Revista Magos - A RARET e a Glória do Ribatejo: 70 anos da primeira retransmissão - 4 de julho 1951

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Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos n.º especial | Ano 2021


A RARET e a Glória do Ribatejo - 70 anos da Primeira Retransmissão 4 de julho de 1951

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| Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos n.º especial Ano: 2021

Propriedade Câmara Municipal de Salvaterra de Magos Coordenação Presidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, Eng.º Hélder Manuel Esménio Textos - Roberto Caneira - Vitor Manuel Malta Madail Herdeiro - Pedro Lopes - Francisco Madelino Grafismo Soraia Magriço Capa Manutenção das antenas de retransmissão - década de 70 Execução Gráfica Gráfica Central de Almeirim, Lda Depósito Legal ISSN 2184-7940 Data Julho de 2021 Tiragem 1000 exemplares


Índice 1 | A Herdade de Nossa Senhora da Glória e a RARET: notas para o seu estudo | Roberto Caneira | pág. 03 à 23 2 | A Guerra-Fria combatida a partir da Charneca Ribatejana: O caso da RARET 19511963 | Vitor Manuel Malta Madail Herdeiro | pág. 25 à 56 3 | Glória | Pedro Lopes | pág. 57 à 62 4 | RARET e a Glória: como a Cultura e a Educação revolucionaram uma Comunidade | Francisco Madelino | pág. 63 à 88

Salvaterra de Magos | n.º especial | Ano: 2021


Magos Prefácio | A presente edição da Revista MAGOS - número especial dedicado à RARET, reforça a função desta publicação enquanto eixo fundamental para o estudo e valorização da história local do concelho de Salvaterra de Magos. Em 2020, também editámos um número temático dedicado ao centenário da Praça de Touros de Salvaterra de Magos, este ano a efeméride prende-se com os 70 anos da primeira retransmissão da RARET, que ocorreu simbolicamente a 4 de Julho de 1951. A opção de editar este número temático sobre a RARET, está associado à linha de apoio que o Município tem vindo a dar à investigação sobre o património cultural concelhio e ao reforço da identidade cultural e da memória social da nossa população, que são estratégias para estimular o turismo e que podem contribuir para o desenvolvimento sustentado e integrado do nosso concelho.

A RARET foi uma instituição que marcou a Glória do Ribatejo, que contribuiu para romper o isolamento e consequente desenvolvimento social e económico desta localidade, mas também foi um marco na história contemporânea mundial, enquanto dois blocos opostos: Americanos e Soviéticos guerreavam entre si uma “guerra fria”, no meio destas duas potências estava a Glória do Ribatejo e a RARET. Recentemente a importância deste complexo retransmissor americano RARET, despertou a atenção da Netflix, que acolheu a primeira série portuguesa, que tem o título de “Glória”. É uma série de fição que tem como base a “guerra fria”, a Glória do Ribatejo e a RARET. Quero ainda agradecer aos colaboradores deste número, que continuam a responder com entusiasmo ao desafio da Câmara Municipal, ao elaborarem artigos que certamente vão contribuir para o estudo e divulgação do que foi a RARET.

O Presidente da Câmara Municipal

Eng.º Hélder Manuel Esménio

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A Herdade de Nossa Senhora da Glória e a RARET: notas para o seu estudo

Roberto Caneira

Técnico Superior de História

patrimoniocultural@cm-salvaterrademagos.pt


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1 | Introdução A propriedade que atualmente se designa Herdade de Nossa Senhora da Glória, foi o espaço onde em 1951 se iniciou a edificação do maior complexo europeu retransmissor da Rádio Free Europe (Rádio Europa Livre), designado de RARET, organismo dos Estados Unidos da América, que tinha como principal função enviar através de ondas de rádio, vários conteúdos de propaganda para os países de Leste que estavam subjugados pela URSS - União das Republicas Socialistas Soviéticas. A origem desta propriedade é bastante antiga e complexa, o seu topónimo também se alterou ao longo dos tempos, a primeira referência a este espaço é designado como Sesmaria do Seabra, só na década de 30 do séc. XX, é que surge o topónimo Herdade de Nossa Senhora da Glória, que ainda hoje perdura. A par da origem histórica desta propriedade, é ainda nosso objetivo enquadrar historicamente o atual espaço Jackson e a sua ligação aos primórdios da RARET e ainda destacar a relação da RARET no contexto da guerra fria e no desenvolvimento social e cultural da Glória do Ribatejo. A maior parte de informação recolhida para a elaboração deste artigo, foi feita com base nos livros de notas e de tabelião do Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, disponibilizados pelo Dr. Gonçalo Lopes que possuía vários livros digitalizados, o que muito ajudou na pesquisa e ao qual agradeço a cedência, agradecimento também ao Sr. Presidente da União de Freguesias da Glória do Ribatejo e Granho Sr. João Batista, que detinha cópia da escritura da compra da Herdade de Nossa Senhora da Glória pela RARET, e que nos facultou o documento, o que foi uma mais valia para o presente artigo.

2 | Origem histórica A vasta Herdade de Nossa Senhora da Glória, era conhecida em meados do séc. XIX, com a Sesmaria do Seabra. Os Seabras eram uma família originária de Valada do Ribatejo e também tinham ligações a Salvaterra de Magos, e é bem provável que fossem os primeiros donos desta propriedade. Com base no mapa da coutada de Muge, datado de 1775 (fig. 1), este terreno estava dentro da coutada de Muge, e por isso não seria cultivado, dado que as coutadas reais tinham como única função, a criação de caça para a família real, quando se deslocavam sazonalmente para os Paços de Salvaterra de Magos e de Muge, onde faziam as pomposas caçadas reais. A extinção das coutadas reais em 1834, com a afirmação das ideias liberais, determinou a compra desta propriedade, esta manteve-se incólume e nunca foi repartida, como aconteceu com outros terrenos que foram fragmentados em foros. A primeira referência à existência da Sesmaria do Seabra e dos seus limites, remonta a 1847. O vocábulo “Sesmaria”, está associado a terras que os concelhos distribuíam, pelos seus moradores com a condição de serem obrigatoriamente cultivados dentro de certo prazo1, e esta propriedade foi intensamente cultivada, como demonstram os documentos que vamos apresentar. 1

Cf. Virgínia Rau, «Sesmarias” In Dicionário da História de Portugal, [dir. Joel Serrão], vol. V, Porto, Iniciativas Editoriais, 1979, pp. 542-543

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Fig. 1 - Carta Geografica das Montarias da villa de Santarém - 1775

Em 1847 (fig. 2) há o registo de uma escritura de compra da Sesmaria de António Nogueira Seabra que fez Luís Vaz morador no Lugar de Nossa Senhora da Glória a José Nunes Pedro e sua mulher Mathilde Quitéria moradores no Monte dos Coelhos. Estes eram legítimos donos desta Sesmaria por herança dos seus falecidos pais, e que a venderam pelo valor de doze mil reis: Salvaterra de Magos | n.º especial | Ano: 2021


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«Escriptura de compra que fez Luis Vaz do logar de N.Sr.a da Glória, uma Sesmaria nos limites do logar da Glória a Joze Nunes Pedro e sua mulher Mathilde Quitéria do Monte dos Coelhos deste julgado pella quantia de 12$000. Em nome de Deos Amen saibão quantos este publico instrumento de compra (…) no ano de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e quarenta e sete aos onze dias do mês de Agosto do dito anno nesta villa de Salvaterra de Magos em meu escriptório, aparecerão presentes Luis Vaz proprietário e morador no logar de Nossa Senhora da Glória deste julgado, e da outra parte como vendedores Joze Nunes Pedro trabalhador e sua mulher Mathilde Quitéria moradores no Monte dos Coelhos deste julgado de Salvaterra de Magos, pessoas do meu conhecimento que eu tabelião dou minha fé serem os próprios, e pelos segundos outorgantes vendedores foi dito perante as testemunhas audiente nomeados como fim deste instrumento assignados que elles por seus legítimos títulos são senhores e proprietários d’uma Sismaria chamada de António Nogueira Siabra nos limites de Nossa Senhora da Glória por herança dos seus falecidos pais (…).2

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Fig. 2 - Escritura de compra que fez Luis Vaz - 1847 2

A.D.S. - Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, Livro de Notas - Tabelião António Martins Coelho Lobo, livro n.º 1 , 1844 - 1848, fl. 32

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Magos Anos mais tarde em 1859, esta Sesmaria é aforada, (fig. 3) uma escritura de aforamento da Sesmaria do Seabra que faz José António dos Santos, farmacêutico e sua mulher D. Joana Perpétua da Conceição, ambos moradores na vila de Muge a Alexandre Monteiro, lavrador e morador no sítio de Nossa Senhora da Glória, pelo valor de catorze mil reis: «Escriptura d’aforamento da Sesmaria do Seabra que outorgão Jozé António dos Santos e sua mulher D. Joana Perpétua da Conceição Pacheco a Alexandre Monteiro por 14$000 Saibem quantos esta virem que no anno de nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e cincoenta e nove aos vinte e três dias do mês de Março do dito ano nesta villa de Muge e casas da morada de Jose´Antonio dos Santos e onde eu Tabelião ali appareceram perante mim os testemunhos abaixo assignados o dito Jozé António dos Sanctos Pharmaceutico e sua molhyer Donna Joana

Perpetua da Conceição Pacheco ambos moradores nesta villa, e bem assim Alexandre Monteiro, lavrador e morador no sitio de Nossa Senhora da Glória, viúvo, todos do meu conhecimento que dou fé aos próprios, e pelos mencionados Jose António dos Santos e sua mulher Donna Joana Perpétua da Conceição Pacheco são senhores e possuidores de um terreno na charneca situada na proximidade do logar de Nossa Senhora da Glória desta freguesia de Muge, denominada Sesmaria do Seabra (…).»3 Os limites desta propriedade estão identificados nesta escritura: «que confronta do norte com a Estrada Real do Escaroupim a Glória, sul com estrada da Ribeira e com estrada que vai para Magos, nascente com a estrada de Magos athé chegar à Estrada que vem de Coruche, terras do concelho, Sesmaria da Arroteia e poente com estrada da Ribeira.»

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Fig. 3 - Escritura de aforamento da Sesmaria do Seabra - 1859 3

A.D.S. - Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, Livro de Notas - Tabelião Joaquim António Freitas Leão, Livro n.º 20, 1838 a 1859, fl- 40

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Em 1877, Alexandre Monteiro vende a Sesmaria do Seabra a Manuel José da Silva, morador na vila de Muge, pelo valor de cento e oitenta mil reis (fig. 4): «Escriptura de compra e venda d’uma sesmaria na Glória entre Manoel Joze da Silva, vendedor Alexandre Monteiro pela quantia de 180$000. Saibam quanto este publico instrumento d’escriptura de contrato de compra e venda (…) que no anno de nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo aos dezassete dias do mez d’Outubro nessa vila de Salvaterra de Magos e no meu cartório compareceu Alexandre Monteiro, viúvo, morador na Glória e Manuel Jozé da Silva, casado morador nesta villa (…) dou a minha fé que Alexandre Monteiro é senhor e herdeiro do aforamento que fez ao fallecido José António dos Santos dessa Sesmaria no sitio da Glória em quatorze mil e quatrocentos reis annoaes denominada a Sesmaria do Seabra que confronta a norte com a estrada que vae ao Escaroupim, sul com a Ribeira, e nascente com estrada de Magos e Poente com Ribeira a qual com todos os seus pertences, serventias e logradouros, pelo presente instrumento vende ao segundo outorgante Manoel Jozé da Silva para si e seos sucessores pelo preço e quantia de cento e oittenta mil reis que recebe em moeda corrente.» No ano de 1885, Manuel José da Silva, compra a Alfredo Senna e Azevedo a restante parte da propriedade da Sesmaria do Seabra (fig. 5): «Escriptura de venda de metade do domínio directo da quantia de 14.400 reis, imposto em uma Sesmaria denominada do Seabra sita no logar da Glória, d’este julgado que faz Alfredo de Senna Azevedo e sua mulher a Ex.ma Dona Emilia Amelia da Conceição Pacheco e Azevedo a Manoel Jose da Silva pela quantia de cento e vinte mil reis.

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Fig. 4 - Escritura de compra da Sesmaria do Seabra - 1877

Saibam quantos este publico instrumento de escriptura de venda e quitação ou como em direito melhor logar hoje virem que no anno de nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e oitenta e cinco n’esta villa de Salvaterra de Magos no meu escriptorio, aqui perante mim tabelião interino e as testemunhas edóneas adiante nomeadas e no fim assignadas compareceram d’uma parte como vendedor Alfredo de Senna Azevedo, cazado, Proprietário, rezidente na villa de Mugem por si e como reprezentante da sua esposa Dona Emilia Amélia da Conceição Pacheco e Azevedo, como fez pela carta de procuração que neste acto me apresento e que fica archivada no meu cartório para ser copiada no treslado que d’este escriptura

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Magos de tirarem e da outra parte como comprador Manuel Joze da Silva, cazado, Proprietário, morada n’esta villa, ambos maior edade e pessoas do meu conhecimento que deram as próprias da minha e pelo primeiro outorgante Alfredo de Senna Azevedo, em seu nome e de sua mulher a contribuinte Emilia Amélia da Conceição Pacheco e Azevedo, na presença das ditas testemunhas me foi dito que elles conjuntamente com Ezequiel Augusto Santos Pacheco rezidente em Muge, são senhorios diretos d’uma Sesmaria denominada Sesmaria do Seabra, sita no logar da Glória d’este julgado, de que é emphyteuse o segundo outorgante Manuel José da Silva, o qual n’esta qualidade é obrigado a pagar a elle outorgante a quantia de sete mil reis e duzentos reis annoalmente e a Ezequiel Augusto dos Santos Pacheco igual quantia que a Sesmaria em que é imposto, este domínio direto confrontando do norte com estrada que vae para o Escaroupim,

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Fig. 5 - Escritura de compra da Sesmaria do Seabra - 1885

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do sul com Ribeira, de nascente com a estrada de Muge e do poente com a ditta da Ribeira, que este metade do domínio direto lhe adveio a elle outorgante Alfredo de Senna e Azevedo e sua Mulher Emilia Amélia da Conceição Pacheco e Azevedo, pela herança que tiveram do seu pai digo seu sogro e pai João Maria Pacheco no inventário orphonologico a que se procedeu pelo Juiz de Direto da Câmara de Benavente por fallecimento do dito seu sogro e pae que podendo livremente dispor da dita parte de sete mil e duzentos reis annoaes que teem no referido domínio directo, pela prezente escriptura e na melhor forma de directo a vendem d’hoje para todo o sempre ao segundo outorgante Manoel Joze da Silva, digo direito em seu nome e na da sua molher contribuinte a vende d’hoje para todo o sempre ao segundo outorgante Manoel José da Silva, para os seos herdeiros e sucessores que lhe faz esta venda pela quantia de cento e vinte mil reis (…).4» Nos anos seguintes, mapas de aforamentos de 1899 e 1904 (fig.6 e 7), evidencia-nos que o dono da Sesmaria do Seabra continua a ser Manuel José da Silva. Nas décadas seguintes não conseguimos encontrar documentos sobre a posse desta propriedade. Mais tarde na década de 30 do séc. XX, este terreno pertencia a Álvaro Ferreira Roquette, esta propriedade deixa de designar-se Sesmaria do Seabra e passa a ser conhecida como Herdade de Nossa Senhora da Glória. Em 1934 Álvaro Ferreira Roquette vende esta propriedade a familiares do Conde Monte Real: Maria da Luz Cardoso Pereira da Silva de Melo e Faro Passanha, e seu irmão Jorge Cardoso Pereira da Silva de Melo e Faro: 4

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Fig. 6 - Mapa de aforamento da Glória - 1899 - Junta de Freguesia de Glória do Ribatejo

A.D.S. - Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, Livro de Notas - Tabelião Francisco Maria Dinis, Livro n.º 48, 1885, fl. 6

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Fig. 7 - Mapa de aforamento da Glória - 1904 - Junta de Freguesia da Glória do Ribatejo

“E pelos primeiros outorgantes, Dona Maria da Luz Cardoso Pereira da Silva de Melo e Faro Passanha, e seu irmão Jorge Cardoso Pereira da Silva de Melo e Faro, foi dito: - que são donos legítimos possuidores, em comum e partes iguais, do prédio rústico denominado Herdade de Nossa Senhora da Glória (antiga Sesmaria do Seabra) situado na Glória, freguesia de Muge, concelho de Salvaterra de Magos, composto de terra para pasto, vinha, sobreiros, casas para palheiros, para gado e para criados, em parte do qual existe uma morada de casas com quatro divisões, que ocupa a superfície coberta de cento e noventa e oito metros quadrados, confrontando: do norte com a Estrada Municipal, do sul com Estrada Municipal, do nascente com a povoação da Glória, e do poente com a estrada da Ribeira, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Muge, sob o artigo tresentos e cincoenta e dois e na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo trezentos e quarenta e seis, como consta do conhecimento adiante citado e da descrição predial, descrito sob o número quinhentos e oitenta e trez, a folhas noventa e oito do livro B dois da Conservatória do Registo Predial de Benavente. - que este prédio veio ao seu domínio e posse, por o haverem adquirido por compra a Alvaro Ferreira Roquette e mulher, como consta da respectiva escritura, outorgada em vinte e seis de Março de mil novecentos e trinta e quatro, de folhas setenta e uma, verso, a folhas setenta e quatro, do livro número cento e dois A de notas do notário de Lisboa - Tavares de Carvalho, e do registo de transmissão feito, a seu favor Salvaterra de Magos | n.º especial | Ano: 2021


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na dita Conservatória, pela inscrição número trez mil tresentos e quarenta e sete, a folhas oitenta, verso, do livro G cinco.»5 Em 1951 a Herdade de Nossa Senhora da Glória é adquirida pela RARET, pelo valor de um milhão e quinhentos mil escudos: - Que nestas circunstâncias, eles primeiro outorgantes, ajustaram vender, e pela presente escritura vendem, à Sociedade Anonima de Radio Retransmissão, .S.A.R.L. (abreviadamente Raret) que os segundos outorgantes representam, o confrontado e descrito prédio, com todas as suas pertenças, serventias, logradouros e acessões, e inteiramente livre e desonerado. - Que fazem esta venda, pelo preço total de um milhão e quinhentos mil escudos, preço que os vendedores já receberam, quanto a cada um diz respeito, preço total de que conferem à sociedade compradora e respectiva e integral quitação. - Que, consequentemente, demitem de si todo o domínio, direito, acção e usufruição que, até agora, teem tido sobre o prédio vendido, e colocam no lugar deles, outorgantes vendedores, a Sociedade Anónima de Radio Retransmissão S.A.R.L. (abreviadamente Raret), fazendo-lhe, desde já entrega do mesmo prédio, cuja transmissão se encontra provisoriamente registada, a favor dela pela inscrição numero cinco mil cento e vinte, a folhas cento e dezasseis , verso, do livro G sete, da mencionada conservatória do Registo Predial de Benavente.6

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Fig. 8 - Cartório Notarial de Benavente - Notário Manuel Facco Vianna, 1 de Fevereiro de 1952

Cartório Notarial de Benavente - Notário Manuel Facco Vianna, 1 de Fevereiro de 1952 Fl. 2 - 2v Idem, fl. 3

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Fig. 9 - Cartório Notarial de Benavente - Notário Manuel Facco Vianna, 1 de Fevereiro de 1952

Fig. 10 - Cartório Notarial de Benavente – Notário Manuel Facco Vianna, 1 de Fevereiro de 1952

O espaço que compreende a atual Herdade de Nossa Senhora da Glória, tem uma história complexa, teve vários donos, os documentos mais antigos remontam à primeira metade do séc. XIX, mas é bem provável que recue ainda mais no tempo. Salvaterra de Magos | n.º especial | Ano: 2021


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3 | Espaço Jackson O atual espaço Jackson, integrava a propriedade da Sesmaria do Seabra, e era constituído por vários casebres que tinham como função albergar os trabalhadores rurais migrantes que sazonalmente se deslocavam para trabalhar nesta grande propriedade. Eram os gaibéus, caramelos ou ratinhos que aqui ficavam alojados. No mapa de 1904, a configuração urbanística do Jackson está bem delineada, aliás antes da intervenção da Câmara Municipal, o espaço mantinha-se idêntico tal como aparece neste mapa de aforamentos. (fig. 11) É um imóvel histórico, localizado no centro da Glória do Ribatejo que resistiu à passagem do tempo, sem sofrer grandes alterações urbanísticas. Na comunidade local este espaço também era conhecido como as “Carolinas”, não conseguimos descobrir a origem deste topónimo. Através de recolha oral junto de pessoas mais antigas sabemos que neste local, pernoitavam os campinos quando andavam a conduzir o gado para as pastagens, e que certa vez duas vacas caíram num poço que existia no pátio, este poço foi depois soterrado. Em 1951, a RARET tornou-se proprietária deste enorme Herdade, e este local ganha uma nova denominação: Hotel Jackson, porque foi neste espaço que ficaram alojados nos primeiros meses, vários engenheiros e americanos que iniciaram a montagem das primeiras antenas de retransmissão da RARET.

