Revista Magos 2016

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Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos n.ยบ3 | Ano 2016


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| Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos n.º 3 Ano: 2016

Propriedade Câmara Municipal de Salvaterra de Magos Coordenação Presidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, Eng.º Hélder Manuel Esménio Grafismo Soraia Magriço Colaboradores deste número Lino André João Carlos de SENNA-MARTINEZ e Elsa LUÍS Gonçalo Lopes João António Mendes Neves Nuno Saldanha Jorge Custódio Samuel Tomé Roberto Caneira Nuno Prates Execução Gráfica Palmigráfica Artes Gráficas Lda Depósito Legal 380652/14 Tiragem 500 exemplares

Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos


Índice 1 | Análise das técnicas de perfuração e evidências de uso dos adornos da “Vala” (Cabeço da Amoreira, Muge) | Lino André | pág. 3 à 24 2 | O Conjunto dos Machados de Bronze de “Tipo Bujões” de Escaroupim (Salvaterra de Magos): Um “Depósito” do Bronze Médio sobre a linha do Tejo? | João Carlos de SENNA -MARTINEZ e Elsa LUÍS | pág. 25 à 38 3 | A Misericórdia de Muge durante o Antigo Regime | Gonçalo Lopes | pág. 39 à 72 4 | Muge antes de 1304 | Gonçalo Lopes | pág. 73 à 102 5 | As Memórias Paroquiais (1758) de Salvaterra de Magos e Muge | João António Mendes Neves | pág. 103 à 142 6 | Joaquim Manuel da Rocha - A Pintura da capela-mor na igreja de S. Paulo de Salvaterra de Magos | Nuno Saldanha | pág.143 à 166 7 | A FÁBRICA DE DESCASQUE DE ARROZ DA CASA CADAVAL: Património Industrial de Muge | Jorge Custódio | pág.167 à 216 8 | Marinhais - apontamentos à sua toponímia | Samuel Tomé | pág. 217 à 240 9 | «A festa das sortes - Análise e estudo dos aspectos históricos e etnográficos desta cerimónia na Glória do Ribatejo» | Roberto Caneira | pág. 241 à 254 10 | Constantino Fernandes e o seu legado artístico e cultural | Nuno Prates | pág. 255 à 262

Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


Magos Prefácio |

A edição do 3.º número da revista MAGOS, vem consolidar esta publicação que tem como principais objetivos o estudo, preservação e divulgação da história e do património do concelho de Salvaterra de Magos. Esta revista cresceu e continua a privilegiar a interdisciplinaridade e a variedade temática, e tem despertado o interesse de investigadores locais e académicos que se vão interessando e escrevendo sobre as diferentes facetas da nossa história e da nossa cultura. O Município de Salvaterra de Magos continua a apostar nesta edição, porque ainda há muito para estudar, pesquisar e debater sobre o concelho e ao mesmo tempo enriquece os estudos locais que são uma pedra basilar para promover o desenvolvimento local e apostar no turismo que tem sido uma bandeira defendida e promovida por este executivo municipal. A partilha dos conteúdos da revista MAGOS serve para estabelecer pontes com o público interessado nestas matérias e assume também a função de ser uma ferramenta de trabalho para os estudiosos e investigadores das áreas de história e património.

O Presidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos

Eng.º Hélder Manuel Esménio

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Análise das técnicas de perfuração e evidências de uso dos adornos da “Vala” (Cabeço da Amoreira, Muge). Lino André ICArEHB-Interdisciplinary Center for Archaeology and Evolution of Human Behaviour FCHS, Universidade do Algarve. Campus de Gambelas, 8005-139 Faro, Portugal linoantonio@gmail.com


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Análise das técnicas de perfuração e evidências de uso dos adornos da “Vala” (Cabeço da Amoreira, Muge).

1 | Introdução Desde que as primeiras escavações arqueológicas tiveram lugar, no início dos anos 30 do século passado (Corrêa, 1933), já foram encontrados no concheiro mesolítico do Cabeço da Amoreira mais de 2000 exemplares de conchas perfuradas, pertencentes na sua maioria a espécies fluviais e estuarinas (Corrêa, 1931; Roche, 1966; Arnaud, 1987; Rolão, 1999; André, 2015; André e Bicho, 2016). Até à data, além da identificação taxonómica dos espécimenes que compõem esta grande colecção, nunca houve nenhuma tentativa para saber como teriam sido alteradas e manipuladas pelos humanos, apesar dos vários estudos realizados a partir de conjuntos de adornos em concha durante o Paleolítico e o Mesolítico, incluindo materiais provenientes de sítios localizados na fachada atlântica e da costa mediterrânea da Península Ibérica (Taborin, 1993; Álvarez Fernández, 2006; Tátá et al., 2014; Gutiérrez-Zugasti e Cuenca Solana, 2015), que permitem determinar qual a tecnologia utilizada na produção destes elementos de adorno. Este artigo apresenta os resultados das análises efectuadas às perfurações presentes nos espécimenes provenientes da área da Vala, no Cabeço da Amoreira, tendo por base estudos experimentais realizados em Portugal (Tátá, 2011; Stiner et al., 2013; Cabral e Monteiro-Rodrigues, 2015), assim como a identificação de vestígios de uso, a fim de compreender quais as técnicas e instrumentos utilizados para perfurar as conchas e um dente de cervídeo, e ainda determinar se estes terão servido como elementos de adorno.

2 | Contexto arqueológico do Cabeço da Amoreira

2.1 | Localização, descrição e trabalhos arqueológicos O concheiro Mesolítico do Cabeço da Amoreira está localizado, à semelhança de todos os outros concheiros do vale do Tejo, na orla dos terraços quaternários do rio Tejo, ao logo da sua margem esquerda (Fig.1). Este concheiro, ainda em bom estado de conservação, situa-se na margem esquerda da ribeira de Muge, a cerca de 4 km da confluência desta com o rio Tejo e a sua altitude, cerca de 15 m, faz com que esteja a salvo das cheias. Apesar de a sua posição em relação à ribeira não proporcionar uma boa visibilidade, o relativamente baixo declive da sua encosta tornaria mais fácil o transporte dos recursos aquáticos até ao acampamento (Arnaud, 1989). O concheiro foi identificado, juntamente com o da Moita do Sebastião e o da Fonte do Padre Pedro, no longínquo ano de 1864 por Carlos Ribeiro (Ribeiro, 1884). Desde então, um elevado número de investigadores, como Mendes Corrêa nos anos 1930, Jean Roche e Veiga Ferreira nos anos 1950 e 60, José Rolão entre 1999 e 2001 e, mais recentemente, Nuno Bicho, desde Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos 2008, intervencionaram a área que compreende este concheiro (Fig. 2), um dos maiores na região de Muge, com cerca de 60 metros de diâmetro e perto de 3,5 metros de altura (Gonçalves, 2014). Comparativamente aos outros concheiros que fazem parte do complexo Mesolítico de Muge, cuja ocupação simultânea terá tido início há cerca de 8 100 anos cal BP (Bicho et al., 2013), são muitas as semelhanças entre estes no que diz respeito à morfologia, padrão de localização, rituais de enterramento e dieta dos indivíduos, verificando-se diferenças na tecnologia lítica, nomeadamente nos geométricos, através de uma maior presença de triângulos no Cabeço da Amoreira. Durante a sua ocupação inicial, o sítio poderá ter servido de acampamento residencial visto haver vestígios de buracos de poste, estruturas de combustão e fossas côncavas, todas localizadas na base do concheiro, estando estes elementos relacionados com zonas de habitação.

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(Figura 1)

(Figura 2)

A acumulação exaustiva de conchas que formam o concheiro, composto principalmente por restos de Scrobicularia plana e Cerastoderma edule, terá acontecido entre 7 800 e 7 500 anos cal BP, verificando-se o final da ocupação mesolítica por volta de 7 400 anos cal BP (Bicho et al., 2012) e o total abandono do sítio por volta de 6 600 anos cal BP coincidindo com o aumento da Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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aridez e da sedimentação do vale, assim como com o fim da salinidade nos rios do vale do Tejo que terá ocorrido entre c. 6 900 e 6 600 cal BP (Bicho et al., 2010, 2013). Sobre a camada de conchas identificaram-se níveis arqueológicos mais recentes, posteriores à ocupação mesolítica, com a presença de cerâmicas, algumas decoradas que, juntamente com as datações provenientes de dois esqueletos localizados no topo do concheiro, de 7 146 - 6 847 e 7 570 - 7 320 anos cal BP, respectivamente, e as análises isotópicas realizadas aos restos humanos de um indivíduo revelaram a ausência de recursos marinhos na sua dieta (Umbelino, 2006), o que indicia que não estamos perante uma ocupação mesolítica, lançando a hipótese de que a população endógena poderá ter sido incorporada na população neolítica (Bicho, 2011). A identificação de ambos os horizontes culturais, Mesolítico e Neolítico, fora dos limites do concheiro, fez com que fossem realizadas várias sondagens incluindo a abertura de uma vala de 12 metros de comprimento por 1 metro de largura, de onde provém o conjunto de artefactos analisados no presente trabalho, e onde foi possível identificar cinco níveis arqueológicos, cuja formação é contemporânea e posterior à formação do concheiro, contendo milhares de artefactos líticos, algumas cerâmicas e duas estruturas de combustão, fazendo-se, no entanto, notar a ausência de restos faunísticos (Cascalheira et al., 2015).

2.2 | Os elementos de adorno A primeira menção de que há registo acerca da presença de conchas perfuradas no concheiro do Cabeço da Amoreira foi feita por Mendes Corrêa, em setembro de 1931, no XV Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-histórica, em Paris. Corrêa refere a presença de “numerosas conchas perfuradas” das espécies Cypraea europaea, Nassarius reticulata, Bythinia tentaculata e Neritina fluviatilis, além de outros objectos conotados com a função de adorno corporal, incluindo dentes de animais, pequenas placas de argila com perfurações e “pequenos pedaços de argila cozida”. É ainda mencionada a presença de um exemplar de Natica hebraea, facto que Mendes Corrêa considera excepcional, visto ser uma espécie mediterrânea desconhecida no território português, o que faz com que este desenhe duas hipóteses: uma que atesta que o clima na região era mais quente no período da formação do concheiro do que actualmente, e outra que defende o transporte deste exemplar, por parte dos humanos, ao longo de grandes distâncias. O autor defende a primeira hipótese como sendo a mais plausível (Corrêa, M., 1931). A segunda hipótese também não deixa de ser credível, visto que actualmente vários investigadores, como Taborin (2004) e Alvarez Fernández (2011), reportam a presença de espécies cujo habitat é o Mar Mediterrâneo, em sítios paleolíticos distantes da costa mediterrânea (> 400 Km). De resto, é de salientar Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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que não voltou a ser referida a presença desta espécie nos concheiros de Muge. Em 1957, e volvidos quase 30 anos depois da comunicação de Mendes Corrêa, Jean Roche e Veiga Ferreira referem a presença destas espécies, reconhecendo a sua semelhança com as encontradas noutros concheiros de Muge, confirmando a presença das espécies descritas pelo anterior investigador. Estes consideram que os exemplares de Natica hebraea e Littorina littorea, sendo que a segunda é aqui mencionada pela primeira vez, conferem a este concheiro uma maior antiguidade em relação aos seus congéneres, não sendo no entanto possível prová-lo pois não há indicação nítida da posição estratigráfica em que se encontravam (Roche e Veiga Ferreira, 1957). Em 1966, Jean Roche apresenta, num congresso em Barcelona, os resultados de um inventário realizado com base nos materiais postos à sua disposição por Mendes Corrêa, em 1950, provenientes do Cabeço da Amoreira. Este refere a “pobreza e pouco interesse estético dos mesolíticos de Muge”. Menciona as conchas perfuradas, que perfazem a maioria dos objectos de adorno deste conjunto, onde inclui os exemplares de Pecten maximus e Cardium norvegicum, cuja presença ainda não tinha sido referida. São mencionados os pendentes de quartzito, xisto, osso e dentes de cervídeos, assim como de vértebras de peixe e dentes de “mamíferos marinhos, provavelmente Peixe -Boi”. Por fim refere a presença de “missangas e contas”, feitas em cristal de quartzo hialino,

um deles abrilhantado pelo uso e outro com marcas nas arestas laterais, características que Roche acredita terem sido provocadas pelo desgaste do uso, e termina mencionando a presença de fragmentos de corantes, como a hematite e óxido de manganésio (Roche, 1966). Já no final do séc. XX, José Rolão, na sua tese para a obtenção do grau de doutoramento, apresenta a análise de um conjunto de “peças de adorno e/ou votivas”, provenientes dos trabalhos efectuados até à data no Cabeço da Amoreira e que este define como sendo o “conjunto mais completo de todos os concheiros estudados” (Rolão, 1999: 197). As peças de adorno em fauna malacológica, num total de 2039 exemplares, pertencem às espécies Nassarius reticulatus, Neritina fluviatilis, Trivia europaea, Ostrea sp., Scrobicularia plana, Cardium edule, Cardium norvegicum e Pecten maximus. Aqui destaca-se o facto de não serem referidas as espécies Natica hebraea, Cypraea europaea Littorina littorea e Bythinia tentaculata, como acontecera antes, e faz referência, pela primeira vez, a três espécies: Ostrea sp., Scrobicularia plana e Cardium edule. Rolão refere também peças de adorno fabricadas em material lítico, quartzito, quartzo hialino e xisto, em restos de fauna marítima como vértebras de peixe e dentes de mamíferos marinhos, fauna terrestre, e menciona um dente perfurado de Sus sp. e vários dentes de cervídeo, assim como ossos com perfurações conotadas com a prática de suspensão e ainda a presença de duas peças em argila. Segundo Rolão, Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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Análise das técnicas de perfuração e evidências de uso dos adornos da “Vala” (Cabeço da Amoreira, Muge).

