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Este é o sexto ano consecutivo em que a Câmara Municipal de Salvaterra de Magos publica um livro infantojuvenil, de forma a divulgar e promover a história do nosso concelho, ao mesmo tempo que se procuram criar hábitos de leitura especialmente junto aos mais novos, edições que, em síntese, procuram de uma forma criativa e divertida que os jovens leitores se identifiquem com o seu património histórico-cultural. Thereza Ameal, uma conceituada escritora do nosso concelho, filha da tão bem conhecida atriz Tareka e do ganadeiro João Ramalho, permite-nos com a sua história surpreendente viajar entre dois mundos, o dos homens e o dos falcões. Aceitem o nosso convite e “voem” connosco nesta conturbada e animada viagem, ilustrada por Miguel Cardoso, que nos permitirá imaginar como seria a vida de outras crianças e jovens que viviam em Salvaterra de Magos no século XVIII. Desejo a todos uma boa leitura, e que para os mais pequenos seja um reforço de um agradável momento de leitura em família. Faço votos que tenham um ótimo ano letivo 2019/2020 e um bom regresso às aulas. Setembro, de 2019 O Presidente da Câmara Municipal
Hélder Manuel Esménio
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NIKI E VICK ASSALTO EM SALVATERRA Thereza Ameal Ilustrações Miguel Cardoso
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Mundo dos Falcões noutro tempo e noutro espaço Bzim! Bzim! Os falcões passavam sobre a cabeça de Vick a uma velocidade estonteante. Lá no alto, viu as penas cinzento-prateadas de Flecha. Sabia que leve, mas firmemente sentada sobre o seu pescoço, escondida entre as penas vibrantes ao vento, estava a sua irmã mais nova, Niki, a melhor condutora de falcões do mundo. “Quem me dera não ter crescido tanto para também poder ser condutor de falcão!”, pensou pela milionésima vez, com alguma pena. Mas ele também gostava imenso do seu trabalho na equipa de especialistas que dava apoio aos falcões do Mundo dos Homens. Adorava ajudar os falcõezinhos nos seus primeiros ensaios de voo, e para além de se ter tornado um autêntico veterinário cheio de experiência a curar patas feridas e a reparar penas partidas, sentia uma enorme curiosidade pelo Mundo dos Homens. Era tudo tão diferente e tão fascinante! O seu chefe estava sempre a dizer-lhe que devia chegar, fazer o trabalho e voltar rapidamente ao seu mundo. E ele sabia como era importante não ser visto pelos homens, que nem sabiam da existência do seu povo. Mas para Vick era irresistível. Acabava sempre por dar uns passeios furtivos, escondido entre as penas do seu velho Roberto, um forte falcão-gerifalte de olhos pretos penetrantes e peito de penas brancas, em quem confiava como em si próprio. Conheciam-se tão bem que era como se partilhassem os pensamentos um do outro. É claro que ele nem sempre estava de acordo com estas aventuras. Sobretudo quando desciam das grandes alturas e acabavam a pairar demasiado perto das casas dos homens. – Tu não percebes que vês quatro vezes melhor do que eu. – explicava o Vick – Eu não tenho tão bons olhos como tu e não me interessa só ver casas, telhados e copas de árvores. O que eu quero é ver a vida das pessoas, e para isso tenho que me aproximar. À conta destes passeios, já por mais de uma vez tinha sido quase apanhado, e acabara no 8
Gabinete do Ministro dos Transportes Aéreos Entre Mundos a levar uma descompostura. Naquele momento, viu Flecha descer a pique, caindo que nem uma pedra na direção do alvo colocado no chão do campo de treinos. Sabia que era um falcão-peregrino campeão, capaz de fazer voos picados a mais de 300 Km por hora, e que a sua irmã era a melhor do mundo neste desporto, mas, como sempre, sentiu o coração acelerar e uma gota de suor de pânico escorreu-lhe da testa. Era um desporto de altíssimo risco e a Niki era a sua irmãzinha pequena! O falcão aproximava-se a uma velocidade impossível. Qualquer outro já não conseguiria travar e iria estatelar-se no chão de pedra. Mas o Flecha, no que parecia ser o último instante, abriu as asas, esticou as patas para a frente e para baixo, e aterrou elegantemente no centro do alvo. No mesmo instante, Niki, corada de excitação e com a longa trança loira balouçando alegremente sobre os ombros, saltou para o chão escorregando pela asa. Abraçou-se à pata do Flecha: – Fantástico! Foste o maior, como sempre. Ela adorava o seu falcão de corrida. Dirigiu um enorme sorriso ao irmão: – Já volto, vou só pôr o Flecha no poleiro e já vamos para casa. Nesse momento, um grande falcão-gerifalte, com aspeto emproado e muito oficial, aterrou pomposamente à entrada do campo de treino. Estendeu cerimoniosamente uma asa até ao chão e um homem minúsculo, de casaca e chapéu de coco, escorregou por ela abaixo tentando manter um ar digno. Para surpresa dos dois irmãos, dirigiu-se a eles com ar apressado e apresentou-se: – Sou Fulgêncio Madraça, Secretário de Estado das Viagens no Tempo. Preciso de falar aos dois com urgência. O tratador pode encarregar-se do seu falcão, menina Niki. Agradeço que venham imediatamente comigo. Estupefactos, Vick e Niki instalaram-se no dorso confortável do falcão oficial e levantaram voo olhando um para o outro. Secretário de Estado das Viagens no Tempo? Nem sabiam que isso existia. 9
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Na sala de espera do Ministério, entreolharam-se, preocupados. – Fizeste outra vez asneira no trabalho? – perguntou a Niki – Que eu saiba não – respondeu Vick preocupado. – Dei só uma voltita a grande altitude, de certeza que ninguém me viu. – E o que é que ele quer dizer com isto das Viagens no Tempo? Finalmente, abriu-se a porta e o pequeno Secretário de Estado entrou, logo seguido pela larga barriga do Ministro dos Transportes Aéreos Entre Mundos. Vick engoliu em seco à vista daquelas sobrancelhas farfalhudas que conhecia demasiado bem. De certeza que afinal estava metido em sarilhos. Sentando-se atrás da secretária, com alguma dificuldade para acomodar a barriga, o Ministro fez um vago sorriso que Vick nunca lhe tinha visto, juntou as pontas dos dedos, e começou: – Estamos perante uma situação muito delicada e o que lhes vamos dizer é estritamente confidencial. Posso contar com a vossa absoluta discrição? Estupefactos, os dois irmãos acenaram que sim com a cabeça, mortos de curiosidade. Tudo aquilo começava a parecer um filme de aventuras. – Passo a palavra ao senhor Secretário de Estado. O pequeno Secretário levantou-se e começou a andar para a frente e para trás enquanto explicava:
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– Como sabem, as viagens entre o nosso mundo e o Mundo dos Homens são uma constante. No entanto, quase todas são Viagens no Tempo Presente, muito habituais e sempre sob controlo do Ministério dos Transportes Aéreos Entre Mundos. O que poucos sabem é que também há algumas raras viagens ao passado. Como eu disse, são raras, envolvem alguns perigos, e só são feitas em casos muito excecionais. Essas viagens fora de série estão sob a alçada da minha Secretaria de Estado. Fez uma pequena vénia com ar falsamente modesto: – Neste momento, temos uma situação muito espinhosa entre mãos, e vocês dois surgiram como candidatos especialmente aptos para cumprir uma missão no Mundo dos Homens que implica um salto ao século XVIII. Os dois irmãos arregalaram os olhos de espanto. – Porquê nós? – sussurrou Vick com uma voz ridiculamente fininha. Parecia que tinha perdido o pio. – Na verdade, várias possibilidades foram analisadas, no entanto, pensamos que a grande perícia da menina Niki como condutora de falcões pode vir a ser muito útil, assim como a sua experiência de contacto com os humanos. Vick corou ligeiramente. Sabia muito bem que tinha adquirido essa experiência fazendo asneirada e abusando muitas vezes da sorte. – O que se passa – interrompeu o rechonchudo Ministro dos Transportes Aéreos Entre Mundos – é que um crime gravíssimo está prestes a acontecer no Mundo dos Homens e temos absolutamente que o impedir. – Mas sempre houve crimes no Mundo dos Homens e, que eu saiba, nós nunca nos metemos nesses assuntos – estranhou o Vick. – O problema é que desta vez o criminoso é um de nós e o crime terá a cumplicidade de um falcão! Os dois irmãos esbugalharam os olhos, horrorizados. Os falcões eram animais belos, livres e nobres, amados e admirados por todos, desviar um falcão para o mal era uma coisa terrível e nunca vista. Só isso, seria já um verdadeiro crime. – Mas quem?... – balbuciou a Niki. 12
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– Conhecem, certamente, o nome Rori Patek – respondeu o Ministro com um esgar de repugnância. – O ex-campeão de velocidade que foi expulso por doping há alguns anos atrás? – perguntou o Vick, boquiaberto. – Ele e o seu falcão-gerifalte eram os meus ídolos, até tinha cartazes deles nas paredes do meu quarto – exclamou Niki, indignada. – Quando se descobriu o que ele fazia, fiquei em estado de choque. – Desde a sua expulsão, o senhor Patek enveredou por caminhos muito duvidosos. A nossa polícia tem andado sempre de olho nele e acabou de descobrir que ele partiu, sem autorização, para uma vila do Mundo dos Homens chamada Salvaterra de Magos, onde planeia fazer um roubo no século XVIII que pode vir a ter consequências desastrosas na história de Portugal. – explicou o pequeno Fulgêncio Madraça quase em bicos de pés de aflição. – Temos que o impedir! – vociferou o Ministro dando um murro na mesa. – Podemos contar convosco? – Sim! – exclamaram os dois irmãos sem hesitar.
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Salvaterra de Magos Outono de 1761 Manuel virou-se na cama e pestanejou aos primeiros raios de sol que entravam pela janela. Na pequena casa à beira Tejo, ouviam-se já as risadas e empurrões dos irmãos mais novos e os sons habituais da mãe a cirandar na cozinha, preparando a refeição da manhã. Apesar de não gostar de acordar cedo, Manuel sentiu um arrepio de excitação. Ia chegar a Família Real, era o dia tão esperado, finalmente! Lá em casa, todos iam ter o seu papel. E o dele era talvez o mais importante. O pai era barqueiro. Transportava lenha das coutadas da mata para a cidade de Lisboa ao longo de todo o ano, mas nos últimos tempos, por causa das grandes limpezas das matas e estradas que se faziam sempre antes da chegada da Corte a Salvaterra, o trabalho duplicara. E ainda bem, porque aquele dinheirinho extra vinha mesmo a calhar. Espreguiçou-se debaixo das mantas e espreitou o céu azul muito claro que se avistava do canto da janela. 16
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O pai tinha partido há dois ou três dias. Nesta altura, em vez de levar lenha para a cidade, ia trazer de lá damas e nobres da Corte que queriam seguir o lindo barco do Rei pelo rio acima. Iam até meio caminho de barco e depois quase todos continuavam o caminho de carruagem. Vinham sempre todos bem vestidos, cheios de malas e baús de roupa, caixas de chapéus e cofres com joias, e quando chovia, ficavam furiosos. No ano anterior tinha sido uma desgraça, chovera tanto que as senhoras tinham saído do barco com os sapatinhos de seda encharcados e todos os nobres com as perucas brancas a pingar como trapos na cabeça. Ele tinha feito um grande esforço para não rir, mas a verdade é que não recebera as moedas com que contava por ajudar a carregar a bagagem. “Ainda bem que hoje está um belo dia, vai estar toda a gente contente e vai haver moedas para todos”, pensou. Ouviu cantarolar por trás da parede do quarto. Era a irmã mais velha, uma rapariga bonita e despachada, de cara rosada e sorriso sempre aberto. Tinham-na chamado de novo para ajudar nas limpezas do Palácio, que era sempre todo decorado pelos armadores que vinham de Lisboa, sob as ordens do Mestre Pedro Alexandrino, trazendo tapeçarias, móveis, candeeiros e tudo o que era preciso para o conforto dos reis. Ela limpava o pó, batia os tapetes e este ano, para sua surpresa e alegria, tinham ordenado que retomasse o seu trabalho até a Corte partir. Só de pensar que talvez conseguisse ver de perto a Princesa D. Maria, talvez até El-Rei D. José… Não falava de outra coisa. Até a mãe e os dois irmãozinhos pequenos iam deitar flores na rua, à passagem do cortejo. Por vontade deles, já estariam há dois dias na Rua Direita, à porta do Palácio. Toda a vila estava eufórica. Há centenas de anos que a Corte vinha a Salvaterra, mas de cada vez parecia ser a primeira. Ou a mais importante. Pelo menos para ele era. Tinha trabalhado todo o ano como aprendiz na Falcoaria Real e, pela primeira vez, ia ter um papel ativo nas grandes caçadas que se avizinhavam. Dizia-se que El-Rei D. José gostava de tudo em Salvaterra de Magos, da ópera no novo teatro, das touradas cheias de valentia, da pesca na Vala Real, dos piqueniques e passeios no rio. Mas do que mais gostava, o que o fazia mesmo ir todos os anos passar largas temporadas a Salvaterra, era de caçar. 18
Manuel sentiu um novo arrepio de excitação. “Não há dúvida, este vai ser o meu ano especial!”, pensou. Lembrando-se de tudo o que tinha para fazer, levantou-se de um salto, vestiu-se a correr e saiu porta fora: – Até logo! – gritou já da rua. – Mas ainda nem comeste uma bucha – retorquiu a mãe saindo da cozinha, com um naco de pão na mão. Manuel voltou atrás, deu-lhe um beijo de fugida e agarrou no pão sempre a correr: – Já não tenho tempo para comer. Vou para a Falcoaria!