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Fig. 11 - Mapa de aforamentos 1904 - Junta de Freguesia de Muge

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O Eng. Aleixo foi um dos engenheiros que esteve no início da RARET, e dá-nos o seu testemunho sobre o Hotel Jackson: «Entre 1948 e 1951, não conseguia emprego, apesar de ter um curso. Vivia-se uma grande crise. As pessoas iam para a fila do leite e do pão; era tudo racionado. Foi um amigo que me disse que os americanos estavam à procura de técnicos. Fui fazer os testes e acabei aprovado com mais seis engenheiros.»(…) Os sete engenheiros que atravessaram o Tejo de barcaça, porque “na altura não havia ponte em Vila Franca de Xira”, seriam os primeiros a mudar de vida com a chegada dos retransmissores da RFE. Disseram-lhes que nos primeiros tempos, iriam ficar num hotel, mas descobriram que teriam de coabitar num armazém transformado, com camas húmidas. Num mês instalaram a primeira antena. Ganha a confiança dos americanos, foi a vez de toda uma aldeia mudar à boleia da Guerra Fria.»7 A origem do nome Hotel Jackson, está associado a Charles Douglas Jackson, que foi Presidente da Rádio Free Europe (R.F.E.) entre 1951 - 52. Em 1952 Charles Douglas Jackson, visita as instalações da RARET e a pedido dos trabalhadores que estiveram alojados no Hotel Jackson, decide visitar o espaço e ficou surpreendido com a falta de condições e ali prometeu que no futuro todos os trabalhadores da RARET, teriam todas as condições de alojamento e trabalho, e realmente aconteceu, passados poucos anos foram edificadas várias moradias para os trabalhadores, com condições invejáveis.

Vejamos a biografia de Charles Douglas Jackson8: Charles Douglas Jackson nasceu na cidade de Nova Iorque, a 16 de Março de 1902. Em 1924, ingressou na Universidade de Princeton. Em 1931, Jackson assumiu um cargo na revista Time Magazine. Em 1940, foi Presidente do Conselho para a Democracia. Durante a Segunda Guerra Mundial entre 1942 a 1943, serviu como assistente especial do Embaixador na Turquia. De 1943 a 1945, serviu no Escritório de Serviços Estratégicos. De 1944 a 1945, foi Vice-Chefe da Divisão de Guerra Psicológica. Após a guerra, tornou-se diretor administrativo da revista Time-Life International de 1945 a 1949. Mais tarde, editor da revista Fortune. De 1951 a 1952, foi Presidente da Rádio Free Europe (Rádio Europa Livre). Desempenhou o cargo de redator de discursos para a campanha presidencial de 1952 de Dwight Eisenhower. Ele foi designado para ser o elo de ligação de Eisenhower entre a recém-criada CIA e o Pentágono. De fevereiro de 1953 a março de 1954, Jackson serviu como conselheiro do Presidente em guerra psicológica. Ele trabalhou em estreita colaboração com o Conselho de Estratégia Psicológica e foi membro do Conselho de Coordenação de Operações. Mais tarde, esteve nas Nações Unidas, e em 1960, foi editor da revista Life. Charles Douglas Jackson faleceu a 18 de Setembro de 1964.

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Revista Única (Jornal Expresso), n. 1652, 26 junho 2004, p. 78 A biografia de Charles Douglas Jackson foi consultada em: https://spartacus-educational.com/USAjacksonCD.htm e https://en.wikipedia.org/wiki/Charles_Douglas_Jackson [documentos consultados a 1 de Maio de 2021] 8

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Magos Após a construção das moradias para os trabalhadores, o Hotel Jackson vai continuar como propriedade da RARET, sem qualquer tipo de utilização, após o encerramento da RARET, este espaço fica na posse da Junta de Freguesia da Glória do Ribatejo, que aloja várias associações e coletividades locais. Mais tarde, este imóvel é transferido para a Câmara Municipal que inicia as obras de requalificação. Abre ao público a 15 de agosto de 2020. É um espaço cultural polivalente, que integra o pólo da Biblioteca Municipal, um átrio para exposições, um auditório de multiusos com capacidade para duas centenas e meia de pessoas sentadas, camarins e régie, destaca-se ainda o espaço para as coletividades onde várias associações locais têm a sua sede.

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Fig. 12 - Charles Douglas Jackson - fonte: https://artsandculture. google.com/entity/charles-douglas-jackson/m06crwr

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Fig. 13 - Átrio de exposições do Espaço Jackson


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Fig. 14 - Exterior do Espaço Jackson

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4 | A Raret e a Glória do Ribatejo Com o fim da Segunda Guerra Mundial, segundo as palavras de Winston Churchill, surgiu na Europa uma “cortina de ferro”, que dividiu a Europa Ocidental da Europa Oriental, esta última ficou sob a influência totalitária da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Com o intuito de combater o caráter expansionista da URSS, foi criado nos Estados Unidos da América, o National Committee for a Free Europe (Comité Nacional para a Libertação da Europa), organização financiada pela CIA, que cria a Rádio Free Europe (Rádio Europa Livre), destinada a difundir através de ondas de rádio, propaganda política para os países de Leste subjugados pelos Soviéticos. Desde a Segunda Guerra Mundial até ao início da década de 90, a História Contemporânea, foi marcada por um conflito bélico invisível designado de Guerra-Fria, que opôs duas grandes potências: Americanos e Soviéticos, dois blocos distintos e opostos. Na Glória do Ribatejo, foi instalado o maior complexo de retransmissão europeu da Rádio Free Europe, de seu nome RARET – Rádio American Retransmission. A RARET é criada formalmente a 20 de abril de 1951, conforme consta no Diário da República, e rapidamente adquire o terreno para a instalação do centro de retransmissão, o local foi a Herdade de Nossa Senhora da Glória, uma propriedade com 184 hectares. A 4 de julho de 1951, inicia-se a primeira retransmissão da RARET para os países de Leste, a escolha da data foi simbólica, dado que se trata do dia de independência dos Estados Unidos da América. A primeira retransmissão decorreu no camião de nome “Bárbara”, que possuía um pequeno emissor Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

de 7,5kw, e as ondas de rádio foram apontadas para a Polónia, Hungria, Roménia e Checoslováquia. Durante 45 anos, a RARET manteve as suas retransmissões A instalação de um complexo retransmissor da Rádio Free Europe, na Glória do Ribatejo, foi um acontecimento que contribuiu significativamente para as mudanças de práticas e costumes desta aldeia, que à época, era essencialmente rural. A construção da Estrada Nacional 367, que surgiu por vontade da Raret, foi uma infraestrutura que contribuiu para dotar de melhor acessos viários quer à RARET quer à Glória do Ribatejo, com esta via, rompeu-se definitivamente o isolamento da Glória do Ribatejo. A administração da RARET, sempre teve em consideração o bem estar da população da Glória do Ribatejo, rapidamente desenvolveu esforços para admitir mão-de-obra gloriana, nas instalações das primeiras antenas. A ruralidade que caraterizava a aldeia, onde ainda prevaleciam as praças de jornas, sistema de contrato com reminiscência no feudalismo, em que os pobres trabalhadores apenas tinham para oferecer a sua força braçal e cujo trabalho ainda se mantinha do nascer ao pôr do sol, começa lentamente a desaparecer, e novas profissões surgem na Glória do Ribatejo: guarda-fios, serralheiros, carpinteiros entre outras profissões. Para além do emprego de mão-de-obra local salientam-se outros melhoramentos e doações de terrenos para a edificação da escola, do edifício da Junta de Freguesia, da Casa do Povo, do campo de futebol, a constituição da Freguesia da Glória do Ribatejo que se emancipou da freguesia de Muge, também teve a colaboração da Raret, entre outros

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melhoramentos que vamos analisar: «A população dessa pequena aldeia, que vivia num certo isolamento, devotava-se então na sua quase totalidade a actividades agrícolas e não foi com entusiasmo, diga-se em abono da verdade, que viu a chegada de um grupo de estranhos, com todos os seus maquinismo e hábitos de vida diferente. Contudo, rapidamente se iniciaram relações entre a Raret e a população da Glória do Ribatejo que provaram ser de mútuo benefício e que resultam na criação de fortes laços de confiança e amizade. Entre o pessoal não especializado que a Raret foi recrutar a essa aldeia, bastantes elementos se evidenciaram pela sua inteligência natural, capacidade de adaptação e interesse em valorizar-se, e foram treinados de modo a preencherem lugares que se foram criando no quadro de pessoal semi-especializado da Companhia.» (…) Um anseio que a população da Glória há muitos anos acautelava - a criação da Junta de Freguesia de Glória do Ribatejo - teve finalmente a sua feliz concretização em 29 de Agosto do ano passado; a este facto, que denota sem dúvida um nítido progresso social, como oportunamente foi declarado por pessoas responsáveis, não foi estranha a presença da Raret naquela região, e um dos principais responsáveis pela realização desse sonho, e primeiro Presidente da Junta de Freguesia9 , é um funcionário distinto da Raret, um dos “imigrantes” de 1951, já há tempo Gloriano pelo coração. A Raret é hoje para a Glória do Ribatejo mais do que uma simples fonte de emprego, é um amigo com possibilidades e que sempre está pronto a servir

e a quem recorre quando necessita de auxílio, seja ela a reparação de uma bomba de elevação de água, a colocação de um mastro festivo de grande altura, o empréstimo de um sistema de amplificação sonoro, ou os primeiros socorros a um acidentado. Exemplos reais de factos passados. Por outro lado a Glória do Ribatejo constitui para a Raret mais de que uma simples fonte de mão de obra, é um amigo com legítimas aspirações a quem procura ajudar de maneira efectiva das dificuldades com que a aldeia vizinha luta para assegurar a ascensão educativa e convicta de que são esses os mais firmes alicerces de um futuro melhor, estudou a Raret detidamente a possibilidade de dar uma contribuição válida para a solução desses dois problemas e que possa perdurar para além da sua presença actual.» 10 A nível da assistência social e médica, também a RARET contribuiu para o melhoramento da comunidade local, através da distribuição de um bodo pelos mais carenciados (fig.15) e também notáveis melhorais ao nível da assistência médica, onde se destaca a construção de um posto médico, uma sala de partos e a aquisição de uma ambulâncica: «Para poder prestar assistência médica aos seus servidores, e seus familiares, em melhores condições do que vinha já fazendo, e, ao mesmo tempo alargar noutro campo o seu programa de acção social às populações vizinhas, vai a Raret instalar um Posto Médico e Clínica, em edifício próprio, para onde transferirá os Serviços da Companhia, atualmente instalados do Centro Emissor.

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O primeiro Presidente da Junta de Freguesia foi José Augusto Catarino, entre 16 de Outubro de 1966 a 22 de Dezembro de 1969, era funcionário da Raret 10 Jornal Aurora do Ribatejo, 7 outubro 1967, p. 3

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O novo Posto Médico que como se disse, poderá ser utilizado pelos residentes da Glória, passará a dispor, além da actual sala de consultas, de uma sala de partos, de uma sala de agentes físicos e de equipamento para radiografias e para electrocardiogramas. Disporá ainda de 2 quartos para internamento temporário de doentes cujo estado não aconselhe transporte imediato para um Hospital. (…) A Raret adquiriu também uma ambulância que pode ser utilizada pela população da Glória e de Marinhais, bastando para isso um pedido nesse sentido feito por um médico credenciado.»11

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Fig. 15 - Jornal Aurora do Ribatejo - 3 fevereiro 1968

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Idem, p. 4

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Fig. 16 - D. Cândida Metelo - responsável pela organização e distribuição do Bodo pelos mais necessitados


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Fig. 17 - Jornal Aurora do Ribatejo – 3 fevereiro 1968

A Escola Industrial da Raret, inaugurada no ano letivo de 1967/68, foi um edifício escolar pago na totalidade pela Raret, foi a primeira escola industrial do concelho, estava muito vocacionada para as atividades da RARET, os primeiros cursos foram de serralheiro mecânico, montador eletrecista e montador radiotécnico, grande parte dos docentes, eram engenheiros da RARET :

«O ensino é absolutamente gratuito: escola, material, professores, tudo constitui encargo exclusivo da Raret. O aluno só terá de pagar os selos oficiais da matrícula e adquirir os livros, mas não se exclui mesmo a hipótese de, excepcionalmente, para um ou outro caso de extrema penúria, a Raret oferecer livros e pagar os selos. Prevêem-se ainda facilidade para a eventualidade duma refeição na cantina do pessoal da Raret. A escola dirige a sua acção a toda a população escolar do concelho de Salvaterra de Magos, com a seguinte ordem de preferência, por freguesias caso venha a verificar-se superlotação: Glória do Ribatejo, Marinhais, Salvaterra e Muge. São três os cursos com que vai começar já este ano: serralheiro mecânico, montador eletrecista e montador radiotécnico. (…) O corpo docente da Escola Industrial da Raret é recrutado entre funcionários daquela Sociedade, engenheiros, agentes técnicos e outros de comprovada idoneidade, larga experiência profissional e legalmente habilitados a ministrar ensino.» A escola da RARET tornou-se uma referência no ensino no concelho de Salvaterra de Magos, inicialmente estava vocacionada para o ensino industrial, mas com o passar dos tempos, seguiu o caminho das outras escolas secundárias e abriu-se a outros cursos. Era um ensino exigente, com um corpo docente bem preparado, que sabia lecionar e cativar os alunos. Foi certamente devido às qualidades da escola da RARET que muitos alunos da Glória do Ribatejo, entraram em Universidades e tiraram cursos superiores em diversas áreas.

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Fig. 18 - Ministro da Educação Artur de Almeida Carneiro, a cortar a fita de inauguração da Escola da RARET

Fig. 20 - planta da Escola da RARET

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Fig. 19 - Sala de desenho - Escola da RARET

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Magos Bibliografia - Arquivo Distrital de Santarém (A.D.S.) - Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, Livro de Notas Tabelião Joaquim António Freitas Leão, Livro n.º 20, 1838 a 1859 - Arquivo Distrital de Santarém (A.D.S.) - Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, Livro de Notas Tabelião António Martins Coelho Lobo, livro n.º 1 , 1844 - 1848 - Arquivo Distrital de Santarém (A.D.S.) - Cartório Notarial de Salvaterra de Magos, Livro de Notas Tabelião Francisco Maria Dinis, Livro n.º 48, 1885 - Cartório Notarial de Benavente - Notário Manuel Facco Vianna, 1 de Fevereiro de 1952 - https://en.wikipedia.org/wiki/Charles_Douglas_Jackson [documentos consultados a 1 de Maio de 2021] - https://spartacus-educational.com/USAjacksonCD.htm [documentos consultados a 1 de Maio de 2021] - Jornal Aurora do Ribatejo, 7 outubro 1967 - Jornal Aurora do Ribatejo, 3 Fevereiro 1968

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- RAU, Virgínia, «Sesmarias” In Dicionário da História de Portugal, [dir. Joel Serrão], vol. V, Porto, Iniciativas Editoriais, 1979 - Revista Única (Jornal Expresso), n. 1652, 26 junho 2004

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A Guerra-Fria combatida a partir da Charneca Ribatejana: O caso da RARET 1951-1963. Vitor Manuel Malta Madail Herdeiro

Assistente de Investigação no Centro de Estudos Internacionais - ISCTE, Doutorando no Programa Doutoral em História Moderna e Contemporânea do ISCTE-IUL vitor_manuel_herdeiro@iscte-iul.pt

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Resumo Setenta anos após a constituição da RARET (Rádio Retransmissão) e trinta anos depois da dissolução da URSS importa investigar qual o papel desempenhado por Portugal na “guerra hertziana” travada nos céus europeus, entre os EUA e a URSS, durante a Guerra-Fria. O artigo pretende abordar as razões que levaram os EUA a convidar as autoridades portuguesas a participar na construção do maior centro emissor da RFE (Radio Free Europe) e de como a RARET deteve um lugar central nas estratégias de

radiofusão internacional patrocinadas pelos EUA. Abordaremos a primeira década de funcionamento da RARET (1951/63) através de uma divisão em três partes: desde o convite e adesão formulados em 1950/51; a posição geoestratégica privilegiada de Portugal e a disponibilização do éter português ao serviço dos EUA (1952/61); culminando nas negociações para renovação da parceria luso-americana tendo como pano de fundo as tensões entre Salazar e Kennedy (1961/63).

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Fig. - 1 - Campinos nas instalações da RARET - Créditos da imagem: Radio Corporation of America, Broadcast News Vol Nº 95, June 1957. Radio Free Europe’s Broadcast Operation by Paul A. Greenmeyer. Part Two: “RFE Installations in Portugal”.

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Magos Introdução Em 19 de dezembro de 1950, o embaixador dos EUA em Portugal foi recebido em audiência pelo Presidente do Conselho de Ministros Oliveira Salazar. A audiência tinha dois objetivos; por um lado, revelar às autoridades portuguesas os esforços realizados pelos EUA no combate à expansão do comunismo na Europa e, ao mesmo tempo, convidá-lo a participar dessa luta, autorizando para tal a construção de um centro de retransmissão RFE em Portugal. Nenhuma documentação é conhecida sobre as conclusões daquela audiência, exceto um “Aide Memoire”1 elaborado na época com o resumo da conversa entre o embaidor dos EUA e Salazar. No entanto, desde a reunião inicial em São Bento, até a constituição da Sociedade Anônima de Rádio Retransmissão - (RARET), em 10 abril de

1951, cinco meses se passaram. A primeira retransmissão das emissões da RFE provenientes de Munique foi realizada pela RARET em 4 de julho de 1951 e teve como destinatário a então Checoslováquia. A aliança entre as autoridades portuguesas e o National Committee for a Free Europe (NCFE) viabilizou a utilização do espectro radioelétrico português, ao mesmo tempo que colocou o conhecimento técnico e a mão-de-obra nacionais, ao serviço dos fins e objetivos definidos pela RFE. A radiodifusão foi um instrumento central nos esforços norte-americanos para conter a influência soviética na Europa de Leste durante a Guerra-Fria. A RARET foi fundamental para essa estratégia e deteve um impacto determinante nas relações luso-americanas ao longo do período.

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1

Projeto dos EUA para instalação em Portugal de uma estação de retransmissão da Radio Free Europe. Documento composto por quatro páginas e intitulado: “AIDE MEMOIRE”. PT/TT/AOS/D-J/12/11/26. ARQUIVO SALAZAR, NE-2C1, cx. 427, pt. 26.

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Estado da Arte A vasta bibliografia existente cujo tema é a radiodifusão durante a Guerra-Fria seja de autores estrangeiros ou nacionais, não reflete a dimensão da colaboração portuguesa no âmbito da aliança com o NCFE/RFE, nem evidência tão pouco a importância da mesma na alavancagem ao combate ideológico protagonizado pelos EUA e característico do período inicial da Guerra-Fria. As menções à participação portuguesa surgem de forma lateral e pouco esclarecedora, tendo em conta por um lado a sua duração cronológica (1951/1996) e por outro o esforço massivo das autoridades portugueses em alinhar-se com os objetivos norte-americanos. Outras dimensões têm sido alvo da preferência dos historiadores, seja no plano militar, económico ou político. Pretende-se deste

modo colmatar uma lacuna existente, contribuindo de forma a adicionar aos trabalhos já realizados, novas perspectivas que possibilitem aprofundar o conhecimento sobre as relações entre, Portugal e os EUA, nos primórdios da Guerra-Fria.2 Deste modo o contributo português para as iniciativas de radiofusão dos EUA continua a representar uma importante lacuna que aborda esta temática. A aliança entre o NCFE/FEC3 e Portugal estendeu-se por mais de quatro décadas. Assim a ausência de estudos sobre o tema de um ponto de vista português, justifica o nosso interesse e estimula a nossa curiosidade, sobre uma dimensão pouco explorada do conflito ideológico que marcou a segunda metade do seculo XX.

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CUMMINGS, Richard. “Crusade for Freedom: Rallying Americans Behind Cold War Broadcasting, 1950-1960“, McFarland & Co.,2010, pp. 2-3; FEINBER, Melissa., Curtain of Lies: The Battle over Truth in Stlalinist Eastern Europe, New York, Oxford University Press, 2017, pp. 14-15; PRADOS, John, Safe for Democracy: The Secret Wars of the CIA, Ivan R, Dee, 2006, pp. 48-51; CAL, Rosa, Radio Liberty: LA CIA EN PLAYA DE PALS, Vision Libros, Madrid, 2017, pp. 17-21; CUMMINGS, Richard. H, “Cold War Radio: The Dangerous History of American Broadcasting in Europe 1950-1989“, McFfarland & Co.2009; LYNN, Katalin Kádár, ed. The Inauguration of “Organized Political Warfare”: The Cold War Organizations Sponsored by the National Committee for a Free Europe / Free Europe Committee. Central European University Press, 2013; LUCAS, Scott. Freedom’s War: The American Crusade Against the Soviet Union, Manchester University Press, 1999. 3 National Committee for a Free Europe/Free Europe Committee, foi uma organização anticomunista de caracter privado funda em 1949 nos EUA, responsável pela criação da RFE. Entre os seus principais responsáveis encontramos importantes figuras da vida política norte-americana entre os quais destacamos: Allen Dulles; Dwight D. Eisenhower; Adolph A. Berle; C.D. Jackson Dewitt C. Poole e Henry Luce 2

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Magos A RARET A Sociedade de Anónima de Rádio Retransmissão SARL, popularmente identificada como - ‘a rádio dos americanos’ - ou como - a ‘rádio da CIA’ - passou à história como a RARET. A sede situava-se em Lisboa no Edifício da Garagem Monumental, na zona do Areeiro, e os centros recetores e retransmissores, na Maxoqueira e na Glória do Ribatejo, concelho de Salvaterra de Magos. A administração da empresa era composta maioritariamente por

portugueses, sendo os interesses norte-americanos representados por três administradores nomeados pela RFE. Entre os funcionários existiam alguns tradutores oriundos dos países do Leste Europeu, porém a força de trabalho empregue na RARET foi sempre constituída por portugueses, desde engenheiros, técnicos de radiodifusão e restantes funcionários.

