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D.G.E.M.N.) | Roberto Caneira | pág. 69 à

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Figura 15 - Obras de recuperação das pinturas da Capela Real - 2001

A classificação da Capela Real e a ação da Direção Geral dos Monumentos Nacionais

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Conclusão

A Capela Real é o único e o mais importante vestígio histórico-artístico do antigo Paço de Salvaterra de Magos, a nível nacional ocupa um lugar cimeiro e de destaque enquanto elemento artístico e patrimonial, é uma “obra prima da arquitetura renascentista nacional” segundo as palavras de Vítor Serrão e Francisco Lameira: «Obra prima da arquitectura renascentista nacional, da autoria do arquitecto Miguel de Arruda, e de uso exclusivo da Corte e dos seus convidados, consequentemente só era utilizada durante a estadia temporária da família real.»18 Esta exclusividade de uso para elementos da corte e dos seus convidados, aliado à escolha e uso dos melhores materiais de construção, dado que era uma “encomenda” real, foram determinantes para a sua preservação. As restantes estruturas e divisões do Paço de Salvaterra de Magos desapareceram, enquanto que a Capela continua a mostrar a sua opulência artística, apesar de alguns episódios de ruína, houve sempre o cuidado de a manter recuperada e preservada. A ação da DGEMN foi fundamental para a sua preservação, mesmo os episódios da destruição das paredes dos altares e do coro, que modificaram o seu interior, foi graças à determinação e apoio da DGEMN, que nos dias de hoje a Capela Real está para fruição e deleite de quem a visita.

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18 Francisco Lameira, Vitor Serrão, O retábulo proto-barroco da Capela do antigo paço real de Salvaterra de Magos (c. 1666) e os seus autores, disponível em: https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7512.pdf, (consultado a 01 de junho 2022)

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Bibliografia

- CORREIA, Joaquim Manuel da Silva; GUEDES, Natália Brito Correia, O Paço Real de Salvaterra de Magos: A corte. A ópera. A falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989, - Diário da República - 17 de abril de 1953 - Decreto Lei n.º 39175 - GOMES, Paulo Varela, Arquitectura, Religião e Política em Portugal no Século XVII. A planta centralizada, Porto, FAUP-Faculdade de Arquitectura, 2001 - MARIA DO LIVRAMENTO, Sónia, «As intervenções da Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais: O caso do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça - Igreja, Claustro de D. Dinis e dependências monásticas, Tese de Mestrado Recuperação do Património Arquitectónico e Paisagístico, Universidade de Évora, 2006. - RAPOSO, Luís, «Classificação dos monumentos nacionais», In 100 anos do património, memória e identidade. Portugal 1910 - 2010 [Coord: Jorge Custódio], Lisboa, Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, 2010. - RODRIGUES, Paulo Simões, «O longo tempo do património. Os antecedentes da República», In 100 anos do património, memória e identidade. Portugal 1910 - 2010 [Coord: Jorge Custódio], Lisboa, Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, 2010.

Arquivo Histórico Municipal de Salvaterra de Magos

- A.H.M.S.M. - Correspondência recebida da Repartição da Fazenda do Concelho 1850 - A.H.M.S.M. - Acta da sessão ordinário de 28 de dezembro 1964 - Livro de Actas de 10 julho 1863 a 19 novembro 1875 - A.H.M.S.M. - Registo n.º19 de 1 Agosto de 1854 - Registo de Ofícios 11 janeiro 1854 a 10 julho 1868 - Livros de Auto de Arrematação de 16 Agosto 1840 - 12 Agosto 1877 - A.H.M.S.M. - Requerimento de 1864

Internet

- www.monumentos.pt - Diário do Governo – 30 maio de 1863, disponível em: https://digigov.cepese.pt/pt/pesquisa/listbyyearmonthday?ano=1863&mes=5&tipo=a-diario&filename=1863/05/30/D_0120_1863-05-30&pag=2&txt-salvaterra [consultado a 31 de março de 2022] - Francisco Lameira, Vitor Serrão, O retábulo proto-barroco da Capela do antigo paço real de Salvaterra de Magos (c. 1666) e os seus autores, disponível em: https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7512.pdf, [consultado a 01 de junho 2022]

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Salvaterra de Magos: Duas esculturas (quase) esquecidas

Museu Nacional de Arte Antiga / DGPC CEAACP - Universidade de Coimbra

Ruy Ventura

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Salvaterra de Magos: Duas esculturas (quase) esquecidas

Quem se disponha a compulsar alguma bibliografia sobre o Paço Real de Salvaterra de Magos e a sua Capela Real, confrontar-se-á com abundantes referências ao eruditíssimo desenho arquitectónico do espaço sagrado, mas encontrará escassas referências ao seu património escultórico integrado. Se o retábulo, do século XVII, mereceu um excelente artigo assinado pelos melhores especialistas (cf. Lameira & Serrão, 2001) e as duas versões da Pietá têm granjeado alguma análise, embora brevíssima, a imponente imagem de Cristo Crucificado aí existente tem sido olhada, infelizmente, sem a atenção que merece. Sabe-se que a representação mais recente de Nossa Senhora da Piedade foi esculpida em 1785, a expensas da rainha D. Maria I, que a terá encomendado ao laboratório do escultor Joaquim Machado de Castro (cf. Rodrigues & Franco, [2012]: 204). Muito menos concreto é, todavia, o conhecimento existente sobre a imagem mais antiga da Senhora com o seu Filho morto no colo. Essa peça tem dado origem a considerações díspares. A sua sorte tem sido, ainda assim, superior àquela que tem tocado à escultura onde estão figurados os momentos finais da execução de Jesus de Nazaré no Gólgota, em Jerusalém. Mesmo o melhor livro sobre o desaparecido complexo palatino refere apenas que essa obra representa o orago da Capela, mencionando que a imagem do Crucificado, “esculpida em madeira polícroma e envolta de grande resplendor, preenche o painel do altar-mor, onde foi colocada sobre a ara uma imagem de Nossa Senhora da Piedade” (Correia & Guedes, 2018: 18). Outras publicações, algumas com índole oficial1, nem sequer lhe dedicam uma única palavra, como se fosse possível compreender totalmente o edifício remanescente sem se ter em conta o seu recheio artístico. O objectivo deste artigo é partilhar alguns apontamentos histórico-artísticos suscitados pelas duas obras que menor atenção têm merecido, dando à discussão pública dados importantes, oferecidos pela documentação e pelo contexto em que essas peças de imaginária sacra surgiram2 .

