dois escaravelhos de possível fabrico fenício a partir de originais egípcios12, o que atesta a importância do lugar em trocas comerciais com o mediterrâneo. O período romano está bem assinalado no concelho, existem vestígios na freguesia de Muge, junto ao rio Tejo e noutros locais desta freguesia. Autores como Mário de Saa13, Bairrão Oleiro14 e Guilherme Cardoso15 atestam a romanização no lugar do Porto de Sabugueiro. Um outro local referenciado com presença romana é o Escaroupim, situado junto do Tejo e que está mencionado como um local de passagem do rio e onde confluíam duas vias romanas: uma via que seguia junto do Tejo, na margem esquerda, e uma outra que partia em direção a Coruche16. O período islâmico também está presente em Muge, no local designado de Serradinho.17 Na época medieval, o rei D. Dinis atribui cartas de forais a Salvaterra de Magos (1295) e Muge (1304) com o intuito de facilitar o povoamento e aproveitar os terrenos junto das ribeiras de Muge e de Magos para fomentar a agricultura, dado que os dois forais mencionam a obrigatoriedade de drenarem as águas destas ribeiras para secar os terrenos. Ainda na Idade Média, no reinado de D. Afonso V, o lugar do Escaroupim é citado como lugar de barca de passagem, cujos direitos estavam ligados à corte: «O Rei tinha os direitos das barcas de passagem do Porto de Muge e do Escaroupim (Salvaterra), direitos estes que eram pagos em cereais: cada proprietário do campo de Valada pagava seis alqueires de pão meado para a barca do Porto de Muge, pagando cada “ charrua de bois” que lavrasse no campo de Sacarobão três alqueires de pão meado para a barca do Escaroupim.»18 Na época moderna o Tejo é a estrada líquida por onde a família real e a corte se deslocam para o Paço de Salvaterra de Magos onde ficavam nos meses de inverno. Merece referência as longas estadias da corte do rei D. José I, que aproveitava a ociosidade assistindo a óperas no Real Teatro ou realizando caçadas reais com falcões, beneficiando da existência da Real Falcoaria.

Foral de Salvaterra de Magos - 1 de junho de 1295

Falcão, Falcoaria Real de Salvaterra de Magos

Maria Amélia Horta Ferreira, «Objectos egípcios do Porto de Sabugueiro (Muge)», In Conimbriga, Vol. XIV, Coimbra, 1975, pp. 173-175 Mario de Saa, As grandes vias da Lusitânia, Vol. I, Lisboa, Tipografia Sociedade Astória, 1956, p. 160 14 Bairrão Oleiro, «Achados arqueológicos no Porto de Sabugueiro (Muge, Ribatejo)», In Conimbriga, Vol. 2/3, Coimbra, 1960/61, pp.48-51 15 Guilherme Cardoso, «O forno de ânforas de Muge», In Ânforas Lusitanas. Tipologia, produção e comércio [Actas das Jornadas de Estudo realizadas em Conimbriga: 13 e 14 de Outubro 1988], Conimbriga, Museu Monográfico de Conimbriga, 1990, pp. 153-166 16 Vasco Gil Mantas, «Rede viária de Scallabis», In De Scallabis a Santarém, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 2002, pp. 109-110 17 Gonçalo Lopes, «Materiais do povoado islâmico do Serradinho (Muge)”, dispinivel em: https://www.academia.edu/16609283/Materiais_isl%C3%A2micos_do_Serradinho_Muge (consultado a 19 de novembro 2016) 18 Angela Beirante, Santarém Medieval, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas), s.d., p.240. 12 13