a espécie mais representada neste concheiro é a Neritina fluviatilis, ultrapassando em largo número a presença das outras espécies, senão vejamos: 1628 exemplares de Neritina fluviatilis, 296 de Trivia europaea, 99 de Nassarius reticulatus, 7 de Scrobicularia plana, 3 de Ostrea, 3 de Cardium norvegicum, 2 de Cardium edule e 1 exemplar de Pecten maximus. O autor considera duas possíveis finalidades para estes materiais, adorno pessoal ou votivo, tendo em conta o facto de alguns enterramentos terem como espólio exemplares de conchas perfuradas (Rolão, 1999). Desde 2008, e coincidindo com o inicio dos trabalhos da equipa coordenada por Nuno Bicho, no âmbito do projecto “The last hunter-gatherers in the Tagus valley: The Muge Shellmiddens” (Bicho et al., 2011), já foram recolhidas, e identificadas, centenas de conchas perfuradas, juntamente com outros materiais, cujas características, ainda que analisadas de forma preliminar e macroscópica, fazem crer ter sido utilizadas como objectos de adorno, ou produzidas com esse intuito, tendo no entanto de ser efectuada uma análise minuciosa de maneira a poder confirmar estas hipóteses.

2.3 | Descrição da Vala e proveniência dos materiais Como já foi referido anteriormente, os materiais sujeitos a este estudo são provenientes da área designada por Vala, localizada entre o canto nordeste da Área 1 e o limite sul do concheiro (Fig.3). Nesta foram identificados dois horizontes culturais, nomeadamente Mesolítico e Neolítico, de onde foram recolhidos inúmeros artefactos líticos e alguns fragmentos de cerâmica, respectivamente. Do total de onze camadas estratigráficas definidas, três delas, a 5, 3 e 2 são compostas por conchas e correspondem às camadas 1, 2 e 3 do concheiro.

(Figura 3)

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As restantes camadas são constituídas por areias, com maior ou menor presença de artefactos, com excepção das camadas 1 e 11, sendo que a camada 1 é composta por areias estéreis e e a camada 11 resulta da actividade de crivagem. A camada 10 é composta por areias de cor escura, e estão presentes pequenos fragmentos de conchas e de seixos, sem vestígios de quaisquer artefactos. Na camada 9, constituída por areias compactas e sem raízes, foram encontrados fragmentos de cerâmica e indústria lítica, o que indicia uma ocupação do Neolítico médio. Na camada 8, formada por areias bem definidas e bastante semelhantes às da camada 3, sem a presença de raízes e outros elementos naturais, foi recuperado um exemplar de Trivia sp.. A sua presença é, provavelmente, devido a episódios de escorrência da superfície do concheiro. Da camada 7, composta por areias bem definidas e sem raízes, são provenientes fragmentos de cerâmica e alguns artefactos líticos resultantes de uma ocupação do Neolítico antigo. A camada 6, que cobre parcialmente o topo do concheiro, é composta por areias castanhas escuras e exibe muitos artefactos líticos e nenhuma cerâmica. É precisamente das camadas 5, 3 e 2 que provêm a maioria dos artefactos (18 exemplares), à excepção do exemplar recuperado na camada 8. Na camada 5, que corresponde ao limite sul da camada superior do concheiro, composta por areias de cor escura com fragmentos de conchas e artefactos líticos, foram recuperados 2 exemplares de Theodoxus fluviatilis, dois de Trivia sp., o dente de cervídeo e o fragmento de argila. Na camada 3, que é composta por sedimentos de cor acinzentada, abundam os fragmentos de conchas e estão presentes rochas fragmentadas pela acção do fogo, foram encontrados 7 exemplares de Theodoxus fluviatilis. Na camada 2, que é composta por areias castanhas claras, com fragmentos de conchas e várias conchas inteiras, foram recolhidos 6 exemplares de Theodoxus fluviatilis e um exemplar de Trivia sp.. Aqui a presença de artefactos líticos e clastos é escassa (Cascalheira et al., 2015).

3 | Os elementos de adorno da Vala

3.1 | Apresentação e descrição da colecção O conjunto de artefactos provenientes da vala e conotados com a funcionalidade de adorno é compreendido por um total de 21 exemplares. Destes fazem parte 19 conchas de gastrópodes, 1 dente de Cervus elaphus e 1 fragmento de argola de argila com tratamento térmico. As conchas estão, de uma maneira geral, bem conservadas e sem incrustações, o que facilita a sua identificação taxonómica e a análise das técnicas de perfuração e de marcas de uso, quando presentes. Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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As conchas estão, de uma maneira geral, bem conservadas e sem incrustações, o que facilita a sua identificação taxonómica e a análise das técnicas de perfuração e de marcas de uso, quando presentes. As conchas de gastrópodes pertencem a duas espécies, Theodoxus fluviatilis e Trivia arctica/monacha. Estas apresentam-se na sua maioria em bom estado de conservação, sendo que em alguns dos exemplares ainda é possível observar as características originais da concha, como a coloração ou as linhas que compõem os seus padrões. Do conjunto de conchas contam-se 15 exemplares de Theodoxus fluviatilis, dos quais 10 apresentam perfurações sendo que as restantes 5 encontram-se fracturadas (Fig.4). O tamanho médio das conchas permite determinar que os indivíduos desta espécie já teriam atingido a idade adulta no momento em que foram recolhidos. Das 4 conchas de Trivia sp. que fazem parte do conjunto nenhuma está inteira, apresentando-se todos os exemplares com a parte dorsal ausente, pelo que não foi possível determinar qual a variedade da espécie (arctica ou monacha) ou se estariam ou não perfuradas, à excepção de um exemplar cuja parte dorsal, onde é comum encontrarem-se as perfurações, não está totalmente ausente, exibindo fracturas consistentes com esta actividade nas suas extremidades. O dente de Cervus elaphus presente nesta colecção trata-se de um incisivo inferior direito e encontra-se em bom estado de conservação. A extremidade da raiz apresenta algum desgaste

e dois pequenos sulcos, que podem ser consistentes com algum tipo de actividade antrópica. O exemplar apresenta uma perfuração bicónica de formato circular na raiz, sendo que o diâmetro mais largo está na superfície de cada lado. No que diz respeito às suas dimensões, o seu comprimento total é de aproximadamente 17 mm; a coroa tem 8 mm de largura e 6,5 mm de espessura; O artefacto de argila está fracturado mas apresenta ao centro uma marca que poderá ser resultante da existência de uma perfuração, indiciando a sua utilização como elemento de adorno, ou pelo menos poderá ter sido essa a intenção aquando da elaboração. As margens da fractura aparentam polimento e a coloração é uniforme em todo o artefacto, o que indica que a fractura não é recente. Está formada por uma pasta ferruginosa que lhe dá uma cor acastanhada, compacta e com poucos elementos não-plásticos. São visíveis pequenas manchas escuras que podem ser resultantes da acção do fogo.

3.2 | Técnicas de perfuração utilizadas na produção de adornos Os objectos de adorno, ou votivos, que apresentam perfurações antrópicas, nomeadamente as conchas de moluscos ou gastrópodes e os dentes de mamíferos têm sido alvo de maior atenção nos últimos tempos no que diz respeito às técnicas empreendidas na sua elaboração.

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Magos Mediante a análise formal das perfurações, com o apoio da microscopia, e pela acção experimental que permite estabelecer comparações entre os artefactos encontrados em contexto arqueológico e outros fabricados actualmente, tornou-se possível compreender quais os utensílios e técnicas utilizados na sua modificação e as suas conseguintes marcas. As conchas perfuradas antropicamente que se encontram em contextos arqueológicos distinguem-se das outras conchas de moluscos mediante uma série de características e certos “padrões de dano”, sendo que as características mais relevantes são a (a) elevada frequência de perfurações realizadas por meio da picagem directa e a constante repetição da localização do furo, (b) uma moderada incidência da abrasão causada pelo movimento das marés, o que indica que foram recolhidas passado algum tempo depois do animal ter morrido, (c) o constante tamanho reduzido das conchas e (4) uma forte tendência para as conchas se encontrarem inteiras. Os furos são normalmente de formato circular e de aspecto grosseiro e as fracturas são geralmente direitas, podendo apresentar sinais de desgaste, muitas vezes assimétricos, causados pela abrasão das fibras que serviriam para o suster.

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(Figura 4)

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Dos chamados “padrões de dano” fazem parte os vestígios da acção do fogo, as fracturas junto às perfurações e o alto grau de polimento causado pelo extensivo uso. Estas características contrastam com as que estão presentes nas conchas de moluscos que tinham como finalidade a alimentação. Estas conchas são geralmente de maiores dimensões e apresentamse muito fragmentadas, com os bordos afiados, o que é indicativo de que foram apanhadas enquanto o animal estava vivo, e a acção do fogo é mais evidente (Stiner, 2003). Segundo Papi-Rodes (1989) a perfuração é o elemento mais comum de entre as tipologias possíveis na elaboração de um objecto de suspensão, sendo o outro elemento o estrangulamento, podendo esta técnica ser utilizada em suportes líticos, ósseos, dentários ou ainda em hastes. Este método consiste no estreitamento de uma determinada parte do objecto mediante abrasão, corte ou entalhamento de maneira a prender ou encaixar o elemento de suspensão. Antes de proceder à perfuração propriamente dita, o “artesão” poderá realizar algum tipo de preparação do suporte como a abrasão ou o corte de maneira a reduzir a superfície a perfurar. No que diz respeito à acção perfuradora, Tátá (2011) utilizou seis métodos diferentes na sua acção experimental, recorrendo a pontas líticas, em osso ou haste de veado, e são eles a pressão simples, picagem directa, percussão indirecta ou puncionamento e abrasão, utilizados apenas nos exemplares das conchas, e pressão e rotação manual e riscagem, empregues

em ambos os suportes (conchas e dentes), realizados tanto a partir do exterior como do interior dos exemplares em concha, excepto nos exemplares de Trivia sp. pois a sua configuração não o permite. As diferentes técnicas de perfuração foram postas em prática, para analisar um conjunto de artefactos provenientes do sítio de Vale Boi, cronologicamente do Paleolítico Superior, e os seus resultados podem ser aplicados na presente colecção uma vez que tanto as espécies de gastrópodes como as peças dentárias estão presentes em ambas as colecções, assim como as matérias-primas que foram utilizadas para replicar os instrumentos líticos, em osso e haste. Com base nos resultados foi possível padronizar as características formais dos furos atribuindo-lhes diversas tipologias consoante a forma do contorno e o tipo de aresta. Ambos os métodos utilizados nas peças dentárias, pressão aplicando rotação manual e riscagem multidireccional por meio de ponta lítica, a partir das duas faces da raiz provaram ser eficazes, sendo que o primeiro permitiu conseguir uma perfuração de contorno circular bicónico mais regular, com menos riscos e imperfeições do que o segundo método, além de produzir menos desgaste na ponta utilizada. No que diz respeito às conchas de gastrópodes os procedimentos mais eficazes foram: (a) a perfuração por rotação com ponta lítica a partir da face exterior da concha, visto que o diâmetro da abertura na face interior dificulta o movimento; (b) puncionamento, ou percussão