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1 Cf. www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=6162 (consultado a 29/6/2022). 2 As considerações apresentadas neste artigo serão desenvolvidas e aprofundadas (com dados que aqui não se divulgam) na nossa tese de doutoramento sobre a escultura da Paixão de Cristo, a apresentar na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Nesse trabalho, serão analisadas outras peças do património religioso passionista de Salvaterra de Magos, nomeadamente o Cristo Morto venerado na Igreja de São Paulo.

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Em meados do século XIX, havia no que sobrava do complexo palatino de Salvaterra de Magos três locais de culto: um oratório na Falcoaria, uma “Capella dentro do Palacio” e a “Capella de N. S. da Piedade”. O primeiro espaço, certamente pequeno, possuía um painel representando São José, uma maquineta e duas pias de pedra. O lugar de culto interior do palácio tinha somente um crucifixo, um “painel de Nossa Senhora” e algumas alfaias. O templo mais importante – a denominada Capela Real – era, pelo contrário, bastante mais rico. Essas informações surgem na relação anexa ao “Termo d’ entrega” do Palácio à Câmara Municipal, datado de 1850 (cf. Correia & Guedes, 2018: 147 – 149). A 10 de Setembro de 1849, a rainha D. Maria II decidira que, tendo em conta “a progressiva ruina dos prédios que compõe os Reais Almoxarifados de Salvaterra de Magos e das Vendas Novas” e a dificuldade de o Tesouro Público remediar essa degradação, por falta de fundos, a melhor solução era entregar “integralmente, a beneficio do Estado, os predios dependentes dos sobreditos Almoxarifados […] renunciando a todo o direito” que sobre eles teria (in Correia & Guedes, 2018: 146)3. A “Relação dos Prédios” foi realizada no ano seguinte e, entre eles, estavam o “Palacio Real”, o “Palacio Queimado”, a “Capella Real na Travessa da Capella” e a “Ermida de S. Sebastião no largo do Arneiro” (in Correia & Guedes, 2018: 146 - 147)4. Grande parte desse património foi vendido, acabando por desaparecer, com grave prejuízo para o património luso. Nessa alienação não foram, felizmente, incluídos os lugares de culto (cf. Correia & Guedes, 2018: 149 - 157). O rol “dos moveis existentes no mesmo Palacio e suas dependências” foi realizado a 6 de Fevereiro de 1850 (cf. Correia & Guedes, 2018: 147 - 149). O património integrado desses edifícios era assinalável. Na Capela Real havia duas imagens de São Francisco de Assis, dois crucifixos de bronze, uma “Imagem de Sta. Rita, com resplendor de prata”, quatro “Imagens da Familia Sagrada”, um outro crucifixo, uma imagem “do Senhor Crucificado, grande com resplendor de prata” e, ainda, duas representações de Nossa Senhora da Piedade, uma delas “com corôa de prata que peza 32 oitavas”. Na ermida do Mártir Santo existiam esculturas representando o orago5, Santo António de Lisboa com o Menino e Nossa Senhora do Livramento, além de um crucifixo de bronze (in Correia & Guedes, 2018: 148 - 149). É provável que o “painel de Nossa Senhora”, existente na “Capella dentro do Palacio”, seja o ex-voto (ainda hoje existente) que recorda um milagre atribuído à Virgem da Piedade, ocorrido na “horta del Rey”, junto do Paço Real, a 9 de Agosto de 1746 (cf. Correia & Guedes, 2018: 82) e referido na memória paroquial de Salvaterra, em 17586. O Crucificado grande é aquele que continua a ocupar o centro do retábulo da Capela Real, embora o orago da casa fosse (aparentemente) a Sua mãe. Quanto às imagens da Virgem, subsistem ambas - uma na sua vila de origem e outra depositada no Museu Diocesano de Santarém.

3 Arquivo Histórico do Ministério das Finanças - XX-L-61. 4 Arquivo Histórico do Ministério das Finanças - XX-L-61. 5 Esta obra escultórica está exposta no Museu Diocesano de Santarém (cf. Neves, 2021: 336). Parece-nos ser peça quinhentista, híbrida, ao coligir elementos vindos da tradição nórdica (nomeadamente a definição dos cabelos, a caracterização do rosto e a ramificação da árvore podada) juntamente com outros peninsulares. 6 ANTT, Memórias Paroquiais, vol. 33, n.º 34, p. 235 e 236.

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No referido ex-voto, rico do ponto de vista iconográfico, podemos ver a imagem de Nossa Senhora da Piedade no lugar onde, em meados do século XVIII, era cultuada: aos pés da avantajada representação crucificada do seu Filho. A obra aí representada só pode ser aquela que hoje se contempla no museu escalabitano, pois a outra escultura com a mesma iconografia é várias décadas posterior a 1746 (cf. Rodrigues & Franco, [2012]: 204).

1 - Ex-voto a Nossa Senhora da Piedade, venerada na Capela Real de Salvaterra de Magos (1746) (foto Câmara Municipal de Salvaterra de Magos). 94

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A imagem de “Nossa Senhora da Piedade de Jezus”7 (tal como é denominada no referido ex-voto) foi moldada em barro ou terracota e, depois, dourada e policromada pelo menos duas vezes. Não se trata, portanto, de uma peça de madeira, como afirmou Gustavo de Matos Sequeira, autor que, no seu muito lacunar inventário artístico do distrito de Santarém, propôs estarmos perante um “Valioso exemplar” executado no século XVII em Castela ou Aragão, atendendo ao “impressionante ‘ar’ dramático que possui” (Sequeira, 1949: 59). Essa datação e o mesmo equívoco seriam reproduzidos mais tarde, sem crítica (cf. Correia & Guedes, 2018: 24). Leitura bem diferente apresentou Teresa Leonor M. Vale, na sequência de publicação anterior, assinada por outro autor (cf. Duarte, 2020: 284). Reparando na singularidade do material escolhido para a moldagem, considerou que estamos perante uma escultura do último quartel do século XVI, levantando a possibilidade de ter sido encomendada por alguém da Família Real. Propôs, ainda, que possa ter saído de uma oficina da Europa setentrional, embora com peculiaridades que a ligam também a um contexto ibérico, nomeadamente na sua policromia (cf. Vale in Neves, 2021: 239).

2 - Imagem de Nossa Senhora da Piedade, proveniente da Capela Real de Salvaterra (foto Diocese de Santarém).