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TRÂNSITO FLUVIAL E PATRIMÓNIO NÁUTICO Nos tempos em que os rios eram as grandes estradas líquidas, o comércio fluvial ocupou uma importância crucial. Foi uma atividade desenvolvida por um grupo social denominado de “marítimos”, o termo resulta do facto de as pessoas da Bordade-Água chamarem “mar” às águas do Tejo, apesar das embarcações não saírem da barra deste rio. Os marítimos beneficiaram das condições do Tejo, com boa navigabilidade, associado à importância dos produtos agrícolas que eram cultivados nos terrenos férteis das lezírias e depois escoados para Lisboa. Também seguiam por via fluvial outros produtos como a madeira e lenha, existentes nas matas e pinhais circundantes. O rio Tejo tinha uma grande variedade de embarcações quer para o transporte de mercadorias quer para a pesca: «foi o rio português que nos presenteou com maior variedade e riqueza náutica, desde Vila Velha de Rodão até à sua foz.»19 Os vários estaleiros que existiam nas povoações ribeirinhas do Tejo atribuíam um cunho pessoal e individual às embarcações, os nomes também variavam de localidade para localidade o que torna difícil a sua denominação. As embarcações do Tejo eram genericamente designadas de “barcas”, tanto para a pesca como para o trânsito fluvial. A partir do Séc. XVI, com os descobrimentos portugueses, as embarcações começam a diferenciar-se devido às suas funções e transporte de mercadorias ou pelos percursos de navegação que utilizavam.20 Os varinos, fragatas, botes, barcos de água a cima e os botes de meia-quilha eram usados essencialmente no transporte das diversas mercadorias ao longo do Tejo. Muitas destas embarcações acabaram por desaparecer na segunda metade do séc. XX, devido às construções das pontes do Rio Tejo: Ponte Carmona em Vila Franca de Xira e Ponte 25 de Abril em Lisboa.

Os barcos atracados nos cais apresentavam um colorido nas proas onde se destacavam os nomes, ladeados com vários motivos decorativos, os mastros também possuíam cores diferentes, por essa razão os marítimos conheciam ao longe as embarcações, e sabiam qual era o barco. Nos “marítimos” havia uma hierarquia dividida em três escalões, que estava representada da seguinte forma: arrais, camarada e moço.

Varino salva-rio

António Nabais, Barcos do Tejo,[em linha] disponível em: www.altotejo.org/acafa/docsn2/barcos_do_tejo.pdf, (consultado a 14/02/2012) 20 António Nabais, «Barcos Típicos”, In Navegando no Tejo, Tejo [Coord. Fátima Magalhães],Lisboa, Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, 1995, p. 107 19


7 O início do trabalho a bordo de uma embarcação iniciava-se com as funções de moço, caracterizado pela sua polivalência devido às várias tarefas que desempenhava: «o moço era acima de tudo, um elemento polivalente, cujas funções ultrapassavam em muito a actividade específica da navegação. Deste modo, desempenhavam diversas tarefas, entre as quais auxílio à navegação (sobretudo na manobras de velas de menor dimensão), fazer recados em terra e limpeza de embarcações.»21 O camarada já tinha outras funções, auxiliava o arrais na navegação e confecionava as refeições a bordo: «a questão da confecção das refeições a bordo e o facto de se tratar de uma tarefa que estava reservada apenas aos camaradas estava obviamente relacionado com o facto dos mesmos terem já adquirido um saber-fazer nesta área que os moços provavelmente não tinham.»22 Finalmente o arrais, que era o dono da embarcação, tinha como tarefa principal conduzir a embarcação. Era também o responsável pelas mercadorias e passageiros a bordo e fazia os contatos dos produtos a efetuar, igualmente recebia o pagamento que depois distribuía pelos elementos da tripulação.

Cais da Vala

A navegação era feita sem recurso a instrumentos náuticos. Os marítimos adquiriram conhecimentos e formas de navegar com os arrais mais antigos, e ao longo dos tempos, iam ganhando experiência, que permitia evitar braços de areias ou outros obstáculos que impediam a navegação.