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Fig. 2 e 3 - Evolução da RARET: 1951 e 1957

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Magos O Convite e a adesão em 1950/51

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A 19 de Dezembro de 1950 o embaixador americano em Lisboa, Lincoln MacVeagh foi recebido pelo Presidente do Conselho Oliveira Salazar, a quem transmitiu informalmente o interesse americano acerca das atividades da RFE, bem como solicitou a colaboração portuguesa para a instalação em território português de emissores da RFE. O embaixador tinha como missão aferir a sensibilidade do governo português face às pretensões americanas. Apresentou como argumentos positivos a ausência de encargos por parte do governo português com a operação em causa, as fortes relações bilaterais luso-americanas, onde se incluía a adesão à OTAN/ NATO e termina frisando: “o interesse comum das nações do Oeste em quebrar, tanto quanto possível, a muralha psicológica e cultural erigida pelo regime soviético entre os seus satélites desgraçados e o mundo livre” o que conferiu uma atmosfera de companha anticomunista em torno da iniciativa norte-americana para a qual Portugal acabava de ser convidado a participar.4 O contacto direto do embaixador com o chefe do governo português reflete a importância que os americanos atribuíam ao trabalho desenvolvido pela RFE no contexto da Guerra-Fria e ao mesmo tempo colocou Portugal no epicentro da guerra de propaganda enunciada no memorando “political warfare” de George Kennan de 1948.5

Da reunião entre o embaixador e Oliveira Salazar não se conhece mais documentação, para além do “Aide Memoire” elaborado na altura. Porém, conhecem-se as suas consequências, onde se inclui a centralidade da RARET para a persecução dos objetivos em matéria de radiodifusão internacional traçados pelos EUA. Em Janeiro de 1951 chegou a Lisboa o representante do NCFE, H. Gregory Thomas, a quem coube a missão de negociar com o governo português os termos da licença de concessão e todas as questões de ordem prática necessárias ao funcionamento da operação da RFE em território português. H. Gregory Thomas um ex-membro do OSS - precursora da CIA - trabalhou na embaixada dos EUA em Lisboa durante a II GM, onde atuou sob a designação oficial de adido comercial e económico. Ao regressar à capital portuguesa com a missão de negociar os moldes em que a participação portuguesa nas iniciativas de radiodifusão dos EUA se iria processar, retomou os contactos estabelecidos durante a guerra com figuras proeminentes da sociedade portuguesa. Abordou inicialmente o banqueiro Ricardo Espirito Santo, seu velho conhecido, com o intuito de conseguir uma via de acesso facilitada ao Presidente do Conselho no que foi bem-sucedido6. A este propósito os testemunhos de Thomas P. Bastos e

Arquivo Oliveira Salazar - ANTT. AOS-ANTT, Arquivo Salazar, CM-3, Cx. 59, capilha 3. “Aidé Memorie” elaborado após visita embaixador EUA Lincoln MacVeagh ao Presidente do Conselho O. Salazar. O embaixador expõe sucintamente a atividade da RFE, ao mesmo tempo solicita a adesão das autoridades portuguesas ao projeto dos EUA e autorização para construção emissores/RFE em Portugal. 5 George F. Kennan, ‘The Inauguration of Organized Political Warfare’, April 30, 1948, History and Public Policy Program Digital Archive. https://digitalarchive.wilsoncenter.org/document/114320. 6 H. Gregory, sound recording 12 May 1981, Sig Mickelson papers, Box 22, Stanford University-Hoover Institution Archives. 4

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de Carmem Pereira, corroboram a versão de Gregory Thomas. As contratações iniciais efetuadas em Portugal por Gregory Thomas foram, de um motorista e de uma secretária. Assim para o lugar de motorista, contratou um taxista da praça de Lisboa que fazia serviço junto ao Hotel Avis, onde se instalar. Para o lugar de secretária contratou Carmem Pereira, afilhada de Ricardo Espirito Santo. Ambos seriam os dois primeiros funcionários da futura RARET.7 A opção por contactar diretamente com Salazar mostrou-se acertada, uma vez que, foi o próprio Presidente do Concelho quem contactou a EN (Emissora Nacional), na pessoa do seu diretor Eng. Manuel Bivar, para o informar das intenções dos EUA e aferir das capacidades técnicas nacionais para aceder aos intentos norte-americanos. Conforme Bivar relatou posteriormente a Sig Mickelson, as intenções dos EUA enquadravam-se naquilo que tinha sido a atuação portuguesa durante a Guerra Civil de Espanha (1936/39) e o apoio dos meios de comunicação nacionais, nomeadamente da EN e do Radio Club Português ao General Franco. Porém, os norte-americanos pretendiam realizar uma operação em larga escala e por um período de tempo alargado, entre cinco a dez anos, de acordo com Manuel Bivar.8 O processo negocial entre o representante do NCFE e as autoridades portuguesas decorreu de Janeiro a Abril de 1951. Durante este período Gregory Thomas encontrou-se diversas vezes com Salazar em São Bento, bem como com outros membros

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Magos do governo, diretamente ligados ao processo de licenciamento. Em simultâneo Gregory Thomas alugou um piso nas instalações da Standard Elétrica, junto à Avenida de India em Lisboa, local do primeiro escritório da RARET em Portugal e onde se iniciaram as primeiras entrevistas para a contratação de pessoal. A 5 de Março de 1951 apresentaram-se as primeiras propostas de antenas, a 5 de Abril foram entregues os planos e desenhos finais dos emissores. Por fim, em Abril, conforme publicação do Diário do Governo III Série Nº 91 de 20 de Abril 1951 é tornado pública a constituição da Sociedade Anónima de Rádio Retransmissão S.A.R.L, ou seja, da RARET. O contrato e a licença de concessão tinham validade de dez anos, prazo tido como suficiente para libertar do jugo soviético os países da Cortina de Ferro, conforme referem Manuel Bivar e Robert E. Lang. Findo o contrato todas as instalações e equipamentos da RARET revertiam para o Estado português. 9 Ainda com o processo negocial para atribuição da licença em curso, Gregory Thomas, desenvolve junto do seu círculo de contactos esforços no sentido de encontrarem um terreno com a dimensão necessária para construir o centro emissor e todos os serviços técnicos e de apoio. A escolha recaiu sobre uma propriedade do Conde de Monte Real, a Herdade de Nossa Senhora de Glória, situada na Glória do Ribatejo, concelho de Salvaterra de Magos. O terreno reunia as condições desejadas, com uma área total de 184 hectares, permitia a construção de um grande centro emissor e margem

Manuel Bivar, sound recording 30 May 1981, Sig Mickelson papers, Box 22, Stanford University-Hoover Institution. Manuel Bivar, sound recording 30 May 1981, Sig Mickelson papers, Box 22, Stanford University-Hoover Institution.

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para ampliações futuras, como veio a verificar-se nas décadas seguintes. Distando cerca de 80 km de Lisboa, era isolado o suficiente o que conferia a descrição e o recato necessários, condições tidas como importantes pelos responsáveis da RFE, sendo ao mesmo tempo plano e sem obstáculos naturais, que impedissem a propagação das ondas de rádio. A pouca distância das principais vias de comunicação terrestres, aéreas e marítimas foi outro fator tido em conta para a instalação da RARET na Glória do Ribatejo.10 Porém, a lei portuguesa em vigor - Lei nº 1.994 de 13 de Abril de 1943 - inviabilizava a constituição de sociedades comerciais, operando em Portugal ou nas colónias, cujos capitais fossem totalmente ou maioritariamente estrangeiros. Assim a maioria do capital de acordo com a lei deveria observar a proporção de 60/40, cabendo aos sócios portugueses a maioria e o restante aos sócios americanos. O conselho de administração, a mesa da assembleia geral e o conselho fiscal, refletiam essa proporcionalidade, sendo constituídos por figuras ligadas ao regime do Estado Novo. Ao nível de diretores e quadros técnicos o recrutamento recaiu entre funcionários da EN, da DSR, do IST e da Marinha. Destaque para a contratação do Eng. Manuel Bivar e do Eng. Henrique Leotte provenientes da EN, mas também para um grupo de sete jovens engenheiros do IST onde se incluem Horácio Neto e Aleixo Fernandes11.

O quadro de pessoal da RARET em Portugal em 1951 contava com duzentos e quatro funcionários, sendo oito estrangeiros. O pessoal não especializado foi recrutado entre a população da Glória, o que permitiu uma alteração significativa das condições socioeconómicas até ai experimentadas por essa população com consequências futuras. O engenho e a arte da engenharia portuguesa foram postas ao serviço das finalidades prosseguidas e consignadas pelo NCFE, estabelecendo uma parceria apreciada e louvada pelos norte-americanos, conforme atestou o Presidente da RFE John Richardson Jr. durante a visita às instalações em 1961. A presidência da RARET coube ao General Peixoto e Cunha, antigo governador militar de Lisboa, os restantes membros portugueses seriam: Joaquim Leitão; António de Certima; António Quadros Ferro; Tomás Pinto Basto e Pedro Brito e Cunha. Os interesses americanos eram representados por H. Gregory Thomas como vice-presidente e os vogais Spencer Phenix (Finanças) e George Caesar (Engenharia). A gestão corrente da RARET seguiu o mesmo modelo proporcional da administração e era assegurada por portugueses e americanos. Pela parte portuguesa o Eng. Manuel Bivar, Eng. Henrique Leotte e João Villa Franca eram os responsáveis pela gestão da sede em Lisboa e dos retransmissores da Glória e Maxoqueira. Os americanos Henry Lolliot e W. L. Cipperly ficaram responsáveis das transmissões e

Thomas, H. Gregory, sound recording 12 May 1981, Sig Mickelson papers, Box 22, Stanford University-Hoover Institution Archives & Pinto Basto, Tomas, sound recording on 1 June 1981, Portuguese industrialist, long time chairman of RARET, Sig Mickelson papers, Stanford University-Hoover Institution Archives. 11 Entrevista realizada pelo autor ao Eng. Aleixo Fernandes. Gravação captada em Lisboa a 13/12/2017. 10

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dos estúdios de Lisboa. Esta divisão proporcional ao nível do pessoal manter-se-á constante ao longo dos quarenta e cinco anos de permanência da RFE em Portugal. A urgência sentida pelo NCFE/RFE em iniciar as transmissões a partir da Glória obrigou à deslocação por estrada, desde a Alemanha de um emissor móvel. O posto emissor móvel foi batizado pelos funcionários da RARET com o nome de “Bárbara”.

Magos Ao mesmo tempo iniciaram-se as construções dos vários edifícios do complexo da RARET, tanto na Glória (posto emissor) como na Maxoqueira (posto recetor), ficando a primeira fase concluída em Fevereiro de 1952. Nesta fase inicial instalaram-se quatro emissores de ondas curtas (General Electrics) de 50 kW de potência cada. O emissor móvel “Bárbara” emitiu de meados de 1951 até Fevereiro de 1952 e tinha uma potência de 7 ½ kW.

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Fig. 4 - Perspectiva da RARET - década de 60

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Fig. 5 - Perspectiva da RARET - década de 80

A primeira retransmissão a partir da Glória ocorreu a 4 de Julho de 1951. Uma data duplamente simbólica, uma vez que é o Dia da Independência dos EUA e por outro lado constituiu-se como um marco, após a emissão inaugural de 4 de Julho de 1950

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efetuada a partir da Alemanha. Portugal inaugurou deste modo o seu contributo para a estratégia de “winning hearts and minds” a qual a presidência Eisenhower12 elevou a política de estado a partir de 1953.

GADDIS, John Lewis, A Guerra Fria, Lisboa, Edições 70, 2005.

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A RARET e a Glória do Ribatejo - 70 anos da Primeira Retransmissão 4 de julho de 1951

A 11 de Novembro de 1952 conclui-se a segunda fase de ampliação dando-se por concluído o centro emissor da Glória agora em pleno funcionamento. A ocasião foi celebrada e presidida pelo Ministro das Comunicações General Gomes de Araújo, em conjunto com todos os responsáveis da RARET e representantes do NCFE/REF. Na ocasião foi descerrado um padrão alusivo à cooperação luso-americana, onde podia ler-se:13 “Grande número de países europeus, ameaçados na sua vida e liberdade, contam desde agora com o auxílio dos Estados Unidos e uns com o auxílio dos outros para a defesa do seu património de divulgação. Pareceu difícil em tais circunstâncias estarmos ausentes.” Salazar

“Esta ligação vital na rede de liberdade da Rádio Europa Livre, construída pelo Comitê Nacional para uma Europa Livre, através da generosidade do Povo dos Estados Unidos da América e com o entendimento e o apoio do Governo de Portugal, é dedicada, perante Deus, ao serviço da verdade. Assim possa a verdade prevalecer”. National Committee for a Free Europe Fonte: O padrão continha duas dedicatórias alusivas à aliança estabelecida entre, as autoridades portuguesas e o povo dos Estados Unidos da América, baseado no entendimento com o NCFE.

O Éter Português ao Serviço da América A utilização dos meios de radiodifusão para efeitos de propaganda era uma prática conhecida das autoridades portuguesas. Amplamente praticada durante a Guerra Civil de Espanha (1936-39) no apoio fornecido à Junta de Defesa Nacional sediada na cidade de Burgos e ao combate, sem tréguas, declarado à Republica e ao governo de Madrid. Disso mesmo deu conta Alberto Pena Rodrigues ao descrever a utilização do RCP e da EN durante o conflito espanhol.14

As intenções norte-americanas visavam uma utilização idêntica, porém numa escala sem precedentes e por um período temporal substancialmente maior. De acordo com Gregory Thomas as reuniões mantidas em São Bento com Oliveira Salazar, permitiram estabelecer contactos diretos com elementos chave que se revelaram importantes para a instalação e manutenção da RFE em Portugal. Dois desses contactos por indicação direta de Salazar foram, Manuel Bivar e Tomas Pinto Basto15.

Manuel Bivar, sound recording 30 May 1981, Sig Mickelson papers, Box 22, Stanford University- Hoover Institution Archives PENA RODRÍGUEZ, Alberto, O Que Parece É - Salazar, Franco e a propaganda contra a Espanha democrática, Lisboa, Tinta-da-china, 2009, pp-73 15 H. Gregory, sound recording 12 May 1981, Sig Mickelson papers, Box 22, Stanford University-Hoover Institution Archives. 13 14

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Magos Ao expor os objetivos da RFE a Bivar16, Gregory Thomas foi confrontado com a experiência portuguesa, descrita anterioriormente, durante o conflito espanhol e o modo de operar dos portugueses no apoio aos revoltosos espanhóis. Já a utilização da EN enquanto órgão de radiodifusão oficial, revestia-se de uma utilização mais cautelosa e discreta, mas não menos engajada com os objetivos da Junta de Defesa Nacional liderada pelo general Francisco Franco. Manuel Bivar estava pois ciente das intenções americanas e dos cuidados que estes tinham face à utilização da Voice of America na campanha anticomunista em curso.

Por outro lado, Tomas Pinto Basto figura ligada aos interesses ingleses em Portugal, parece ter sido indicado para contrabalançar os receios de Oliveira Salazar, face à predominância americana, ao mesmo tempo que possibilitava a Salazar manter-se ao corrente da operação através de pessoa da sua confiança17. O certo é que os quadros diretivos da RARET foram todos ocupados por figuras gratas do regime. O governo através do Ministerio das Comunicações indicava um representante, em regra um oficial do exército, sendo esta função remunerada. O primeiro delegado nomeado pelo governo foi o capitão Reymão Nogueira, o qual manteve-se no cargo até meados dos anos sessenta

A inserção de Portugal na esfera de influência dos EUA no pós-II GM

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A localização geoestratégica de Portugal foi aproveitada pelos americanos no contexto da Guerra-Fria em diversas dimensões, a radiodifusão foi mais uma dessas dimensões. Segundo Severiano Teixeira a posição neutral de Portugal durante a II GM, contribuiu para que fosse colocado à margem dos trabalhos diplomáticos de reorganização do novo sistema internacional.18 A tradicional desconfiança de Salazar face à crescente hegemonia dos EUA no hemisfério ocidental, tida como uma ameaça, precisamente porque diminuiria a capacidade de influência europeia no sistema

internacional. Associada à ideia de reconstrução europeia, assente nas possessões ultramarinas, limitavam a capacidade de entendimento entre Portugal e os EUA. A mudança ao nível da política externa portuguesa ocorreria a partir do Acordo das Lajes em 1948, estender-se-ia através da adesão ao Plano Marshall e confirmar-se-ia com a adesão à OTAN em 1949.19 As relações diplomáticas e de política externa, estabelecidas com os EUA, permitiram ao governo português realizar uma transição segura, entre as filiações autoritárias, anteriores à guerra para o convívio com os regimes democráticos

Bivar, Manuel, sound recording 30 May 1981, Sig Mickelson papers, Box 22, Stanford University-Hoover Institution Archives. Pinto Basto, Tomas, sound recording on 1 June 1981, Portuguese industrialist, long time chairman of RARET, Sig Mickelson papers, Box 22, Stanford University-Hoover Institution Archives. 18 SEVERIANO TEIXEIRA, Nuno, “A Política Externa Portuguesa 1890-1986” in COSTA PINTO, António (coord.), Portugal Contemporâneo, Madrid, Ediciones Sequitur, 2000, pp - 81. 19 Ibidem, pp-82. 16 17

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do pós-guerra. Por outro lado, estudos mais recentes como os de Vasco Ribeiro abordam a ligação do regime português com a empresa George Peabody and Associate de Nova Iorque refletindo, “as preocupações ao nível da imagem de Portugal junto da opinião pública norte-americana”20. A reportagem da revista Times sobre Salazar e a alegoria em torno da maçã podre, retratando Portugal como país falhado onde abunda a miséria, a corrupção e o clientelismo causam choque junto da elite governante21. De igual modo, as aparições da fadista Amália Rodrigues na televisão americana, ou a produção cinematográfica versando os acontecimentos de Fátima em 1917, inserem-se

no mesmo modelo de divulgação de Portugal nos EUA, promovido pela empresa de relações públicas americana. A disponibilização do “éter português” ao serviço da luta anticomunista encabeçada pelos EUA fizeram de Portugal um aliado importante, contudo e como refere Daniel Marcos as “relações luso-americanas entre 1949-1961 não evoluíram para patamar mais avançado do que aquele que derivava da ligação entre, Portugal e os EUA, no âmbito da NATO” 22, ainda segundo este autor tal fato ficou a dever-se à incapacidade de harmonização das posições luso-americanas na Europa e no Terceiro Mundo.23

RARET: que futuro após o fim da concessão A longo da década de cinquenta o investimento do NCFE em Portugal aumentou sempre, reflexo da importância do centro emissor da Glória para a política da RFE. Disso mesmo deu conta Gregory Thomas durante a renegociação da concessão em 1963, frisando que o NCFE tinha gasto cerca de doze milhões de dólares pagos ao estado português e que naquele momento empregava cerca de quatrocentas pessoas, referindo-se aos trabalhadores portugueses.24

A programação e elaboração de conteúdos da RFE estiveram sempre baseadas em Nova Iorque e Munique. Porém, as condições técnicas obrigavam à existência de estúdios de gravação e de tradutores, sediados em Lisboa, oriundos dos países alvo da programação (Polónia, Checoslováquia, Bulgária, Hungria e Roménia). Nos anos iniciais de retransmissão, houve momentos em que a realidade foi mais veloz do que a produção informativa: a crise de Berlim em 1953 ou a revolta húngara em 1956

RIBEIRO, Vasco, A empresa de relações públicas norte-americana contratada por Salazar (1951-1962) - A estreia da ditadura no modelo assimétrico bidirecional no período pós-António Ferro. UPFL, Porto, 2018, pp.157. 21 Ibidem, pp. 157. 22 MARCOS, Daniel, Uma Aliança Circunstancial: Portugal e os Estados Unidos nos Anos 50, Lisboa, ISCTE-IUL, 2011, pp.1.Tese de Doutoramento. 23 Ibidem, pp. 2. 24 H. Gregory, sound recording 12 May 1981, Sig Mickelson papers, Box 22, Stanford University-Hoover Institution Archives. 20

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constituem-se como exemplo disso mesmo, razão pela qual foi necessário efetuar acertos de última hora na produção informativa enviada a partir da Alemanha. A presença de nacionais desses países justificava-se ainda pela necessidade de identificar corretamente as emissões da RFE a retransmitir pelo centro emissor da Glória e impedir a retransmissão proveniente de outras estações captadas pelo posto da Maxoqueira A fiscalização das autoridades portuguesas exercia-se sobre as questões técnicas e administrativas da RARET, estava a cargo dos CTT e da DSR. Ausente de qualquer fiscalização por parte das autoridades portuguesas estavam os programas e seus conteúdos. Disso mesmo dá conta um relatório elaborado pelos CTT, a 17 de Abril de 1952 e enviado ao Ministro das Comunicações Gomes de Araújo25. As ampliações efetuadas às instalações do centro retransmissor foram sempre acompanhadas pelas autoridades portuguesas. Um relatório do Ministro das Comunicações enviado ao Correio-Mor a 13 de Julho de 1955 dá conta da fiscalização e autorização das autoridades portuguesas inerente aos pedidos de aumento de potência. O contrato de concessão inicial consagrava o retorno das instalações e equipamentos a favor do Estado, a preço de custo uma vez finda a concessão. Pelo que é compreensível a atenção das autoridades portuguesas, tendo em consideração os usos futuros das instalações da RARET. Novamente a 10 de Janeiro 1956 em correspondência, entre

o Ministério das Comunicações e o Ministério da Presidência, surge a questão do alargamento desta vez do centro recetor na (Maxoqueira). No entanto o sobredimensionamento da RARET, face às necessidades de radiodifusão portuguesas preocupavam as entidades oficiais, na eventualidade da não renovação da licença, podendo estas reverter para a EN, os CTT ou para o Ministério da Defesa. A correspondência expedida ao longo da década de cinquenta, entre as entidades anteriormente mencionadas é reveladora disso mesmo.26 A existência dos emissores da RARET em Portugal não foi objeto de divulgação pública nos anos iniciais, pese embora não fosse um assunto secreto foi mantido no entanto de forma discreta. Contrariamente a esta postura as publicações do NCFE mencionam Portugal e as instalações da RARET, relevando o importante papel das facilidades concedidas à iniciativa norte-americana. Disso mesmo dá conta o boletim publicado pelo NCFE em 21 de Setembro de 1953, sobre a operação da RFE/RARET, onde podemos ver fotografias do emissor da Glória, descrições do trabalho realizado a partir de Portugal e palavras elogiosas ao contributo português para a organização. Na segunda página do boletim vemos uma fotografia das dezasseis torres do centro emissor da Glória, tendo ao lado uma mensagem do Presidente Eisenhower em prol da RFE e incentivando o público norte-americano a aderir à Cruzada pela Liberdade.27

H. Gregory, sound recording 12 May 1981, Sig Mickelson papers, Box 22, Stanford University-Hoover Institution Archives. Arquivo Histórico da FCP - Administração Geral CTT - Secretaria Expediente Geral, Pasta 1, Processo 4999. Carta enviada ao Ministro Comunicações “RARET - Fiscalização “pela AGCTT em 17 Abril 1952. 26 Arquivo Histórico da FCP - Administração Geral CTT - Secretaria Expediente Geral, Pasta 1, Processo 4999. Carta enviada pelo Chefe Gabinete do Ministro da Presidência ao Ministro da Defesa Nacional “Futura utilização da RARET” 13 Janeiro de 1956. 27 Radio Free Europe, 1953, Radio Free Europe/Radio Liberty (RFE/RL) corporate records, Stanford University-Hoover Institution Archives. 24 25

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Fig. 6 - Mapa dos países de leste onde chegavam as ondas radiofónicas da RARET

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Magos Numa publicação do NCFE intitulada “East Europe - Challenge and Opportunity” de 1961, fornece-se o balanço da atividade durante a primeira década de atividade da RFE, sendo também anunciadas as intenções para a segunda década. Novamente é realçado o contributo de Portugal de forma aberta com indicações e fotografias do emissor da Glória. Foi ainda apresentado o West European Advisory Committee, na qualidade de órgão consultivo do RFE para temas de política europeia. Faziam parte deste organismo, políticos, intelectuais e académicos europeus, com destaque para dois portugueses: o Prof. Paulo Cunha e Prof. João da Costa Leite (Lumbrales), ministro dos estrangeiros e ministro da justiça respetivamente de governos de Oliveira Salazar.28 Mais tarde juntar-se-ia ao WEAC o Almirante Reboredo e Silva. Outro ponto a realçar é o crescente aumento do número de horas de emissão, disso mesmo dá conta o quadro seguinte elaborado com recurso aos relatórios de contas da RARET para o período de 1951 a 1963:

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Fonte: Arquivo Oliveira Salazar, AOS, CM-3, Cx. 59, capilha 3. Atividade da RARET -Sociedade Anónima de Retransmissão.