7 Inv. DS/SPSM.0007.esc - A. 65 cm x L. 74 cm x P. 42 cm.

Salvaterra de Magos: Duas esculturas (quase) esquecidas

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Apesar de não ser uma escultura com tamanho avantajado, a sua morfologia e a matéria em que foi moldada fazem com que seja muito improvável ter sido esculpida fora de Portugal. Não significa isto que devamos excluir a sua vinculação imagética a alguns cânones iconográficos vigentes no Norte da Europa. Devemos, antes, pensar o contrário, tendo em conta a existência no nosso país, ao longo de todo o século XVI, de um conjunto muito numeroso de artistas provenientes de França, da Flandres, da Holanda e da Alemanha, com importantíssima actividade na estatuária, na pintura, na ourivesaria e noutras disciplinas artísticas, ao qual devemos juntar vários nomes provenientes das mais diversas regiões de Espanha, mas imbuídos do mesmo “sopro do Norte”. As nossas convicções e perplexidades não são muito distintas daquelas que foram registadas pela Universidade Católica Portuguesa, no relatório da sua intervenção sobre a peça, ocorrida em 2014. É evidente que a Senhora da Piedade de Salvaterra apresenta uma “qualidade técnico-artística […] elevada”. Deve sublinhar-se “a peculiaridade da escolha do suporte” e, nas suas formas, uma “expressividade quase dramática”, de carácter nórdico, embora existam características que a podem colocar “numa produção ibérica” quinhentista. Esse hibridismo (assim digamos) pode derivar de vários factores: “uma influência ibérica na produção, uma exigência do comitente, ou até uma produção Ibérica de um artista marcadamente influenciado pela arte flamenga, cujos exemplos são numerosos na vizinha Espanha, onde o dramatismo é levado ao extremo”8 . A escultura, em barro cozido, tem uma aparência desconcertante. Terá sido essa estranheza, perturbadora e incompatível com a estética vigente no último quartel do século XVIII, que terá incitado a rainha D. Maria I a mandar substituí-la no altar da Capela Real por uma outra representação da Pietá, esculpida, como já se referiu, pelo laboratório de Joaquim Machado de Castro. Assente sobre uma base de madeira tardia (datável da mesma época em que a imagem foi repolicromada, nunca anterior a setecentos), a obra cruza referências do Renascimento italiano quatrocentista com os traços dominantes góticos de muitas figurações semelhantes existentes pelo Norte da Europa. A apresentação da Virgem dolorosa como uma mulher enlutada e madura, a entrar na velhice, parece evocar a imagem pintada por Pietro Vannucci, il Perugino (? - 1523) em 1472 ou 1473 para um convento franciscano situado nos arredores de Perugia, obra exibida hoje na Galleria Nazionale dell’ Umbria, nessa cidade. O corpo morto de Cristo foge, contudo, ao naturalismo apresentado nessa pintura e noutras obras semelhantes, mostrando-se deformado, quase esmagado e esticado ou desconjuntado, após o violentíssimo suplício. O que mais impressiona é, todavia, o rosto do Redentor, destituído de qualquer vislumbre de serenidade, ao exibir um rictus agónico, capaz de incomodar vivamente o observador. As incongruências nas anatomias provocariam e provocam quem se confronte com a imagem, dominada pelo contraponto estabelecido entre a figura sedente e contida da Virgem - com o seu rosto quase masculino (a acentuar o paradigma da mulher forte) - e o vulto 96

8 Universidade Católica Portuguesa - Escola das Artes, Relatório de Tratamento de Conservação e Restauro - 04.00, Senhora da Piedade, 2014 [inédito]. (Agradeço a Eva Raquel Neves a cedência de cópia deste documento, guardado no Arquivo do Museu Diocesano de Santarém).

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sem vida do seu Filho, esvaziado de qualquer sopro ou dignidade majestática. A documentação não revela nem a autoria nem a data de execução desta peça. Concordamos, ainda assim, com quem afirma tratar-se de uma escultura quinhentista (cf. Duarte, 2020: 284; Vale in Neves, 2021: 239), embora a façamos recuar algumas décadas em relação ao que tem sido proposto. Quanto a nós, esta obra de arte deve ser incluída entre as primeiras encomendas realizadas pelo Infante D. Luís, logo após a conclusão da obra da capela, cerca de 1547 (cf. Craveiro, 2009: 94) ou pouco depois. A nossa convicção assenta sobre a comprovada devoção pessoal do filho de D. Manuel I à Paixão de Cristo, nomeadamente ao momento em que o Redentor, morto, terá sido depositado no regaço de Santa Maria. Será bom lembrarmos que o orago do cenóbio de franciscanos arrábidos, por ele fundado em 1542, entre Benavente e Salvaterra de Magos, era precisamente Nossa Senhora da Piedade (cf. Piedade, 1728; Portugal, 1735). É ainda importante recordarmos a ligação deste membro da família real portuguesa à Ordem de Malta, enquanto Grão-Prior do Crato, e a devoção especial que os hospitalários tinham a Maria Vesperbild. Tendo D. Luís falecido menos de uma década depois da conclusão da obra da capela, a 27 de Novembro de 1555, a execução da escultura deverá então colocar-se nos anos que medeiam entre 1547 e a data do seu passamento. Precisamente por essa altura, meses antes de falecer, o Infante D. Luís tinha como seu escudeiro um imaginário ou escultor: Pero ou Pedro de Frias9 . Pero de Frias (também chamado Pero de Frias, o Moço) era natural da Biscaia, espanhola ou francesa10, e residiu uma boa parte da sua vida em Lisboa. Estava casado com Isabel Lopes e sabemos que o seu pai, também biscainho, se chamava Tomé11. É provável que fosse parente de um outro escultor seu homónimo - da Biscaia, como ele, e considerado “grande marceneiro” -, o qual esteve activo pelo menos entre 1510 e 1565, residindo também na capital (cf. Mendes, 2017: 44). Com Guoterrez de Souro ou de Sovro, pelo menos entre 1543 e 1549, Frias foi carpinteiro de marcenaria do Cardeal-Infante D. Henrique, em Évora12 (cf. Bilou, 2016: 240 – 241; Apolónia, 2005: 257). Cerca de 1546/47, executou dois retábulos destinados à igreja de Beringel (Beja), encomendados pelo primeiro Conde do Prado (cf. Serrão, 1995 in Mendes, 2017: 45). Em 1549,

9 ANTT, Corpo Cronológico, Parte II, mç. 244, n.º 163. 10 No século XVI, o adjectivo biscainho tinha uma abrangência bastante maior do que aquela dada actualmente, abrangendo – como bem viu Rafael Moreira - muitas das terras setentrionais da Península Ibérica banhadas pelo Golfo da Biscaia (cf. Moreira, 1991: 416) e ainda alguns territórios situados além dos Pirinéus. 11 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Domingos, mç. 2, doc. 60, fls. [135 a 151]. 12 Em 1543, Pero de Frias “carpinteiro de maçenaria” ganhava por ano “hum moyo de trigo […] e dous mil seicêtos rs ê dinheiro pera aluger de casas” enquanto residisse em Évora e servisse o Cardeal-Infante D. Henrique; em 1547, mantinha-se o mesmo ordenado destinado à mesma finalidade (cf. Gonçalves, 2005: 373). A sua partida para Lisboa deverá datar de 1548 ou 49. O escultor terá contactado com assiduidade o grupo de humanistas sustentados pelo filho de D. Manuel I, entre os quais se contavam Nicolau Clenardo, João Vaseu, André de Resende, Pedro Nunes, Diogo de Castilho, Damião de Góis, Duarte Nunes de Leão, etc. (cf. Gonçalves, 2005: 373).