21 22

Elisabete Curtinhal, Barcos, memórias do Tejo, Seixal, Câmara Municipal / Ecomuseu do Seixal, 2007, p. 63 Idem, p. 64


8 A destreza dos marítimos na condução dos barcos e a sua audácia em vencer as nortadas e mais perigos, obrigando-os a ficarem vários dias ou semanas sem ver os seus familiares, revela a dureza da vida que se levava nos barcos. No início do século XX a construção da linha férrea Setil – Vendas Novas, inaugurada em 1904, onde se destaca a grande construção da ponte férrea D. Amélia em Muge veio trazer alterações ao escoamento das mercadorias. Alguns géneros são transportados no comboio em detrimento do trânsito fluvial. A partir da Segunda Guerra Mundial, as melhorias da rede viária e da camionagem, despertaram a consciência dos marítimos para as mudanças que os transportes terrestres poderiam trazer ao trânsito fluvial. Em 1951 com a construção da ponte Marechal Carmona em Vila Franca de Xira, assistimos a um progressivo abandono do trânsito fluvial. Nos portos fluviais os barcos começaram a ficar sem serviço, os antigos marítimos sem trabalho. Aos poucos o colorido das embarcações, a azáfama dos marítimos para apanhar as marés e zarpar do cais com os barcos carregados de diversas mercadorias, lentamente acabam por desaparecer. Em meados da década de 60 já não havia embarcações de trânsito fluvial nos cais. Aquela atividade com séculos de existência extinguiu-se, ficando apenas na memória

dos antigos marítimos um conjunto de saberes e de histórias que são parte integrante daquele modo de vida que importam preservar.

Recuperação da embarcação “Maria Luisa”

Cais da Vala finais do século XIX -. Foto de Carlos Relvas


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O TEJO: A PESCA E PESCADO No foral manuelino de Salvaterra de Magos (1517) encontrámos referência aos impostos do pescado que entrava na vila ou seu termo «de todo o pescado que vier para vender à dita vila ou termo de qualquer parte que venha assim por água, como por terra, se pagará dízima dele na portagem do que se vender; e do que se aí não vender do que vier por terra e tirarem para fora não se pagará aí dízima nem outro dito nenhum de portagem, salvo da parte que se dele vender (…).»23 As memórias paroquiais datadas de 1758 comprova a espécie de peixe mais abundante na Vala Real - o sarmão que hoje está extinto no Tejo «consta criar o rio desta terra peixes, e a espécie que traz em maior abundância são sarmões»24 e que as técnicas usadas na pesca são «em o referido rio desta terra todo ano se pesca à canoa e com tarrafa»25 e que as pescarias são livres «as pescarias, que em o capítulo antecedente referi são livres em todo o rio.»26 Nas Posturas Municipais de Salvaterra de Magos, há regulamentação sobre a pesca e o pescado, quer a nível do tamanho do peixe, os locais onde os almocreves não deviam comprar peixe, ou o sitio onde se vendia o peixe que era feito na Praça do Pelourinho (actual Jardim da República), assim como a exigência dos pescadores de não poderem levar mantimentos da vila sem trazer peixe para venda: Postura 61 - Sobre os pescadores que vendão o peixe na Praça do Pelourinho que pena terá «Acordão que nenhum pescador de agoa doce venda peixe senão na praça e pelourinho desta villa com pena de quinhentos reis e que o contrario fizer pella primeira vez, e da segunda dois mil reis.»27

23 José Estevam, Anais de Salvaterra - Dados históricos desde o séc. XVI, Lisboa, Edições Couto Martins, 1959, pp. 112-113 24 Extracto das Memórias Paroquiais, Vol. XXXIII,1758, citado por Joaquim Manuel da Silva; Natália Correia Guedes, O Paço Real de Salvaterra de Magos, A Corte, A Ópera, A Falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989, p. 98 25 Idem 26 Idem 27 A.H.M.S.M. - Livro de Posturas Municipais - 1795 a 1858, fl. 19

Mulher avieira

Bateiras no Rio Tejo


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AS MIGRAÇÕES DE PESCADORES DO MAR PARA O RIO TEJO Em finais do século XVIII, de forma a contrariar as amarguras e tormentas da fome, vários pescadores do litoral rumaram ao sul para o rio Tejo e seus afluentes, que se apresentava nesta altura do ano mais estável e sereno que o mar e possuía várias espécies de peixe, onde se destacava o sável, que era do agrado das populações da borda d’água. Já havia pescadores locais antes da vinda dos pescadores do litoral, como atestam as informações sobre o pescado no foral de 1517 ou nas Memórias Paroquiais de 1758, contudo eram pessoas que alternavam a pesca com a agricultura: «tudo leva a crer que, de início fossem os próprios íncolas a exercer essa actividade [a pesca], mas que aos poucos, ou por fastio e desencanto, ou por desejo de obterem maiores lucros com menor risco, se tivessem deixado de seduzir pela exclusividade do trabalho agrícola, deixando a pesca para os forasteiros, os quais atraídos pela prodigalidade do rio, terão começado a surgir.»28