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No Mundo dos Falcões, os irmãos Vick e Niki preparavam-se para a sua missão. O Secretário de Estado desenrolou sobre uma grande mesa um mapa de aspeto antigo e começou a explicar o plano. – Pelos papéis que encontrámos em casa do ignóbil Rori Patek, sabemos a data aproximada e o local do crime. Será aqui, em Salvaterra de Magos, no século XVIII do Mundo dos Homens. O Rei D. José está a chegar com a Rainha, as suas quatro filhas e grande parte da Corte para a temporada de caça. Como veem, aqui é o Palácio Real onde ficarão instalados, com a Capela onde a Família Real vai à Missa todos os dias, e o novo edifício da Ópera. Deste lado, seguem-se várias casas onde ficam muitos dos nobres que os acompanham. Aqui é a Igreja maior e aqui, à saída da vila, é a Falcoaria Real, que vai ser especialmente importante no nosso plano. Ia apontando com o dedo cada local. – Memorizem bem este mapa, pois parece uma vista aérea e é assim que vão ver Salvaterra quando lá chegarem – disse o Ministro. Os dois irmãos debruçaram-se sobre a mesa, interessados. – E porque é que o Rori Patek escolheu fazer um roubo aqui? – perguntou a Niki. – Pensamos que ele vai roubar uma joia linda e muito valiosa da Princesa D. Maria. Foi um dos presentes que o Marquês de Pombal ofereceu à Princesa pelo seu casamento. O mais grave é que toda a gente sabe que a Princesa detesta o Marquês. Ele pediu-lhe que ela usasse a joia no baile mais importante da temporada e se ela não a puder usar porque o Rori Patek a roubou, ele vai considerar isso uma afronta e ficará furioso. – E as relações, que já são más, ainda podem piorar. Como ele é o Primeiro-Ministro de Portugal, e ela é a herdeira do trono, porque o Rei D. José não tem filhos rapazes, estão a perceber o conflito que isto pode provocar. E tudo por culpa de um criminoso dos nossos! – explicou o Ministro, enxugando a testa de preocupação. – Pensamos que ele escolheu Salvaterra de Magos – continuou o pequeno Secretário de Estado – porque o plano envolve o uso do seu falcão, e lá existe uma extraordinária Falcoaria Real e fazem-se muitas caçadas. 21
– Inteligente – comentou o Vick, pensativo – é claro que um falcão chama muito menos a atenção em zonas de campo, onde as pessoas, além do mais, estão habituadas a ver aves de rapina. – A primeira coisa que têm que fazer é perceber onde será o roubo. Mas terão que ficar em locais separados, para poderem observar as duas zonas mais prováveis. – Conseguimos construir um ninho no topo de uma das árvores mais altas do jardim do Palácio. Não será muito confortável, mas tem espaço para o Sr. Vick se instalar com o seu falcão e dali terão uma boa vista dos jardins e um excelente ponto de partida para voos sobre Salvaterra. – Contamos que as suas incursões ilegais ao Mundo dos Homens, lhe tenham servido de experiência para conseguir agora ouvir e ver, de forma o mais discreta possível, o que se passa na Corte, por onde anda a Princesa, e calcular qual será o momento mais provável para o crime. Desta vez o Ministro não tinha conseguido evitar um irritado franzir das hirsutas sobrancelhas, lembrando-se da constante desobediência do jovem. Vick desviou os olhos, desentendido. – E eu onde fico? – perguntou Niki para mudar rapidamente de assunto. – No seu caso, gostaríamos que se instalasse com o seu falcão de corrida na Falcoaria Real. – Mas isso é uma loucura – exclamou o Vick. – Sei o suficiente do Mundo dos Homens para dizer que é mesmo impossível. Os falcões não entram nas falcoarias sem mais nem menos, não é só ir a voar e aterrar lá dentro como se não fosse nada. Os falcões lá não se deixam montar, nem comunicam com as pessoas como nós fazemos aqui. Colaboram com os homens há mais de 3000 anos, é verdade, mas de uma forma completamente diferente. Os humanos apreciam imenso a beleza e a rapidez dos falcões. Na maior parte das vezes, apanham-nos em pequenos, tratam-nos lindamente e treinam-nos para as caçadas. Mas eles continuam a ser animais selvagens. – Tem toda a razão. – concordou Fulgêncio Madraça – Os falcões são aves orgulhosas que só aceitam esta colaboração porque também veem os homens como parceiros úteis que nas suas caçadas os levam para zonas cheias de presas, onde eles podem voar, caçar 22
à sua maneira e encontrar alimento. Por isso mesmo, a chegada da menina Niki à Falcoaria Real de Salvaterra é talvez a parte mais difícil e arriscada do plano e tem que ser executada, sem falta, hoje mesmo. – Hoje?! – exclamaram os dois irmãos em uníssono. – Nós sabemos que parece uma loucura, mas é a única possibilidade. Porque hoje chega a Família Real a Salvaterra e a confusão será tão grande, que é a única oportunidade que temos de fazer esta jogada sem que as pessoas se apercebam. – Com a Família Real vai sempre uma enorme comitiva. Uma quantidade de familiares, amigos, criados, cozinheiros, médicos, decoradores… – E no caso de Salvaterra de Magos, como uma das coisas de que o rei mais gosta é ouvir ópera, vão também músicos com enormes cargas de instrumentos, cantores, alfaiates que fazem os trajes para os espetáculos e pintores que pintam os cenários. – E por causa das grandes caçadas que ali se organizam, vão também caçadores, trombeteiros, cavalos com os seus tratadores e muitos homens da guarda-real… O gordo Ministro e o minúsculo Secretário completavam as palavras um do outro e terminaram entusiasticamente: – É uma gigantesca confusão! – E no meio da confusão, esperam que um falcão desconhecido e uma montadora do tamanho de um dedo não chamem a atenção? – perguntou Vick com cara de quem os considerava loucos varridos. A sua irmã era valente, mas ele não a ia deixar correr riscos desnecessários. – Sim. Mas temos uma arma secreta – explicou o Secretário de Estado das Viagens no Tempo. E, como se tirasse um coelho da cartola, tirou uma pequena mochila de uma cadeira e depositou-a sobre a mesa euforicamente. Os dois irmãos ficaram a olhar com caras de parvos. Era uma simples mochila de campismo. E depois? Suando de entusiasmo e atrapalhação, Fulgêncio Madraça limpou a testa com um pequeno lenço: – Pois, não parece grande coisa. Não me expliquei bem. O que aqui veem não é uma mochila, ou antes, é muito mais do que uma mochila porque, puxando esta correia… 23
Pluf ! Os dois irmãos deram um salto para trás. Da pequena mochila pareceu saltar uma enorme gaiola, aparentemente impecável, com tamanho para um falcão viajar bem instalado e, por estranho que pareça, com aspeto perfeitamente sólido. – Mas como é que isto saiu desta mini mochila? – espantou-se a Niki. – Precisamente. Como, não é? Mais um feito da nossa equipa de material secreto. – A menina Niki seguirá para o Mundo dos Homens normalmente, voando sobre o seu falcão Flecha através do Portal do Espaço/Tempo com esta mochila especial às costas. Mas, ao pousar, puxa esta correia. A gaiola abre-se instantaneamente, o seu falcão instala-se lá dentro como qualquer falcão da Terra, e a menina esconde-se neste compartimento secreto que fica no fundo, de modo a entrar na Falcoaria Real sem ser notada. – Genial! Niki e Vick não paravam de mirar e mexer na gaiola por todos os lados. – Isto até é capaz de funcionar – murmurou o Vick. – Mas ninguém vai estranhar aparecer um falcão sem falcoeiro? – Já pensámos nisso. Os reis de Portugal recebem muitas vezes falcões de presente. Ainda não há muito tempo, o rei da Dinamarca enviou por barco vários falcões capturados nos seus territórios da Finlândia. Já escrevemos uma carta impecável que a menina Niki
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deixará junto da gaiola. Quando a lerem, ninguém vai estranhar que o belíssimo Flecha seja mais um presente para Sua Majestade. Quanto ao resto, contamos com a inteligência e iniciativa da menina Niki para resolver as situações conforme elas forem aparecendo. E agora, lamentamos, mas não há tempo a perder. Vamos entregar-vos mais algum material e vestuário adequado, e é hora de partir. O Portal do Espaço/Tempo estendia-se, aparentemente infinito, à sua frente, como uma cortina de ar luminoso, movendo-se lentamente sob uma brisa invisível. Os dois irmãos deram as mãos por um momento. Já tinham passado aquele Portal muitas vezes, mas nunca para darem um salto ao passado, e nunca numa missão tão arriscada. Olharam um para o outro e assentiram com a cabeça. Estava na hora. Imediatamente, Roberto e Flecha baixaram o pescoço até ao chão e cada um montou o seu falcão. Levantaram o dedo polegar: OK. E atravessaram.