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“Pero de Frias o Moço” já vivia em Alfama (Lisboa), onde tinha oficina e vários colaboradores, nomeadamente dois estrangeiros, um natural de Lyon ou de Sabóia (Filberte ou Filipe Filiberto13) e outro da Alta Borgonha (Pierre ou Pedro Delsey14). Em 1551 e 1554, foi juiz e examinador do ofício de carpinteiro de marcenaria (cf. Mendes, 2017: 45; Mendes, 2017a: 9). Tal como foi referido, poucos meses antes da morte do Infante D. Luís, era escudeiro da sua Casa, embora não se saiba quando atingiu tal estatuto15 . Uma década depois, em 1565, morava na casa de seu filho, o capelão António de Frias, na Rua Direita de São Lourenço, em Lisboa (cf. Mendes, 2017: 44). Mais tarde, em 1570, surge como Cavaleiro Fidalgo da Casa de Sua Majestade e seu imaginário, altura em que esculpiu peças para a Santa Casa da Misericórdia de Alcobaça; não obstante, depois dessa ocasião, parece ter continuado com ligações à vila cisterciense, as quais se registam pelo menos até 1583 (cf. Mendes, 2017: 45). No ano de 1573, Pero de Frias estabeleceu um contrato de parceria laboral e artística com Estácio Matias, escultor, imaginário e carpinteiro de marcenaria de origem flamenga, também residente em Lisboa. Em 1577, foram ambos contratados para realizarem imagens de alguns santos, destinadas à igreja do Salvador, de Torres Novas. Frias acabaria por nada realizar, ficando todo o trabalho nas mãos de Matias. Tal atitude geraria um conflito judicial entre os dois artistas, o qual acabaria sanado por acordo celebrado em 1578, através do qual se desfez a equipa (cf. Gonçalves, 2005: 375 – 379; Serrão, 2012: 138 – 141, 211 – 213; Carvalho & Correia, 2009: 65; Gonçalves, 2018: 51). Entre 1574 e 1578, Pero de Frias residiu em Coimbra, onde foi “familiar” do Colégio dominicano de São Tomás a partir de 1575, recebendo os privilégios habituais, concedidos pela Universidade (cf. Gonçalves, 2005: 374 – 375; Mendes, 2017: 45; Carvalho & Correia, 2009: 65; Gonçalves, 2018: 51; Gonçalves, 2020: 113). Na cidade universitária, o escultor foi examinador do ofício de carpinteiro de marcenaria (cf. Gonçalves, 2005: 375; Gonçalves, 2018: 48). Em 1584, o “ymaginario” “ora residia em Unhos, ora em Lixboa” (localidades onde os seus filhos tinham casas), tendo sido alvo nessa data de um processo judicial, movido pela Universidade de Coimbra (cf. Gonçalves, 2005: 380). Cerca de 1590/91, já idoso e viúvo havia mais de 15 anos, Pero habitava na freguesia de São Lourenço, na casa de seu filho Nicolau de Frias e de sua nora, Ana Baleeira16. Não é conhecida, infelizmente, a data da sua morte. Frias teve vários filhos do seu matrimónio com Isabel Lopes: além do escultor, marceneiro e arquitecto Nicolau de Frias17, são ainda conhecidos o Dr. Francisco de Frias (pregador do Cardeal-Infante D. Henrique e da 98

13 Nasceu por volta de 1513; antes de chegar a Portugal, esteve em Sevilha (certamente em trabalho), onde foi condenado por heresia e depois reconciliado (ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 12114). 14 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, livro 53 [denúncias], fl. 148. 15 ANTT, Corpo Cronológico, Parte II, mç. 244, n.º 163. 16 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, Domingos, mç. 2, doc. 60, fl. [151]. 17 A documentação, nomeadamente a inquisitorial, prova que Nicolau de Frias era filho de Pero de Frias e não seu irmão (cf. Gonçalves, 2005: 372; Carvalho & Correia, 2009: 62).

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rainha D. Catarina de Áustria), o já referido António de Frias (capelão real, beneficiado de São Lourenço de Lisboa e prior de Unhos), Soror Filipa do Espírito Santo (freira em Chelas) e Soror Inês de Jesus (dominicana em São Domingos de Abrantes) (cf. Mendes, 2017: 46). O filho mais velho do artista deveria ser, todavia, o seu homónimo Pero ou Pedro de Frias, falecido a 11 de Janeiro de 1595 na paróquia de São Silvestre de Unhos, onde era prior o seu irmão António18. Com toda a probabilidade, foi esse seu descendente quem, no dia 30 de Agosto de 1545, casou em Évora, na igreja de Santo Antão, com Ana (de) Mascarenhas, ficando a residir na rua do Cervato19. Até ao momento, não se encontraram todavia indícios de que exercesse a mesma profissão que o pai, embora tal não seja impossível. Têm sido atribuídas a Pero de Frias, o Moço duas ou três obras escultóricas (cf. Carvalho & Correia, 2009: 61; Serrão, 1989: 164), embora sem argumentos consensuais20. Há, pelo contrário, quem afirme que “não sobraram quaisquer registos que possam determinar que obras terá feito”, existindo apenas provas de que se tratou de “um artista errante, bastante renomado e possuidor de um estatuto social e económico que lhe permitiu obter o título de Cavaleiro d’ El Rei” (Gonçalves, 2005: 380). Mesmo que não tenham surgido até ao momento provas documentais da autoria da imagem de Nossa Senhora da Piedade, venerada na Capela Real de Salvaterra de Magos até 1785 (e movida depois para a sacristia, onde felizmente se conservou), é bastante defensável a hipótese de ela ter saído das mãos ou da oficina de Pero de Frias, o Moço. Alicerçamos a nossa forte convicção no facto de o artista ser escudeiro da casa do Infante pelos anos em que a peça terá sido executada, ou seja, na primeira metade da década de 1550. Convenhamos: não faria sentido D. Luís ter ao seu serviço um escultor com provas dadas (e decerto recomendado por seu irmão D. Henrique) e não lhe cometer a execução de qualquer obra de imaginária sacra.