A dimensão local é outra vertente a realçar. A Glória do Ribatejo e as suas gentes beneficiaram da presença americana ao longo das quatros décadas e meia de permanência da RARET. No conto neorrealista “Glória - Uma Aldeia do Ribatejo” de Alves Redol, a aldeia e as suas gentes são caracterizadas como vivendo entre um arcaísmo secular e uma modernidade ausente e adiada. A vinda dos americanos

para a Glória permitiu a entrada da modernidade numa terra adormecida. Os trabalhadores não qualificados foram recrutados entre os habitantes da Glória, inicialmente contratados para construírem o centro emissor, após o que muitos integraram o quadro de pessoal. Contribuindo desse modo para um aumento do rendimento disponível das famílias, acesso

East Europe - Challenge and Opportunity, 1961, Radio Free Europe/Radio Liberty (RFE/RL) corporate records, Stanford University-Hoover Institution Archives. 28

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a cuidados médicos e outras regalias ausentes do dia-a-dia do trabalhador rural. Sem acesso à rede elétrica, os glorianos vão poder dispor de luz elétrica e dos confortos da vida moderna a partir do momento, em que a Hidro Elétrica do Alto Alentejo (HEAA), construiu o ramal elétrico de abastecimento do centro emissor. O custo total foi de 8.000 contos totalmente suportado pela RARET. De igual modo a Junta Autónoma de Estradas realizou as obras necessárias nas vias de acesso, tendo a RARET contribuído com 40% do total. Os responsáveis da sociedade decidiram ainda intervir socialmente. Esta prática foi uma constante ao longo das quatro décadas seguintes, destacando-se em meados dos anos sessenta a construção da Escola Industrial da RARET, de um Centro da Telescola e uma clinica médica com capacidade para assistir na maternidade a população feminina da Glória.

Magos Outra consequência do início das emissões a partir de Portugal e revelada pelas autoridades polacas foi a mobilização dos países socialistas contra as emissões de rádio ocidentais. O decreto do Conselho de Ministro da URSS de 24 Outubro de 1951 ordenou ao Ministério das Comunicações da URSS, que presta-se todo o apoio possível às autoridades da Polónia, a fim de contrariar as emissões das rádios ocidentais dirigidas ao seu território. Destinando para o efeito, doze emissores de onda curta, emitindo nas mesmas frequências utilizadas pela RFE, criando interferência e dificultando a escuta das emissões. Ao mesmo tempo disponibiliza equipas técnicas soviéticas, para em colaboração com as autoridades polacas e dos demais países socialista, elaborarem um “plano de defesa contra a propaganda hostil”.29

A contribuição financeira da RARET para ecónomia portuguesa Na rubrica dos proveitos tidos com a RARET, para além das rendas pagas ao estado português, incluem-se outros proveitos diretamente auferidos por empresas privadas, como a HEAA mencionada no capítulo anterior. Esta companhia produtora de eletricidade tinha na RARET um grande cliente, conforme demonstra o quadro seguinte: Fonte: Arquivo Oliveira Salazar, AOS, CM-3, Cx. 59, capilha 3. Atividade da RARET -Sociedade Anónima de Retransmissão. “USSR Council of Ministers Decree Instituting Jamming of Anti-Polish Propaganda via Radio on Polish Territory,” October 24, 1951, History and Public Policy Program Digital Archive, State Archive of the Russian Federation, GARF, F. 5446, Op. 59, D. 1724, p. 12. Translated by Gary Goldberg. http://digitalarchive.wilsoncenter.org/document/121543. 29

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Magos O custo da energia elétrica será um tema recorrente de queixa por parte da RARET, por comparação com os preços praticados a outros grandes consumidores nacionais, em média inferior. Em exposição ao Ministro da Economia efetuada em 8 de Novembro de 1955 pelo presidente da administração da RARET, o General Peixoto e Cunha, foi abordado o tema do preço da energia elétrica. Informava este responsável sobre as verbas despendidas pela RARET entre 1951 e 1954 nos seguintes moldes: a) Equipamento, instalações, terrenos e obras acessórias: 133.000.000$000; b) Despesas de exploração e energia:..……………….....…...108.000.000$00; c) Total: ………………………………………….............…….…...241.000.000$00. Acresce que no fim da concessão e de acordo com o contrato, todo o equipamento e instalações ficariam a pertencer ao Estado português. A RARET empregava em 1955 um total de 504 funcionários: 475 portugueses; 21 nacionais da Europa Central e 8 americanos. Informa ainda o ministro da massa salarial e encargos sociais, pagos aos funcionários no período entre 1951 e 1954: a) 1951 (6 meses) …………………………………………….3.823.553$00 b) 1952……………………………………………………….....13.512.790$00 c) 1953………………………………………………....…….….17.951.755$00 d) 1954………………………………....……………………….20.086.061$00

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A argumentação apresentada pelo general era reforçada pela especificidade do trabalho desenvolvido pela RARET, em prol da defesa do Ocidente. A luta anticomunista deveria ser levada em conta pelos responsáveis governamentais portugueses, na qual também estavam envolvidos, e nesse sentido proporcionar melhores condições, ou seja, custos mais baixos.30 Em reforço da exposição do General Peixoto e Cunha foi remetido outro memorando a 27 Junho de 1956, desta vez endereçado pelo delegado do governo na RARET, o major Reymão Nogueira, ao Chefe de Gabinete do Ministro das Comunicações.

Dava novamente conta dos elevados custos suportados pela RARET com a energia elétrica. Os argumentos resumiam-se a três pontos: a) O contexto de urgência sentido pelo NCFE em dispor de instalações em Portugal no ano de 1951 e por esse fato ter aceitado as condições contratuais da HEAA; b) A aquisição de novos e mais potentes emissores, na segunda metade dos anos cinquenta, elevou ainda mais o consumo de energia elétrica, fazendo da RARET um dos grandes consumidores nacionais, a par com empresas como a Cimentos de Leiria, CUF, Cimentos Tejo ou Secil;

Exposição do General Peixoto e Cunha - Presidente Conselho Administração da RARET ao Ministro da Economia: preço da energia paga pela RARET, AOS/CO/CM-8, 8/11/1955. 30

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c) As condições especiais do exercício da atividade da RARET e o seu papel na defesa do Ocidente, contra a ameaça comunista e por fim o modelo de financiamento, baseado em subscrições públicas realizadas nos EUA, bem como a natureza sem fins lucrativos perseguida pela RARET.31 As condições solicitadas foram atempadamente aceites pela HEAA, mediante pressão governativa, podendo a RARET dispor de preçário elétrico mais favorável dai em diante. Outra perspectiva interessante pode ser a que é fornecida pelo advogado da RARET, Tito Arantes, na correspondência que mantém Oliveira Salazar. Em carta de 26 de Abril de 1955 informa Salazar da presença em Portugal de Gregory Thomas, a fim de participar da assembleia geral anual da RARET nos seguintes moldes: “aquele americano que fundou a RARET, da qual sou advogado, como V. Exª deve lembrar-se, pois foi devido a uma indicação de V. Exª que tal sucedeu”. A carta destinava-se a solicitar a Salazar a concessão de audiência para apresentação cumprimentos ao Presidente do Conselho, prática corrente nas deslocações a Lisboa e anteriormente assegurada por Ricardo Espirito Santo junto de Salazar. Termina concluindo com a seguinte apreciação que era graças a Gregory Thomas “que os americanos têm gasto suculentos dólares em Portugal”.32 Novamente em Abril de 1957 outra carta solicitando audiência a Salazar para receber Gregory Thomas. Tito Arantes aproveita para informar a Salazar

Magos sobre as verbas despendidas pelos americanos em Portugal, bem como sobre os vencimentos dos responsáveis portugueses da RARET: até 31/12/1956 os gastos americanos com a RARET foram na ordem dos 327.333 contos, equivalente a 11.445.240 USD, destes 7.303.000USD foram gastos diretamente em Portugal; dos 4.141.000 USD restantes e gastos na América, vieram para Portugal 94.883 contos, que foram incorporados no ativo da RARET e mais tarde reverteram para o Estado.33 Até meados dos anos sessenta, Tito Arantes solicitou audiências ao Presidente do Conselho para receber Gregory Thomas, por ocasião da sua vinda a Portugal para participar na assembleia-geral da RARET. Anualmente a AG da RARET apresentava os relatórios de contas da sociedade, onde constava toda a atividade desenvolvida. Neles encontramos informação sobre a expansão das atividades de radiodifusão: aumento do número de emissores e sua potência; informação financeira sobre custos da operação em Portugal; quem foram os principais quadros e responsáveis entre 1951 e 1967; a contratação de pessoal e remunerações; o apoio social prestado à população da Glória do Ribatejo. Até ao ano de 1967 Salazar recebeu todos os Relatórios e Contas da RARET, enviados pelo Presidente do CA, General Peixoto e Cunha e atualmente depositados no Arquivo Oliveira Salazar no Torre do Tombo. Durante a primeira década de atividade a RARET constitui-se como uma montra que espelhava bem os esforços desenvolvidos pelos EUA, no combate

Arquivo Oliveira Salazar - ANTT, RARET: Custo da Energia Elétrica, AOS/CO/CM-4 pp. 277- 281. Arquivo Oliveira Salazar - ANTT, Correspondência de Tito Arantes para Oliveira Salazar de 26/4/1955. PT/TT/AOS/E/0013/00020. AOS/CP-013, cx. 870 - pp. 172 a 173. 31 32

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anticomunista na Europa e do apoio das autoridades portuguesas nessa luta comum. Anualmente as instalações da Glória receberam visitas dos membros da Cruzada pela Liberdade em deslocação à Europa, bem como de militares estrangeiros em serviço na NATO.34 Do mesmo modo os engenheiros da RARET organizaram em conjunto com o Instituo Superior Técnico (IST), um ciclo regular de visitas de estudos, por norma no final do ano letivo, proporcionando aos alunos dos cursos de engenharia do IST deslocações às instalações da Glória para poderem ver in loco aquilo que aprendiam nas aulas. Alguns desses alunos posteriormente tornaram-se funcionários da RARET.35 A primeira década da RARET ficou ainda marcada pelo constante aumento da capacidade instala, ao nível da potência dos seus emissores, da duplicação de pessoal português contratado, ao mesmo tempo que os responsáveis norte-americanos atribuíam importância crescente às facilidades obtidas

em Portugal, caracterizando-as como a pedra angular para os objetivos dos EUA, no que respeitava ao combate anticomunista nos países da Cortina de Ferro. Nas palavras do presidente da RFE, John Richardson Jr, a RARET era “uma parte indispensável do conjunto das atividades da RFE” […] que “nunca teria sido possível se não fosse a confiança que os nossos colegas portugueses depositaram na causa comum”. Manifestando-se “orgulhoso da RARET” retoma a ideia de êxito da iniciativa protagonizada pelo FEC/RFE, para a qual contribuiu a feliz associação entre dois países - Portugal e os EUA termina fazendo votos que “esta associação perdure por muitos anos”.36 Contudo a década de sessenta traria novas ameaças e desafios, colocando em causa a associação entre as autoridades portuguesas e o Free Europe Committee, ameaçando assim a presença da RFE em Portugal e a manutenção dos emissores na Glória do Ribatejo/Maxoqueira.

Renegociação do Contrato: A angustia Americana 1961/63 A revolta húngara ocorrida em 1956 e a consequente invasão soviética desse país contrariaram as disposições inicialmente previstas, por parte dos responsáveis do FEC e do governo português. Outro acontecimento com potencial de conflito, entre os EUA e a URSS, ocorreu em Agosto de 1961, quando as autoridades da República Democrática da Alemanha ergueram a separação física na cidade de Berlim - o Muro de Berlim - materializando

a divisão entre oriente e ocidente. Tais acontecimentos reforçaram o papel e a necessidade de manter a RARET ao serviço da “guerra hertziana” em curso. A perceção das autoridades portuguesas sobre estes acontecimentos são tidos como uma oportunidade para exercer pressão, sobre os norte-americanos, no momento em que estes mais necessitam do apoio português para a manutenção dos emissores.

Entrevista realizada pelo autor ao Eng. Aleixo Fernandes. Gravação captada em Lisboa a 13/12/2017. Entrevista realizada pelo autor ao Eng. Filipe Ventura. Gravação captada na Glória do Ribatejo em 08/12/2017. 36 Arquivo Oliveira Salazar - AOS-ANTT Arquivo Salazar, CM-3, Cx. 59, capilha 3. Atividade da RARET - Sociedade Anónima de Rádioretransmissão. Memorando enviado ao Free Europe Committee em 1962 pelo Presidente da RFE John Richardson Jr. 34 35

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Os bastidores do processo negocial, entre os responsáveis do FEC/RFE, e as autoridades portuguesas, são revelados mediante um conjunto de quinze telegramas depositados no acervo da Open Society Archive junto da Central European University, os quais permitem conhecer os bastidores da negociação, entre portugueses e norte-americanos. O primeiro telegrama é de 19 de Junho de 1961 e o último de 21 de Maio de 1963. Todos os telegramas obtiveram à data classificação de segurança: oscilando esta de confidencial, a secreto e “eyes only”. Não foi possível encontrar documentação portuguesa para o mesmo período que espelha-se o pensamento das autoridades portuguesas durante as negociações. Porém, o mesmo pode ser encontrado de forma indireta, através dos comentários e afirmações proferidas pelos norte-americanos. Neste intervalo temporal os responsáveis do FEC/RFE oscilaram, entre a angústia inicial e o alívio final. Perante a certeza de um processo negocial aparentemente sem surpresas, mas que no essencial dependia de Oliveira Salazar, cuja mundividência diferia cada vez mais da dos norte-americanos, refletindo o afastamento crescente entre, os governos de Lisboa e Washington, durante a era Kennedy. A 19 de Julho de 1961 os responsáveis da FEC/RFE reunidos em Munique elaboram um ponto de situação, sobre as relações com o governo de Portugal e as previsões para a manutenção da RARET, as quais classificam de favoráveis. Apesar de não existir um

Magos decisão final sobre a renovação do contrato, cuja prazo termina em finais de 1961. Preocupados com os acontecimentos em Angola e o posicionamento crítico da ONU face a Portugal, demonstram total compreensão pelo posicionamento português, ao mesmo tempo que alertam para o sentir das autoridades portuguesas nesta matéria, sendo estas avessas às críticas e intromissões estrangeiras. Porém, a lealdade demonstrado ao nível da NATO e defesa da causa comum de combate ao comunismo, seriam argumentos suficientes para manter a parceria da RARET. Advertem porém, que a perda da RARET acarretaria a paragem de toda a operação da RFE, por isso favorecem um tratamento objetivo e factual de todo a informação diretamente relacionada com Portugal e especialmente com Angola, tema sobre o qual se deve excluir a difusão de notícias não oficiais ou desfavoráveis, assim como críticas ao regime e a Salazar.37 Em 30 de Agosto de 1961 em telegrama para Munique o presidente da RFE comunica que após permanência de três dias em Portugal, onde reuniu com administradores da RARET, Manuel Bivar e Tomás Pinto Basto, tudo parece bem encaminhado para a renovação contratual, opinião corroborada pelos portugueses. A comunicação com o Ministro das Comunicações vai no mesmo sentido, tendo sido fornecidos elementos contabilísticos e fiscais, sobre a operação em Portugal entre 1951 e 1957. Destacando nesta informação as somas despendida pelo FEC ($12,250,000), o volume da massa

MUN-85, July Crypto Message”, 19 July 1961. “[Electronic record]” HU OSA 298-1-2-43-2404; Free Europe Committee: President’s Office; Open Society Archives at Central European University, Budapest. http://hdl.handle.net/10891/osa:eb3e6454-98b0-4506-879e-5021301a83f0. Consulta em 03/01/2019. 37

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Magos salarial (18 milhões de escudos) e o universo de trabalhadores (450) como argumentos favoráveis à renovação.38 O planeamento orçamental para o ano de 1962 dá conta de um investimento em quatros novos emissores de 250 kW a instalar na Glória, totalizando ($1,750,000), prevendo-se ainda um investimento adicional na ampliação do parque de antenas, orçado em ($175,000), por forma a aumentar a potência e aproveitar as condições naturais de propagação

existentes. Em gastos com os vencimentosdos funcionários portugueses, orçamentou-se mais ($15,000) tendo em conta o aumento do custo de vida e as futuras negociações a ocorrer no final do ano. Ao nível dos equipamentos de comunicações e outros melhoramentos de equipamento, orçamentava-se ($40,000). No total o volume de investimentos na RARET orçava ($1,980,000) para o ano de 1962.39

A RARET no limbo: as tensões entre Salazar e Kennedy

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As perspectivas do FEC/RFE face à renovação da concessão eram otimistas, tendo em conta as conclusões dos vários responsáveis, portugueses e norte-americanos. No mesmo sentido apontava o orçamento para o ano de 1962 que previa investimentos avultados: aquisição de quatro novos emissores de 250 kW. A reunião de direção de 15 de Dezembro de 1961, onde seria debatida a questão da renegociação do contrato de concessão, trouxe a surpresa que ninguém esperava. Perante o conselho de administração, o delegado do governo e representante do Ministério da Comunicações, o Major Reymão Nogueira declarou o seguinte:

“Considerando os problemas pelos quais o governo deste país tem passado em consequência da controvérsia internacional contra ela levantada, por inimigos, e, infortunadamente, por amigos e aliados, e não tendo sido possível a Sua Excelência, o Ministro das Comunicações fornecer uma solução definitiva para a RARET, propõem-se uma extensão de seis meses ao contrato inicialmente assinado, entre o governo portugueses e a RARET.” 40 A reunião em causa antecedeu em quatro dias a operação militar da União Indiana (Operação Vijay) que pôs fim à soberania portuguesa sobre o Estado Português da India.