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Vick inspirou com força o ar gelado à medida que se aproximava do solo a grande velocidade. A primeira coisa que viu foram as duas enormes chaminés das cozinhas do Palácio que se destacavam sobre todo o resto. Um ótimo ponto de referência que assinalou imediatamente para si próprio. Aproximou-se um pouco mais dos jardins do Palácio Real e avistou a árvore e o ninho onde deviam instalar-se. Parecia tudo em ordem. – Antes de mais, vamos fazer um reconhecimento geral. – disse, dirigindo-se a Roberto. Era engraçado ver na realidade aquela terra que tinha acabado de estudar num mapa. Os telhados novos, de telhas alaranjadas, estendiam-se precisamente nos locais que ele esperava. “Bons mapas”, pensou. 26
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Mas havia muito mais coisas que não podia prever. Admirou os maravilhosos campos verdes em volta, o Tejo prateado serpenteando a norte, os barcos de cores garridas atracados numa vala bordejada de salgueiros, e a pequena ponte com aspeto muito antigo. Fez uma larga curva no céu e estudou as casas pequenas, de madeira ou tijolo, que não vinham assinaladas no mapa. As casas do povo, com aspeto limpo e arranjado. Inspirou o ar puro e alongou o olhar sobre as matas mais ao longe. “Não há dúvida de que Salvaterra é uma linda vila. Não admira que os reis portugueses gostem de aqui estar”, pensou. Um pouco para nordeste, avistou os telhados da Falcoaria, um edifício grande retangular, bastante moderno para aquela época, com três edifícios mais pequenos nas traseiras, dois quase quadrados e um redondo, que ele sabia serem os pombais. Teve o impulso de se aproximar para ver onde estaria a irmã, mas sabia que não devia chamar a atenção e dirigiu-se para o seu posto de observação, o ninho que ficava à distância de um curto voo em linha reta.
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– Eu sei que ela é uma campeã e que sabe o que faz – disse a Roberto. – Mas não consigo evitar preocupar-me com ela. O falcão compreendeu perfeitamente. Nesse momento, Niki, muito mais alto nos céus, tentava escolher o sítio ideal para pousar sem serem vistos. Acabou por decidir que o melhor era arriscar e ir diretamente para a zona da Falcoaria. Precisavam de ser levados para o interior e sabiam que iam depender muito da sorte. Já mais próximos, analisaram de cima o pátio interior quadrado, com poleiros em toda a volta, cada um com um falcão pousado. Cobriam-lhes as cabeças uma espécie de capacetes de cabedal de várias cores com lindíssimos penachos no topo, e uma correia de cabedal prendia cada um, por ambas as patas, ao seu poleiro. Flecha sacudiu a cabeça e bateu o bico curvo num pio de desagrado. – Eu sei que não estás habituado. Espero que não te ponham o caparão, mas tens de estar preparado para essa possibilidade. Aqui os falcões são muito mais selvagens e ficam facilmente agitados. Os falcoeiros tapam-lhes os olhos para que se mantenham calmos. Flecha assentiu e escolheu ele o local de aterragem. Afastou-se para oeste, sobrevoando vastos campos, muito planos e férteis. Depois, num voo quase rasante, aterrou junto ao muro da Falcoaria. Niki escorregou imediatamente pela sua asa e correu até à esquina, observando furtivamente o que se passava na frente do edifício. Os ruídos, os cheiros, as cores, tudo era novo para ela. Ficou em silêncio, colada à parede, com a pequena mochila aos pés, vendo a agitação dos cavalos que batiam os cascos no chão, impacientes, enquanto os aliviavam das suas cargas. Havia também carroças de todos os tamanhos e feitios. Um miúdo dos seus 12 anos corria de um lado para o outro indicando a vários falcoeiros vindos de fora, onde se deviam instalar. – Os falcões acabados de chegar, devem ir para as alcândoras* no edifício da direita! – Gritou ele. Parecia inteligente e despachado e Niki achou que seria a pessoa ideal para os ajudar. Alguém chamou de dentro da Falcoaria: 29
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– Manuel! O rapaz virou-se imediatamente e entrou a correr. – Até já sabemos como se chama – pensou Niki com um sorriso. Esperou para ouvir de novo a sua voz e quando percebeu que Manuel se aproximava, deu um salto rápido até à esquina do muro e puxou a correia abrindo a gaiola. O Flecha saltou imediatamente lá para dentro, ela fechou a portinhola e atirou-se de cabeça para o compartimento secreto escondido no fundo. Na escuridão absoluta do espaço apertado, desejou com todas as suas forças que os encontrassem depressa. Mal conseguia respirar! Felizmente, não teve que esperar muito, pois o Manuel, voltando ao terreiro, viu imediatamente a bela gaiola abandonada. Aproximou-se, curioso, e soltou um assobio de admiração. Nunca tinha visto um falcão-peregrino tão espetacular. Mirou em volta, procurando quem estaria encarregado do animal, mas não viu ninguém. Sem saber o que fazer, correu para dentro e voltou passados instantes com o mestre Falcoeiro que dirigia tudo na Falcoaria. – Ó rapaz, estou cheio de trabalho e tu fazes-me interromper a organização das chegadas num momento destes? – Mas é mesmo importante. Olhe para isto! O mestre Falcoeiro soltou uma exclamação de espanto. – Que exemplar maravilhoso, é um falcão perfeito! Niki, estendida na escuridão, não pôde deixar de sorrir de orgulho e imaginou o Flecha a encher o peito vaidosamente. Ele gostava bastante de se exibir. – Como veio aqui parar? – perguntou o falcoeiro. – Não sei – respondeu a voz jovem de Manuel. – Todos os falcoeiros que vieram de fora estão a cuidar dos seus falcões. Este estava aqui sem ninguém. Ainda por cima está sem o caparão, mas mesmo com os olhos destapados parece calmíssimo. – É verdade. Olha-me só para esta postura – admirou de novo o falcoeiro. – Até descobrirmos de quem é, ficas tu encarregado de o tratar. Começa por levar a gaiola para dentro e escolhe um lugar numa alcândora. Atenção para que não fique demasiado perto de 32