18 ANTT, Paróquia de São Silvestre de Unhos, Mistos, Lv. M1 – Cx 1, fl. 142 (documento encontrado por Francisco Bilou). 19 ADE, Paróquia de Santo Antão, Liv. 2, cx. 2, fl. 156 v. (documento encontrado por Francisco Bilou). 20 Fala-se de uma “preciosa Virgem e o Menino”, oferecida pela Infanta D. Maria, meia-irmã do Infante D. Luís, ao Convento de Nossa Senhora dos Anjos, de frades franciscanos capuchos, situado nos arredores de Torres Vedras (cf. Serrão, 1989: 164). A imagem oferecida ao convento arrábido torreense, cerca de 1570, trata-se de uma estátua mariana sem Menino, em madeira, que representa o orago do cenóbio, encomendada “ao mais perito Escultor, que havia na Cidade de Lisboa”. Substituída, mais tarde, como orago da casa e movida para um altar lateral, com o título de Senhora da Saúde, após a extinção das ordens religiosas foi colocada na igreja de São Pedro de Torres Vedras, sendo levada mais tarde para a igreja do Carvalhal, no mesmo concelho, onde ainda hoje é venerada. Com cerca de 1m45, algo modificada, é uma peça com assinalável qualidade escultórica (cf. Pinto, 1996: 87 – 88, 108 – 109). Embora atribuída a Pero de Frias, o Moço, é quase certo que tenha saído, antes, das mãos de Estácio Matias (que com ele colaborou), o qual fez para o Mosteiro de São Bento da Saúde, em Lisboa, quatro imagens que se tornaram famosas (cf. Serrão, 1998: 144). É bom lembrar que esta casa beneditina foi muito beneficiada pela filha mais nova de D. Manuel I, à qual chegou a oferecer uma relíquia do monge de Monte Cassino (cf. Pinto, 1996: 107 - 108), referindo as crónicas beneditinas que foi ela, também, a comitente da imagem do Patriarca (cf. Pinto, 1996: 108). Há quem lhe atribua ainda as esculturas em barro existentes em Vila Fresca de Azeitão, encomendadas por Brás Afonso de Albuquerque para a sua quinta e para a igreja de São Simão, aí existente e por ele reconstruída (cf. Carvalho & Correia, 2009: 61), mas tal atribuição apela a uma revisão devidamente circunstanciada.

Salvaterra de Magos: Duas esculturas (quase) esquecidas

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Ao decidir mandar esculpir uma imagem de Cristo pregado na cruz, cerca de 1549/50, o Infante D. Luís não escolheu Pero de Frias, o Moço, pois certamente ele ainda não seria membro da sua casa. Por essa altura, dirigiu uma carta a Frei Miguel de Valença, Prior do Mosteiro de Santa Maria de Belém, em Lisboa, referente a assuntos administrativos em que interviera a favor do cenóbio. No final dessa missiva, em jeito de post scriptum, acrescentou uma informação que, parecendo marginal, é deveras importante: […] da Imagem do Crucifixo naõ póde deixar de haver alguã dilação; porque o Meu naõ está inda acabádo, e depois de se acabar se hade fazer o outro que Naõ está mais, que começado. Nosso senhor vos aja em sua especial guarda. O Infante Dom Luiz21 Não houvesse mais documentação sobre o assunto e estas linhas pouco nos diriam. Ficaríamos apenas a saber que, nessa data imprecisa, um artista anónimo estava a fazer uma imagem do Crucificado destinada ao Infante e, de seguida, iria esculpir outra, com a mesma iconografia passionista, destinada ao Mosteiro dos Jerónimos. Felizmente, o riquíssimo fundo documental hieronimita guarda o recibo do pagamento de uma dessas obras de arte e, melhor ainda, há referências em processos inquisitoriais que nos dão informações cruciais, não só sobre a imagem em causa como, também, sobre o artista que a fez e a sua oficina. Temos, ainda, a fortuna de a obra de arte ter subsistido em todo o seu esplendor, mesmo que desprovida dalguns dos elementos iconográficos que a acompanhavam e completavam. O documento referente à escultura lisboeta remete, explicitamente, para o “crucifixo do Choro”, ou seja, para a imponentíssima representação do Redentor que ainda hoje preside ao coro-alto da igreja de Belém. A identificação do escultor está escrita pela sua própria mão, no final de uma quitação redigida por outra pessoa, mas assinada por ele com bela caligrafia: Diguo eu filipe brias que e verdade que Receby do padre prove[n]ciall frei miguel de ualemça proue[n] ciall de belem quore[n]ta e cimquo mill reis de feitio de hũ cristo que fiz para belem os quaes quore[n]ta e cimquo mill reis saõ quore[n]ta mill reis de feitio do cristos [sic] e os cimquo mill reis saõ da madeira do mõte calluario e do corpo da ymagem e porque asim e verdade Receber os ditos quore[n]ta e cimquo mill reis e me dou por pago de todo o que nisto fiz feito e ouge outo dias d’ abril de 1551. Foi testemunha christouaõ Rodriguez que o fiz e asiney aqui cõ ele christouaõ Rodriguez phelippe bries e eu frey Rodrigo que lho emtreguej Ffrey Rodrigo d’ aluito22 Lendo alguns processos do Tribunal da Inquisição de Lisboa, ficamos a conhecer um pouco este Philippe Bries, autor de uma das mais admiráveis obras de arte cristã existentes no nosso país e, mesmo, na Europa. As actas dos interrogatórios a que submeteram o marceneiro e escultor francês Pero de Loreto, em 1560, afirmam que o autor do Cristo dos Jerónimos era seu compatriota e possuía uma

21 ANTT, Ordem de São Jerónimo, Mosteiro de Santa Maria de Belém, mç. 4, doc. 36 (treslado do século XVIII). Transcrito por Rafael Moreira in Moreira, 1989: 11. 22 ANTT, Ordem de São Jerónimo, Mosteiro de Santa Maria de Belém, mç. 4, doc. 59, fl. 4. Publicado parcialmente por Rafael Moreira, com transcrição paleográfica in Moreira, 1989: 11. Transcrição integral in Bilou, 2021: [6]. 100