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indirecta, exercida na face interior com ponta de osso ou de haste estando o espécimene assente sobre uma base de cortiça; e (c) pressão directa a partir do interior ou do exterior, com ponta de osso ou de haste, também sobre base de cortiça. A primeira técnica produz perfurações circulares de contorno regular com bisel externo abrupto ou com arestas boleadas, enquanto da segunda resultam furos normalmente circulares, com contornos geralmente pouco regulares ou mesmo irregulares e angulosos, com bisel na face exterior, produzindo a terceira técnica furos de contorno menos regulares ou mesmo irregulares, com bisel na face oposta aquela em que é realizada a pressão (Tátá, 2011). Além das características acima mencionadas também se deve ter em conta outras não menos importantes aquando da análise deste tipo de artefactos. Ainda que a existência de uma única perfuração por onde passaria o elemento de suspensão seja a mais recorrente, não deve ser descurado o facto de que alguns exemplares poderem apresentar dois ou mais furos. A origem das perfurações pode ser intencional, recorrendo às técnicas já referidas no texto, ou não-intencionais e dentro deste caso podem distinguir-se dois tipos: os naturais e os “não -antrópicos”. Os naturais são aqueles que fazem parte da configuração original da concha, sejam um orifício, uma cavidade ou mesmo um estrangulamento que permite utilizá-la como objecto de suspensão sem que tenha de sofrer alterações. Os não-antrópicos apresentam-se

naquelas conchas que, não tendo nenhum furo de origem, o adquirem sem ser pela mão do homem ou seja, este foi determinado por qualquer factor natural como a acção abrasiva das marés ou feito por um litófago. A característica comum em ambos os casos é que o homem não interveio directamente na realização da perfuração (Papi-Rodes, 1989).

3.3 | Resultados da análise microscópica das perfurações A análise formal das perfurações foi realizada nas conchas de Theodoxus fluviatilis que se apresentavam inteiras e também no dente de cervídeo. Dez dos 15 dos exemplares de Theodoxus recuperados na área da Vala encontram-se intactos e apresentam uma única perfuração, sendo que os restantes têm uma porção da concha fracturada o que poderá ser resultante da perfuração ou causado por acções pós-deposicionais. A superfície externa das conchas exibe algum grau de descoloração, possivelmente causado pelos elevados níveis de carbonato de cálcio presente no concheiro, mas na maioria dos caso é visível o padrão original e, com excepção dos 5 exemplares fracturados, todas as conchas apresentam a sua forma original o que significa que terão sido recolhidas vivas ou imediatamente após a sua morte, nas margens do rio (Dupont, 2006; Dupont et al., 2014). Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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No que diz respeito às perfurações, metade dos exemplares exibem formas circulares/ oblongas e regulares e a outra metade formas irregulares (Fig.5). As perfurações circulares ou semi-circulares são caracterizadas por um contorno regular e por um bisel pouco acentuado ao passo que as irregulares possuem um contorno anguloso e um bisel mais acentuado. Relativamente ao tamanho das perfurações, as que têm uma forma circular e de contorno regular apresentam diâmetros médios ligeiramente maiores. O tamanho e a forma das perfurações analisadas não é consistente com as perfurações causadas por predadores, que resultam em formas perfeitamente redondas e de dimensão inferior a 2 mm (Cabral e Monteiro-Rodrigues, 2015). A morfologia das perfurações é variada mas, de acordo com os resultados experimentais realizados para exemplares da mesma espécie (Tátá et al., 2014), tanto a técnica de rotação, com um instrumento lítico, a partir da superfície ex- (Figura 5) terna das conchas, como a técnica de pressão, a partir do interior, com um instrumento em osso ou haste foram provavelmente utilizadas para a realização das perfurações. O contorno regular e a presença de bisel ao redor dos furos presentes em metade dos espécimenes são consistentes com a técnica de rotação. Este método requer que se faça uma pressão controlada ao mesmo tempo que se realiza o movimento rotativo com o instrumento utilizado. A técnica de pressão a partir do interior com instrumentos em osso ou haste terá sido utilizada para realizar as restantes perfurações, caracterizadas por contornos irregulares e bisel acentuado na face externa das conchas. Ambas as técnicas e instrumentos utilizados fazem com que seja difícil controlar o tamanho e a morfologia dos furos.

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Magos O dente perfurado de Cervus elaphus caracteriza-se por duas perfurações bi-cónicas (Fig.6) com acentuado bisel nas duas faces da raiz e as suas dimensões máximas (3,3-3,5 mm) e mínimas (1,6-1,8 mm) não diferem muito de ambos os lados. A técnica utilizada para realizar as duas perfurações foi a de rotação com um instrumento lítico, a partir da superfície de ambas as faces da raiz. Apesar de os 4 exemplares de Trivia sp. não apresentarem a superfície dorsal intacta (Fig.7), é possível observar vestígios da existência de duas possíveis perfurações nas extremidades das conchas (Fig.8).

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(Figura 7)

(Figura 6)

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3.4 | Vestígios de uso Tanto nos exemplares inteiros de Theodoxus fluviatilis como no dente de cervídeo são visíveis vestígios da presença de um elemento de suspensão, o que mostra que estes artefactos poderiam ter como finalidade o adorno corporal (colares, pulseiras, etc.) ou serem incorporados numa peça de vestuário, por exemplo. Ao fim de algum tempo, o contacto entre o artefacto e o elemento de suspensão, possivelmente feito de fibras naturais, provoca o polimento e consequentemente o desgaste da área da concha ou dente com a qual está em contacto directo e prolongado.

(Figura 8)

(Figura 9)

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No caso das conchas perfuradas presentes neste conjunto estas marcas são evidentes na região mais próxima do lábio (Fig.9), característica esta que é explicada devido ao peso exercido pela concha quando suspensa o que faz com que o lábio fique virado para cima causando fricção numa região especifica do furo. À excepção de dois exemplares, todas as conchas apresentam polimento, mais ou menos acentuado, na referida região. No que diz respeito ao desgaste, e uma vez que é impossível saber qual o formato exacto do contorno original da perfuração no momento em que esta foi realizada, não se pode concluir qual a sua intensidade. No caso do exemplar de Trivia sp. que apresenta vestígios daquilo que poderiam ser duas perfurações, localizadas nos extremos da face dorsal, são visíveis sinais de polimento o que indica que este poderá ter sido utilizado como objecto de adorno (Fig.10), verificando-se assim que a fractura que o espécimene exibe terá tido lugar posteriormente à sua utilização. No exemplar de dente de cervídeo também são evidentes as marcas da sua utilização nas faces opostas da perfuração bicónica (Fig.11). A existência de um elemento de suspensão terá provocado o polimento, tanto no interior como no rebordo do orifício, mais precisamente na região com a qual esteve em contacto e o bisel apresenta-se aí mais acentuado, o que pode ser indicativo do desgaste causado pela fricção.

(Figura 10)

(Figura 11)

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Análise das técnicas de perfuração e evidências de uso dos adornos da “Vala” (Cabeço da Amoreira, Muge).

4 | Discussão e conclusões Os adornos feitos em concha e outras matérias-primas (dentes de veado perfurados ou outros tipos de contas) são portadores de importantes informações acerca do comportamento social e simbólico humano (Álvarez Fernández e Joris, 2008; Kuhn e Stiner, 2006, 2007) e podem ser usados como indicadores visuais no que diz respeito à identidade e afiliação de um ou vários indivíduos (Kuhn e Stiner, 2007). Estas propriedades seriam muito importantes no desenvolvimento das sociedades caçadoras-recolectoras complexas como é o caso do concheiro Mesolítico do Cabeço da Amoreira. Enquanto outras características, como a organização espacial dos sítios (Bicho e Gonçalves, no prelo; Gonçalves et al., 2014) ou a formação dos concheiros (Bicho et al., no prelo; 2013) já foram anteriormente estudadas, não há informação relevante no que diz respeito aos elementos de adorno. Por enquanto, os dados existentes estão restritos às análises tecno-tipológicas dos espécimenes encontrados na área da Vala: 19 conchas de gastrópodes (15 Theodoxus fluviatilis e 4 Trivia arctica/monacha), um dente de cervídeo perfurado e um fragmento de conta de argila. O maior número de exemplares de Theodoxus nesta colecção, assim como nas colecções conhecidas anteriormente, advém possivelmente do facto de esta ser a espécie mais abundante localmente, ao passo que outras espécies, como a Trivia arctica/monacha, só poderiam

ser apanhadas nas zonas rochosas localizadas a cerca de 70 km de distância, e seria por isso mais dispendioso em termos de tempo e esforço físico. As características naturais das conchas, como as cores e os padrões que exibem, tornavam-nas apelativas para a realização deste tipo de composições ao mesmo tempo que poderiam transmitir informações sobre quem as exibia. Relativamente à produção de elementos de adorno, 10 dos espécimenes de Theodoxus apresentam evidências de perfurações consistentes com actividades antrópicas. Estas características também estão presentes numa concha de Trivia arctica/monacha e no dente de cervídeo. Apesar de alguns espécimenes estarem fracturados, todas as fracturas encontramse na região da concha onde normalmente são realizadas as perfurações e, por essa razão, estes espécimenes podem ter-se fracturado durante a acção de perfuração ou depois, por razões pós-deposicionais. As análises microscópicas e a comparação com os estudos experimentais permitem identificar quais as técnicas e instrumentos que foram utilizados para realizar as perfurações. De acordo com as análises efectuadas aos exemplares provenientes da Vala, cinco conchas de Theodoxus foram perfuradas utilizando a técnica de rotação aplicada na sua face externa, com um instrumento lítico, resultando num furo de forma circular e de contornos regulares com um

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bisel ao redor. A técnica utilizada para realizar as perfurações nos restantes cinco exemplares foi a de pressão directa, a partir do interior da concha, com recurso a um perfurador de osso ou haste, resultando num furo mais irregular e anguloso, com bisel exterior. No que diz respeito ao exemplar de dente de cervídeo a técnica aplicada foi a rotação com um instrumento lítico, em ambas as faces da raiz, resultando numa perfuração bi-cónica de forma circular e de contornos muito regulares. Neste caso, a utilização de instrumentos em osso ou haste não é viável, uma vez que têm uma densidade semelhante, o que torna a perfuração muito difícil e provoca um grande desgaste nos perfuradores. A existência de áreas polidas na maioria dos espécimenes de Theodoxus, num exemplar de Trivia e no dente de cervídeo faz crer que estes estiveram pendurados num elemento de suspensão, o que terá provocado uma marca de uso localizada numa área especifica do furo. No entanto, alguns exemplares não evidenciam estas marcas, o que poderá ser devido ao facto de: a) estes não terem sido utilizados; b) terem sido utilizados de forma esporádica; c) estarem destinados a objectos votivos e como tal não estiveram suspensos ou d) poderem ter estado suspensos numa estrutura estática, não causando marcas de uso. Com a excepção do fragmento de argola de cerâmica, que é proveniente da camada do Neolítico antigo, e de um exemplar de Trivia que vem de uma camada não-arqueológica,

todos os outros exemplares foram recuperados das camadas do concheiro Mesolítico, formado entre 7800 e 7500 cal BP (Bicho et al., 2013). Na camada 5, que corresponde à camada superior do concheiro, encontra-se a maior diversidade de espécies (Theodoxus, Trivia e Cervus), enquanto nas camadas 3 e 2 estão apenas representados os exemplares pertencentes aos géneros Theodoxus e Trivia. No que diz respeito à distribuição dos métodos aplicados na realização das perfurações, a técnica de rotação está presente em todas as camadas, ao passo que a de pressão pode ser vista nas camadas 3 e 2, com maior incidência nesta última. Uma vez que a técnica de pressão, aplicada na face interior das conchas, é a que produz as perfurações de contorno mais irregular e anguloso, traduzindo-se numa maior fragmentação das conchas, e que não está presente na camada superior da Vala, é possível que esta técnica tenha sido substituída pela de rotação, que produz perfurações de contorno circular, mais regular e com um risco de fragmentação menor. Estas e outras questões só poderão ser respondidas quando forem realizadas análises ao resto dos exemplares da mesma cronologia e de contextos semelhantes.