MUN-179, 30 August 1961. HU OSA 298-1-2-43-1771; [Electronic record] Free Europe Committee: President’s Office: Open Society Archives at Central European University, Budapest.http://hdl.handle.net/10891/osa:0657b216-b8d2-4997-8520-00646ef751dd. Consultado em 03/01/2019. 39 MUN-34, 6 October 1961. HU OSA 298-1-2-43-1980; [Electronic Records] FEC: President’s Office: OSA at Central European University, Budapest. http://hdl.handle.net/10891/osa:875c5175-62fb-42c7-a40d-4a7162e9afca. Consulta 03/01/2019. 40 MUN-75, 18 December 1961. HU OSA 298-1-2-43-2400; [Electronic Records] FEC: President’s Office: OSA at Central European University, Budapest.http://hdl.handle.net/10891/osa:b9eda108-38c9-48be-86a7-afe0b7226177. Consultado em 03/01/2019. 38

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A RARET e a Glória do Ribatejo - 70 anos da Primeira Retransmissão 4 de julho de 1951

Todos os membros do conselho de administração foram colhidos de surpresa, perante as declarações do delegado do governo. A informação do Major Reymão era de certa forma contraditória, na medida em que o administrador Gregory Thomas reunira-se dias antes com o Ministro Costa Leite e tinha recebido garantias de renovação do contrato. A prorrogação do prazo teria sido decidida entre o delegado do governo, Major Reimão e o Ministro das Comunicações General Gomes de Araújo, era a convicção dos norte-americanos. No entanto Gregory Thomas contava com a boa vontade e os esforços de Costa Leite, para junto de Salazar, obter uma revisão da decisão e o cabal esclarecimento do caso da RARET. Este responsável reflete no entanto, que a posição do governo português estaria de alguma forma influenciada pelo posicionamento do governo dos EUA, face à situação de Goa e que dela dependeria para o bom encaminhamento de todo o processo.41 Em novo telegrama de 19 de Dezembro de 1961, o administrador Henry Lolliot, comunica a Munique a nova oferta das autoridades portuguesas de extensão do prazo para dozes meses. De um dia para o outro, os responsáveis da FEC/RFE foram onfrontados com a possibilidade de terem de procurar uma localização alternativa, arriscando-se a interromper as emissões durante o período de maior

Magos tensão da Guerra-Fria. Entre os norte-americanos o sentimento é de desânimo e elevada preocupação. Entendem a posição portuguesa à luz do conflito político, entre Lisboa e Washington, mas temem pelo futuro das emissões. A oferta portuguesa de prorrogação por doze meses mantem-se em aberto e a 26 de Dezembro Lolliot requer a Munique instruções urgentes sobre a resposta a dar ao Ministro das Comunicações. Em Munique a preocupação é ganhar tempo, por isso aceitam a prorrogação por doze meses.42 A 28 de Dezembro os responsáveis da RARET reúnem com o Ministro Gomes Araújo, dando inicio às negociações de renovação do contrato, envoltos numa atmosfera amigável e num espirito de cooperação mútuo. Acrescenta-se ainda a informação que a prorrogação por doze meses terá sido sugerida por Salazar.43 Porém, na opinião do presidente da RFE, John Richardson Jr, o reatar de negociações em nada diminui o sentimento de angústia, ao qual acresce a incompreensão das motivações das autoridades portuguesas. Neste sentido informa a estrutura da RFE para procurar uma localização alternativa à Glória, ao mesmo tempo que retomam as renegociações. Várias alternativas são estudadas: Espanha; Ilhas Baleares; Irlanda; Sudoeste de França; Ilhas Canárias e como último recurso Porto Rico.

MUN-75, 18 December 1961. HU OSA 298-1-2-43-2400; [Electronic Records] President’s Office: FEC New York and RFE Munich; OSA at Central European University, Budapest. http://hdl.handle.net/10891/osa:b9eda108-38c9-48be-86a7-afe0b7226177. Consultado em 03/01/2019. 42 MUN-109, 26 December 1961. HU OSA 298-1-2-43-2437; [Electronic Records]: President’s Office: FEC New York and RFE Munich; OSA at Central European University, Budapest. http://hdl.handle.net/10891/osa:649f7aed-399a-43ef-8630-3adc10e9603d. Consultado em 03/01/2019. 43 MUN-113, 28 December 1961. HU OSA 298-1-2-43-2441; [Electronic Records] President’s Office: FEC New York and RFE Munich; OSA at Central European University, Budapest. http://hdl.handle.net/10891/osa:109e3b76-2087-4125-8d67-084602ac86dd. Consultado em 03/01/2019. 41

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Consideram ainda as localizações de Marrocos, Tanger e Argélia, contudo demasiados instáveis para os fins em vista. O plano de expansão da Glória previa a compra de quatro novos emissores de 250 kW e o aumento das cortinas de antenas, todos estes equipamentos recebem prioridade de aquisição, uma vez que no caso de encerramento da Glória, teriam de dispor destes equipamentos de imediato para instalar na nova localização. A aquisição e instalação de novo retransmissor em espaço europeu é estimada em cerca de $10,000,000 e caso a opção fosse Porto Rico, ou outra localização no hemisfério ocidental, mas fora da Europa seria o dobro. Finalmente os responsáveis da RFE reconhecem-se a incapacidade em prosseguir-se com a operação suportada unicamente nos emissores localizados em solo alemão.44 As retransmissões a partir da Glória prosseguem sem alterações ou quebras, o número de horas anual mantêm-se constante em torno das 7.400, ou seja, 308 dias de emissão por ano atingem os países da Cortina de Ferro. As negociações em Lisboa, entre os responsáveis da RARET e as autoridades portuguesas, prosseguem num clima amigável. Em 9 de Junho de 1962 Gregory Thomas informa John Richardson Jr que o tão desejado acordo de longo prazo encontra-se em suspenso, muito por conta da postura e a atitudes hostis, dirigidas pelo governo norte-americano ao governo português. Porém, encontra-se

convencido que a operação da RARET não será prejudicada e rapidamente haverá um acordo de cavalheiros que permitirá prosseguir o plano de expansão dos emissores da Glória, não sendo aconselhável no momento presente insistir na assinatura de contrato de longa duração. Este foi o resumo da conversa de Gregory Tomas com Oliveira Salazar e reportada aos responsáveis da RFE em Nova Iorque e Munique.45 Em Junho de 1962 chega a Lisboa o Secretário de Estado dos EUA Dean Rusk, em representação do Presidente Kennedy. A visita tinha como objetivo discutir a questão colonial portuguesa e os apoios dos EUA ao regime portuguese, bem como o acordo militar das Lajes. A visita foi acompanhada com natural interesse pelos responsáveis do FEC/REF, para além do acordo das Lajes, também eles tinham o acordo da RARET em aberto.46

MUN-118, 29 December 1961. HU OSA 298-1-2-43-2446; [Electronic Records]: FEC New York and RFE Munich; OSA at Central European University, Budapest. http://hdl.handle.net/10891/osa:3eb133bd-33c5-4601-8d5c-7b3c6d388918. Consultado em 03/01/2019. 45 MUN-88, 9 June 1962. HU OSA 298-1-2-44-0888; [Electronic Records]: FEC New York and RFE Munich; OSA at Central European University, Budapest. http://hdl.handle.net/10891/osa:07821998-6446-493a-aca5-6a03b94526a3. Consultado em 03/01/2019. 46 MUN-94, 19 July 1962. HU OSA 298-1-2-44-1153; [Electronic Records]; FEC New York and RFE Munich; OSA at Central European University, Budapest. http://hdl.handle.net/10891/osa:bbe56040-b40d-4f8d-ad93-993869c9f94d. Consultado em 14/01/2019. 44

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Do acordo de cavalheiros à renovação da licença de concessão da RARET A intervenção de Gregory Thomas no processo de renegociação possibilitou o desbloquear de uma situação complexa, fruto da nova realidade diplomática e de política externa, vivida entre ambos os governos de Portugal e dos EUA. Os termos do acordo de cavalheiros, garantiam no imediato a manutenção temporária das emissões, ao mesmo tempo que abriram espaço negocial para encontrar a prazo novas condições em moldes mais satisfatórios e definitivos, sem colocar em causa a principal missão da RFE/RARET num dos momentos de maior tensão da Guerra-Fria. Para tal poderá ter contribuído o clima de entendimento e cordialidade, desenvolvido e cultivado entre, Salazar e Gregory Thomas, ao longo da década anterior, no sentido de desbloquear uma situação potencialmente ameaçadora para a atividade da RARET e para aliança anticomunista entre, Portugal e os EUA.47 A aparente tranquilidade apenas garante a manutenção das instalações e das emissões nos termos do acordo de 1951. Ao longo do ano de 1962 os responsáveis do FEC continuam a elaborar estudos sobre uma nova localização, caso o acordo de longo prazo não se materialize. As renegociações conhecem novos desenvolvimentos a partir de Janeiro de 1963. Após duas extensões de prazo, os responsáveis do FEC enviam ao cuidado das autoridades portuguesas uma proposta de renovação contratual. Nesta proposta

ficou bem patente a necessidade expressa pelos responsáveis do FEC, em aumentar e expandir as instalações da Glória. Novos emissores e mais antenas serão adquiridos, após a renovação do acordo.48 Os contactos com autoridades portuguesas foram frutuosos, em telegrama de 9 de Abril de 1963 um quadro do FEC expressa o entendimento sobre o processo dizendo: “não estou muito preocupado com as negociações, uma vez que todos os responsáveis e pessoas envolvidas em Portugal conhecem bem as nossas intenções”.49 Nos primeiros meses de 1963, as partes estabelecem o entendimento necessário à renovação da concessão e dão passos firmes para assinar novo acordo por dez anos. Finalmente em telegrama de 30 de Abril de 1963 John Richardson Jr. comunica a assinatura de novo acordo, entre os responsáveis do FEC e as autoridades portuguesas, concedendo à RARET a tão desejada licença de concessão por mais dez anos. O novo acordo mantém a entrega dos terrenos e equipamentos ao governo português finda a concessão, estipula os novos valores da renda anual a pagar e permite a tão desejada expansão do centro emissor da Glória. Porém, o fim da angústia americana só terá sido possível, porque reflete os condicionalismos ao nível da política externa portuguesa no início da década de sessenta. O governo português utilizou a posição geoestratégica de Portugal, tanto no

H. Gregory, sound recording 12 May 1981, Sig Mickelson papers, Box 22, Stanford University-Hoover Institution Archives. NYC-76, 17 January 1963. HU OSA 298-1-2-36-0078; [Electronic Records]: FEC New York and RFE Munich; OSA at Central European University, Budapest. http://hdl.handle.net/10891/osa:48cf6864-a131-42b6-9f33-3e6f16cce206. Consultado em 14/01/2019. 49 MUN-87, 10 April 1963. HU OSA 298-1-2-45-0110; [Electronic Records]; FEC New York and RFE Munich; OSA at Central European University, Budapest. http://hdl.handle.net/10891/osa:b9b5ad57-15b0-49ef-b625-8f0c37082adc. Consultado em 14/01/2019. 47 48

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domínio militar como comunicacional, em momentos críticos e decisivos para a paz mundial. A prorrogação do contrato da RARET é em todo semelhante ao processo de renovação dos acordos militares e de defesa com EUA sobre os Açores. Pressionando a administração norte-americana e utilizando os mecanismos de pressão ao seu dispor de modo, a reafirmar a sua independência na condução das políticas internas. A intenção das autoridades portuguesas seria a de deixar os responsáveis dos EUA numa posição de nervosismo, obrigando-os a uma constante negociação, num momento crítico e decisivo para a paz mundial. Os responsáveis do FEC advertem que não haverá comunicação pública do novo acordo, pelo menos no imediato. O relevo e a importância em atingir um patamar de estabilidade nas operações da RARET tiveram de ser celebrados intramuros. Supomos que esta atitude de resguardo terá sido a pedido das autoridades portuguesas. Uma vez que em telegrama de 30 de Maio de 1963 os responsáveis do FEC dão a conhecer que irão efectuar uma conferência de impressa em Nova Iorque para anunciar o novo acordo. Porém, referem a importância da consultar às autoridades portuguesas sobre os termos do anúncio, por forma a não afetar as relações luso-americanas.50

Conclusão

A procura por uma localização alternativa e complementar aos emissores da RFE, instalados na Alemanha, foi objeto de preocupação constante para os responsáveis do NCFE, desde as primeiras emissões em 1950. Por um lado, a proximidade face aos alvos - os países da Cortina de Ferro - não permitia um uso conveniente do meio radiofónico, numa escala e potência desejadas, limitando as emissões à utilização de onda média e em alguns casos de onda curta, mas sempre sujeitas à interferência dos emissores dos países socialista. Por outro lado, a proximidade das forças soviéticas, colocava questões de segurança das próprias instalações, em caso conflito militar. Assim uma localização alternativa e complementar teria de ser encontrada, a qual permitisse ultrapassar as condicionantes identificadas e ao mesmo tempo garantisse uma operação radiofónica em linha com as propostas exposta na “political warfare” norte-americana. Em detrimento de outras opções, a escolha recaiu sobre o território português, uma vez que este reunia todas as condições do caderno de encargos elaborado pelos responsáveis do NCFE. A adesão das autoridades portuguesas às solicitações do NCFE foi rápida e sem controvérsia. A exposição do embaixador dos EUA a Oliveira Salazar e a posterior negociação encetada por Gregory Thomas em muito aceleraram a tomada de decisão.

MUN-1 May Crypto Message”, 21 May 1963. HU OSA 298-1-2-45-0328; [Electronic Records]: FEC New York and RFE Munich; OSA at Central European University, Budapest. http://hdl.handle.net/10891/osa:29f6a7aa-dfcf-485e-ae9f-274aa7d680ee. Consulta 19/01/2019. 50

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A própria natureza da iniciativa, ou seja, o combate ao expansionismo soviético e à ideologia comunista nos países da Cortina de Ferro, terá contribuído para a rapidez da decisão. A qual dialogava de forma direta com as posições assumidas pelo regime do Estado Novo, sobre o movimento comunista internacional, tido como uma ameaça global. Perante a qual pensamos poder afirmar que a participação portuguesa revestiu-se de um espirito de “cruzada” pelo que considerava ser a defesa da civilização ocidental. Ao mesmo tempo a possibilidade outorgada pelo convite dos EUA, conferia às autoridades portuguesas uma legitimidade “democrática” extra, contribuindo para reforçar o papel de Portugal junto do novo aliado. Receber um convite com estas características, no contexto da Guerra-Fria foi uma proposta irrecusável, por tudo o que proporcionava. O primeiro critério para a escolha do território português, baseou-se em critérios de ordem técnica e de segurança. Aos quais se associaram outros, como o facto de ser um pais aliado, possuir bons acessos aeronavais, gozar de segurança interna e tranquilidade política, proporcionadas por um governo, cuja política garantiria a permanência em território nacional de uma emissora de rádio com as características da RFE. A contribuição portuguesa e o seu envolvimento revelaram-se de muitas maneiras. Desde logo constitui-se uma empresa portuguesa - a RARET - que funcionava como filial da RFE em Portugal. Pese embora toda a operação fosse financiada pelos EUA, via fundos da CIA e da angariação pública efetuada pela Cruzade for Freedom, a administração, quadros técnicos e demais funcionários eram portugueses. A emissora nacional portuguesa - EN - foi contactada no sentido de fornecer os meios técnicos e Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

Magos humanos, ao seu dispor, para a instalação da nova estação. Vindo alguns dos seus membros a fazer parte da nova estrutura, como foi o caso do Eng. Manuel Bivar e do Eng. Henrique Leote. Ao mesmo tempo figuras ligadas ao regime assumiram a administração e ai se mantiveram até 25 de Abril de 1974, como foi o caso do General Peixoto e Cunha, de António Quadros Ferro, Tito Arantes, ou os irmãos Pinto Basto. O acordo inicial previa o pagamento de rendas ao estado português, para além de direitos aduaneiros, por importação de equipamentos e transferências de capitais para financiamento da operação a partir de Portugal. Previa ainda a cedência das instalações e equipamentos às autoridades portuguesas, uma vez finda a operação. Porém, a crescente tensão entre, EUA e URSS, ao longo da década de cinquenta valorizaram crescentemente aos olhos dos americanos os emissores da RARET. Em meados dos anos cinquenta discutia-se no seio do governo português o uso futuro das instalações da RARET, conforme dão nota as várias circulares e pedidos de informação depositados no Arquivo Defesa Nacional em Paço D’Arcos. O interesse dos americanos, bem como a importância da RARET para o conflito ideológico em curso durante a Guerra-Fria, levaria às renovações contratuais de 1963, 1977 e 1991. A título de proveitos diretos e indiretos para o estado português terá recebido nos primeiros doze anos (1951-1963) cerca de trinta e cinco milhões de dólares. A operação da RARET foi sempre conduzida por técnicos e operários portugueses conforme referido anteriormente. Os quais surpreenderam positivamente os responsáveis norte-americanos que se deslocaram às instalações da RARET ao longo dos anos e disso deram conta em relatórios escritos,

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como foi o caso de John Richardson Jr em 1961. As retransmissões a partir de Portugal permitiram à RFE ganhar escala e eficiência, ao ponto das instalações da Glória do Ribatejo se tornarem num dos maiores centros emissores de onda curta do mundo. Do ponto de vista americano o relevo atribuído à RARET, em termos comunicacionais, equivalia às facilidades concedidas aos EUA nos Açores, em matéria de defesa militar. Só assim se compreende a posição do governo português de não renovação de ambos os acordos, num dos períodos mais agudos da Guerra-Fria, o início dos anos sessenta. No entanto é de salientar que contrariamente à divulgação do acordo militar com os EUA, amplamente exposto na comunicação social portuguesa da época, o acordo com o NCFE e as referências ao trabalho desenvolvido na RARET não foram alvo do mesmo tratamento pelo regime. Uma das razões poderá ser a própria natureza e os objetivos da RFE que pretendia combater a opressão soviética em países terceiros, contribuindo para um clima de liberdade e onde fosse possível uma comunicação social sem censura. Seria portanto difícil de justificar no plano interno a aliança de Portugal com os EUA, uma vez que o regime promovia a perseguição política dos opositores, a existência de presos políticos, a inexistência de formações políticas, à exceção da UN e a censura generalizada. Por outras palavras Portugal aliava-se aos EUA para combater as práticas soviéticas e promover valores democráticos em países terceiros, contudo internamente as suas práticas estavam mais próximas do totalitarismo soviético do que da democracia norte-americana.

Por último, as alterações introduzidas no quotidiano das gentes da Glória do Ribatejo são outro elemento a destacar. Uma população rural cuja principal fonte de rendimentos, baseava-se na exploração agrícola de subsistência e na extração da cortiça. Habituada a rendimentos sazonais e sem acesso a cuidados de saúde ou de educação. Vê-se subitamente confrontada por uma realidade nova que encara com desconfiança inicial, mas à qual rapidamente adere reconhecendo as possibilidades de melhoria para o seu quotidiano. A população masculina da Glória foi convocada para a construção das instalações do centro emissor da RARET e demais obras necessárias. Sendo posteriormente contratados para trabalhar como guarda-fios, serralheiros, condutores, mecânicos, entre outras profissões. A vinda dos americanos para a Glória possibilitou uma melhoria das condições socioeconómicas, educacionais e da assistência médica a uma população carenciada e esquecida pelas autoridades portuguesas. Mas mais do que isso, teve inicio uma conversão de trabalhadores rurais, em técnicos e operários especializados. A partir da charneca ribatejana combateu-se uma “guerra hertziana” nos primórdios da Guerra-Fria, desconhecida da maioria da população portuguesa. Beneficiando da posição geostratégica de Portugal, as autoridades portuguesas, disponibilizaram, o “éter português”, assim como a mão-de-obra necessária para travar o único combate, onde verdadeiramente americanos e soviéticos estiveram frente a frente nos céus da Europa.

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Fontes Orais: Entrevistas realizadas por Sig Mickelson em Lisboa entre 1980 e 1982: Espólio de Sig Mickelson depositado na Hoover Institution Archives. Entrevista - H. Gregory Thomas (Membro do NCFE e Vice-Presidente RARET). Entrevista - Robert E. Lang (Primeiro Diretor da Radio Free Europe). Entrevista - Manuel Bivar (Diretor da EN e Consultor Técnico da RARET). Entrevista - Carmem C. Pereira (Secretária da Administração RARET 1975- 1981). Entrevista - Eng. Horácio Neto (Engenheiro-Chefe RARET).

Entrevistas realizadas pelo autor do artigo. Entrevista - Eng. Aleixo Fernandes (responsável pelo parque de antenas da RARET). Entrevista - Eng. Filipe Ventura (aluno e posteriormente professor na Escola Industrial da RARET; responsável das operações e segurança da RARET de 1982 a 1996). Entrevista - Sr. Cristóvão Abade (aluno na Escola da RARET; quadro técnico da RARET de 1973 a 1996). Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Glória Pedro Lopes Autor da série “Glória” Salvaterra de Magos | n.º especial | Ano: 2021


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“Glória” A minha ligação a esta terra é afectiva e feita de memórias que recuam até à minha infância. Em 1976, ano em que nasci, fixamos segunda morada nos Foros de Salvaterra de Magos. As distâncias eram outras, mais psicológicas, que reais. A Grande Lisboa e o Ribatejo proporcionavam dois mundos e duas vivências bastante diferentes. A estrada de terra que passava à nossa porta, a água que bebíamos do poço, as noites de conversa à lareira debaixo da chaminé eram para um miúdo incomparavelmente mais atrativas do que a vida na cidade. A experiência da terra, o pisar da uva no lagar, a apanha do tomate onde o corpo se queixava rapidamente do trabalho, assim como as noites especiais de festa e largadas de toiros, ou a ida ao cinema para ver os filmes que há muito tinham saído de cartaz, foram outras tantas memórias associadas aquela casa de paredes de adobe e chão de terra que fomos reconstruindo ao longo dos anos. São muitas as histórias e lembro-me com a natural nostalgia de quem olha para trás, mas simultaneamente espantado com o longo caminho de progresso que se fez na região e no nosso país ao longo destes 40 anos. A faculdade abriu-me portas para outros interesses e abandonei a horta que fazia entre as laranjeiras. A vida profissional continuou a empurrar-me para longe e durante quase duas décadas mantive-me ausente de Salvaterra de Magos. Mas a paternidade fez-me regressar a esta terra porque quero que as minhas filhas tenham a oportunidade de experimentar a felicidade que só conseguimos sentir quando estamos com os pés na terra e nos ligamos de novo à natureza.