Os pescadores do Norte da região de Ílhavo, Ovar e Murtosa, terão sido os primeiros a chegar ao Tejo «em data imprecisa, mas talvez não muito afastada dos finais do terceiro decénio de setecentos, grandes migrações de pessoal do Norte, como se dizia terão começado a surgir a beira Tejo. Eram Ílhavos, varinos e Murtoseiros, cumulativamente designados no Tejo por Varinos.»29 Nem sempre este termo de varinos é correto. No caso de Salvaterra de Magos, assiste-se a uma vaga de pescadores apenas da Murtosa, e como tal são conhecidos como murtoseiros, como afirmam alguns dos seus descendentes que acabaram por ficar em Salvaterra de Magos. Apelidos como “Pereira” ou “Naia” são hoje os fiéis representantes da Murtosa em Salvaterra de Magos.

Bateira de José Xarana Maria Micaela Soares, “Os Varinos. O Tejo. Pesca e Pescado. Pescadores e Peixeiras”, Lisboa, In Separata do Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, III Série, n. 90, 1984/88, p. 12 29 «Varinos e Avieiros», In Navegando no Tejo [coord: Fátima Magalhães], Lisboa, Comissão de Coordenação de Lisboa e Vale do Tejo, 1995, p. 78 28


11 Um século mais tarde (meados do séc. XIX) uma nova vaga de migração ocorre desta vez da Praia da Vieira, para as margens do rio Tejo e seus afluentes. Por serem gente da Vieira, “avieiros” lhes chamaram. Ao longo dos tempos estas comunidades de pescadores apesar de todas animosidades e adversidades da vida continuavam a regressar sazonalmente para o Tejo, regressando no Verão às suas praias para pescar no mar. Com o passar dos tempos estas comunidades de pescadores abandonaram as migrações e acabaram por se fixar na borda d’água, contundo criaram sempre o seu mundo à parte, evitando o contacto ou relações com os autóctones da lezíria. Junto das margens do Tejo vão surgindo aglomerados populacionais de pescadores avieiros «nascem repentinamente, na orla do rio, desde um pouco a montante de Santarém até quase ao Poço do Bispo, às portas de Lisboa, toscas construções do tipo palafítico que se amontoam em pequenas aldeias isoladas ou bairros suburbanos nos grandes centros.»30 O Escaroupim consolida-se como aglomerado urbano através de um lento processo de fixação de pescadores da Vieira de Leiria, que lentamente vão erguendo barracas de caniço e depois em madeira.

Carlos Simãozinho

Murtoseiros

Maria Micaela Soares, «A cultura avieira. Continuidade e mudança», In Separata do Colóquio “Santos Graça” de Etnografia Marítima, 1986, p. 80

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FAUNA E FLORA RIBEIRINHA A região ribeirinha do Tejo possui uma grande diversidade de fauna e flora ribeirinha. É um ecossistema frágil que ultimamente tem vindo a ser ameaçado e algumas destas espécies são difíceis de encontrar ou estão extintas. Vários fatores contribuíram para a alteração deste meio ecológico: a poluição das águas, a construção de barragens, o uso de pesticidas na agricultura e a própria acção do Homem. A flora é constituída pelo salgueiro-chorão (salix babylonica) localizado nas margens do rio, as silvas (rubus fruticosus e Rosa canina) e um pouco mais afastado das margens do Tejo surge o pinheiro-bravo (pinus pinaster) e o pinheiro-manso (pinus pinea), assim como alguns exemplares do eucalipto (eucalyptus globulus).