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Análise das técnicas de perfuração e evidências de uso dos adornos da “Vala” (Cabeço da Amoreira, Muge).

| Agradecimentos: À Fundação para a Ciência e Tecnologia pelo financiamento de dois projectos desde 2008: Os últimos caçadores-recolectores do Vale do Tejo - Os concheiros de Muge e Os últimos caçadores-recolectores de Muge (Portugal): as origens da complexidade social. À Casa Cadaval e à Câmara Municipal de Salvaterra de Magos pelo apoio logístico. Aos arqueólogos Nuno Bicho, por disponibilizar os materiais analisados e pelo apoio prestado durante a realização do estudo, Célia Gonçalves, pela cedência das imagens e Cláudia Umbelino pela revisão do texto.

| Bibliografia Álvarez Fernández, E., 2006. Los objectos de adorno-colgantes del Paleolítico superior y del Mesolítico en la cornisa Cantábrica y en el Valle del Ebro: una vision europea. Ed. Universidad de Salamanca (Colección Vítor nº 195), Salamanca. Álvarez Fernández, E., Joris, O., 2008. Personal ornaments in the Early Upper Paleolithic of Western Eurasia: An avaluation of the record. Eurasian Prehistory, 5 (2): 31-34. André, L., 2015. Análise das técnicas de perfuração e evidências de uso dos adornos da “Vala” (Cabeço da Amoreira, Muge). Tese de Licenciatura. Faro, Universidade do Algarve. André, L., Bicho, N., 2016. Perforation techniques and traces of use on the Mesolithic adornments of the Trench Area at Cabeço da Amoreira Shellmidden (Muge, central Portugal). Comptes Rendus Palevol 15: 569-580. Arnaud, J., 1987. Post-glacial adaptations in Southern Portugal: a summary of the evidence. In The Pleistocene Perspective: innovation, adaptation and human survival. Londres, Allen & Unwin. Arnaud, J., 1989. Os Concheiros Mesolíticos dos vales do Tejo e Sado: semelhanças e diferenças. In Jorge, V.O. (Coord.) Livro de Homenagem a Jean Roche. Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda. Bicho, N., Umbelino, C., Detry, C., Pereira, T., 2010. The emergence of Muge Mesolithic shellmiddens (central Portugal) and the 8200 cal yr BP cold event. Journal of Island and Coastal Archaeology, 5: 86-104. Bicho, N., Cascalheira, J., Marreiros, J., Pereira, T., 2011. The 2008-2010 excavations of Cabeço da Amoreira, Muge, Portugal. Mesolithic Miscellany, 21 (2): 3-13. Bicho, N., Cascalheira, J., Marreiros, J., Gonçalves, C., Pereira, T. and Dias, R., 2013. Chronology of the Mesolithic occupation of the Muge valley, central Portugal: the case of Cabeço da Amoreira. Quaternary International 308-309: 130-139. Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos | Legendas das figuras: Fig.1: Mapa da região de Muge com a localização dos concheiros. Fig.2: Plano geral do Cabeço da Amoreira e das áreas intervencionadas. Fig.3: Perfil estratigráfico da Vala. Fig.4: Exemplares de Theodoxus fluviatilis: a) espécimenes perfurados; b) espécimenes fraturados. Fig.5: Theodoxus fluviatilis perfurados: a) espécimenes perfurados mediante a técnica de rotação; b) espécimenes perfurados mediante a técnica de pressão. Fig.6: Dente de cervídeo com perfuração bi-cónica em ambas as faces da raiz. Fig.7: Espécimenes de Trivia sp. Fig.8: Exemplar de Trivia com evidências de perfurações nas extremidades da concha. Fig.9: Evidências de uso nos espécimenes de Theodoxus fluviatilis. Fig.10: Evidências de uso em ambas as extremidades de um exemplar de Trivia. Fig.11: Evidências de uso em ambos os lados do dente de cervídeo.

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25 O Conjunto dos Machados de Bronze de “Tipo Bujões” de Escaroupim (Salvaterra de Magos)1: Um “Depósito” do Bronze Médio sobre a linha do Tejo? João Carlos de SENNA-MARTINEZ 2 e Elsa LUÍS 3 O estudo destas peças foi efectuado no âmbito do Projecto EarlyMetal “Early Metallurgy in the Portuguese Territory” (PTDC/HIS/ARQ/110442/2008) aprovado e financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. 2 Centro de Arqueologia (Uniarq) da Universidade de Lisboa. Cidade Universitária. 1600-214 LISBOA. smartinez@fl.ul.pt 3 Bolseira de Doutoramento. Centro de Arqueologia (Uniarq) da Universidade de Lisboa. Cidade Universitária. 1600-214 LISBOA. elsavluis@gmail.com 1

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O Conjunto dos Machados de Bronze de “Tipo Bujões” de Escaroupim (Salvaterra de Magos): Um “Depósito” do Bronze Médio sobre a linha do Tejo?

| Resumo:

A bacia do Tejo constituiu, simultaneamente e ao longo da Pré-História das Sociedades Camponesas peninsulares, fronteira cultural e via de passagem privilegiada norte-sul-norte de influências culturais diversas. Interessa-nos aqui particularmente o papel por ela desempenhado nos processos de transmissão de modelos e técnicas metalúrgicas, sul-norte e norte-sul, nomeadamente no caso dos primeiros artefactos em bronzes binários de que o conjunto dos machados de bronze de “Tipo Bujões” de Escaroupim (Salvaterra de Magos) constitui um bom exemplo, além de servir de pretexto a estas linhas. Palavras-Chave: Primeiros Bronzes, Bronze Médio, Arqueometalurgia, Vale do Tejo.

| Abstract:

During the Prehistory of peasant societies (from the Neolithic to the Late Bronze Age) the Tagus river basin constitutes simultaneously a cultural boundary and a cultural passageway between the northern and southern halves of central and western Iberia. We are particularly interested in the role of this area in the transmission of metallurgical models and techniques, namely, in the case of the presence there of the first binary bronzes, as exemplified by the “hoard” of four “Bujões type” axes from Escaroupim (Salvaterra de Magos) which serves as a pretext for this paper. Key-words: First Bronzes, Middle Bronze Age, Archaeometallurgy, Tagus river valley.

1 | Contextualizando um achado centenário.

José Leite de Vasconcelos publica no volume 9, 1ª série, de “O Archeologo Português” sob o título genérico de “Acquisições do Museu Ethnologico Português. II - Epoca do Bronze (e cobre)” e a páginas 40 que o “…Sr. A. Bello Júnior, de Lisboa, offereceu dois machados de Escaropim…” e, a seguir, que o “…Sr. Conselheiro Severiano Monteiro offereceu um machado de Escaropim…”. A consulta aos apontamentos originais de José Leite de Vasconcelos, do punho do próprio e conservados no Arquivo do Museu Nacional de Arqueologia4, mostra que estas peças eram parte de um lote original de 11, o qual provinha da Herdade de Escaroupim, Freguesia de S. Paulo, Concelho de Salvaterra de Magos. Destes o Fundador do actual MNA conseguira obter estes 3 e mais um outro da mesma origem, mas que não esclarece como obteve, que dão entrada no MNA (Figs.1 e 2). Lista ainda nos apontamentos, na posse de privados, outros quatro. 4

Agradecemos à Mestre Ana Ávila de Melo e à Dr.ª Luísa Guerreiro do MNA que nos facultaram estas informações.

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Magos No estado actual da nossa investigação parece pois possível considerar que os machados recuperados e aqui alvo de estudo fariam parte de um conjunto original de 11 artefactos aparecidos juntos no mesmo local, constituindo pois um possível depósito. Os quatro machados das colecções do MNA (Fig.2) receberam os números de inventário 10299, 10300, 10302 e 10303 a que correspondem no novo inventário os registos 2005.18.1 a 2005.18.4.

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Fig. 1 - Um dos machados planos de “tipo Bujões” provenientes da Herdade de Escaroupim e que José Leite de Vasconcelos obteve para o MNA, onde deu entrada sob o número de registo 10302 (no inventário actual é o 2005.18.3). Desenho original de Guilherme Gameiro (sem escala).

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O Conjunto dos Machados de Bronze de “Tipo Bujões” de Escaroupim (Salvaterra de Magos): Um “Depósito” do Bronze Médio sobre a linha do Tejo?

2 | A questão dos primeiros bronzes do Ocidente Peninsular.

Hoje em dia, não parece facilmente contestável a hipótese de uma origem transpirenaica5 dos primeiros bronzes binários peninsulares (Fernández-Miranda, Montero Ruiz e Rovira Llorens, 1995; Comendador Rey, et al. 2008; Pare, 2000). É, pois, possível considerar a transmissão de exemplares artefactuais - e mesmo do know -how necessário à produção de bronze - como tendo ocorrido, numa primeira fase, ao longo da Cornija Cantábrica de oriente para ocidente (Cantábria, Galiza, Minho e Trás-os-Montes) e, depois, para sul pelo litoral oriental e oriente das Mesetas até à área argárica, como propõem Fernández-Miranda, Montero Ruiz e Rovira Llorens (1995). Mais difícil é pensar uma provável correlativa expansão da metalurgia do bronze ao longo dos vários espaços regionais da fachada atlântica, porque, para sul da bacia do Douro e antes do Bronze Final apenas conhecemos um sítio alentejano - Malhada do Vale da Água, Ferreira do Alentejo (Valério, et al. no prelo) com produção em bronze binário de objectos pequenos e provavelmente situável no terceiro quartel do segundo milénio a.C.

Fig. 2 - Os quatro machados planos de “tipo Bujões” provenientes da Herdade de Escaroupim e hoje nas colecções do MNA (Fotografia de J.C.S.M.).