alguma outra ave. Esta agitação toda não ajuda e hoje ainda há mais perigo de se iniciar alguma luta se se tocarem nem que seja com as pontas das asas. O Manuel nem queria acreditar na sua sorte. Ele a cuidar do mais extraordinário falcão-peregrino de toda a Falcoaria Real de Salvaterra! Bem tinha acordado com bom pressentimento! Ao levantar a gaiola, viu no chão o que parecia ser um rolo de papel fechado com lacre que entregou imediatamente ao falcoeiro. Quem lhe dera saber ler. Mas o mestre Falcoeiro não partiu o lacre. – Vou levar, talvez seja melhor ser aberto pelo Senhor Monteiro-Mor, que veio hoje de Lisboa e deve estar aí a chegar. Um falcão deste nível, numa gaiola que parece preciosa, é uma grande responsabilidade. Entraram os dois na Falcoaria, carregando a gaiola, e Niki suspirou de alívio. Estavam lá dentro! Manuel atravessou o pátio e entrou no edifício de um só piso que ficava logo do lado direito. Outros falcoeiros também se afadigavam lá dentro, instalando os seus falcões nas alcândoras. O chão de terra batida que ele tinha varrido cuidadosamente já estava todo espezinhado, mas como não chovia, mantinha-se limpo e com bom aspeto. O cheiro forte das aves, algumas delas petiscando pedaços de carne crua, encheu-lhe as narinas agradavelmente. Sabia que muita gente não gostava, mas para ele aquele era o aroma de algo que amava, por isso parecia-lhe melhor do que perfume. Procurou um bom lugar para o seu falcão-peregrino e viu com agrado os olhares admirativos, até um pouco invejosos, dos outros homens. Escolheu um lugar entre um pequeno esmerilhão e um belo falcão-gerifalte que ainda exibia o peito branco com as pintas castanhas, típicas da juventude. Como era de regra, as princesas e damas caçariam com esmerilhões, os nobres com falcões-peregrinos e o Rei com gerifaltes, e ele tinha ouvido dizer que D. José queria experimentar este belo espécimen que tinha trazido de Lisboa. 33
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“Se vier aqui visitar os animais antes da caçada, há de ver o meu e talvez até queira experimentar caçar com um peregrino”, pensou esperançoso. Flecha olhava para tudo com os seus olhos inteligentes, analisando o espaço e os seus ocupantes. O teto era alto e a porta abria sobre o pátio interior que tinham atravessado. Poderia abrigar 12 falcões, calculou. Observou bem todas as aves, mas não viu ali o passarão de Rori Patek. Para mostrar a sua boa-vontade, esticou ele próprio a pata, permitindo que o rapaz lhe pusesse a correia que o prenderia ao seu poiso. Não era coisa que lhe agradasse, mas sabia que nenhum falcão poderia ficar solto dentro da falcoaria. Manuel ficou espantadíssimo e muito bem impressionado. – Caramba, foste mesmo bem treinado – disse em voz alta, para que todos vissem as proezas da sua ave. Mas quando se aproximou cuidadosamente com um caparão de couro vermelho escuro na mão, as coisas não correram como esperava, porque Flecha, de forma aparentemente suave mas firme, não deixava nem por nada que lhe pusesse o carapuço na cabeça. Baixava-se, escondia a cabeça debaixo da asa, fechava os olhos como se estivesse a dormir e, de cada vez que ele aproximava sorrateiramente o caparão, desviava-se ligeiramente como quem não quer a coisa. Manuel já não sabia o que fazer e sentia-se um pouco humilhado. Como alguns dos falcoeiros já olhavam para ele com ar de gozo, optou por uma manobra de diversão. – Ora bem, depois da viagem que fizeste vindo sabe-se lá donde, deves estar com fome. Dirigiu-se a um balde cheio de belas vitualhas e depositou aos pés de Flecha um pedaço de carne crua. O falcão não se fez rogado, segurou a refeição entre as garras afiadas e começou imediatamente a petiscar. De facto, estava com mais fome do que pensava e já começava a gostar deste humano simpático. – Vou arrumar a tua gaiola e já volto. – disse-lhe Manuel, saindo para a rua. Niki, ainda estendida no negrume do seu esconderijo, já não aguentava mais. “Como é que ninguém se lembrou de fazer uma janela para entrar ar e luz neste maldito cochicho?” pensava furiosa. 36
Ainda por cima, agora que a gaiola estava vazia e leve, Manuel teve a triste ideia de a levar pendurada pela argola do topo, fazendo com que o fundo balançasse mais do que um barco em alto mar. Quando o rapaz depositou a gaiola numa arrecadação e Niki ouviu o trinco da porta que se fechava, saltou cá para fora, verde de enjoo. Ao contrário de Flecha, naquele momento não simpatizava nada com o humano que a transportara daquela maneira. Nos dias seguintes, os dois irmãos dedicaram-se a conhecer bem todos os locais possíveis e a juntar toda a informação que iam ouvindo aqui e ali. Flecha não estava descontente. Estava bem instalado e Manuel, incapaz de lhe pôr o caparão e vendo que ele se mantinha calmíssimo e não dava sinais de agressividade, acabara por lhe deixar a cabeça destapada, o que muito lhe agradava. Era bem alimentado e apreciava bastante as visitas constantes dos vários falcoeiros que o iam ver, comentando a sua beleza, discutindo sobre a forma inexplicável como tinha chegado à Falcoaria, e especulando sobre as suas capacidades na caça à perdiz, a presa que melhor destacava o voo picado dos falcões-peregrinos. Manuel esperava que ele fosse escolhido para participar nas próximas caçadas e, apesar de ser uma loucura, sonhava poder ser ele a levá-lo para a coutada na luva de cabedal grosso. Como gostaria de lançá-lo em voo como uma seta rápida! O pai tinha-lhe dito: – Não sonhes tanto, filho, que depois quando acordares custa-te mais. Isso é trabalho que só os falcoeiros fazem e nas caçadas reais estão cá em Salvaterra os melhores, todos a postos para o trabalho. Se o falcão é tão bonito como dizes, todos hão de querer experimentar caçar com ele. Mas a mãe, sempre animadora, dizia-lhe que mais valia sonhar e ficar depois desiludido, do que nem chegar a sonhar com coisa nenhuma. – Já sabes que o mais certo é isso não acontecer. Mas, pelo sim pelo não, vai-te preparando. Os falcoeiros gostam de caçar com a ave que treinaram e que sabem que confia neles. Talvez tenham medo de fazer má figura com um falcão desconhecido que pode não obedecer aos seus assobios. 37