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E foi num périplo pela barragem de Magos que acabei a dirigir-me à Glória do Ribatejo, puxado por outras memórias pessoais. Eu cresci a ouvir falar da rádio, o Serão para Trabalhadores e o Festival da Canção Portuguesa, a Volta a Portugal em Bicicleta, mas também outras histórias, em que se falava na RARET e nas emissões da Rádio Moscovo. O meu avô materno tinha trabalhado directamente com o engenheiro António Manuel Bivar que foi, ao que sei, quem descobriu aqueles terrenos para os Americanos, e que deu o apoio técnico para a instalação das antenas e dos estúdios, por isso era um assunto que me interessou desde sempre, mas que só depois daquele momento em que me encontrei em frente do portão do posto retransmissor comecei a investigar mais a fundo. Glória é uma série de ficção, mas que tem como pano de fundo a realidade do país, a forma como o Estado Novo geriu a política externa numa fase em que o mundo estava extremamente polarizado, mas também a forma como a sociedade portuguesa estava organizada, e o papel que a polícia política teve no controlo social através do medo e da repressão, sem esquecer a guerra colonial que mobilizou 800 mil jovens e que deixaria marcada toda uma geração.

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Fig. 1 e 2 - Cenas de filmagem da série “Glória” - Crédito fotográfico Netflix Portugal

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A história que esbocei ficou entretanto abandonada num caderno, porque sabia que era um projecto ambicioso e que demoraria algum tempo até conseguirmos ter os parceiros certos, o que acabaria por ser a Netflix, o que foi o sonho de qualquer argumentista, pela confiança que demonstraram e liberdade criativa que encontrei (por isso tudo tenho de agradecer ao Juan Mayne), por ser uma plataforma planetária que poderá levar a nossa ficção aos quatro cantos do mundo, e por finalmente nos aproximarmos de uma realidade orçamental dos restantes países europeus. A RTP foi outro parceiro fundamental (aqui o agradecimento vai para o José Fragoso), e que tem tido um papel importante na diversificação de géneros e formatos, assim como o Pic Portugal, um fundo que cruza a cultura e o turismo, servindo para promover Portugal, e que na minha opinião é um apoio estratégico para a indústria audiovisual portuguesa, que espero que se mantenha e consolide, porque é um organismo fundamental para que a nossa televisão e cinema cresça e se internacionalize. Não posso deixar de referir obviamente a SP Televisão, que é a produtora que tem lutado como nenhuma outra para tornar a nossa ficção relevante, e onde tenho crescido como argumentista. O sucesso faz-se com as pessoas certas e tem sido essa a estratégia desde 2007, ano em que foi fundada, tendo neste período de tempo conseguido mais de 100 nomeações em Portugal e no estrangeiro, e ganho 30 prémios, entre eles um International Emmy, atribuído pela Academy of Television Arts&Sciences. Em 2013, numa reunião de quadros da SP Televisão falámos pela primeira vez na Netflix, devido à produção de uma série original, House of Cards, e começou nesse dia a discussão interna sobre o universo de streaming que despoletava e que poderia

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Magos num futuro próximo mudar o modelo de distribuição de conteúdos audiovisuais, o que mostra como desde cedo havia o objectivo da produtora em se internacionalizar. A criação da SPi em 2017,uma empresa satélite vocacionada para a co-produção, inscreveu-se num modelo que privilegia a relação com parceiros internacionais potenciando o nosso talento e a criatividade. A rodagem da série fez-se em período de pandemia, e até de Estado de Emergência, o que foi mais um desafio acrescido, mas a motivação de toda a equipa, assim como a disponibilidade das autoridades, permitiu trabalharmos com a maior segurança, mantendo o padrão de qualidade que ambicionámos para a série. O objectivo inicial foi filmar grande parte das cenas na Raret, mas o estado de degradação do edifício não nos permitiu usar a totalidade do complexo. A zona habitacional foi reconstruída e por isso uma parte importante do tempo de filmagem foi passada naquela grande herdade de 200 hectares. Para os estúdios recorremos ao complexo de Pegões, da Emissora Nacional, agora RTP, e que datam também da década de 50. A série desenrola-se em três diferentes geografias que representam cada uma delas um país diferente: a dureza do campo, através das vivências na aldeia da Glória, a urbanidade de Lisboa, lugar das decisões políticas, e depois um lugar fora do espaço, que é a RARET, uma cidade americana em pleno Ribatejo. O processo de escrita dos 10 episódios demorou cerca de um ano, e foi partilhado com uma equipa de argumentistas talentosos com quem tenho o privilégio de escrever há muitos anos, e depois mais um ano de reescrita solitária que só terminou no dia em que filmaram a última cena.

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Fig. 3 e 4 - Cenas de filmagem da série “Glória” - Crédito fotográfico Netflix Portugal

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Foi um processo obsessivo e minucioso, que envolveu também uma equipa de consultores históricos e claro, o realizador com quem discuti ao pormenor o guião, e a direcção de arte que fez um trabalho extraordinário de reconstituição da memória. A nossa expectativa é grande, e aqui acho que posso falar por mim, pela produtora e pelo sector audiovisual Portugal. O sucesso da série é importante para todas as empresas e para todos os profissionais do sector, porque pode dar visibilidade aquilo que se faz em Portugal e abrir a porta a que haja mais investimento em conteúdos nacionais.

Magos Para a SP Televisão, o nosso desejo é que a série ajude a reforçar a posição do grupo, e, simultaneamente, queremos ser um agente de promoção das nossas raízes histórico-culturais e do tecido empresarial português, para que o audiovisual venha a ser reconhecido como uma indústria estratégica nacional. Agora é com o público, e espero que sintam orgulho da série Glória, e da vossa terra, assim como nós sentimos.

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RARET e a Glória : como a Cultura e a Educação revolucionaram uma Comunidade Francisco Madelino

Presidente do Conselho de Administração da Fundação INATEL frmadelino@hotmail.com

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RARET e a Glória : como a Cultura e a Educação revolucionaram uma Comunidade Em 1951 (seis anos após o fim da Segunda Guerra Mundial) instalou-se na então localidade Santa Maria da Glória a Radio Free Europe, um instrumento importante na propaganda anticomunista dos EUA contra a Europa de Leste comunista. Em quase 200 hectares, distribuíam-se dezenas de antenas de retransmissão de sinais rádio, em ondas curtas, emitindo contrainformação para os países do leste europeu que tinham ficada sobre o domínio da União Soviética. Era o maior centro retransmissor do Mundo. Em Portugal, assumia o nome de RARET (Rádio Retransmissões, S.A.). Este acontecimento é bastante interessante sobre o modo como o Salazarismo encontrou uma forma de se reanimar, após a derrota, em 1945, das Potências do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) na segunda Guerra Mundial, muito mais próximas da Ditadura Nacional instalada em 1926. O regime tinha oscilado dentro duma duplicidade face à Segunda Guerra Mundial, ou seja, por um lado, ideologicamente alinhado com o nazismo, o fascismo italiano e o caudilhismo espanhol, contudo, por outro lado, nunca fechando portas aos ingleses e americanos, democracias parlamentares e liberais, seja pela tradicional aliança com os britânicos, seja por manter as portas abertas face à incerteza da guerra. À medida que se sentia a derrota dos aliados da Alemanha de Hitler, Salazar aproximava-se dos Aliados. Assim, em 1943, permitiria a utilização da base das Lajes nos Açores

Após o desfecho do conflito, as ruas de Lisboa encheram-se de manifestantes anti Estado Novo e a Oposição democrática reanimou1. Reuniu-se em torno da candidatura de Norton de Matos, em 1948. Pensou-se que Salazar iria cair. Contudo, a definição estratégica dos Aliados, pós-Guerra, sobretudo face à ocupação soviética da Polónia e aos acontecimentos em Berlim Leste, a partir de Churchill2, de unir o Ocidente contra a União Soviética reabriu um espaço de sobrevivência ao Salazarismo. A NATO, organização militar ocidental, que veio a ser constituída em 1949, precisava da Espanha, Portugal e Grécia, e fechou os olhos à organização política subjacente a estas ditaduras. A segunda vaga de descolonizações, em África, na Índia e na Indochina, colocou uma larga maioria dos novos países independentes na órbita do marxismo e da União Soviética. Assim, importava preservar as colónias portuguesas, sobretudo as africanas, de forma a coloca-las fora dos jugos russo e chinês comunistas. Salazar surgiu então como um aliado necessário, tremeu após as manifestações, mas logo percebeu a oportunidade do novo contexto, juntou-se a americanos e ingleses na Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, nas siglas anglo-saxónicas), e estes fecharam os olhos à organização política ditatorial interna. Paralelamente, prepararam substituições do regime controladas, uma espécie de Plano B, levando à coaptação de Humberto Delgado e de líderes emergentes, como

Sobre estes tempos, ver, por exemplo ROSAS, Fernando (1998) - Salazar e o Poder, Editorial Estampa Evento simbólico o discurso de Winston Churchill, em 1946, na cidade de Fulton (Missouri), e que passa a demarcar o novo inimigo, definindo a fronteira por aquilo a que chamava a “Cortina de Ferro”. 1 2

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Mário Soares, para um cenário alternativo caso Salazar caísse. É assim, neste contexto, que surge a instalação da Radio Free Europe em Portugal3, com o nome de RARET, em 1951, e a consequente autorização e permissão do Estado Novo. Independente do contexto e consequências deste fenómeno, na relação do Estado Novo com as Democracias Ocidentais, no contexto da Guerra Fria, assim como nas estratégias de informação e contrainformação dos diversos serviços de informações ocidentais, o que importa analisar neste artigo é a importância que teve esta instalação em Portugal, sobre uma comunidade rural portuguesa, típica do Estado Novo, isolada, sem acessos alcatroados, vivendo a maior parte da população de agricultura de sobrevivência ou de trabalho por conta de outrem em fases temporais limitadas sazonalmente, cingidos a baldios ou aforamentos recentes destes, mas rodeados de grandes propriedades agrícolas latifundiárias ou de outras próximas, bem maiores e antigas, mas de proprietários abastados das vilas vizinhas. No caso a então aldeia de Santa Maria da Glória, conhecida popularmente por Glória, e rebatizada administrativamente de Glória do Ribatejo em 1966. Na Glória, quando chegou a RARET, em 1951, a quase totalidade da População era analfabeta. Fechada a comunidades vizinhas. Com convenções sociais rígidas e poucas abertas à inovação e ao risco. A emigração era praticamente inexistente. Extremamente empobrecida. Sobrevivendo. Funcionando com regras sociais que procurava a

segurança comum em fortes solidariedades, familiares, primeiro, e depois coletivas. Os investimentos em infraestruturas públicas, por parte do Estado, era praticamente nulos, excetuando-se uma Escola Primária dos tempos da Primeira República (1911)4 e uma pequena bomba num poço público. A comunidade sabia que dependeria apenas de si e da lotaria da Natureza, donde convivia com uma forte mortalidade infantil, com apoios médicos à saúde quase inexistentse (um médico “joão semana”, politicamente desterrado, fazia o que podia, o que se traduzia numa esperança de vida à nascença bastante reduzida e num contacto permanente como a morte, daí a religiosidade ser profunda. Este artigo é assim, simultaneamente, um trabalho analítico sobre as consequências da chamada RARET sobre as comunidades adjacentes onde se instalou, com epicentro na gloriana, e, ao mesmo tempo, a expressão duma experiência que o autor vivenciou como membro dessa mesma comunidade e estudante da Escola Industrial nela instalada. Esta trouxe possibilidades acrescidas de complementar os quatro anos de escolaridade obrigatória, pois permitia ter acesso ao ensino secundário geral e industrial por via do chamado Ciclo Preparatório da TV, este um instrumento que se definiria hoje de e-learning apoiado. Depois, pela via do ensino secundário profissional, com as devidas adaptações e exigências, era possível atingir o ensino superior. Este artigo parte duma abordagem caraterizadora da Glória nos anos cinquenta do século passado, sendo esta complementada pela descrição de

Trabalho académico interessante sobre esta matéria: HERDEIRO, Vitor Manuel Malta Madail (2019) – “A Guerra-Fria combatida a partir da charneca ribatejana: O Caso da RARET 1951-1963”, Dissertação submetida como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História Moderna e Contemporânea Especialidade em Relações Internacionais. 4 Esta escola serviu de hospital na Pneumónica de 1918 e na Epidemia de febre tifoide em 1930 3

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algumas variáveis sociais, demográficas e educacionais. De seguida, enquadra-se este microclima social da comunidade no quadro geral das opções do salazarismo e como este se adaptou aos vencedores da Segunda Guerra Mundial, ideológica e doutrinariamente bastante diferentes da Doutrina do Estado Novo, a Ditadura Nacional e o Corporativismo, influenciados pelo Fascismo de Mussolini. Em 1945 tinham vencido o liberalismo político e as democracias parlamentares ocidentais, e a RARET enquadrou-se nesta viragem do Regime, sendo a Glória, com o seu isolamento e descrição, uma sitio ideal para a localização desta infraestrutura de contrainformação e de combate ao comunismo soviético. Num terceiro momento, aborda-se como a variável RARET, a par da Guerra Colonial e da Televisão, transformou completamente, ao longo da década de sessenta, um mundo rural conservado ao longo de vários séculos, seja na mobilidade humana, seja nos comportamentos, seja ainda na compreensão e perceção do mundo global envolvente.

Magos Acrescenta-se depois, num quarto momento, como o movimento de democratização iniciado pelo 25 de Abril, com forte influência local das ideologias políticas de matriz marxista, se relacionou com esta infraestrutura da Guerra Fria, sendo ela americana, ou seja, vinda duma democracia liberal, parlamentar e não marxista. A experiência pessoal do autor insere-se nestes tempos de mudança, num tempo em que o Estado Novo transita para a Democracia e o ensino industrial para o ensino secundário unificado, tendo assim terminado o ensino industrial e comercial nos termos conhecidos. Este artigo aborda ainda também a experiência pessoal do autor como estudante. Por fim, termina-se com o advento do denominado neoliberalismo de Tatcher e Reagan, no final dos anos setenta, e a forma como ele levou ao colapso da Europa de Leste, hegemonizada pela União Soviética, que entretanto se desmoronou. Dá-se então o fim da RARET e a sua deslocação para outras paragens do Planeta, onde a abertura chinesa, iniciada por Deng Xiaoping, lançava novos desafios na Ásia.

Portugal e a Glória nos anos 50: da apropriação dos baldios à agricultura de subsistência e assalariados sazonais Em 1950 Portugal tinha cerca de 8,5 milhões de residentes, menos quase dois milhões do que hoje.5 Por sua vez, o concelho de Salvaterra de Magos tinha pouco mais de 15 mil pessoas, para um número que se aproxima hoje dos 20 mil. A localidade de Santa Maria da Glória fazia parte da Freguesia de Muge, conjuntamente com a atual Freguesia do Granho (unida agora à da Glória). 5

INE (1951) - Censos 1950

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Em linguagem popular, a localidade era conhecida por Glória, conhecida na região por ser um lugar de culto à imagem da Virgem, que advinha do final do século XIV, conhecida como a Nossa Senhora da Glória. De forma a diferenciar o nome da localidade, com duas localidades homónomas (junto a Estremoz e a Aveiro), aquando da criação da Freguesia, no ano de 1966, por requerimento dos

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dinamizadores da criação, a localidade passou a chamar-se Glória do Ribatejo. Torna-se difícil autonomizar com precisão os habitantes da Glória em 1950, pois o recenseamento do INE, feito ao longo de 1950, identificava 4.100 habitantes para toda a Freguesia de Muge, organizados estes em 1.170 famílias, dos quais apenas 1.120 habitantes sabiam ler, ou seja, apenas 27,3%, levando a uma taxa de analfabetismo superior a 72%. Mais de dois terços não sabiam ler. Muge, sede da Freguesia, e em tempos sede de concelho, funcionava na altura como algo adjacente à Casa Cadaval, e dela dependente, uma das maiores propriedades agrícolas do País, com cerca de 6 mil hectares, juntando todos os espaços mais férteis de vales e das linhas de água da então Freguesia de Muge, extravasando para freguesias e concelhos limítrofes. Os terrenos da Casa Cadaval eram antes pertences dos Condes de Odemira até ao século XVII. Com o casamento duma filha dos Condes de Odemira com o Duque de Cadaval, descendente de Nuno Álvares Pereira, a herdade passaria a fazer parte do património do mais importante nobre de Portugal. A herança de Nuno Álvares Pereira de Melo, Duque de Cadaval, vinha já de trás, da Casa de Bragança. Esta nasceu da retribuição do papel de Nuno Álvares Pereira, junto do Mestre D’Avis e futuro D. João I, na Crise de 1383-85, e que foi consolidada com a criação do Ducado (em 1648), no século XVII, por ação de D. João IV, em virtude do papel independentista, renovado, da família, três

séculos depois. Nuno Álvares Pereira de Melo era filho de D. Francisco de Melo (Conde de Tentúgal e Marquês de Ferreira). Aquele nobre viria, então, a tornar-se num dos mais poderosos nobres de Portugal, consolidando o poder herdado e inerente à Casa de Bragança. 6 A Vila de Muge concentrava assim vários funcionários e “colarinhos brancos” associados à Casa Cadaval, evidente na década de 1940, com o núcleo urbano bem cuidado, casas apalaçadas, para além dos edifícios e do Palácio de Cadaval, uma Igreja de qualidade arquitetónica superior, uma rede de estradas (umas alcatroadas, outra de macadame), assim como infraestruturas de esgotos e distribuição de águas. Os núcleos urbanos do Granho e da Glória não apresentavam praticamente nenhuma infraestrutura pública artificial. Associados à Casa de Cadaval, profissões como encarregados, administradores, contabilistas e escriturários, abegão, técnicos de manutenção de máquinas e instalações fabris ou equipamentos agrícolas, fariam certamente subir o nível de qualificações escolares da localidade, face à população da Glória, constituída basicamente de pequenos proprietários agrícolas. Duma forma aproximada, estimando, a Glória deveria ter um número de habitantes pouco acima dos 2000, onde o analfabetismo ultrapassaria certamente os 80%, ou seja, pouco mais de 400 pessoas saberiam ler, sendo o analfabetismo quase total em pessoas acima do 20 anos. Sobretudo nas mulheres.

O título de Marquês de Cadaval foi concedido apenas no século XX, atribuído excecionalmente, e caducado, após a morte do marido (António Caetano Álvares Pereira de Melo (1894-1939)) e Olga de Cadaval, pois era honorário. 6

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Por exemplo, em Marinhais, uma Freguesia com 6.383 habitantes, apenas 1377 sabiam ler, ou seja, 21,6%, sendo o analfabetismo quase de 80%, por oposição a Salvaterra, onde 47,3% não sabia ler, ou seja, um número bastante inferior às Freguesias restantes.7

Magos Para além destes indicadores, sobre a grande desigualdade da distribuição do capital humano, e sobretudo para com os locais centro do poder municipal e económico, a localidade de Santa Maria da Glória apresentava caraterísticas distintas e únicas das localidades próximas.