Enguia

Graça branca pequena

No que respeita à fauna piscícola destacam-se a enguia (anguilla anguilla), o barbo (barbus bocagei), a tainha também conhecida por fataça (mugil cephalus), a carpa (ciprinus cephalus), a boga (chondrostoma lusitanicum), o escalo (leuciscus pyrenaicus), o camarão do rio (crangou crangou), entre outras espécies. Em reduzido número e esporadicamente vai aparecendo o sável (alosa alosa) e a lampreia (lampetra fluviatilis). As aves que habitam nesta zona ribeirinha são as seguintes: galinha-d’água (geallinula chloropus), o pato-real (anas platyhyunchos), o guarda-rios (alcedo atthis), a garça branca pequena (egretta garzetta) e a garça real (ardea cinerea), entre outras espécies. Nos últimos anos a criação de ETARS, tem contribuído para uma melhoria da qualidade das águas do Tejo, e o resultado é visível com o reaparecimento de espécies de peixe, como é o caso do sável que volta a aparecer junto do Escaroupim.

Sável

Guarda rios


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RECUPERAÇÃO DAS ZONAS RIBEIRINHAS O rio Tejo foi uma linha de água decisiva para a fixação humana. Várias comunidades ribeirinhas souberam aproveitar e rentabilizar os recursos que o rio lhes oferecia, desenvolvendo atividades que marcaram o seu modo de vida, nomeadamente o tráfego fluvial, a pesca, a construção naval e um conjunto de profissões associadas como os carpinteiros, os calafates, pintores entre outras. Estas atividades estavam ainda muito presentes e vivas até à primeira metade do século XX. Contudo na segunda metade daquele século verifica-se um lento declínio destas profissões, e algumas acabam por se extinguir, enquanto outras sofreram alterações, adaptaram-se aos tempos modernos, deixando de usar técnicas e processos artesanais. A Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, reconhecendo a importância

estratégica do Tejo enquanto elemento de desenvolvimento local, realizou vários trabalhos para recuperar e revitalizar as zonas ribeirinhas. O território ribeirinho é fundamental para a criação de elementos de bem-estar, lazer e turismo, fazendo do rio Tejo uma referência identitária e estruturante para o concelho de Salvaterra de Magos. Ao longo dos tempos as zonas ribeirinhas foram abandonadas e descoradas, o Município ciente deste problema, recuperou e devolveu as zonas do rio às suas populações. As intervenções no Bico da Goiva, Praia Doce, Cais da Vala e Escaroupim são alguns dos exemplos. Afirmar o Tejo como marca de referência de atividades de índole turístico e histórico, é uma forma de viabilizar iniciativas económicas sustentáveis e promover o concelho de Salvaterra de Magos.


Exposição Organização Câmara Municipal de Salvaterra de Magos Coordenação Geral Presidente da Câmara Municipal Eng. Hélder Manuel Esménio Comissário científico António Nabais / Roberto Caneira Museografia António Nabais / Roberto Caneira Design dos painéis Soraia Magriço Cedência de objetos e colaboração na exposição Dr. António Nabais; Junta de Freguesia de Marinhais; Câmara Municipal de Vila Franca de Xira: Dr. Henrique Mendes e Dr. João Pimenta; Dr. Gonçalo Lopes; Joaquim Pita; Fernando Luís Antão; Alcide Sequeira; Joaquim Letra, Maria Bárbara; Júlio Xarana Letra; Manuel Leal Loureiro; Silvino Dominó; Manuel Guerra Simãozinho; João Botas; Clara Petinga; Rogério Crua; Maria Celeste; Manuel Rodrigues; Maria Júlia Botas; Virgílio Ramusga Botas; Carlos Guerra Simãozinho; Maria da Silva Petinga; Cassilda Rabita; José Pita; Rui Domingos; Pierre Testori; João Rodrigues; João Pita; Lucinda Moreira; José Guerra.

Catálogo Edição Câmara Municipal de Salvaterra de Magos Textos Roberto Caneira e António Nabais Design Soraia Magriço Impressão Gráfica Central de Almeirim, Lda. Depósito Legal 419374/16 Data Dezembro de 2016


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