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personalidade irreverente, manifestando sem grande prudência opiniões contrárias à fé católica vigente, decerto por ter simpatias luteranas ou calvinistas. Aí se afirma, por exemplo, que “nunca farya Jmajem nehuuã se nom fose por aver dinheiro”, declarações ouvidas por Loreto na oficina do artista, enquanto “o dito felype bryas” fazia “hum crocefixo para o mosteiro de belem”23. O desassombro com que exprimia as suas posições, bem como a confiança que tinha na qualidade do seu trabalho, permaneceram na memória da comunidade jerónima do Restelo. Guardou-se, ainda, a lembrança da ligação do Infante D. Luís àquela representação de Cristo, geradora da maior admiração artística e devocional. Frei Diogo de Jesus, em meados do século XVII, registou numa crónica manuscrita que […] he huã ueneranda immagem de nosso Redemptor crucificado, e pendente daquella arbore tanto mais excellente, que a da uida, quanto uay gozarmos della o fructo, que a outra so figurada. Trinta palmos tem esta cruz de altura do seu caluario te a superior inscripsaõ em tres Lingoas a sancta, grega, e Latina nem pedia menor altura pella grandeza da immagem feita, e posta neste alto coro per deuaçaõ e custo do senhor Infante D. Luis, filho do senhor rey D. Manoel fundador. Ao descrever-nos esse Christus Patiens, apresentou-nos também a enorme atracção exercida por essa obra sobre os artistas do seu tempo e de tempos posteriores, não deixando de relatar algumas idiossincrasias da personalidade do seu autor: Desta immagem tem tirado, e tirão de prezente os famozos sculptores mil exemplares, dezejando cada qual perfeitamente immitala: Este [tem] a cabeça inclinada, cabellos com sangue conglutinados, e mortificaõ dos olhos – aquelle os brassos retorçidos para chegar aos buracos dos crauos, Outro a abertura do Lado, e de fluxão do sangue, e joelhos denegridos; porque hum so sculptor difficultozamente, ou quazi impossiuel lhe sera o immitar a dita immagem em todo; portanto o proprio artífice que a fez de sua perfeição ficou taõ pago, que se atreueo dizer, que nem artifice do Ceos [sic], e divino poderia fazer outra semelhante, nem melhor, posto que desta exageraçaõ prezumptuoza, e Louca foy repreendido, e castigado.24 Frei Manuel Bautista de Castro, numa outra crónica, já setecentista, reafirmou a oferta que teria sido realizada pelo Infante (cf. Deswarte-Rosa, [1993]: 45), informação reproduzida em 1833, ano da extinção da comunidade jerónima, num memorial redigido por Frei Manuel do Bom Jesus Costa25 .

23 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10947 (contra Pedro de Loreto), fls. 14 e 14 v. 24 ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 2560, fls. s/n [0294] (transcrito parcialmente por Deswarte-Rosa, [1993]: 45). 25 ANTT, Ministério das Finanças, Convento de Santa Maria de Belém [inventário da extinção], cx. 2199, fl. 34.

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3 - Cristo crucificado, de Philippe Bries, no coro-alto da igreja do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa (foto Ruy Ventura). 102

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Perante os dados disponíveis, temos no entanto de admitir que não possuímos uma certeza absoluta em relação à oferta, embora possamos afirmar com a maior segurança documental que o filho de D. Manuel I esteve envolvido no processo artístico que levou à concepção do Crucifixo, ao surgir como uma espécie de intermediário entre o Prior dos Jerónimos e o escultor. Atendendo à tradição da comunidade, é não obstante muito provável que tenha havido um patrocínio nos custos, embora o pagamento da obra tenha sido efectuado directamente pelos monges de Belém, conforme se pode ler no recibo transcrito. Temos ainda a certeza de que o mesmo estatuário esculpiu outro Cristo destinado ao Infante, obra que teria uma dimensão apreciável, tendo em conta a explícita demora na sua execução. Philippe era conhecido pelos Cristos que fazia, ao ponto de essa “especialização” gerar facécias, mesmo entre os seus colaboradores. Um deles recordaria perante os inquisidores do Tribunal de Lisboa que “vendoo fazer Alguuãs Jmajes de Christo e vemdelas elle […] lhe dezya que elle felype briarte era pior que Judas porque Judas nom vendera a Christo mais que huuã vez e elle ho vendia cada dia”26 . Embora o seu apelido fosse Bries (assim o assinava!), surge na documentação portuguesa como Filipe Brias, Briat, Briate ou mesmo Dias (cf. Flor, 2008: 128). Vários autores acrescentaram ao seu nome a preposição de (cf. Moreira, 1989: 9; Dias, 1995: 45; Caetano, [2011]: 78), mas é fácil verificar que ela não existe nem na documentação antiga nem no autógrafo do artista. Não era flamengo. Era gaulês – e assim era reconhecido por outros franceses –, conquanto não seja possível apontar em definitivo a sua data e o seu local do seu nascimento, o momento em que chegou a Portugal, nem sequer o seu percurso artístico antes de se fixar no nosso país durante pelo menos nove anos. Na realidade, embora se possam assinalar afinidades estilísticas fortes com a produção de outros artistas europeus seus contemporâneos ou de outros centros artísticos (cf. González, 1961: 14 e 43; Flor, 2008: 129 e 139), a partir dos dados disponíveis é apenas seguro afirmar-se que no final da década de quarenta do século XVI a sua presença já se registava em Lisboa e no vale do Tejo, laborando para as mais exigentes clientelas. Em 1549/50, Bries encontrava-se em Almeirim a trabalhar com vários carpinteiros de marcenaria ou escultores, enquanto lá permaneciam D. João III e vários membros da família real, entre os quais o Infante D. Luís, bem como muitas outras pessoas importantes do séquito real27, que habitavam periodicamente esse paço. Não terá sido noutra altura nem noutro lugar que o irmão do rei lhe encomendou as duas imagens de Cristo na cruz, uma para si e outra destinada ao Mosteiro dos Jerónimos. Deve sublinhar-se a proximidade de Philippe e desses artistas seus companheiros a membros da Casa do Infante e Prior do Crato, com quem conviviam (e prevaricavam) nalguns espaços do complexo palatino ribatejano28. Entre os seus

26 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 12453 (contra Bartolomeu de Utreque), fl. 9. 27 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10947 (contra Pero de Loreto), fls. 12, 19 e 20 (confissões de Pero de Loreto). ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 1602 (contra João de Fontenay), fls. 4 v.. 28 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10947 (contra Pero de Loreto), fls. 19 e 19 v..