Os protagonistas quase exclusivos das primeiras produções de bronze no Norte Português e Noroeste Peninsular (Minho, Trás-os-Montes e Galiza) são os machados planos de gume largo e aberto, designados habitualmente como de tipos Bujões6 e Barcelos (Harbinson, 1968). Colocados normalmente num Bronze Médio e conhecidos sobretudo a partir de contextos de “depósito” e achados avulsos, a descoberta de contextos domésticos de produção de peças idênticas em bronze binário no sítio de habitat da

Datáveis do último quartel do 3º milénio a.C. na Europa Central e Norte de França (Fernández-Miranda, Montero Ruiz e Rovira Llorens, 1995: 67), atingindo o Nordeste Peninsular (Navarra) ainda dentro do primeiro quartel do 2º milénio a.C. (Monte Aguilar, Las Bardenas Reales, com cronologia calibrada entre 1890-1750 a.C. - Id. Ibid. 63) e entrando na área argárica apenas a partir de meados do 2º milénio a.C. (Id. Ibid. 65). 6 Face à evidência disponível, o tipo Bujões apresenta-se, com algumas variantes (por exemplo as argáricas), como o tipo por excelência dos machados do Bronze Médio do território peninsular. 5

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Sola, Braga (Na fase IIb datada entre 1673-1527 a.C. pela média ponderada de três datas - Bettencourt, 2000: 47; Comendador Rey, et al. 2008) e no habitat da Fraga dos Corvos (Vilar do Monte, Macedo de Cavaleiros - Senna- Martinez, et al. 2010 e 2011) permitiu certificar a atribuição cronocultural (possivelmente ainda dentro do segundo quartel do 2º milénio a.C.) e caracterizar como domésticos, em pequena escala e para autoconsumo os respectivos contextos de produção minhotos e transmontanos. O estudo das primeiras produções de bronzes binários na metade norte da fachada atlântica peninsular foi iniciado entre 2005 e 2009, no âmbito do projecto METABRONZE7. A partir de 2010, o projecto EarlyMetal8 veio permitir continuar o estudo da metalurgia arcaica em bronze do território hoje português incluindo a continuidade de estudo dos materiais entretanto recolhidos na Fraga dos Corvos. De ambos os projectos foi parceiro o Museu Nacional de Arqueologia, garantindo o acesso a parte dos materiais estudados, nomeadamente os que aqui abordamos. Os dados da Fraga dos Corvos e da Sola permitiam, desde 2006, pensar a possibilidade de rotas de transmissão de objectos e, eventualmente, do know-how necessário à produção de bronzes binários ao longo da fachada atlântica peninsular (Senna-Martinez, 2007) quer pela orla litoral quer por rotas mais interiores, de que a chamada “rota das estelas” aparecia como uma óbvia possibilidade (Fig.3). Trata-se do corredor natural que liga as áreas ricas em placers aluvionares de estanho (a Galiza, Minho, Trás-os-Montes e Beiras), via Nordeste Transmontano e Beira Transmontana - leia-se a Bacia do Côa - à Beira interior e, passando o Tejo, ao Nordeste Alentejano (Senna-Martinez, 2011, 2013a). Durante a Primeira Idade do Bronze (Bronze Antigo e Bronze Médio) esta via de passagem foi “marcada” pelas “primeiras figuras de poder”, as estelas e estátuas-menir armadas (Fig.3) de que destacaremos, de norte para sul, a de Tameirón (A Gudiña-Riós, Ourense - Comendador-Rey, Rodríguez Muñiz e Manteiga Brea, 2011), as de Chaves e Faiões (Jorge e Jorge, 1990), a de Cruz de Cepos (Montalegre - Alves e Reis, 2011), a de Longroiva (Mêda - Almagro, 1966: Lâm. XXX), as da Nave (Moimenta da Beira - Cruz, D. e Santos, A.T., 2011), de Ataúdes (Figueira de Castelo Rodrigo - Vilaça, et al. 2001) e de Corgas (Fundão - Banha, Veiga e Ferro, 2009). Estes símbolos iconográficos balizam, deste modo e desde o Bronze Inicial, uma das vias possíveis a ocidente que poderá ter seguido a transmissão, talvez ainda durante o Bronze Médio (Senna-Martinez, et al. 2013a), do know-how necessário à produção dos primeiros bronzes. Metalurgia e Sociedade no Bronze Final do Centro de Portugal – METABRONZE (POCTI/HAR/58678/2004), aprovado e financiado pela FCT. 8 Metalurgia Primitiva do Território Português – EARLYMETAL (PTDC/HIS-ARQ/110442/2008) também este aprovado e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. 7

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Fig. 3 - A principal “rota ocidental do estanho” na Península Ibérica e as “Estelas/Estátuas Menir” com armas situadas nas suas proximidades: Sn – A área rica em placers de estanho; Estelas do Bronze Antigo; Sítios de habitat do Bronze Médio; Estelas do Bronze Médio (Montagem de J.C.S.M.).

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Magos 3 | Os machados de Escaroupim nas colecções do MNA: Morfo-tipologia e Arqueometalurgia Segundo Harbinson os machados de tipo Bujões (Figs.2 e 4) “…are flat axes with thick and often broad butt, whose sides expand only slightly in the upper half, and in the lower half they splay out widely towards the cutting-edge9…” (Harbinson, 1968: 110) o que os aproxima dos machados argáricos que, contudo, apresentam gumes tendencialmente mais largos (Lull, 1983: 180-5). Peninsular adaptámos as propostas de Senna-Martinez para os artefactos em pedra polida (Luís, em preparação – cf. os respectivos atributos em Senna-Martinez, 1989, p.579-583). De entre os diversos ensaios de descriminação estatística que então efectuámos (Senna-Martinez, et al. 2013a) e além dos atributos não quantificáveis, pudemos verificar que, com a excepção dos machados planos de tradição calcolítica, todos os restantes têm uma distribuição do seu índice de alongamento que se aproxima ou é mesmo frequentemente superior a 50 (média de 25 exemplares completos estudados = 54 ± 6,6) enquanto o índice de abertura do gume é, normalmente, inferior a 50 (média dos 25 exemplares completos = 43 ± 4,8).

31 Fig. 4 - O conjunto dos três machados planos das colecções do MNA e provenientes do sítio de Abaças (Bujões, Vila Real), exemplares-tipo do chamado “tipo Bujões” (Foto de J.C.S.M.).

“… são machados planos com talões espessos e frequentemente largos, cujos lados apenas se expandem levemente na metade superior, enquanto na metade inferior se abrem largamente em direcção ao gume …” tradução dos autores. 10 Índice de alongamento = Inteiro de Largura do Gume/Comprimento x 100. 11 Índice de abertura do gume = Inteiro de Largura do Talão/Largura do Gume x 100. 9

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O Conjunto dos Machados de Bronze de “Tipo Bujões” de Escaroupim (Salvaterra de Magos): Um “Depósito” do Bronze Médio sobre a linha do Tejo?

Desta forma e para a amostra estudada em 2013, o conjunto dos tipos cuja inserção tipológica no Bronze Médio do Ocidente Peninsular se pode considerar consensual - machados dos tipos Bujões, Barcelos e de Talão de Primeira Geração – apresentam uma marcada tendência para gumes abertos e bordos côncavos sobretudo no terço distal do comprimento, características que os aproximam morfometricamente dos exemplares argáricos os quais são contudo maioritariamente fabricados em cobres frequentemente arsenicados (Lull, 1983; Montero Ruíz, 1994). De uma primeira aproximação empírica ao conjunto dos quatro exemplares aqui abordados (Fig.2), resulta imediata a grande semelhança formal entre três deles, os exemplares 10299, 10300 e 10303. O quarto exemplar - 10302, o que foi desenhado nos inícios do século XX por Guilherme Gameiro (Fig.1) - apresenta-se manifestamente de menores dimensões. Os três primeiros encontram-se ainda “à flor de molde” enquanto o último teve o gume afiado através de trabalho de forja (tratamento termo-mecânico - Senna-Martinez, et al. 2013a). É grande a semelhança entre os três exemplares de maiores dimensões de Escaroupim e os três exemplares do sítio epónimo de Bujões (MNA 11117, 11118 e 11119 - Fig.4), tanto nas respectivas dimensões e no peso12, como na composição química em que os teores de estanho revelam, para ambos os conjuntos, valores13 que se enquadram nos bronzes binários de boa qualidade que constituem a generalidade da amostra dos artefactos deste tipo publicados no âmbito do Projecto EarlyMetal (teores em estanho entre os 9% e 11% - Figueiredo et al. 2012). No que respeita a elementos químicos minoritários, os exemplares de Escaroupim apresentam teores de arsénio e chumbo em teores inferiores a 1%, excepto no machado 10302, que apresenta um teor de arsénio superior, com cerca de 2,2%, e no machado 10300, que apresenta um teor de chumbo de cerca de 1,7%. O ferro encontra-se sempre em teores inferiores a 0,05%, excepto no machado 10299, o que poderá indicar uma contaminação de ferro a maior profundidade devido a uma corrosão mais profunda neste artefacto em particular (Figueiredo et al. 2012, p.75). Importa aqui referir que teores semelhantes em estanho foram obtidos para os bronzes binários recolhidos nas “áreas de fundição” coevas dos sítios da Sola14 (Braga, Minho - Bettencourt, 2000) e da Fraga dos Corvos15 (Macedo de Cavaleiros, Trás-os-Montes - Senna-Martinez, et al. 2011) no Norte de Portugal. Tais factos - grande regularidade morfométrica e de liga, características que Peso médio dos exemplares de Bujões = 677 ± 65,4g e dos de Escaroupim = 743,7 ± 98g. Percentagem média de Sn para os exemplares de Bujões = 10,7 ± 1,2% e para os de Escaroupim = 10,4 ± 1,1%. 14 Percentagem média de estanho entre 10-12% (Comendador, et al. 2008, p.9). 15 Percentagem média de estanho = 11,9 ± 2,1% (Senna-Martinez, et al. 2011, p.383). 12 13

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Magos se estendem a todos os “machados de 1ª geração” estudados em 2013 - parecem estabelecer para estes artefactos (Senna-Martinez, et al. 2013a) padrões de produção de matéria-prima e forma-tipo de uma grande coerência trans-regional. O quarto exemplar de Escaroupim (MNA 10302) tem menores dimensões e peso16 (entre um terço e um quarto) que os restantes, apresentando ainda composicionalmente, além do já referido maior teor de chumbo, um teor médio de estanho de 5,9 ± 0,5%, cerca de metade dos restantes exemplares, enquanto as dimensões o aproximam do machado do mesmo tipo NMVFX04457 de Alpriate (Vila Franca de Xira – Senna-Martinez, et al. 2013b), este é contudo produzido a partir de um bronze binário de boa qualidade, com 10,5 ± 1,3% de estanho tal como os exemplares do sítio epónimo. Alguns dos aspectos acima referidos levaram-nos, em 2013, a considerar que, entre outros exemplares do que designámos como Grupos de fabrico 3 e 4 dos machados de tipo Bujões então estudados, quer o exemplar MNA 10302 de Escaroupim quer o de Alpriate poderiam ser encarados como produtos de segunda geração, eventualmente ainda dentro do Bronze Médio (Senna-Martinez, et al. 2013a, p.395-397).

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4 | Os dados de Escaroupim no âmbito da questão dos primeiros bronzes binários na (e a sul) da Bacia Inferior do Tejo.

No texto de 2013 que vimos referindo (Senna-Martinez, et al. 2013a) argumentámos que aqueles exemplares de machados Bujões que se afastavam significativamente dos exemplares- tipo do sítio epónimo, como os dos Grupos de fabrico 3 e 4, nomeadamente pelas suas menores dimensões e, sobretudo no que isso implica no peso do metal empregue na respectiva manufactura - cerca de 1/4 e 1/12 do valor médio do conjunto de Bujões, consoante o grupo -poderiam representar um segundo momento de generalização do tipo em que existiria maior diversificação regional, marcada na Estremadura e Sudoeste Portugueses pelo aparecimento de machados, formalmente próximos do tipo Bujões e suas variantes, mas de menores dimensões, frequentemente com menor teor médio em Sn e, alguns, podendo inclusive ser replicados em cobres arsenicais.

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223g de peso para um valor médio dos restantes de 743,7 ± 98g.

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O Conjunto dos Machados de Bronze de “Tipo Bujões” de Escaroupim (Salvaterra de Magos): Um “Depósito” do Bronze Médio sobre a linha do Tejo?

Outro aspecto importante tem a ver com o facto de, além dos machados deste tipo, os primeiros objectos fabricados em bronze binário a sul do Maciço Central se tratarem de artefactos por vezes tipologicamente arcaizantes que, em todos os casos, acompanham outros, em maior número, fabricados ainda em cobres arsenicais. . Alguns bons exemplos provêm de Vila Nova de S. Pedro17 (Soares, 2005), na Estremadura, do enterramento em “covacha” de Belmeque18 (Soares, 1994), da possível sepultura de Moinho de Valadares I19 (Valera, 2013) e da já referida situação dos restos de actividade metalúrgica da Malhada do Vale da Água (Valério, et al. no prelo), no Alentejo, finalmente e no Algarve, importa referir o caso do provável enterramento de Antas20 (Luz, Tavira - Senna -Martinez, et al. 2013b). Tratam-se de casos que é possível atribuir a um Bronze Médio e que as datas disponíveis para alguns apontam provavelmente para uma inclusão no terceiro quartel do segundo milénio a.C.