Sistematizando algumas: i. Povoamento. A primeira referência ao lugar é datada de 1758: 80 habitantes e 18 fogos8. Cerca de 200 anos antes da instalação da RARET, a localidade era assim composta de apenas 18 casas em redor da Ermida original, concluída em 1363. Apenas 8 dezenas de habitantes em meados do século XVIII. Em quatro séculos, desde que D. Pedro I, em 30 de Maio de 1362 mandou colocar a primeira pedra da Ermida, a que se seguiu uma Carta de Mercês datada de 17 de fevereiro de 1364, onde eram doados determinados privilégios ao povoadores do local, assim como baldios e a possibilidade de usufruto de animais e lenha, a energia da época. A localidade tinha uma reduzida dimensão populacional. 9 Os terrenos, em redor da ermida, eram pobres, já que todas as terras aráveis dos vales foram atribuídas a nobres que ajudaram na reconquista ou a ordens religiosas. São esses terrenos que ficaram na herdade que ainda hoje existe, a Casa Cadaval. A Carta de Mercês fazia parte da política habitual de ocupação dos territórios conquistados aos povos dominados pelos muçulmanos a Sul do País. Aos habitantes dos núcleos populacionais, nos territórios conquistados, eram dados alguns privilégios, transcritos em Foral ou em Cartas de Mercês. Consolidadas as conquistas de Santarém e Lisboa, em 1147, por volta do século XII, o futuro lugar de Santa Maria da Glória situava-se no centro daquilo a que chamavam os “Campos de Caçarabotão”. Estes localizavam-se entre o Vale Sorraia e a Ribeira de Muge. Este nome, provavelmente, teria origem árabe (Alcácer Boton (Castelo da Aroeira)). Com a fundação de Benavente, em 1199, essencialmente com população oriunda da atual França, aqueles campos foram englobados neste concelho. Já o Foral de Salvaterra de Magos nasceria mais tarde (datado de 1295 e provável fundação da localidade em 1271), ao que se seguiu o de Muge, em 6 de dezembro de 1304, outorgado por D. Dinis. À medida que se ia ocupando estes espaços a Sul, e pacificando Lisboa, importaria assim povoar os territórios conquistados, seja por privilégios às populações que se propunham deslocar, a troca de mínima liberdade, quer a povos mouros convertidos, os denominados moçárabes. Enquanto Muge e Salvaterra, Coruche ou Bena INE (1951), Censos 1950 Memórias Paroquiais de Muge - 1758 9 Simultaneamente adicionava a função de manter sempre acesa a candeia de azeite que iluminava a imagem da imagem da Senhora da Glória. 7 8

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Magos vente, surgiam associadas a funções administrativas e militares do reino, sede de pequenas urbes com mesteres e funcionários de apoios aos nobres terratenentes e às ordens religiosas, a povoação da Glória, localizada em terrenos pobres, associados à pastorícia,

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Fig. 1 - Carta de Privilégios de D. Pedro - 1364

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ii. destinada à função de proteção e funcionamento da ermida, em troco de alguma liberdade e usufruto, não surgiu dum núcleo urbano com as caraterísticas como as de Muge, local histórico de porto fluvial e de chegadas de via romana), ou de Salvaterra, onde inclusive haviam alojamentos reais e também um porto fluvial de acesso rápido a Lisboa. O isolamento da Glória, sem vias fluviais ou de acesso por estradas bastante difícil, não sendo ponto de cruzamento de outros acessos, foi-se consolidando, assim como o isolamento dessas poucas dezenas de famílias, com tradições e práticas muito associadas a heranças moçarábes. Pessoas que se refugiaram, provavelmente, nos matagais da Glória ou então outras famílias que, na aridez dos terrenos, encontraram a liberdade escassa, sabendo que na Idade Média ou se era Senhor ou Escravo, ou então sacerdote, sendo escassa a liberdade concedida pelo Rei fora da nobreza e do clero. iii. Heranças e intercâmbios culturais. Durante décadas construiu-se assim uma comunidade isolada, de casamentos interinos, sem ligação ao mundo envolvente, com uma economia pobre, mas autossustentada, sem livros e escola, em que as convenções sociais se mantiveram ao longo de séculos. Os povoados de Marinhais e Granho surgiriam, por sua vez, mais recentemente, aquando da secagem dos pântanos envolventes às várzeas das terras férteis, ou de novos aforamentos, sendo assim núcleos urbanos criados a partir de fortes migrações durante o século XIX, com origens distintas, que traziam vários séculos, consigo, de novas heranças culturais, sejam dinâmicas, seja nas suas raízes. Seja na honra, seja no papel da mulher e do clã familiar, seja nos códigos sociais inerentes à morte e à honra, seja na moral social ou nas superstições, seja no valor da palavra, conservou-se um código comportamental tipicamente mediterrânico e moçárabe, que se manteve sofrendo poucas influências. Quando se deslocava sazonalmente para fora da localidade, para trabalhos agrícolas assalariados marcados no tempo, o grupo era fechado a contactos exteriores, vivendo como uma comunidade isolada. iv. Tipo de propriedade. Os baldios. O sistema de propriedade na Glória era totalmente diferente da dos vizinhos, entre o século XIV e o final do XIX. Só após os processos de aforamento nos Foros de Salvaterra, Granho, Marinhais e dos baldios da Glória, realizados após as revoluções liberais, o sistema e propriedade se viria a aproximar daqueles. O sistema de baldios só se começou a desmantelar já em finais do século XIX, desencadeando-se a seguir à Guerra Civil entre os liberais e os absolutistas, mas só se concretizando no final do século XIX. Depois, segue-se uma fase acelerada de ocupação dos baldios nos anos 40 do século passado, na Glória, a partir da Paróquia de Muge. Até à Revolução Liberal, e à Guerra Civil correspondente, na Glória havia apenas 3 ou 4 proprietários locais, aos quais se juntariam proprietários das vilas próximas (Salvaterra e Coruche) em número idêntico, sendo numa destas propriedades onde se viria a instalar a RARET, com cerca de 200 hectares.10 Foi a partir dos baldios que se construiu uma utilização comunitária da terra e uma agricultura

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Conforme mapas do levantamento do sistema de aforamente patentes na Junta de Freguesia da Glória.

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Magos de subsistência ligada à pastorícia, que permitia sobreviver, sem ser assalariado, a não ser em épocas agrícolas muito específicas (ligadas ao arroz, à vinha ou, menos, aos cereais). Esta situação de propriedade coletiva não existia, com esta dimensão, em mais nenhum povoado próximo. Em Muge e Salvaterra a terra estava ocupada por grandes agrários. Marinhais e Foros ainda por “colonizar”, sobretudo o primeiro caso, só realizando o povoamento depois de se escoarem os pântanos de águas retidas, já em pleno século XIX. Granho idem, sendo a Casa Cadaval omnipresente no território. Nas antigas Vilas de Muge e Salvaterra, nos seus burgos, nascia uma pequena burguesia de profissionais e comerciantes. O mesmo em Coruche. Só com a Revolução Liberal, em 1844, se começaram a ocupar os baldios na Glória, a partir das autarquias locais11, e se procedeu ao respetivo processo de aforamento, com a afetação dos terrenos a privados que concorreram às “candidaturas”. Neste sistema de foro, enfiteutico, medieval, há uma divisão entre a propriedade (no caso pertencente à Junta e à Câmara) e a propriedade útil (do foreiro), sendo esta transmissível hereditariamente, imperativamente, desde que se pagasse o foro (uma espécie de renda, mas intemporal). Estes processos de ocupação dos baldios provocaram grandes convulsões sociais na população gloriana, pois ocupavam-se as zonas comuns, processo que se repetiu nos 40 do século XX, com a tentativa de ocupação dos resistentes baldios do Rossio dos Bebedouros e do Rossio. Do ponto de vista social, a concretização dos aforamentos12 tiveram o efeito de criar e alargar uma rede de agricultura privada, que já permitia algum comércio e até sobrevivência apenas da pequena agricultura, sobretudo ligada ao trigo e outros cereais e à cortiça. Significa isto, que proporcionalmente, face às congéneres e antigas vilas de Muge, Salvaterra e Coruche, a Glória só tinha assalariados pontuais, sendo a maior parte de proprietários, isto é, de gente que não dependia de patrões, a não ser pontualmente, ou então permanente para aqueles destituídos da posse de qualquer terra, mas que, entretanto trabalhavam, em larga maioria, na maior parte do tempo para os proprietários locais. Esta divisão entre proprietários (cingeleiros ou sarapatéis) e assalariados/ ganhões (serrotes), levou a representações sociais negativas de uns face aos outros. A Glória era assim um tereno isolado, com uma economia proprietária que se alimentava a si propria, mas pobre, fechada, ligando-se ao exterior apenas pelas vendas dos cereais ao Grémio (sistema centralizado de controle da produção do salazarismo) ou das uvas, aos quais se juntava a cortiça, senda estes a primeira exportação, e, adicionalmente, os rendimentos de “emigrantes” vindos dos grupos (“ranchos”) que saíam para o arroz, a ceifa ou a cultura da vinha, contudo em grupos fechados e isolados. O núcleo urbano tinha alguns comerciantes, todavia sem grande poder económico, pois viviam de fornecer o que faltava à economia local, quase todos vindos de fora (desde as moagens às serralharias, passando pelas oficinas e algumas lojas).

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A Câmara de Muge foi extinta em 1837, atendendo ao suporte da Casa Cadaval ao Miguelismo, tendo a família de se refugiar em França e em Itália, sendo as forças liberais na zona lideradas pela família Silva, atuais Oliveira e Sousa. 12 O processo de aforamento ficou conhecido na Glória como de arrematação ou desmatação de terras. 11

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Fig. 2 - Plantas de Baldios da Glória - 1904 - Junta de Freguesia de Muge

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Magos Apenas dos pouquíssimos proprietários pré-forais se criou algum pequeno comércio. Assim, autossustentava-se economicamente o fechamento social, num grupo com poucos contactos com o exterior, e que apenas saiam em grupos fechados. A cultura mantinha-se, consolidava a diferença, sem penetrações do exterior, os casamentos dentro da aldeia e entre grupos sociais semelhantes (inter proprietários ou assalariados), contrariamente à burguesia de Muge e Salvaterra que deixava entrar pessoas, culturas, movimentos sócio-políticos, ideias, a Glória mantinha as suas raízes, maioritariamente magrebinas e mediterrânicas. Quando mais diferente se sentia, mais a identidade resistia. Quase sem Estado, estavam entregues a si próprios e à sua própria regulação, em que a família era o elemento fundamental de segurança. O espaço de liberdade, fora dos valores da identidade coletiva, era quase inexistente, o que levava à quase inexistência de migrações, incluindo nacional. Os valores coletivos eram fortemente regulados por convenções sociais e comportamentais rígidas, onde a mulher era juiz e vítima, impedindo-se qualquer inovação ou criatividade social. Nas artes e nas danças, por sua vez, o escape criativo humano reforçava-se, uma espécie de compensação, à custa duma cultura castradora do risco, do empreendedorismo, da inovação social e da abertura aos diálogos interculturais com o Mundo.

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v. Acumulação de capital fraca, investimento quase nulo, empreendedorismo mínimo e ausência de burguesia renovadora. Uma atitude empreendedora é um processo em que alguém passa da potência da ideia à concretização dum ato, como diria Aristóteles13, isto é, em que se tem uma ideia, normalmente diferente e inovadora, se arranjam os meios, as capacidades e as motivações e, de seguida, implementa-se. Normalmente o termo aplica-se à economia empresarial. Identifica-se uma necessidade que tem procura solvente, arranja-se capital para propiciar os meios à sua produção, arrisca-se este montante inicial, empregam-se pessoas e o produto é produzido e oferecido. O risco é a falência e a indigência. Do ponto vista social, o processo é semelhante. Imagina-se uma ideia, estudar, emigrar, migrar, um trajeto de vida, uma associação coletiva, motiva-se, e desencadeia-se o processo. No empreendedorismo propensão ao risco é um elemento fundamental, pois há sempre incerteza, e ter um capital mínimo para desencadear o processo é também crucial, desde o estudar à empresa. Em qualquer dos casos, a motivação/insatisfação é fundamental. Insatisfeito com o ponto de partida social, normalmente, é a grande motivação. Tem de estar motivado a alterá-lo. Disposto a arriscar e a sair da “zona de partida”. Na Glória, o capital acumulado local era escasso, atendendo às caraterísticas das economia e da propriedade, a família garantia a segurança, a liberdade de trabalhar por conta própria, em grande parte do tempo existia, a cultura pressionava e asfixiava o individual no coletivo, a segurança, mesmo em pobreza contida, limitava a liberdade, sem liberdade e motivação não há risco. A economia era de subsistência, os comerciantes vinham de fora e apenas alguns, com algum capital advindo

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Aristóteles, Metafísica.

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A RARET e a Glória do Ribatejo - 70 anos da Primeira Retransmissão 4 de julho de 1951

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das rendas da terra, ficava pelo comércio, de risco contido, e não inovava, nem crescia, nem se abria ao mundo e à tecnologia. A pouca inovação comercial vinha de fora. vi. Endogamia social e isolamento territorial. O conhecimento é uma das variáveis fundamentais de inovação. Há inovações por acidente e produtoras de ruturas sociais e tecnológicas. A maior parte das inovações, contudo, são incrementais, vindas por via dos contactos sociais e económicos, que vão estimulando as motivações de alterar, seja por quem precisa e observa seja quem oferece e contribui com o seu próprio conhecimento e vivência. Grande parte da inovação é por contágio e efeito demonstração. Uma comunidade sem contactos sociais exógenos, sem conviver com outras vivências e visões do mundo, sem estabelecer relações sociais com outras culturas e territórios, em que a maioria é analfabeta, sem a possibilidade de assimilar conhecimento pela leitura, seja dos livros ou dos jornais, sem energia elétrica e pouco acesso a meios de comunicação, como a rádio, onde as estrelas e o Sol continuam a ser os meios largamente maioritários de medir o tempo largamente, a única inovação que reside é endógena, da própria comunidade. Esta, em regra, é bastante limitada, quando o acesso ao capital humano é unicamente o que resulta da atividade económica pobre da família e da própria comunidade, sendo através desta que passa a visão e a perceção do mundo. É verdade que grande parte de Portugal do interior vivia o mesmo dilema e o mesmo contexto. Nestas situações, a comunidade consolida-se, reforça os laços de solidariedade entre ela, estabelece um contrato social de convenções e hábitos sociais em que o individuo free rider é excluído, mas também, contudo, limita a liberdade de quem ousa questionar as convenções, pensar outros desafios e práticas, ariscar a sua liberdade de ser diferente. Sentido de comunidade forte, entreajuda, valores morais e éticos fortes, em que a palavra era uma escritura, respeito pelos antepassados e os seus valores fortes. Neste sentido um conservadorismo assertivo, uma grande segurança, num contexto de sobrevivência autossustentada pobre, e uma liberdade mínima de extravasar as regras, ou seja, pouca liberdade individual e, por consequência risco baixo, eram as caraterísticas sociais dominantes. As migrações internas nacionais autónomas, até aos anos sessenta, para a cidade, ou internacionais, eram quase nulas, sendo um ou dois casos de imigração para o Brasil, sem retorno, grandes exceções. Aos casamentos restringidos a dentro da aldeia, ela já uma ilha social, juntavam-se ainda práticas ainda mais restritas, realizados dentro de bolhas, sejam sociais ainda mais circunscritas (entre proprietários relativamente familiares (a partir de primo aceitáveis)), ou entre assalariados sem terra, menos e mais pobres, seja entre subterritórios, como o norte e o sul da aldeia (delimitados por um ribeiro), o que para além das consequências genéticas na saúde coletiva, que a Biologia ensina, os efeitos sociais e culturais seriam evidentes na capacidade inovadora da sociedade. Estes fenómenos encontrariam muitos exemplos pela Europa, ao que se juntaria nestes casos, variáveis como a religião (protestantes, católicos, etc.), mas o caso tornar-se-ia aqui, como em muitas aldeias isoladas de Portugal, com níveis de analfabetismos elevados, um isolamento do mundo muito castrador do intercâmbio de vivências. Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos O que impressionava na comunidade, para além do sentido de coletividade, de entreajuda, de união, de solidariedade mútua, de sentido ético e moral, dum contrato social de respeito máximo pelo outro, era, dentro das raízes herdadas, a forma como a criatividade artística, sobretudo na dança, no vestuário, no artesanato, na oralidade, na poesia popular, nas tarefas agrícolas e outras, se foram desenvolvendo e criando mecanismo e produtos novos, revelando assim que o homem, em mesmo em grupos restritos isolados, sem grandes intercâmbios culturais, com poucos rendimentos, sem a existência de vanguardas sociais mais abastadas e privilegiadas, tem uma sempre uma veia artística, filosófica, ética e humanista que coletivamente prevalece e se robustece face à adversidade.

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vii. Segurança versus liberdade. Ausência de Emigração. O ser humano, eminentemente social, coletivamente, oscila sempre em construir relações que tentam equilibrar dois objetivos: garantir-lhe segurança, contra as incertezas da vida e da vivência em sociedade e, por outro lado, ser livre, de forma a que os compromissos e exigência da sociedade e do coletivo não limitem a sua vontade individual, motivações, opções felicidade. Quando maior a pobreza e a insegurança do futuro mais o ser humano valoriza o coletivo, em desfavor da liberdade. Quando maior o rendimento, mais privilegia a liberdade, porque a acumulação de riqueza minimiza os riscos do futuro. A Glória, pela sua humildade nos rendimentos existentes, entregue a si própria, esquecida pelo Estado, pela própria Câmara e pela Junta de Muge, praticamente não tinha infraestruturas coletivas, que eram quase ausentes, concentrou-se na densidade da sua solidariedade, com uma forte participação familiar. Era a coletividade que pela família que salvaguardava a segurança, por ação coletiva e entreajuda entre si. Foi também esta solidariedade interna que criou uma zona de conforto, nunca atingindo os níveis de pobreza extrema da generalidade das aldeias do interior, ou em comunidades próximas como no Granho e no Cocharro, logo nunca fomentando ou desencadeando migrações internas, sobretudo para Lisboa, muito menos internacionais, até ao final dos anos sessenta do século passado. Só a partir dos anos sessenta a situação se alterou. Se juntarmos a esta situação a ilha social que era a Glória, sem ligações a outras comunidades, sem conhecer os circuitos das migrações, possuidora de uma cultura de séculos pouco mutável, que se sentia diferente das populações envolventes, e mais das grandes cidades e vilas, vivia-se uma realidade que tornava quase inexistente mobilidade geográfica.

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Analfabetismo e isolamento O nível de analfabetismo na Glória, até aos anos cinquenta era elevadíssimo. Foi descrito atrás. Certamente próximo dos 90%, e por defeito. A quase inexistência de classes médias, abastadas, de latifundiários, que inclusive poderiam ajudar os filhos de alguns dos seus trabalhadores mais aliados, a existência de uma religiosidade profunda, mas avessa à organização institucional dos sacerdotes

católicos, um herança tipicamente magrebina, que atravessa todo o sul do Tejo, não vendo os seminários como forma de acesso ao saber e a mais oportunidades de vida, a inexistência de transportes públicos não se situando na encruzilhada de estradas nacionais ou regionais, com todos os caminhos envolventes de terra batida, tudo isso agravou os níveis de analfabetismo

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Fig. 3 e 4 - As praças da jorna

Por outro lado, as caraterísticas económicas do lugar, foi séculos diferenciada da generalidade do sul, pois grande parte das pessoas eram proprietárias, na sequência dos aforamentos dos anos quarenta do século XIX e do pós guerras liberais do século, assentando a economia na produção de cereais e de gado, bovino e caprino, a par da tradicional agricultura de subsistência, onde o porco, a cabra e a galinha são elementos cruciais. Socialmente, eram agarrados à propriedade privada e tinha-se

uma estratégia de maximização do rendimento familiar e não individual, como nos meios mais assalariados. Politicamente, por exemplo, após o 25 de Abril, esta caraterística, decorrente da posse dos meios da produção, como bem explica o marxismo, rapidamente definiu posicionamentos sociais, seja na Glória, seja nas localidades envolventes. Nesta localidade, porém, de forma evidente. A diferença entre maximização do rendimento individual ou maximização do rendimento familiar Salvaterra de Magos | n.º especial | Ano: 2021


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aproximava mais a localidades das terras do minifúndio do norte do País. Aqui maximizava-se o rendimento familiar. Todos, até casar, trabalhavam para a família, os filhos eram vistos como mão de obra adicional para a agricultura, desde bastante cedo, tirados à escola, com maior ênfase nas mulheres, pois aqui diminuíam a força de trabalho. Nas épocas sazonais de vender a força de trabalho a outros, os escassos salários das crianças, ainda longe do dos “homens” ou das “mulheres”, revertiam a favor da casa, e só deixavam de o ser quando casassem, daí o objetivo de casarem bem cedo, de forma a organizar família e ter rendimentos próprios. Aqui, como norte do País rural, a escola era vista com um devaneio, e educar uma criança era educa-la a trabalhar bem cedo. Até aos anos cinquenta, e ao longo dos anos sessenta, esta ideia manteve-se

bastante forte. A resistência à escolaridade obrigatória foi forte e arrastou-se. O isolamento territorial mais tornava errada a ideia de que a escola não era a fonte de fuga à pobreza, de ter mobilidade social, de ter outras oportunidades, de poder obter outros rendimentos, de alcançar outros mundos e outras vivências, seja pelas migrações, seja pela leitura. A religiosidade informal, mas profunda, tornava a leitura completamente secundária para chegar a Deus por via dos livros, pois os padres, como em regra no sul do País, vistos como aliados e próximos dos grandes agricultores e dos homens de posses. A relação com Deus, como em todo o Magrebe, não precisava de ser entremeada por estrutura copiada do Império Romano, mas de forma individual, a sua consciência perante Deus.

Cultura, Convenções Sociais e Conservadorismo Em síntese, sem acesso ao conhecimento acumulado dos povos, das ideias, das diferenças de entendimento do mundo, o homem questiona-se menos sobre si e as regras que os ligam aos outros. As convenções sociais, que regulam os seus comportamentos, tornam-se quase permanentes e imutáveis, não questionáveis, e ele próprio se torna membro dum grande conservadorismo, obstaculizando qualquer alteração ou inovação. É-se assim porque sempre assim foi. Já com os antigos era as

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sim, reforça-se. É assim porque tem de ser, reafirma-se. E adapta-se. Resigna-se. A pobreza em que vive torna-se a normalidade e é não transformável. Antes dos anos sessenta, e sobretudo da chegada da RARET, não sendo esta a única fonte de mudança que se veio a processar, a Glória era uma ilha, como escreveu Redol, e era, à espera de algo que chegasse por mar. Até lá sobrevivia e resistia como podia, com um contrato de solidariedade mútua exemplar.

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Magos Isolamento Gloriano, penetrações políticas e Neo-Realismo

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Foram estas características e identitárias glorianas que chamaram a atenção de intelectuais comunistas inseridos movimento cultural que, sobretudo a partir de Alhandra e Vila Franca de Xira, com epicentro do grupo na escrita no jornal O Diabo, onde Álvaro Cunhal escrevia e era visto como um intelectual brilhante e inovador.14 Este grupo iniciava-se no movimento intelectual e literário neorrealista. Nestes, destacam-se nomes como Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, em certo ponto Júlio Pomar, Mário Dionísio, Manuel da Fonseca, Leite de Vasconcelos (nos estudos etnográficos), entre outros. O neorrealismo inseria-se na visão que a arte deveria ter uma função social ao serviço da luta de classes. A ideia era acentuar as virtudes inatas inerentes às classes trabalhadoras ou empobrecidas contra os poderes que castrariam as suas potencialidades e liberdades. As caraterísticas coletivas e comunitárias glorianas, as suas raízes identitárias bem fortes e diferenciadas, a pobreza quase generalizada, associada ao trabalho infantil, a uma linguagem própria e ao analfabetismo, chamou a atenção deste movimento literário emergente e às visões etnográficas alternativas às visões propagadas pelo Estado Novo.