E o Manuel, pelo sim pelo não, passava todo o tempo que podia de luva de couro grosso posta na mão esquerda para se ir habituando. Alguns falcoeiros tinham tentado levar Flecha para um treino, mas o falcão nem se dignava passar do poleiro para a luva que lhe estendiam e virava-lhes as costas com ar indignado, sem dar atenção aos apitos ou assobios com que tentavam comunicar com ele. Manuel pedira ao mestre Falcoeiro que o deixasse experimentar. Ele rira-se e dissera: – Porque não? E não é que o espetacular peregrino tinha mesmo subido para a sua luva como se tivesse sido toda a vida treinado pelo rapazinho salvaterrense? Ninguém queria acreditar. Desde aí, Manuel e Flecha passaram a treinar todos os dias. Manuel comunicava por assobios, sem saber que Flecha o entendia perfeitamente, e as atuações do falcão, a velocidade a que voava caindo a pique sobre as presas, e a perícia absolutamente perfeita com que as apanhava e entregava a Manuel em troca de excelentes pedaços de carne crua, estavam a tornar-se uma estória seguida por toda a Corte. No Palácio, já vários nobres tinham dito que queriam vê-lo numa caçada a sério. E não havia dúvida de que, dado que mais ninguém conseguia pôr o falcão sobre a luva, seria Manuel a levá-lo. Por esta altura, Vick também estava nas suas sete quintas. Para quem gostava tanto de perceber o Mundo dos Homens, aquela era uma ocasião perfeita e ele não desperdiçava um minuto. Roberto resmungava: – Já estou velho para estas coisas. Um ninho sem condições, doem-me as costas e sinto falta do meu poleiro ortopédico. Vá lá que o tempo continua bonito e pelo menos não nos chove em cima, mas já só desejo que o criminoso cometa o crime para poder voltar para casa. E aviso já que vou para um Spa fazer massagens e que durante uns tempos ficas sem montada. Vick ria e não lhe ligava. Dormia no ninho melhor do que em casa, debaixo das penas quentes de Roberto como um pintainho debaixo da galinha. E passava os dias a explorar os ares com o amigo. A pessoa que mais informação lhe dava era a bonita irmã do Manuel. A rapariga todos os 38
dias vinha para baixo da sua árvore e, enquanto batia tapetes e sacudia os panos de pó, ia comentando com uma colega tudo o que acontecia no Palácio. Ouvindo as conversas das raparigas, já tinha conseguido saber onde eram os quartos de cada uma das muitas pessoas que ali estavam instaladas, e até tinha conseguido espreitar a fabulosa joia que o Marquês tinha dado à Princesa D. Maria, um alfinete com uma enorme safira azul escura rodeada de brilhantes, própria para se prender no decote do vestido. Durante o dia, Vick voava de um lado para o outro com Roberto e durante a noite aproveitava o seu tamanho diminuto para entrar nas casas sem dificuldade. Os candeeiros do Palácio, das casas dos nobres e da Ópera eram grandes lustres de cristal cheios de velas acesas, iluminavam com luz quente e brilhante o centro dos salões, mas deixavam na penumbra os recantos mais afastados, os corredores estreitos e os vãos das janelas onde Vick se escondia facilmente por trás dos enormes cortinados de veludo. Andava fascinado com tudo o que via e, ao contrário de Roberto, tinha esperanças de que o ladrão adiasse o roubo por mais algum tempo. Até já tinha os seus humanos preferidos. Adorava um cantor de ópera com péssimo feitio que passava a vida a ralhar com toda a gente, mas que era um génio sobre o palco. Sempre que podia ia ver os ensaios e ria à gargalhada com as fúrias do cantor que quase matava os pobres músicos. Numa noite, tinha assistido a uma ópera e ficara de boca aberta. O teatro era uma beleza, com lugar para quinhentas pessoas. As damas exibiam os seus melhores vestidos e as joias mais espampanantes, e os cenários pintados pareciam quadros de museu pintados sobre tecido. Mas o mais incrível era mesmo a música. O som elevava-se no ar, subia e descia, quase sem pausas, numa melodia estranhíssima, um som que não parecia sair de uma garganta humana e era mais como o canto de um pássaro mágico e desconhecido. Havia também um casalinho que andava a namorar às escondidas e que aproveitava todos os cantos escuros para dar beijos e abraços. Já por várias vezes quase o tinham pisado quando se metiam por trás da mesma cortina em que ele estava enrolado, espreitando os maravilhosos bailes. Mas ele não lhes levava a mal. Era o amor! Estava a tornar-se um romântico. E não podia esquecer a sua melhor amiga, a empregadinha rosada e sorridente que tanto o ajudava sem se dar conta. 39
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Com tanta atividade, já conhecia todos os cantos à vila e já tinha algumas ideias interessantes. – Se eu fosse criminoso e quisesse usar o meu falcão, apostaria num golpe ao ar livre. Talvez numa tourada, que é tão emocionante e que põe toda a gente de olhos pregados no touro e no toureiro, sem ter tempo para ver mais nada. – Ou numa caçada, – sugeriu Roberto – onde há tantas aves no céu, que mais um falcão não despertaria as atenções… Niki é que não aguentava mais a missão. A Falcoaria era mesmo um lugar complicado para uma minorca como ela. Logo na primeira noite, ia sendo comida pelo Bufo Real, um passarão enorme de olhos redondos, parecido com uma coruja de sobrancelhas espetadas. Ficava à noite na rua para afastar predadores, mesmo à porta do dormitório onde estava Flecha, e, quando Niki tentara entrar, zás! Se não tivesse saltado a tempo, tinha ido pelo gorgomilo do Bufo abaixo, cortada em dois pelo seu bico poderoso. Desde essa primeira noite, tivera que descobrir uma outra forma de entrar, rastejando pelo telhado e descendo por uma janela das traseiras até à alcândora do Flecha. Pelo menos aí sentia-se quente e confortável durante algumas horas. Conversava com o amigo, discutiam planos, e acabava por dormir aconchegada sob a sua asa. Quando percebera que o Bufo servia para afastar raposas e outros animais que podiam atacar e até comer o seu querido falcão, tinha-lhe ficado agradecida. Chamava-lhe Ministro, em honra do Ministro dos Transportes Aéreos Entre Mundos, devido às suas grandes sobrancelhas farfalhudas. Mas não há dúvida que ele não lhe facilitava a vida. De madrugada, antes do sol nascer e da agitação na Falcoaria começar, Niki rastejava de volta ao pombal redondo que descobrira nas traseiras. Era habitado por centenas de pombos que esvoaçavam de um lado para o outro como baratas tontas e não se calavam um minuto. Ficava com dores de cabeça com tantos “cru-cru”, mas o pombal tinha a grande vantagem de ter imensos nichos pequenos e agradáveis. Niki tinha armado uma autêntica casinha num dos nichos mais baixos, com o material que levara na mochila. Nesse aspeto, 42