Uma vez que a tecnologia para fundir bronze não é significativamente diferente da necessária para fundir o cobre (Montero Ruiz, Ed. 2010; Tylecote, 1987), é pois possível que, alguns dos artefactos em bronze binário e integráveis no Bronze Médio, possam resultar de refundição de parte de exemplares de machados do “grupo de fabrico 1” obtidos a partir de contactos, de média/longa distância consoante os casos, com a parte norte da fachada atlântica peninsular (nomeadamente o Minho ou Trás-os-Montes) área onde se concentram os exemplares de maiores dimensões e produzidos em bronzes binários com elevado teor de estanho. A própria refundição, a que pode ter-se associado a junção de mais cobre à liga, pode ser responsável pela quebra do teor em estanho dos exemplares de machados Bujões “copiados” e/ou outros artefactos de menores dimensões. Note-se ainda que, no Bronze do Sudoeste, a convivência iconográfica de machados de gume largo e alabardas tipo Cano - eventualmente

Onde um machado tipo Bujões, um cinzel e uma alabarda de “tipo Cano” (Senna-Martinez, 2007: 122), em bronzes binários, convivem com outro machado de gume largo e uma segunda alabarda do mesmo tipo, igualmente atribuíveis à Primeira Idade do Bronze, mas produzidos em cobres arsenicais (Soares, 2005). Com um espólio combinando cobres arsenicais com um punhal e uma alabarda “tipo Cano” em bronze binário (conjunto a que corresponde a data ICEN-142: 3230 ± 60BP = 1670-1390 cal AC, para um intervalo de confiança de 2 - Soares, 1994: 183) A que pode corresponder a data Sac-1823 3320 ± 45BP = 1736-1504 cal AC, para um intervalo de confiança de 2 . Com uma alabarda “tipo Cano” em bronze binário (com um teor baixo de estanho – Sn = 7,9 ± 1,1%) e um punhal de rebites em cobre arsenical (As = 4,9 ± 0,0% – Senna-Martinez, et al. 2013b). 17

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Magos marcando exactamente a transição Bronze Antigo/Bronze Médio - se encontra atestada na tampa de sepultura insculturada do Assento (Beja - Almagro, 1966: Lâm. XXVI). É, assim, possível que a mais ou menos generalizada substituição, iconográfica e deposicional em contexto funerário, das alabardas por machados (Senna-Martinez, 2009), marcando tal transição, possa contemplar situações “intermédias” em que ambos estes “símbolos de poder” convivem (id.). O desaparecimento, na Estremadura Portuguesa e no Bronze Final, dos machados de tipo Bujões, parece acompanhar a generalização da produção de bronzes binários e a proliferação dos machados de talão e de alvado, tipos conectáveis com as novas “modas atlânticas” características deste período (Senna-Martinez, 2013b). Inclinamo-nos, deste modo, a considerar que o conjunto dos machados tipo Bujões de Escaroupim pode bem constituir parte de um “depósito” enquadrável no Bronze Médio, em que os três exemplares de maiores dimensões podem ser importações e o quarto e de menores dimensões uma réplica de “2ª geração” de fabrico local ou regional. Entre Lisboa, Bruxelas e Morfelden, Verão de 2015.

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| Agradecimentos:

A maior parte da investigação de base em que se apoia o presente texto foi produzida no âmbito do Projecto EARLYMETAL financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/ HIS-ARQ/110442/2008). Elsa Luís agradece ainda à Fundação para a Ciência e a Tecnologia a bolsa individual SFRH/BD/72369/2010.

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O Conjunto dos Machados de Bronze de “Tipo Bujões” de Escaroupim (Salvaterra de Magos): Um “Depósito” do Bronze Médio sobre a linha do Tejo?

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A Misericรณrdia de Muge durante o Antigo Regime Gonรงalo Lopes1 O autor assume a inteira responsabilidade por nรฃo seguir as normas do acordo ortogrรกfico em vigor.

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A Misericórdia de Muge durante o Antigo Regime

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A origem della não he muito antiga; principiou pelo zelo de alguns devotos, que primeiro a originarão com Licença do Ordinario, e dipois se fes secular e isenta com aquelles privilegios que rezultão de ser Casa Real 2. Este comentário é feito pelo prior de Muge em 1758, aquando dos inquéritos paroquiais ordenados pelo Marquês de Pombal. Com efeito, a Santa Casa da Misericórdia foi fundada tardiamente, quando já muitas tinham surgido no País entre os reinados de D. Manuel e D. João III. Não seria tão recente quanto o pároco afirma mas, de qualquer modo, é instituída do último quartel do século XVI. É um dado interessante o facto de ter começado como uma associação devota sancionada pela arquidiocese de Lisboa e só depois alvo de privilégio da Coroa, considerando o distanciamento entre o poder eclesiástico e as misericórdias, com interesses muitas vezes antagónicos. Em Muge, na segunda metade do século XVI nascem várias confrarias dedicadas ao culto divino, como a do Santíssimo Sacramento, Nª. Srª. da Conceição, Nª. Srª. do Rosário ou a de S. Miguel. No século seguinte duplicam com o aparecimento das confrarias de Stº. António, Santo Nome de Jesus e Almas. Nenhuma delas tinha fins assistenciais, mas dentro das suas funções competia-lhes acompanhar os enterros dos seus associados ou, mediante esmola levar as suas cruzes no funeral de quem pagasse. Este costume irá perdurar até ao final do século XVIII e, no mesmo balanço, surge a Misericórdia, ela sim já com uma forte componente de assistência às franjas sociais mais desprotegidas, como era aliás o propósito de todas as misericórdias desde o seu início, no final do século XV até aos dias de hoje. Foi sempre uma instituição de pequena dimensão, à escala da vila onde estava implantada, portanto menos sujeita aos condicionalismos que marcaram a vida de outras similares de maiores dimensões, à partida com uma orgânica bastante mais complexa. O âmbito deste trabalho não é traçar o quadro global de funcionamento da Misericórdia de Muge muito menos fazer uma monografia da mesma, mas antes lançar bases para o seu estudo e traçar algumas das linhas principais do seu funcionamento entre a fundação e o final do Antigo Regime.

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A.N.T.T., Dicionário Geográfico de Portugal, vol. 25, memória 225, fl. 1903.

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Magos 1 | Fontes para o seu estudo

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Grande parte do arquivo da Misericórdia de Muge desapareceu com o passar do tempo e desinteresse na sua preservação. O extravio da documentação, embora não tenha sido sistemática deveu-se a vários factores, sendo o desinteresse na sua preservação o que mais pesou. Em meados do século XIX3 já só se conservavam livros a partir de 1754 isto para os acórdãos, porque os de receita e despesa, começavam em 1778. Mesmo assim a série dos acordãos já tinha a falha de um livro para o período entre 1777 a 1793. Dos livros de entradas dos irmãos, restava apenas um, que ainda existe, e começa no ano de 1790 terminando com a entrada do último irmão a 16 de Junho de 1876. Ao todo existiam 19 livros, 58 escrituras repartidas entre aforamentos, testamentos e outros documentos oficiais, do século XVII a meados do século XIX, 4 maços de papeis diversos como correspondência, cartas de guia, conhecimentos, guias de gerência, etc. na sua maioria datando do século XIX. Entre a documentação que se perdeu após o inventário realizado em 1856 está o Compromisso, e diversos privilégios passados à Santa Casa entre 1822 e 1826, fundamentais para compreender a sua organização. Recuando dois séculos, a 1664, o arquivo da Misericórdia constava de 16 livros que cobriam cerca de 80 anos do seu funcionamento. Esta referência consta numa declaração assinada pelo escrivão Manuel da Veiga, em 16834. Fazendo uma rápida estimativa, percebe-se facilmente que até ao inventário de 1856 havia-se perdido entre 60 a 70% do acervo arquivístico, mesmo considerando um maior incremento de produção documental entre a segunda metade do século XVIII e o XIX. Para o período em apreciação chegaram aos dias de hoje cinco livros, distribuídos por três séries: Entradas dos irmãos - 1790 - 1876 (1 livro); Termos das mesas - 1794 - 1810 (1 livro); Receita e despesa - 1778 - 1818 (3 livros)5. Os documentos avulsos conservam-se na sua maioria, ou seja, 51 escrituras guardadas no A.H.J.F.M, duas na posse de particulares, contra as 58 que existiam em 1856, indo de 1650 a 1844. Com base nestes documentos, complementados com alguns do Desembargo do Paço, existentes no A.N.T.T., é possível reconstituir integralmente o património de raiz pertencente à Misericórdia embora não permita traçar claramente o seu percurso até à década de 20 do século XIX, salvo nas raras excepções em que existem os documentos da incorporação original.

A.H.J.F.M., Misericórdia, lº 11, fls. 15 -15-v. A.N.T.T., Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 3, nº. 13. 5 A documentação da Misericórdia encontra-se actualmente no edifício da Junta de Freguesia de Muge, em cujo arquivo histórico está incorporada.

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A Misericórdia de Muge durante o Antigo Regime

2 | Instituição e administração

Embora não se possa estabelecer uma relação directa, é provável que a criação da Misericórdia de Muge tenha sido alavancada pela esmola deixada pelo lavrador João Pinhão em 15816 para (re)construção do hospital da vila e edificação da igreja. A cédula testamentária em si não refere a existência desta irmandade. Porém, três anos depois, em Abril de 1584, na sentença que faz cumprir o testamento, os oficiais da Misericórdia serão os beneficiários dos 100000 reis deixados para o cumprimento desta disposição. Em Outubro de 15847, Filipe I emite uma provisão dirigida à administração da Misericórdia de Muge para que usasse o regimento da de Coruche. O facto de o rei sancionar o regulamento da instituição parece sugerir que esta era de criação recente e até aquela data existe qualquer outro documento que a mencione, o que reforça esta hipótese. Em geral, a misericórdias regiam-se pelo compromisso de Lisboa, com importantes alterações introduzidas em 1577. O Compromisso de 1618 vem fixar definitivamente a normativa de funcionamento, nomeadamente no que toca à eleição dos oficiais.

Eram instituições sob a autoridade directa da Coroa, facto admitido pelo Concílio de Trento, que as colocava fora da alçada das dioceses. Com efeito, há vários diplomas régios a limitar a acção e dos visitadores eclesiásticos que se intrometessem nos assuntos das confrarias de leigos (PMM, vol. I, p. 51). Este argumento é utilizado pelos oficiais da Misericórdia de Muge, quando em 18258 pedem ao rei isenção de jurisdição paroquial. Não se sabe o motivo exacto que deu origem a esta reclamação, mas em 1819, o provedor Pedro de Macedo Barbosa pede à Misericórdia de Lavre uma pública forma sobre o mesmo tema para reunir elementos jurídicos e contestar as pretensões do prior da Matriz, D. Tomás de Alarcão Velasques, que se achava no direito de intervir nos seus negócios. A autoridade régia, por seu turno, era garantida através da fiscalização dos provedores das comarcas, anual a partir de 1603 (PMM, vol. I, p. 50). Eram instituições sob a autoridade directa da Coroa, facto admitido pelo Concílio de Trento, que as colocava fora da alçada das dioceses. Com efeito, há vários diplomas régios a limitar

A.N.T.T., Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 2, nº. 29. A.N.T.T., Chancelaria de Filipe I, lº 10, fl. 191. 8 A.N.T.T., Desembargo do Paço, Repartição da Estremadura e Ilhas, mç. 402, doc. 9. 6 7

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a acção e dos visitadores eclesiásticos que se intrometessem nos assuntos das confrarias de leigos (PMM, vol. I, p. 51). A eleição dos órgãos administrativos parece ter sido outra das preocupações do monarcas, devido à facilidade com que as eleições se tornavam fraudulentas ou os irmão tomavam em benefício próprio os bens da irmandade. O Compromisso de 1618 definia de forma estrita não só a qualidade dos irmãos e oficiais mas todo o ritual em que os segundos eram eleitos por forma a evitar conluios e e fraudes durante o processo. Com o desaparecimento da maior parte da documentação anterior ao final do século XVIII, pouca informação se pode colher sobre os oficiais da Misericórdia de Muge para o período precedente. Sabemos por exemplo que em meados do século XVII Domingos Dias9 ocupou o lugar de provedor, para além de desempenhar diversos cargos do governo da vila, como aliás era corrente neste período e sinónimo de idoneidade. Na segunda metade do século XVIII as ligações dos oficiais da Misericórdia à administração pública ou das outras confrarias é bastante óbvia. É o caso dos irmãos António e Pedro de Macedo Barbosa que desempenharam em simultâneo o cargo de vereadores na câmara e mordomos da Confraria do Santíssimo Sacramento.