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Neste, o salazarismo, a ruralidade era vista como felicidade e a força moral da Nação. A primeira obra, meio ensaio, meio literatura neo realista portuguesa é de Alves Redol sobre a comunidade gloriana15. Na altura ainda membro do Partido Comunista (depois saiu em divergências com Cunhal), aproximou-se da Comunidade Gloriana, isolada, que trabalhava nos campos da Lezíria, e veio a instalar-se na Comunidade, estabelecendo uma relação com um comerciante local, vindo do Norte do País. Esta aproximação para os estudos sócio-etnográficos, a partir da linha alternativa à que António Ferro tinha definido para o Estado Novo, onde pontificariam nomes como Leite de Vasconcelos, Lopes Graça, Giacometti, entre outros, vieram a desencadear, deu a conhecer a ilha social e cultural que era a Glória. No País, desde daí, desencadou-se linha de estudos académicos, que trouxe a realidade gloriana para a dimensão nacional, mas sempre numa lógica de curiosidade, como se de uma reserva histórico-cultural se tratasse e, consoante mais próxima do marxismo fosse ou das genéticas exemplares da narrativa do Estado Novo se tratasse, mais a Glória era vista como um mundo cultural exemplar.

PEREIRA, José Pacheco (1999) - Álvaro Cunhal: uma Biografia Política, Vol I “Daniel”, o Jovem Revolucionário, Temas&Debates REDOL, Alves (1938) - Glória, uma Aldeia do Ribatejo.

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A RARET, a “Guerra Fria”, o salazarismo, a pobreza endógena e o analfabetismo Em 1951, quando a RARET, depois do acordo prévio com o Estado português, decidiu se instalar na Glória, adquirindo para isso uma das poucas propriedades de grande dimensão existentes, propriedade duma família abastada não residente, era esta a Glória descrita atrás que encontrou. Uma População genericamente isolada, com uma economia em circuito fechado, poucas vezes aberto, mas saindo em grupos que não contactavam com os restantes, com pouca informação cultural e acesso à leitura, cuja separação do mundo em pró americanos e soviéticos era algo abstrato e distante, ou seja, o lugar ideal para construir aquela infraestrutura. Garantia que se mantivesse discreta e relativamente ignorada sobre a sua função na nova geometria pós-Guerra Fria, depois de Churchill ter definido o novo inimigo, a “cortina de ferro”, e de se verificarem eventos marcantes como o bloqueio de Berlim-Leste, a criação da OTAN/NATO, a Comunidade do Carvão e do Aço (e futura Comunidade Económica Europeia e Euratom), o Plano Marshall e os Acordos de Bretton Woods. Por ironia do destino, embora sem consciência local de tal, a Glória era posta verdadeiramente no centro dos acontecimentos do Mundo, com a instalação duma infraestrutura fundamental à luta de informação (ou contra informação) do mundo ocidental, parlamentar e liberal, disseminando contrainformação, via rádio, em ondas curtas, com programas previamente gravados na Alemanha, mas retransmitidos para a Europa de Leste, sob jugo soviético, a partir de quase 200 hectares de cortinas de antenas, as maiores de quase 200m de altura. Adicionalmente, do ponto de vista técnico, as condições de reprodução do sinal de ondas curtas, segundo se referia, adequava-se também, assim como Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

a proximidade a Lisboa, donde vinham técnicos bastante qualificados (por exemplo, professores do Instituto Superior Técnico) ou quadros políticos e diplomáticos. Estavam próximos, embora estes sempre muito discretos. Das condições estabelecidas com o Estado Português, decorria a criação duma escola secundária de ensino industrial, assim como o Ciclo Preparatório TV, que apareciam como contrapartidas. Várias dezenas de quadros técnicos seriam professores, estabelecer-se-iam num bairro habitacional construído de raíz. Simultaneamente, seria alcatroada um estrada-beco, ou seja, terminada na Glória (a EN 367), ligada à estrada de ligação regional de toda a zona Sul do Tejo (EN 118), permitindo que o isolamento diminuísse, nomeadamente pela vinda de transportes públicos de camioneta, que ligaria a Glória a Lisboa e a Santarém. A partir daqui, e com o advento da abertura comercial do País à Europa (EFTA), a expansão da zona urbana de Lisboa (construção civil e indústria), a eletricidade e a TV, que chegam também e a Guerra Colonial (1961), o isolamento gloriano começa o seu caminho do fim, com todas as consequências inevitáveis sobre valores, convenções e comportamentos que se mantiveram durante séculos. Muito do software cultural manter-se-ia, contudo as alterações iriam ser inevitáveis, sobretudo com a Escola e as migrações para as indústrias que ia nascendo, sobretudo na linha industrial Vila Franca de Xira - Sacavém, nos novos empregos da RARET e no microclima industrial de equipamentos agrícolas de Benavente. Tudo passaria a ser diferente, mas a Escola da RARET, os contactos com os técnicos que se juntaram a ela, com trabalhadores de outras localidades vizinhas, seriam catalisadores potentes impressivos da mudança.

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Magos Anos Sessenta: A Escola, a TV e o Contacto com o Mundo Os anos sessenta do século passado introduziram em Portugal grandes mudanças. A entrada da EFTA alterou a estratégia da economia salazarista, até então centrada no Império. Em consequência, há um crescimento económico grande e a consequente a mobilidade interna e urbana daí decorrente, as novas indústrias ou a construção civil, ambas trabalho-intensivas. Esta realidade vai destruindo os campos e o isolamento da ruralidade. O regime passa a deixar um conjunto de pessoas mais liberais entrar como dirigentes e deputados e Salazar envelhece e morre mesmo. A Rádio, a eletricidade e a TV vão diminuindo o isolamento das comunidades

Guerra Colonial

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A Guerra Colonial surge em 1961, a partir de Angola, tendo depois se generalizado à Guiné e a Moçambique (1964). O episódio de Goa, Damão e Dio, na Índia, foi o preâmbulo da pressão que a segunda vaga de descolonizações, pós Segunda Guerra, desencadearia no Mundo, mas que Portugal tentou resistir contra os novos tempos. A partir deste episódio, a reação foi a requisição e a mobilização de todos os jovens portugueses para a Guerra Colonial. Entre 1961 e 1974 provavelmente cerca de 300 jovens foram mobilizados na Glória e passaram pela Guerra Colonial, a quase totalidade dos jovens entre 1961 e 1974. Apenas os que tinham problemas físicos graves, ou ligações a poderes instituídos (pouquíssimos) ou outras situações bastante excecionais não foram à Guerra. Nas camadas mais pobres a mobilização foi total. Este foi o acontecimento que, provavelmente, mais revolucionou as mentalidades glorianas. Tirou os filhos aos pais e à

rurais mais afastadas. A escola, vai entrando cada vez mais nas comunidades. As famílias cada vez mais passam a ver a educação como um caminho de mobilidade social. O esforço das famílias mais pobres, ao longo dos anos sessenta, em dar escola aos filhos, com pouca ajuda do Estado, é de facto uma epopeia. Na Glória, Escola, Guerra Colonial e Televisão vão mudar definitivamente esta localidade. A abertura e a entrada de informação e conhecimento é sempre uma condição necessária. A Escola, contudo, acelera o conhecimento e permite interpretá-lo de modo crítico.

comunidade isolada, deu-lhe formação pelo País, em ligação com outros jovens e realidades, e colocou-os no Mundo a milhares de quilómetros de casa, na fase da idade mais criativa e de busca de caminhos. Quando regressaram, a maioria já não foi para a agricultura, foi para as fábricas da zona industrial de Lisboa, para a construção civil, embora a larga maioria continuasse a viver na Glória. Era já uma geração diferente, a maioria com escolaridade obrigatória, já efetiva a partir dos anos sessenta, sendo já alvo do controlo do Estado e fiscalização. Por outro lado, a construção cívil oferecia emprego a todos, qualificados e não qualificados, remunerava melhor que a agricultura. Mesmo as camadas mais velhas abandonavam a agricultura de subsistência, desfaziam-se das juntas de bois, empregavam-se nas urbanizações que iam crescendo. A chegada da camioneta facilitava os transportes e as deslocações. Era uma geração que já interagia, já tinha algum mundo. Salvaterra de Magos | n.º especial | Ano: 2021


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Televisão e Energia Elétrica

A Televisão, embora aparecesse circunscrita basicamente às tabernas existentes, assim como a Rádio, esta sucessivamente sendo alargada às casas privadas, permitiam assim tomar conhecimento do Mundo. Chegam as notícias do Mundo, realidades e interpretações distintas do que conhecia. A própria televisão permite que o denominado Ciclo Preparatório (preparatório para o secundário), uma autêntica forma de e-learning, chegasse às comunidades rurais mais afastadas, prolongando o ensino obrigatório, e permitindo abrir passadeiras para dezenas de jovens ingressassem no ensino secundário e, a partir daqui, mesmo para a Universi dade pública. Seja a Escola Industrial da RARET, seja o Ciclo Preparatório TV nela instalada, vieram a permitir que uma quantidade significativa de jovens acedessem a

Magos graus de ensino superiores, pois a gratuitidade do ensino e a proximidade geográfica fazia com que fosse possível que muitos acedessem à escola, já que os pais, com custos muito mais escassos. Perdiam “apenas” a mão de obra agrícola adicional ou os rendimentos familiares que os jovens poderiam auferir, subindo contudo os custos dos livros e das refeições. Os rendimentos, em muitos casos, que passaram a auferir de empregos por conta de outrem, com ocupação anual, decorrentes da RARET, da indústria crescente nas redondezas (que acedia pelo transporte público) ou da enorme expansão da construção civil, permitiu, em vastos segmentos, suportar os custos anteriores (menos pessoas a trabalhar na família e despesas inerentes aos livros e à alimentação no estabelecimento de ensino).

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Fig. 5 e 6 - Perspetiva da RARET - década de 80

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A RARET e a sua escola

As Escolas industriais e comerciais, antigo ramo do ensino profissional e vocacional, tinham associado a si, também, na visão de muitos, uma componente forte de visão elitista, utilitarista e classista inerente ao Antigo Regime. Para os filhos dos operários e agricultores, com posses e qualificações mínimas, era guardada era esta forma de ensino, em que se aprendia para ser técnico, e não para aceder ao ensino superior. Para os filhos da classe mais abastadas existiam os liceus, em cada capital de Distrito em regra, formas de ensino geral que se constituam como passadeiras para a Universidade e para dar formação cultural e científica geral. A industrialização crescente pedia estas novas formas de qualificação mais exigentes. Para outros, não deixando de ser um facto que tinha na base uma visão utilitarista e de classe, permitiria, pragmaticamente, que o País fosse dotado dum operariado cada vez mais qualificado e que muitos pudessem aceder à universidade e ao ensino politécnico, iniciando formas de mobilidade social novas e saindo do ciclo de pobreza ondes as suas famílias anteriores tinham nascido. A Escola Industrial da RARET16 permitiu essa mobilidade social, dentro do ensino industrial, para dezenas de jovens da Glória e de Marinhais, filhos das dezenas de operários que as instalações americanas ocupavam, mas de muitos filhos de agricultores e outras ocupações das localidades. A Glória era a que a beneficiava do maior impacto, pelo seu isolamento. O ensino ministrado, nas áreas da eletricidade e eletrónica, compreendia o ensino industrial e o denominado ensino complementar. Empresas

Magos em Portugal, que se expandiam, como a EDP, ocuparia uma parte significativa destes quadros, assim como a empresa mãe, a RARET, para a gestão e manutenção dos seus emissores retransmissores. Alguns prosseguiram para cursos de engenharia e outros cursos superiores após o 25 de Abril. As mulheres, por sua vez, tinham acesso aos cursos denominados de Formação Feminina, que se prolongavam apenas até ao atual 9º ano, com uma formação marcada sobretudo pela visão da condição de género do Antigo Regime, como por exemplo nas áreas da culinária. Muitas mulheres utilizaram esta condição para ter acesso a vias de ensino dedicados a professores primários. Pela primeira vez, a Glória passou a ter professoras locais a ensinar as suas crianças. Esta penetração crescente do sistema educativo secundário nos jovens glorianos vai ter enormes repercussões sociais, que rapidamente levam à consciencialização dos efeitos da educação: melhores empregos, melhor remuneção, mobilidade social crescente, comportamentos sociais diferentes, acesso ao conhecimento do mundo e vidas com incomparavelmente menos esforço físico. Este facto teria um efeito demonstrativo sobre a generalidade da comunidade gloriana, gerando, a partir daí, que a adesão à escola começasse a ser progressiva e socialmente a ser generalizada, observando a Glória níveis de educação superiores às regiões limítrofes ao longo dos anos setenta. A Escola fazia o que sempre fez, uma revolução social progressiva. Associada aos efeitos da Guerra Colonial, os mecanismos socialmente inovadores reforçavam-se.

Funcionava como uma delegação da Escola Industrial Fonseca Benevides de Lisboa, que exercia a tutela em termos das certificações escolares e profissionais. 16

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figura 7 e 8 - Escola da RARET - 1967

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Magos A Democracia e a RARET

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A Revolução de 25 de Abril de 1974 passou pela RARET discretamente. No próprio dia, as forças armadas instalaram-se no local, não para ocupar, mas para a defender. A população local não teve qualquer reação que incomodasse, atendendo ao grau de penetração e ligação social que a entidade tinha. Em todo o período do PREC (Período Revolucionário em Curso) não houve qualquer conflito local, apenas um evento excecional, umas bombas colocadas nas antenas, mas que pouco indiciam que tenha sido de fontes da região. A RARET, enquanto instituição, ou através dos técnicos que trouxe, acabou por penetrar na estrutura associativa e institucional gloriana. A generalidade das associações beneficiava da sua ajuda, seja em materiais, seja financeira, seja em dirigentes, pois muitos eram seus funcionários ou estudantes. Os casos da Casa do Povo, da Etnografia, do Centro Popular de Cultura e Recreio, das Festas e do Desporto, as mais penetrantes, eram exemplares. A Freguesia, instituída em 1966, resultou da ação direta dum funcionário da empresa,

José Augusto Antunes Catarino, que liderou todo o processo, natural duma localidade próxima de Coimbra, residente no bairro da empresa, já experimentado na fundação duma localidade em África. Este foi o seu primeiro Presidente de Junta. Seriam sobre os terrenos doados pela empresa, na proximidade da vila, que se instalariam a generalidade das infraestruturas coletivas. Foram estas as razões, numa localidade onde as adesões a partidos de esquerda foram significativas, porque a RARET nunca foi vista como negativa, embora sabendo-se como algo associado ao Antigo Regime. Com estes funcionários, alunos, professores, técnicos colegas de trabalho, as relações próximas eram muitas. A Revolução teve, contudo, consequências internas na empresa. Os salários foram generosamente acrescidos. As infraestruturas foram mais abertas à população, sendo a piscina um exemplo. A disponibilidade para ajudar passou a ser maior. A abertura e flexibilidade no rigor na gestão da escola passou a ser maior.

Uma experiência pessoal: do ensino industrial à Escola Secundária Unificada Enquanto autor deste texto, vivenciou-se com a RARET uma experiência única e socialmente disruptiva face à herança familiar e social em que tinha nascido. Idêntica, nos efeitos, à de centenas de glorianos. Dos seis ascendentes imediatos (para trás destes só se alteraria para pior) nenhum teve acesso à escola, os quatro avós e os dois pais. Dos dois lados proprietários agrícolas, com o lado materno a fazer parte dos pouquíssimos que, antes dos aforamentos do século XIX, tinham propriedade.

Os avós vivam da agricultura, da produção de cereais e do pastoreio. O pai tinha tentado quebrar este ciclo, enveredando pelo mester de pedreiro, numa época em que a construção civil se expandia, tendo apreendido a ler no Exército, pelo método da cartilha de João de Deus, pouca literacia, mas um grande contributo, inclusive para a visão de que a educação seria a forma de quebrar o ciclo de vida e pobreza anterior. Dos avós, um lado tinha 10 tios, e do outro 4, mas com uma taxa de mortalidade Salvaterra de Magos | n.º especial | Ano: 2021


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infantil que levou 6. Uma esperança de vida abaixo dos setenta anos, que teimou em se verificar. O Portugal típico rural do salazarismo. A RARET permitiu prolongar a escolaridade de quatro anos, onde os amigos iam ficando para trás, pois a taxa de repetência e o insucesso escolar eram elevadíssimas, sendo mesmo maioritária, pois a regra era a enorme seletividade. Acedeu-se ao Ciclo Preparatório da TV, instalado na RARET, em que as professoras eram competentíssimas, completando na perfeição as aulas vias TV e os materiais cedidos. As aulas começavam às 14h e terminavam às 20h, terminando em inverno já bem noite dentro, sendo as viagens de bicicleta, nos quatro quilómetros de distância, para uma criança de 9 anos, entre os matagais e as terras de estrada batida, sem luz elétrica, um desafio ao medo infantil, mas um enorme beneficio porque era feita praticamente a custo zero. O Mundo, as línguas, as Ciências, as Artes, a Música, chegava pela TV, pela leitura e pela pedagogia das professoras. Se a Natureza ajudasse os pais e os seus rendimentos, a ordem paterna era atingir o nível de ensino máximo, se continuasse com o aproveitamento. A Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, na velha icon Citroen complementava a ânsia de ler. Daí seguia-se a opção pela Curso Industrial, entre desenho técnico e oficinas de prática dentro das oficinas da RARET, onde professores e técnicos da instituição se confundiam, com as matemáticas a caberem a professores vindo do Istituto Superior Técnico ou do ISEL (Instituto Superior de Engenharia de Lisboa). A reforma de 1979, contudo, com a criação do Ensino Secundário Unificado, com o objetivo de não ter escola de primeira (os liceus) e de segunda (as industriais e comerciais), embora teoricamente unificasse, na RARET, apenas no currículo, com

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Magos mais disciplinas de formação geral (Físico-Quimica, Ciências da Natureza, Matemática, Português, Economia, Filosofia, etc.) se alargou, mas o ensino técnico manteve-se nas linhas gerais que tinha tido. O rigor desta formação, a qualidade do ensino, incluindo dos comportamentos na escola, a par da ligação aos professores, foi fundamental para alimentar e motivar um desejo permanente a conhecer, o gosto pela literatura e pela filosofia, a sedução pela física e a química e a racionalidade do conhecimento, a aproximação às artes, no desenho e na pintura, o desenvolvimento do poder crítico e de se questionar permanentemente e o apelo à participação cívica foram valores intrinsecamente entranhados por via da Escola da RARET. Desde os jornais de parede à discussão e questionamento da religião e das ideologias, à entrada e dinamização de associações culturais (teatro, marionetes e defesa do património cultural onde se foi dirigente aos 16 anos), à ligação às instituições (candidato autárquico, logo que atingida a elegibilidade eleitoral com a maioridade), foram valores e vontades que a escola despertou, percebendo que a educação, para um pobre, sem acumulação de capital, era forma de perceber melhor o mundo, ter mais rendimento e seguro, dispor de tempo e capacidades para potenciar a sua liberdade, perceber o mundo e contribuir para alterar e torna-lo melhor para todos. A opção por Economia resultava desta visão que a Escola da RARET deu, mas a opção por Economia (em 1979) implicava ir procura-la na capital de Distrito (Santarém). Abril já tinha criado os passes escolares, alargado a escola pública e a escolaridade, os transportes públicos alargados e as estradas alcatroadas de ligação eram outras, os salários tinham subido e as possibilidades eram ligeiramente

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Magos superiores. Quando se entrou em Lisboa na Universidade, a RARET e a Escola Pública tinham fornecido algo a que os seus ascendentes e a comunidade tinha tido pouco acesso e esse privilégio não poderia ser desperdiçado. A dezena e meio de jovens que, no final dos anos setenta, se deslocavam diariamente na camioneta da rodoviária pública

para Santarém, era um número elevadíssimo para o histórico da Comunidade, mas a partir daí seria sempre a subir as entradas no ensino secundário, e a culpa era da Revolução, mas muito da Escola da RARET, pois os resultados educativos transpareciam este maior número proporcional na Glória face aos vizinhos, com exceção de Salvaterra.17

Queda do Muro de Berlim, Fim da Guerra Frio e Fim da RARET

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A razão de ser da RARET radicava na lógica da Guerra Fria. De um lado o bloco soviético, estendido da Alemanha Oriental (RDA) à Rússia, de orientação comunista e partido único. Do outro, a Europa Ocidental, de matriz parlamentar e democrática, com economia a assentar no mercado privado, liderada pelo EUA. Nos outos continentes, após a Segunda Guerra Mundial, a matriz marxista ainda era mais dominante. A partir dos finais dos anos setenta, o sistema comunista dava sinais de rutura económica e, a Ocidente, os EUA e o Reino Unido, com Tatcher e Reagan a liderarem, intensificaram a luta contra o Bloco de Leste, seja nos bloqueios económicos, seja na vertente ideológica e de contra informação. Ao longo dos anos oitenta a zona de influência soviética desmorona-se sendo a queda do Muro de Berlim, em 1989, o evento simbólico. A RARET deixava de fazer sentido. Em 1992 inicia-se o seu desmantelamento, uma parte das infraestruturas é deslocada para a Ásia, onde agora

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passaria o centro das movimentações geoestratégicas do Mundo. Para trás a Glória já era algo diferente. Não apenas pelas heranças materiais que deixou. Terrenos, onde se situam quase todas as infraestruturas públicas existentes (escolas, creches, pavilhões e campo desportivo, apoio a idosos, centro de saúde, Casa do Povo, centro cultural Jackson, ringue polivalente, jardim infantil, sede das associações), mas pela herança imaterial, a mais rica, a escola e a partilha de conhecimento. Diferentes por várias razões. O Mundo é outro. A globalização, a tecnologia e os média invadiram todas as reservas culturais e identitárias. A industrialização primeiro, depois a terciarizaração, associada à concentração urbana, atacaram as velhas aldeias. Mas a educação e a cultura foram e são, nestes tempos, a variável mais importante para nos mudar por dentro. E nesta mudança a RARET foi determinante.

Os Censos de 2001, do INE, face aos anteriores eram claros sobre a evolução.

Salvaterra de Magos | n.º especial | Ano: 2021


A RARET e a Glória do Ribatejo - 70 anos da Primeira Retransmição 4 de julho de 1951

Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

Magos



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