não se podia queixar. A equipa do Ministério tinha pensado em tudo e a sua casinha era bastante confortável. O problema eram os vizinhos! Durante o dia não era nada fácil para ela andar de um lado para o outro. Sempre que conseguia, assistia aos treinos de Flecha. O que ela daria para estar lá em cima com ele, voando livremente, com o vento na cara e a adrenalina a correr nas veias. Precisava absolutamente de descobrir uma forma de o fazer, mas por mais voltas que desse à cabeça, não conseguia uma maneira de montar Flecha sem ser vista. Para fugir daquela zona tão perigosa, afastava-se a pé o mais que podia, até um local próximo do rio onde Vick a vinha buscar sem chamar as atenções. Quanto mais pensavam, mais certeza tinham de que o golpe seria dado durante a grande caçada que se preparava. Mas já estava em cima da hora e ela continuava sem saber como subir para o pescoço do Flecha. Tinham tido as ideias mais malucas. – E se eu me enfiasse dentro da luva quando o levarem para a caçada? – Estás doida. E achas que o Manuel não notaria quando lá metesse a mão? Ainda te esmagava sem querer. Acabaram por decidir que quando a hora chegasse, Niki se esconderia na bolsa de cabedal que Manuel levava sempre à tiracolo e onde guardava tudo e mais alguma coisa. Ele não tinha casaca de seda nem lenços de renda, como os nobres caçadores, usaria de certeza a sua roupa simples e a bolsa costumeira. Vick não tinha dúvida de que ela conseguiria. Quando a irmã estava decidida a fazer uma coisa, por mais difícil que fosse, fazia-a mesmo. O problema seguinte era como passar da bolsa para cima de um falcão que estaria bem visível sobre a luva do falcoeiro. Não podia subir por uma pata como se fosse uma formiga. Não era assim tão pequena e seria logo apanhada. Foi o Flecha que deu a solução. – Não há problema, eu como-te. – O quê?! – gritou Niki quando ele, certa noite, fez esta proposta radical. Ele riu: 43
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– Finjo que te como. Os meus treinos têm sido tão bons que já é certo que vou participar na caçada. Como só deixo o Manuel aproximar-se, tem mesmo que ser ele o meu falcoeiro. Tu metes-te na bolsa das viandas e levas a mochila às costas, para eu ter por onde te pegar sem te magoar. Em princípio, eu não posso ir buscar pedaços de carne crua à bolsa, tenho que esperar que o falcoeiro mas dê, mas desta vez vou ser desobediente. Tu tens que abrir a bolsa e, quando ele não estiver à espera, finjo que vi algum pedaço apetecível, salto sobre ti, apanho-te e lanço-te para as minhas costas onde te escondes imediatamente entre as penas. Deu-lhe uma marradinha com a testa e coçou o cabelo louro de Niki com a ponta do bico, num gesto carinhoso que não lhe era muito habitual: – Tens que confiar mesmo em mim. – Eu confio, tu sabes. Finalmente, chegou o dia da primeira caçada real. Manuel não conseguiu dormir e levantou-se ainda fazia escuro. Na Falcoaria a agitação era completa. Muitos nobres e damas que iam caçar, tinham já chegado nos seus cavalos. Uma caçada era um verdadeiro trabalho de equipa e todos queriam ver os falcões e falar com os falcoeiros. Ouviam-se por todo o lado relinchos e bater de cascos e as conversas e gargalhadas de muitos homens e rapazes que se ofereciam como batedores. Ir à frente das montadas, batendo o chão da coutada com paus e ramos para fazer levantar a caça, era não só uma bela forma de participar no divertimento real, mas também de receber no final do dia parte das presas, garantindo uma boa refeição à família. Manuel já tinha sido batedor. Este ano pensava que iria como ajudante. E de repente, à conta de um falcão-peregrino misterioso que, sabe-se lá porquê, o tinha adotado, iria ser um autêntico falcoeiro! Nem conseguia acreditar, era bom demais para ser verdade. Para seu grande alívio, não teria que ir a cavalo. A verdade é que nunca tinha montado e andava apavorado com a ideia. Mas, por sorte, aparecera na Falcoaria um nobre simpático, pouco mais velho do que ele, que tinha partido uma perna e teria que ir à caçada de cadeirinha transportada por carregadores. Talvez por serem quase da mesma idade, metera conversa 46
com ele, e o Manuel tinha tecido tais elogios ao seu falcão, que tinha ficado tudo combinado. Hoje, acompanharia a pé o jovem senhor. Começava o céu a acinzentar, nos primeiros alvores da madrugada, quando todo o cortejo partiu em direção à coutada. Atrás dos caçadores e falcoeiros, seguiam nobres de mais idade nas suas carruagens e muita gente do povo a pé ou em carroças enfeitadas. O programa era uma alegria para todos. À frente ia El-Rei D. José num magnífico cavalo branco, de garupa larga e pescoço orgulhoso, conversando animadamente com o Monteiro-Mor que seguia a seu lado num cavalo baio. A Rainha seguia logo atrás, rindo e conversando com as quatro princesas e algumas damas. Entre os homens, seguia Manuel, inchado de orgulho. Niki, aproveitando a luz acinzentada da aurora, entreabriu cuidadosamente a bolsa. Sabia que na penumbra era mais provável que ninguém visse a sua pequena cabeça loura espreitar por entre as viandas. Estava agoniada com o cheiro da carne crua e sentia-se escorregadia, mas confiava nos seus dotes de condutora de falcão e sabia que mal se escondesse entre as penas arrepiadas de Flecha se sentiria em plena forma. Com o coração acelerado, pôs a mochila às costas e esperou. Flecha, com os seus olhos penetrantes, seguia-lhe os movimentos com toda a atenção. Fingindo alisar as penas com o bico, começou por desatar a correia que o prendia à luva. Tinha treinado isto constantemente e ninguém se apercebeu de que estava solto. De repente, com um gesto rapidíssimo, deixou-se cair. Pegou em Niki com a ponta do bico e, com um golpe de asa, voltou a pousar na luva, atirando o pescoço para cima como se estivesse a engolir. Com o impulso, Niki deu um salto mortal para trás e aterrou nas suas costas, onde se agarrou imediatamente às penas mais fortes ficando perfeitamente escondida. A primeira parte do plano estava cumprida! Entretanto, Vick e Roberto acompanhavam o avanço da equipagem. Esvoaçavam de forma discreta, ocultos pelos ramos das árvores, atentos a tudo o que se passava. 47