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Na órbita dos Macedo Barbosa, podemos encontrar outros índivíduos, alguns com óbvias ligações familiares com os quais partilharam os mesmos cargos, como os Pacheco Pimentel, Seara, Calhamar ou os de Carvalho. As eleições deveriam ser anuais e, de facto eram, emboa estes indivíduos fossem alternando pelos cargos fazendo com que formassem um núcleo permanente na gestão da Misericórdia. Isto mereceu duras críticas do padre Miguel Pedro da Costa aquando do processo sobre isenção de jurisdição paroquial. Sendo uma instituição pequena parece não ter havido grende distinção na qualidade dos irmãos conforme ao contrário do que é definido no Compromisso de 1618. Obviamente os cargos continuam a ser e escolhidos entre a elite local, mas nenhum dos eleitos parece ter foro de fidalguia. Na sua maioria procedem de famílias de lavradores ou funcionários ligados à administração municipal e/ou das coutadas. O corpo administrativo era constituído por um provedor, tesoureiro, escrivão e procurador. Estes quatro oficiais sabiam obviamente ler e escrever, mas os restantes irmãos, na sua maioria eram manifestamente analfabetos o que contraria as exigências do Compromisso de 1618 e mostra, mais uma vez, a flexibilidade estatutária das misericórdias mais pequenas, nomeadamente a que estamos a tratar.

A.N.T.T., Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, José, mç. 18, doc. 318.

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Outro dado relevante é o facto de os oficiais também servirem como mamposteiros ou seja, fazerem peditórios pelas povoações vizinhas, ao contrário das grandes misericórdias em que esta função é desempenhada por indivíduos de estatuto social inferior que se associam para obter benefícios. Pelo que se pode ver na documentação os irmãos eram escolhidos, um para cada mês para proceder à recolha de fundos e, invariavelmente, à cabeça vinha o oficialato o que, em certa medida, esbatia a desigualdade entre os agremiados.

3 | Património 3.1 | A Igreja e o Hospital Como vimos, o testamento de João Pinhão10 consignava uma verba de cem mil reis para gastar no hospital da vila e, caso houvesse mais esmolas que cobrissem a despesa, seria edificada a igreja da Misericórdia. Cabia à sua mulher, Ana Marques, enquanto testamenteira proceder ao cumprimento da última vontade do marido. Em 1584 ainda não havia começado a obra porque o testamento estava embargado por dúvidas. A sentença do provedor da comarca saiu em Abril desse ano e Ana Marques ficava obrigada a entregar os cem mil reis ao lavrador

10

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Fig. 1 - Lista parcial dos irmãos da Misericórdia em 1790. A.H.J.F.M., Misericórdia, lº 1, fl. 2.

A.N.T.T., Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 2, nº. 29.

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Fernão Lopes que os pagaria de forma fraccionada aos oficiais da Misericórdia, à medida que a construção progredisse11. Não sabemos exactamente quando começou a obra, mas ficou terminada, certamente no primeiro quartel do século XVII. A igreja foi construída no actual largo Teófilo Braga, antigo largo da Misericórdia, no limite urbano da vila dos finais de Quinhentos. Daqui partia a estrada que conduzia à ermida de Stº. André que será o principal eixo ordenador do urbanismo a sul. O templo, de pequenas dimensões, com orientação norte-sul, tinha uma área máxima de 120 m2. O espaço interno era constituído apenas por uma nave separada da capela-mor onde existia um único altar de talha dourada com seis imagens: S. Bento com mitra e báculo, Stª. Ana e S. Joaquim, Nª. Srª. da Graça, Nª. Srª. dos Anjos e uma imagem grande de Cristo crucificado12. Esta última era de grande devoção na vila e um dos principais argumentos dos candidatos a irmãos para serem aceites na instituição era o seu apego ao Senhor Jesus da Misericórdia. O altar foi dourado em 178213, custando o trabalho 7700 reis, de que dá conta o tesoureiro no livro de receita e despesa desse período.

Na nave da igreja, o abancado dos irmãos foi mandado fazer em 179414 ao mestre entalhador Francisco de Paula Barrada, com especificações claras sobre o tipo de assentos, portas e ferragens, tendo sido o trabalho terminado em Janeiro de 1795 e orçado 48000 reis. Atrás da igreja ficava a casa do despacho e a sacristia que após a extinção da Misericórdia em 1876, serviu de sede à Junta de Paróquia. Encostado ao alçado oeste ficava um corredor que vinha da sacristia e dava acesso ao púlpito e às escadas para o coro. No mesmo alçado, na extremidade noroeste estava construída a torre sineira, com 4 frestas, onde repicavam 4 sinos. Até pouco mais de meados do século XVIII a igreja não tinha coro, tendo este sido construído em 1763 com a esmola do provedor João de Sousa Vitório, conforme se podia ver num dos plintos das colunas, hoje desaparecido: 1763/ ESMOLA. DO/ PORVEDOR/ IOAO DE/ SOVZA VIT/ ORIO. Ainda no coro, existia um relógio deixado em testamento pelo capitão Pedro de Macedo Barbosa, em 1824 e vendido aquando da dissolução da irmandade em 1877.

Idem, fl. 22. A.H.J.F.M., Misericórdia, lº 11, fl. 9-v. 13 A.H.J.F.M., Misericórdia, lº 4 , fl. 27. 14 A.H.J.F.M., Misericórdia, lº 2, fl. 2. 15 A.H.J.F.M, Misericórdia, Escrituras, doc. 42. 11 12

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Durante o século XIX teve algumas obras importantes, nomeadamente em 1896, com a substituição das cantarias das janelas por outras de feição neogótica, madeiramentos da cobertura, soalhos e a porta principal, datada de 1673 e resultante, provavelmente, de outra campanha ocorrida no século XVII. Na visitação de 178216 ao arcediagado de Santarém, o visitador aponta que a igreja está muito destituída de paramentos mas atendendo à pobreza da Misericórdia, ordena que apenas lhe façam um frontal novo para o altar e mandem dourar a copa do cálice usado na Eucaristia. Todo o edifício, incluindo a sacristia, torre e a casa do despacho, foram demolidos em 1959 para a construção do posto dos CTT. No século XIV existia em Muge uma albergaria referida no documento de doação de uma vinha à igreja de Stª. Maria17; não se sabe o sítio exacto onde ficava e esta é a única referência conhecida, no entanto, é bastante provável que no século XVI se tenha convertido no hospital da vila contemplado no legado de João Pinhão. Fazendo fé no testamento, o hospital terá sido remodelado ainda antes de a igreja ser construída, uma vez que os fundos consignados o privilegiavam e a sua edificação não dependia de outras esmolas.

Na declaração de 1584 apensa ao testamento, a Misericórdia diz que já havia recebido algum dinheiro no início da obra, daqui se depreendendo que tenha começado pelo hospital. O conjunto edificado compunha-se de duas moradas de casas terreas uma, o hospital propriamente dito, a outra a habitação do hospitaleiro anexa, e a estrebaria. Pelas poucas descrições que existem, entende-se que era um imóvel fruste, pouco confortável e apenas se destinava a dar guarida aos doentes em trânsito para Santarém ou outros hospitais de maior dimensão. Não dispunha sequer de enfermaria que pudesse prestar uma assistência mais prolongada. O inventário ordenado pelo Governo Civil de Santarém, em 187518, chama-lhe “casas abarracadas”, o que terá a ver não só com o mau estado em que se encontrava na altura, mas também com o aspecto rudimentar da construção. Em 177819 gastaram-se de 240 reis com o trabalho de um homem que foi cavar salão para reparar os pavimentos do hospital e da casa do hospitaleiro, que eram de terra batida.

A.P.L., Visitações, cod. 476, fl. 36-v. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Incorporação, docs. Particulares, mç. 28, doc, 10. 18 A.H.J.F.M., Misericórdia, lº 4, fl. 25-v. 19 Idem, fl. 1-v. 16 17

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Magos O mobiliário era igualmente modesto, dispondo apenas de quatro estrados, onde os doentes dormiam em cima de igual número de esteiras, entregues anualmente ao hospital como foro de uma das propriedades da Misericórdia20. Desconhece-se a sua localização exacta, embora o inventário de 1875 mencione que ficava na rua dos Cantos para o Rossio, actual rua Alexandre Herculano.

3.2 | Bens de raiz

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A inquirição tirada aos rendimentos da Misericórdia em 182421 é a lista mais completa de propriedades da instituição, sendo arrolado um total de 13. Á frente vêm as terras mais valorizadas, cuja importância não advém da dimensão, mas da aptidão para o cultivo de trigo, são elas: o Carril, dividido em quatro parcelas, o Carril de Cima e uma courela na lezíria do Palanque, todas entre o Paul do Duque e o Tejo. Os Carris foram deixados à Misericórdia por Manuel Ferreira em testamento datado de 171022 e a courela do Palanque por Francisca Seabra23, filha de Domingos Dias, no último quartel do século XVII, ambas com obrigações de missas.

Fig. 2 - Igreja da Misericórdia em 1939.

A.N.T.T., Desembargo do Paço, Repartição da Estremadura e Ilhas, mç. 810, doc. 32. Idem. 22 A.N.T.T., Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 3, nº 20. 23 A.H.J.F.M., Misericórdia, Escrituras, doc. 1. 20 21

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As restantes terras eram serrados, situados em arneiros, dedicadas ao cultivo de centeio, menos exigente do ponto de vista da qualidade do solo, vinha e olival, por vezes em cultura mista. Duas propriedades eram sesmarias sem qualquer cultivo ou aproveitamento há muito tempo por se incluírem dentro das coutadas régias. Eram elas a sesmaria das Malhadinhas, deixada em 169524 por Maria Francisca, do lugar de Nª. Srª. da Glória, e a sesmaria de Moncalvo, cuja localização se ignora. Possuía ainda um pinhal de grandes dimensões, que ia do vale do Cocharro até Montalvo, Fig. 3 - Património fundiário da Misericórdia no séc. XVIII. Fonte: também da irmandade, cujo aproveitamento Google earth. era essencialmente silvícola. Dali se tirava rendimento pelo desbaste, corte das árvores e recolha de metanos (ramas de pinheiro).Parte destas propriedades estavam aforadas a irmãos da Santa Casa ou seus familiares como o serrado do Nobre ao capitão António do Carmo Carvalho ou a lezíria do Palanque a Helena Barbosa Torres, filha do provedor António Macedo Barbosa e ainda ao Duque de Cadaval, um dos principais enfiteutas das propriedades rústicas da Misericórdia. Dentro de Muge, a Misericórdia era senhora de diversos prédios urbanos de tipologia variável embora com predominância de moradas térreas, todas elas aforadas a particulares. Na rua direita, principal eixo viário da vila, possuía cinco casas, duas delas de maiores dimensões, uma constituída por dois edifícios geminados, um de quatro águas, o outro, conhecido por “guarita”, que teria uma pequena extensão sobradada num dos ângulos. Próximas a estas, na rua da Misericórdia, paralela à rua Direita, havia também duas moradas de casas. Este era o principal núcleo de propriedade urbana, estando a restante espalhada de forma menos concentrada pelo aglomerado: na Praça, rua da Glória, rua de Palhais, ou na rua dos Paços. Fora desta categoria, tinha uns fornos de cozer pão na rua da Glória, aforados ao capitão Pedro de Macedo Barbosa antes de 1824. 24

Idem, doc. 2.

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Fig. 4 - Prédios urbanos pertencentes à Misericórdia no séc. XVIII.

Fig. 5 - Placa identificativa de propriedade da Misericórdia. Último quartel do séc. XVII.