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colaboradores, é quase certo que estiveram os flamengos Bartolomeu de Utreque29 e António do Rio30, aos quais talvez se possam juntar Francisco “Daste” (de Haste?) e Lourenço de Campos31 . Regista-se, ainda, uma forte proximidade laboral a Pero de Loreto (irmão do escultor e arquitecto Francisco Lorete) e a Harte de Balduque, embora não saibamos se trabalhou com eles na sede da Ordem de Cristo, em Tomar (1554/55)32. Será bom repararmos que um dos artistas próximos de Loreto foi um tal Filberto ou Filipe Filiberto / Felisberto33 , membro da oficina de Pero de Frias, o Moço, como já tivemos oportunidade de referir. É ainda muito defensável a estreita colaboração de Bries com Diogo de Çarça na execução do cadeiral desenhado por Diogo de Torralva e instalado no coro-alto do Mosteiro dos Jerónimos, o mesmo lugar onde se ergueu e se levanta o seu monumental Crucifixo (cf. Moreira, 1989: 9; Dacos, 1989: 13; Corrêa, 2002; Flor, 2008). Em Abril de 1558, Bries partiu para a Índia, integrando a armada de quatro naus que levou para o Oriente o seu novo Vice-Rei, D. Constantino de Bragança34. É possível que tal tenha sucedido para o livrar ou se livrar das garras da Inquisição, tendo em conta a soma de testemunhos que o colocam entre os estrangeiros defensores de doutrinas luteranas ou calvinistas e, mais tarde ou mais cedo, o levariam aos cárceres daquele tribunal. Se, antes disso, houve algum castigo, dele não ficou qualquer rasto concreto, a não ser uma pouco clara menção na documentação do Mosteiro de Santa Maria de Belém35. Pouco se sabe, no entanto, da sua actividade na Península do Indostão. É apenas seguro que no tempo do terceiro Conde da Atouguia, D. Luís de Ataíde, Vice-Rei da Índia entre 1568 e 1571, ainda se encontrava nesse território e, por ordem dele e sua direcção, foi responsável pela construção da nova fortaleza de Braçalor (cf. Viterbo, 1899: 136), edificada em 1570 (cf. Flor, 2008). Embora tal informação nos diga que as suas competências se alargavam também à arquitectura e à direcção de obras militares (algo habitual entre os escultores do século XVI), não podemos crer no abandono da sua exímia capacidade artística enquanto imaginário. É, assim, provável a existência de estatuária sua nesse subcontinente asiático (cf. Flor, 2008; Antunes & Serrão, 2017: 117), podendo ainda colocar-se a hipótese de a sua mestria ter influenciado alguma escultura indo-portuguesa quinhentista de maior qualidade. Voltando aos dois Crucifixos que Philippe Bries esculpiu, se um deles nos ofereceu a documentação suficiente para sabermos bastante sobre o seu contexto histórico, artístico e religioso, uma incómoda lacuna recai sobre a outra obra de arte que 104

29 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 12453 (contra Bartolomeu de Utreque), fl. 9. 30 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10947 (contra Pero de Loreto), fls. 14 e 14 v.. 31 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 12453 (contra Bartolomeu de Utreque), fls. 9 v., 10, 28 v. e 37 v.. 32 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 10947 (contra Pero de Loreto), fls. 18 e 18 v.. 33 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 12114 (contra Filipe Felisberto). 34 ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 12453 (contra Bartolomeu de Utreque), fl. 9. 35 ANTT, Manuscritos da Livraria, n.º 2560, fls. s/n [0294] (transcrito parcialmente por Deswarte-Rosa, [1993]: 45).

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o D. Luís mandou fazer para si. O pronome possessivo com que o Cristo é designado na carta dirigida a Frei Miguel de Valença (“o Meu”) assinala, ainda assim, que o vulto crucificado de Jesus seria uma obra importante e se destinaria a ser colocado num dos lugares de eleição desse filho do Venturoso. Resta saber ou conjecturar qual foi ele. Entre as várias hipóteses, existem três mais fortes: Crato, sede do Grão-Priorado homónimo, chefiado pelo Infante entre 1527 e 1551; Benavente ou, mais precisamente, o lugar de Jenicó, onde fundou, em 1542, um convento de franciscanos arrábidos, posto sob a protecção de Nossa Senhora da Piedade; e Salvaterra de Magos, onde se situava o seu palácio, erguido com esmero arquitectónico a partir de 1542. Entre o valioso património artístico das igrejas da vila do Crato, não se encontra qualquer escultura que, estilisticamente, possa ser atribuída a Philippe Bries. O edifício primevo do Convento de Nossa Senhora da Piedade de Jenicó desapareceu por completo ainda no século XVII, sendo substituído por outro, levantado a curta distância, do qual, por seu turno, restam pobres vestígios e apenas uma interessante imagem quinhentista representando São Baco (a qual pode ter sido oferecida por D. Luís). Entre o seu espólio sobejante, guardado nomeadamente na Santa Casa da Misericórdia de Benavente, nada há também que possa ter saído da mão do artista francês ou da sua oficina36. Embora pudéssemos pensar ainda noutras localidades a que o irmão de D. João III esteve senhorialmente ligado (Beja e Estremoz, por exemplo37), a única hipótese consistente que nos resta é mesmo a vila de que D. Luís era senhor e escolheu para seu lugar de vilegiatura, retiro e actividade venatória (cf. Almeida, 1986: 83 – 84). Essa possibilidade cairia, não obstante, por terra, caso não existissem algumas afinidades estilísticas entre o Crucificado do coro-alto dos Jerónimos e a escultura análoga que preside à Capela Real de Salvaterra, transcendendo a aparência geral das duas estátuas lígneas, que é diferente.

36 No inventário do Convento de Nossa Senhora da Piedade de Jenicó, realizado aquando da sua extinção, em 1834, e publicado por Joaquim Silva Correia e Natália Correia Guedes, existe apenas uma imagem relacionada com a Paixão de Cristo, denominada “Senhor Jezus dos Aflitos” (cf. Correia & Guedes, 2018: 131). Guarda-se hoje na igreja da Santa Casa da Misericórdia de Benavente. Representa um Cristo a caminho do Calvário com a cruz às costas, em tamanho natural, sendo peça já de inícios do século XVIII. 37 Mencionamos estas duas por, comprovadamente, D. Luís ter promovido aí edificações de vulto (o Convento das Maltezas, em Estremoz, e os Açougues, em Beja). Entre as localidades integradas nos seus senhorios estavam, no entanto, outras: Almada, Moura, Serpa, Marvão, Covilhã, Seia, Lafões e Besteiros (cf. Almeida, 1986: 19).