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O sol nascera e o dia apresentava-se glorioso, o que permitia uma excelente visibilidade. Sob os ramos do sobreiro onde se tinham escondido, passou a Princesa D. Maria, montando com elegância uma égua alazã, cor de ferrugem brilhante. Ao sair das sombras, o sol pareceu resplandecer no alfinete de safira e brilhantes que segurava as enormes penas do seu chapéu. – Tem a joia! – murmurou Vick com o coração a bater descompassado. – O roubo pode acontecer a qualquer momento. A caçada decorria com entusiasmo. O dia avançava e já tinha havido vários lançamentos. El-Rei estava eufórico porque o seu falcão-gerifalte tinha feito um voo de grande beleza seguindo uma garça real prateada, a sua presa preferida, e a perseguição tinha sido um sucesso. A Corte rejubilava com a beleza do dia e a variedade das espécies que os batedores levantavam ao passar. Por boas razões, as coutadas de Salvaterra eram consideradas das melhores do país. Seria mais um dia perfeito para guardar nos anais da Falcoaria Real. A ordem de partida de cada falcão estava programada de avanço e Manuel não aguentava mais a espera. Levava Flecha sobre a luva na mão esquerda, com as patas envoltas em pele presas entre os dedos da mão direita. Ao contrário dos outros falcoeiros, quando chegasse o momento não teria que lhe retirar o caparão, pois a sua bela ave ia de cabeça descoberta. Bastaria soltá-la, lançá-la no ar, e vê-la partir em voo. Preparava-se para o fazer, quando algo inusitado aconteceu. Vindo não se sabe de onde, um falcão pareceu cair do céu a grande velocidade em direção à Princesa D. Maria. As suas garras afiadas esticaram-se como se fosse atacá-la. Todos gritavam e a égua da Princesa, em pânico, desatou num galope desenfreado. A Princesa segurava as rédeas com uma mão, tentando manter-se sobre a montada, ao mesmo tempo que protegia a cara com o outro braço. Sem hesitação, o falcão desconhecido arrancou-lhe do chapéu a joia faiscante e começou a elevar-se quase na vertical. 49
Mas eis se não quando, duas aves vindas de direções diferentes atravessaram os ares. Saltando de uma árvore alta, Vick impulsionou Roberto a toda a velocidade. No momento do embate, o forte falcão-gerifalte enrolou o pescoço e atirou-se de lado, com todo o seu peso, contra o gerifalte de Rori Patek que subia rapidamente em direção ao céu. Apanhado de surpresa, este girou sobre si mesmo descontrolado. O antigo campeão conseguiu manter o equilíbrio a custo e fez uma manobra rápida, subindo em espiral, mas Vick não se deixou enganar e subiu a seu lado à mesma velocidade. Prendendo-se ao dorso de Roberto só com as pernas, lançou uma rede sobre o falcão inimigo. No mesmo instante, Roberto deixou-se cair como uma pedra puxando a rede atrás de si. A armadilha fechou-se sobre o falcão em fuga e o seu montador. Estavam bem presos e prontos para serem rebocados para a prisão do Mundo dos Falcões! Rori gritou de fúria quando viu a joia escorregar das garras do seu falcão. Vick, como que hipnotizado, fitou a maravilhosa joia que caía, brilhando com as cores do arco-íris à medida que girava em direção à terra. Por um segundo pensou que tudo tinha sido em vão. O alfinete de pedras preciosas ia perder-se no meio do mato e o Marquês nunca perdoaria à Princesa não o usar no baile de gala. Tinham falhado a missão e talvez a História de Portugal fosse alterada por isso. Visões de guerra civil passaram-lhe pela imaginação horrorizada. Nesse instante, como um autêntico bólide de penas cinzentas, surgiu Flecha guiado por Niki. Com o pescoço esticado e o corpo lançado a mais de 300 km/h, numa demonstração de perícia inacreditável, pegou na joia em plena queda, segurando-a firmemente entre as garras. Niki, estendida sobre o seu pescoço em posição de corrida, soltou um berro de vitória. Por momentos, Flecha pareceu pairar nas alturas, passando lentamente perto de Vick e Roberto. – Temos a joia! – gritou Niki, eufórica. Vick abraçou o pescoço de Roberto com uma maravilhosa sensação de alívio. Com um sorriso de orelha a orelha, virou-se para a irmã e as suas palavras flutuaram no vento: 50
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– Missão cumprida, maninha! Niki sussurrou algo ao ouvido de Flecha. Com um pio divertido, este segurou a joia com o bico e começou a descer lentamente. Iam dar um presente inesquecível ao seu amigo Manuel. Seria ele o herói do dia. A égua alazã, ainda tremendo e com espuma no pescoço da louca galopada, tinha parado no centro de uma clareira onde a Princesa D. Maria, rodeada de damas e cavaleiros, observava o espetáculo dado pelas fabulosas aves de rapina. Flecha passou lentamente por cima das suas cabeças e foi aterrar com elegância na luva de Manuel que tinha corrido sem parar, seguindo com os olhos tudo o que se passava. Estupefacto, Manuel viu o brilho azul da joia no bico do falcão-peregrino. Abriu a mão e Flecha deixou cair o alfinete precioso na sua palma estendida. Ele juraria para sempre que o falcão lhe tinha sorrido. Um grito de admiração percorreu a multidão que seguia abismada os extraordinários acontecimentos. Abrindo as asas, Flecha lançou-se de novo em voo. Deu duas voltas no ar sobre a cabeça do amigo e o seu grito de despedida vibrou no vento, à medida que se elevava em direção ao céu azul até desaparecer de vista. Exultantes, Vick e Niki gritaram ao mesmo tempo: – Adeus Terra dos Homens, adeus Manuel! Cá em baixo, mirando o céu azul, Manuel murmurou: – Adeus falcão de sonho…
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• Alcândoras: espécie de poleiros coletivos, varas longas onde se mantêm pousadas várias aves em simultâneo. • Caparão: capuz de coiro para cobrir a cabeça das aves, tapando-lhes a visibilidade, a fim de se manterem tranquilas. Aperta-se e alarga-se (ou fecha-se e abre-se) ao nível do pescoço, à altura da nuca, por meio de correias denominadas “serradoiros”. • Viandas: pedaços de carne crua, oferecidas pelo falcoeiro à ave em troca da presa que esta caçou. 54
FICHA TÉCNICA TÍTULO NIKI E VICK - ASSALTO EM SALVATERRA AUTORA Thereza Ameal ILUSTRAÇÕES Miguel Cardoso DESIGN GRÁFICO Terra das Ideias EDIÇÃO e PROJETO Câmara Municipal de Salvaterra de Magos REVISÃO DE TEXTO Leonor Cadório REVISÃO GRÁFICA Modocromia Editora, Lda IMPRESSÃO Palmigráfica ISBN 978-989-54421-8-8 DEPÓSITO LEGAL 460465/19 TIRAGEM 2000 exemplares 1.ª Edição – Setembro de 2019
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.
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Outros livros infantis já editados pela CÂmara Municipal de Salvaterra de Magos
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Disponíveis para leitura em www.falcoariareal.pt
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