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4 - Cristo crucificado, na Capela Real de Salvaterra de Magos (foto Ruy Ventura). 106

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A obra de Santa Maria de Belém, nas palavras de Joaquim Oliveira Caetano, “traduz, nas escoriações, chagas e mazelas sobre o corpo do crucificado, toda a dramática história da Paixão de Cristo que, de forma condensada, a figura narra”, num “modelado […] perfeito, pondo elegantemente em relevo os músculos em tensão” (Caetano, [2011]: 78). É bom termos em mente que se destinava a ser venerada por uma comunidade monástica de clausura, em lugar a que só ela (ou quase só ela) acedia, presidindo às longas horas de ofício coral. A peça de Salvaterra, pelo contrário, tinha como objectivo captar e estimular a devoção dos leigos que frequentavam o paço (um grupo restrito, é certo, mas ainda assim distinto dos monges jerónimos). Representando ambas a figura do Redentor, já morto na cruz, com a caixa toráxica perfurada pela lança do soldado, evidenciam posturas e composições diferentes, as quais obrigam a leituras dissemelhantes. Se obra lisboeta dá um passo em frente na pacificação do paroxismo dramático de tantos Crucificados, sem desejar apagá-lo por completo, a ribatejana é dominada por uma paz e por uma serenidade que se podem considerar, até, esperançosas. No coro hieronimita apresenta-se uma figuração didascálica do corpo terrenal de Jesus, sem preocupações de simetria. Consumado o brutal martírio, o cadáver descai, suspenso do madeiro, inclinando a cabeça e o tronco para o lado direito (aquele onde a chaga sanguinolenta se exibe), enquanto o perizónio esvoaça, movimentado pelo vento da tempestade que sucedeu àquela morte. Estamos perante a expressão perturbadora da humanidade plena de Cristo e do seu pleno e voluntário esvaziamento na dor extrema e na morte, que só o rosto sereno do supliciado parece mitigar um pouco. Na capela palatina, a mesma cena evangélica surge, pelo contrário, como expressão ou projecção da união hipostática. A representação escultórica do Filho do Homem continua a exibir claros sinais de sofrimento, sublinhados pela policromia, mas não apaga (como parece suceder em Belém) a condição divina de quem é, também, plenamente Deus. Não se rasura a kenosis. É, não obstante, superada pelo desenho simétrico da figura, guiado por um fio de sangue descendo do pescoço, o qual define um eixo de equilíbrio que permite o surgimento de um vislumbre de esperança transcendente na ressurreição. É certo que a cabeça se inclina para a direita e para a chaga do lado, como em Lisboa, mas não chega a descair. O corpo, embora exiba evidências do livor mortis, consegue desligar-se do sofrimento que o levou ao patíbulo e à entrega do espírito a Deus Pai. Até a perturbação cósmica se ausenta, se observarmos o pano de pureza, cujo apaziguamento contrasta com a agitação da obra hieronimita. Embora se trate de duas imagens com um carácter distinto, mostrando dois modos dissemelhantes, mas complementares, de entender a Paixão de Cristo, tal não significa que os seus pormenores deixem de indiciar uma mão ou uma oficina comum. A extensão da barba e dos cabelos não é a mesma, o ângulo de inclinação da cabeça também não, existindo ainda uma ligeira disparidade no rictus, o que de alguma forma perturba a observação comparativa e o estabelecimento de paralelos entre ambas. Contudo, se contemplarmos longamente essa parte cimeira da escultura, somos obrigados a reconhecer a enorme similitude existente entre elas, no desenho delicado dos narizes, na boca entreaberta com o lábio inferior ligeiramente descaído, nos globos oculares salientes e na posição

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angular das pálpebras fechadas em relação ao septo nasal. Salienta-se, ainda, a forte semelhança nos cabelos e na barba. Verifica-se, em qualquer das peças, um contraste entre as madeixas largas de “cabellos com sangue conglutinados”, agarrados à caixa craniana, e as barbas bifurcadas onde se entalharam, miudamente, com notável minúcia, os pêlos ondulados e fartos que enquadram a parte inferior do rosto. Se descermos um pouco, reconheceremos também alguma proximidade entre as chagas do lado, ambas com a forma de uma meia-lua invertida e profundamente escavadas no corpo esculpido. Nos perizónios encontraremos nova semelhança. Qualquer deles mostra laçadas laterais engenhosas, procurando exibir um efeito de real. Não é, no entanto, aí que pode estar um dos estilemas do artista ou da sua oficina. Encontramo-lo, antes, no que parece ser uma colagem do tecido aos quadris do Salvador, como se o pano tivesse sido previamente molhado38 ou ensopado com o suor e o sangue vertidos pelo condenado ao longo das suas longas horas de suplício. As pregas sucedem-se em sucessivas linhas onduladas, adaptadas ao corpo, contribuindo para a serenidade do conjunto, através da sugestão de um movimento suave e natural. No que respeita aos membros inferiores, em qualquer das peças se verifica um cuidado extremo na exibição da estrutura de cada um dos ossos e dos músculos existentes sob a pele. As pernas são magras sem serem esqueléticas e os pés, ligeiramente cruzados, primam por idêntico detalhe na representação das falanges e das unhas. Posto isto, voltamos a sublinhar que são duas imagens distintas, com policromias diferentes e pormenorização díspar. Essa dissemelhança decorre, quanto a nós, dos lugares a que foram destinadas e da condição dos seus usufrutuários, que decerto determinaram as idiossincrasias de cada uma delas. Ambas exprimem (não se pode negar) as virtudes que, na opinião de Francisco de Holanda, deveriam estar sempre presentes na “imagem altissima de Nosso Senhor Jesu-Christo”: majestade, serenidade, modéstia, formosura, gravidade, graciosidade, benignidade e justiça (Holanda, 1918 in Ventura, 2021: 106). Ainda assim, temos de admitir que a expressão desses valores no par de Crucificados demonstra pelo menos duas maneiras de entender os caminhos percorridos e a percorrer pelo humanismo cristão, cuja crise explodira nas primeiras décadas do século XVI e dera origem às várias reformas protestantes e, depois, ao Concílio de Trento (1545 – 1563), o mais longo e mais influente de toda a História cristã, com fortes implicações na concepção e no uso das imagens destinadas a contextos religiosos e litúrgicos (cf. Insolera, 2016). 108

38 Essa colagem do tecido ao corpo morto de Cristo faz lembrar alguns crucifixos esculpidos por Diego de Siloé. Estamos, todavia, convictos de que se trata de um estilema do autor, observável também nalguns dos santos esculpidos no cadeiral do coro-alto do Mosteiro de Santa Maria de Belém.

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5 - Pormenor do Crucificado da Capela Real (foto Câmara Municipal de Salvaterra de Magos).

Trazer à colação, neste artigo, o autor valorizado e protegido pelo Infante D. Luís, que conviveu em Roma com Vitoria Colonna (1490 – 1547) e Michelangelo Buonarroti (1475 – 1564), desenhou uma obra tão importante quanto o livro De Aetatibus Mundi Imagines e chegou a ter morada em Almeirim, não é algo que façamos de ânimo leve. Se em artigo anterior defendemos a possibilidade de um desenho seu, hoje perdido ou extraviado, ter orientado ou inspirado a concepção do Cristo do Mosteiro dos Jerónimos (cf. Ventura, 2021: 106), essa hipótese parece-nos ainda mais forte no que diz respeito à escultura de Salvaterra de Magos. Não só a figura apolínea do Redentor crucificado encaixa no muito que o pintor nos apresentou no supracitado álbum, quanto existe, ainda, um elemento iconográfico na peça a reforçar tal convicção. Falamos do letreiro colocado sobre a cruz da

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