Perto de Montalvo, tinha uma casa aforada à Fazenda, onde se guardava o carvão do pinhal real do Escaroupim. É possível que a maioria, senão a totalidade, da propriedade urbana tenha sido incorporada através de legados em testamento, embora apenas se registe uma doação com estas características, em 1630, por Luísa Gomes25 sem, no entanto referir as confrontações, o que a torna impossível de situar. O mesmo acontece em 1671 no testamento de João da Mota Figueiredo, que deixa as suas casas e quintal com obrigação de quatro missas26.

25 26

ANTT, Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 2, nº 28. Idem, mç. 3, nº 11.

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4 | Os rendimentos e a sua gestão O património aforado, cobrado em dia de Stª. Isabel, constituía o grosso das rendas da Santa Casa. Em 1824 o seu produto orçava em 50320 reis em dinheiro, 44 alqueires de milho e quatro esteiras para o hospital. De modo algum chegavam para acertar as finanças, já que a despesa, por vezes passava os 300000 reis, mas nem por isso deixavam de ser importantes. Isto acompanha a tendência das misericórdias a partir do século XVIII e, chegados a finais desse século, o sobre-endividamento já era crónico, porque sobre elas recaíam funções assistenciais cada vez mais difíceis de comportar. Quando, em 1826, os oficiais da Misericórdia de Muge pedem resolução sobre a herança do capitão Pedro Macedo Barbosa, alegam exactamente essa dificuldade em equilibrar as contas porque as despesa era astronómica comparada com os rendimentos e, desse modo, poderiam mitigar a difícil situação em que se encontravam. Por outro lado, parte da propriedade imóvel, como procedia de legados pios continha encargos perpétuos que tinham de ser satisfeitos, não obstante, algumas vezes, serem eximidos do seu cumprimento para aplicar a verba resultante na gestão. Basta consultar alguns dos testamentos em que são deixados bens de raiz para perceber essa mesma realidade, como se pode ver pelos casos referidos atrás relativos às terras de Manuel Ferreira, Francisca Seabra, ou às casas de Luísa Gomes. Outra fonte de receita substancial é a que provém da Tumba, ou enterramento dos mortos. Embora não tenhamos uma informação global, pela natureza das fontes, é notória a sua importância no século XVII, passando a pontual ao longo do século XVIII. Só volta a ganhar preponderância no último quartel do século XVIII, quando os mesários pedem a D. Maria I, em 1779 27, o privilégio de enterrar todos os defuntos do seu termo argumentando que os párocos se escusavam a fazê-lo quando eram de origem humilde e sem bens que deixar. Podemos obviamente fazer duas leituras desta petição, numa primeira seria um encargo imediato e acrescido aos cofres da instituição, na segunda, uma fonte de receita importante porque, se por um lado uma percentagem substancial dos mortos seria pobre, outra com maiores posses não se escusaria a pagar o enterro, como o fez em boa parte dos testamentos redigidos entre os finais do século XVII e quase todo o século XVIII. Para todos os efeitos, tratava-se de uma receita irregular que dependia em absoluto das contingências demográficas.

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A.N.T.T., Desembargo do Paço, Repartição da Estremadura e Ilhas, mç. 954, doc. 28.

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As ofertas para Tumba eram quantias variáveis, mas nunca inferiores a 500 reis por funeral, embora raramente passassem dos 2500 reis. Se compararmos a frequência deste rendimento com a despesa de transportar doentes em que cada frete custava pelo menos 400 reis, ou os donativos aos pobres e membros de ordens religiosas, rapidamente chegamos à conclusão da sua insuficiência para colmatar as dívidas correntes, exactamente pela sua irregularidade contra os encargos que eram fixos e aumentam de forma constante. Os produto dos peditórios era também uma fatia que pesava favoravelmente nas finanças. Aconteciam em várias ocasiões ao longo do ano: durante as festividades religiosas, principalmente na Semana Santa, depois das missas à porta da igreja, nas eiras durante as colheitas, pelas terras vizinhas. Esta última modalidade resultava em doações de géneros, sobretudo trigo, mas poderiam incluir outras espécies que não cereais, como o feijão frade 28, ou vinho. Por vezes havia necessidade de fazer peditórios extraordinários para fazer face a uma despesa excepcional como fazer obras nos edifícios da Misericórdia. Em 1778 houve necessidade de fazer um peditório pelo povo, para pôr portas novas, que rendeu 6635 reis 29. As fogaças vendidas por ocasião das festas eram oura fonte de rendimento, posto que eventual. Eram doações em géneros dos mais variados tipos, por exemplo mel e melancias, depois leiloados. Constituíam a doação mais frequente à Santa Casa por se tratar de bens de valor mais modesto e acessíveis à piedade de um maior número de pessoas. Os irmãos, pelo menos no século XVIII, estavam obrigados a pagar uma quota à instituição, a que davam o nome de anual ou joia, estando o provedor abrangido por um quantitativo mais alto que, em 1796 era de 2400 reis. Por fim, as esmolas pontuais dos irmãos, ajudavam a resolver de sobremaneira as dificuldades financeiras da instituição, embora tivessem um efeito meramente paliativo.

28 29

A.H.J.F.M., Misericórdia, lº 4, fl. 5. Idem, fl. 6.

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Legados e esmolas Ă MisericĂłrdia de Muge consignados em testamentos entre 1581 e 1831

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Magos 5 | Funções assistenciais e de culto

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O propósito das misericórdias era prover os pobres fieis cristãos de dois benefícios, aos quais não poderiam aceder pela sua condição: ajuda material e conforto espiritual. Por um lado davam assistência na doença e situações de indigência, por outro, concediam apoio espiritual que nas circunstâncias em que se encontravam, podia ser-lhes interdito, como o terem um funeral condigno. Os gastos com a assistência aos pobres absorviam grande quantidade de recursos da Misericórdia de Muge. Embora o hospital não tivesse capacidade para acolher doentes de forma prolongada, nem sequer em quantidade, uma vez que a lotação máxima era de quatro pessoas, estava obrigado a agasalhar todos os que tivessem carta de guia e se encontrassem em trânsito para o hospital de Santarém ou para as Caldas da Rainha. Vindas do Alentejo, estas pessoas eram invariavelmente remetidas pela Misericórdia de Coruche, talvez por esta razão a de Muge usasse o regimento desta última e ao contrário do que acontecia entre outras misericórdias, talvez houvesse algum laço de solidariedade entre ambas as instituições. A localização de Muge entre o Alentejo e a Estremadura, obrigava a que passassem forçosamente por aqui. Na inquirição aos bens da Santa Casa, em 1824 eram peremptórios ao afirmar: esta Santa Caza paga a todos os Irmãos que vem de Coruche para o Hospital de Santarem assim como da Carreira que aqui há de todos os pobres que vem de toda a Provincia do Alemtejo para as Caldas da Raynha na sua/carreira he por esta Villa são recebidos neste Hospital (…). Embora não fosse da sua competência, devia ainda prestar assistência médica aos doentes que já não estavam em condições de prosseguir viagem ou em estado terminal. Os cuidados médicos não eram prestados directamente pela Misericórdia uma vez que não tinha profissionais desta categoria, mas os serviços contratados a externos, provavelmente aos partidos médicos e de boticários existentes na vila. Embora não tenhamos dados que o possam confirmar em absoluto, alguns irmãos seriam desta categoria, por exemplo o capitão António do Carmo Carvalho, que foi irmão durante mais de 20 anos e provedor em 1826, era cirurgião e é possível que tenha desempenhado pontualmente estas funções. Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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O transporte de doentes e enjeitados eram transportados a expensas da Misericórdia, pelo hospitaleiro que vivia ao lado do hospital, com ordenado fixo e os levava em fretes de jumento, pagos à parte com um custo regular de 400 reis por cada um. Embora a Misericórdia fizesse o transporte de expostos para Santarém, não tinha qualquer responsabilidade nos seus cuidados que eram da competência da Roda, administrada pela Câmara. Todas as pessoas idóneas que aparecessem a pedir esmola, deveriam ser satisfeitas pela Misericórdia, em maior ou menor grau. Os livros de receita e despesa registam valores desiguais no quantitativo de cada esmola concedida. Obviamente as quantias não eram arbitrárias e estavam relacionadas com o grau de necessidade e, sobretudo de honestidade de cada caso. A origem geográfica de quem pedia esmola podia ser casual, embora seja notória a incidência de gente e instituições da área da arquidiocese de Évora, corroborando mais uma vez tratar-se de um ponto de passagem de quem vinha do Alentejo. Registam-se numerosas esmolas dadas, por exemplo, aos conventos dos Remédios de Évora, Nª. Srª. da Conceição de Montemor-o-Novo ou ao Recolhimento de Nª. Srª. da Piedade de Évora30 que assistia a moças sem recursos. A Misericórdia de Muge não tinha competências na redenção de cativos, mas concedia esmola a quem pedia por eles. Em 1779 pagou 240 reis a dois religiosos que pediam para o resgate de irmãos seus, presos em Argel31. Como vimos, a assistência espiritual, nomeadamente aos defuntos não era uma prerrogativa da Misericórdia, mas era obrigada a prestá-la aos pobres e doentes que morriam ao seu cuidado. A partir de 1779, passa a ser prática uma generalizada a irmandade proceder ao enterro de todos os defuntos do termo. Para o cumprimento das funções cultuais, dispunha de um capelão que recebia um ordenado fixo e as esmolas que calhassem nos ofícios. O capelão da Misericórdia era quem ministrava em simultâneo os ofícios das restantes confrarias de Muge, talvez numa lógica de acumulação de recursos, já que exclusividade não garantia a sua sobrevivência. Em 1694 é capelão o padre Pedro Cristóvão32, em 176333 o padre Manuel de Figueiredo Presado é capelão da Misericórdia e Confraria das Almas e em 182134 o presbítero Filipe Pires de Lousada, desempenhava as mesmas funções.

30 A.H.J.F.M., Misericórdia, lº 4, fl. 3. 31 A.H.J.F.M., Misericórdia, lº 4, fl. 4-v. 32 ANTT, Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 3, nº 2. 33 ANTT, Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 1, nº 13. 34 ANTT, Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 2, nº 9.

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Magos Os gastos com o culto eram o segundo motivo de despesa a pesar nas contas da Misericórdia e por vezes superavam o gasto anual com a assistência. Durante a Semana Santa, ponto alto da vida religiosa da irmandade, consumiam-se grandes quantidades de cera em velas e ornamentos para a igreja, mandava-se fazer capas novas e varas para os oficiais e irmãos e, sobretudo, gastava-se generosamente no convite a pregadores vindos de fora. Durante a semana do tempo comum, era hábito também haver missa às quartas, sextas-feiras e domingos, o que era altamente criticado pelo clero paroquial que acusava os mesários de não ter recursos para tal, obrigando o povo a pagar os ofícios do seu bolso se quisesse ouvir missa. Este facto pode ser apenas uma reacção ao conflito sobre a isenção paroquial que opôs a Santa Casa ao pároco, no início do século XIX, mas parece também ser tendência durante século XVIII (PMM, vol. 6, p.7 ) a vida religiosa das misericórdias desenrolar-se com um fausto inaudito consumindo recursos cada vez mais avultados.

| Fontes Manuscritas

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Arquivo Histórico da Junta de Freguesia de Muge Misericórdia, Lºs. 1, 4, 11. Misericórdia, Escrituras, docs. 1, 2, 42. Arquivo Nacional da Torre do Tombo Chancelaria de Filipe I, lº 10, fl. 191. Desembargo do Paço, Repartição da Estremadura e Ilhas, mç. 402, doc. 9. Desembargo do Paço, Repartição da Estremadura e Ilhas, mç. 810, doc. 32. Desembargo do Paço, Repartição da Estremadura e Ilhas, mç. 954, doc. 28. Desembargo do Paço, Repartição da Estremadura e Ilhas, mç. 2148, doc. 18. Dicionário Geográfico de Portugal, vol. 25, memória 225, fl. 1903. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Incorporação, docs. particulares, mç. 28, doc. 10. Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 3, nº 2, 11, 13, 20. Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 1, nº 13. Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 2, nº 9, 28, 29. Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral, Habilitações, José, mç. 18, doc. 318. Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa Visitas Pastorais, Ms. 476. Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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| Bibliografia ARAÚJO, Marta Lobo (2004) - “As “esmolas” e os pobres da Misericórdia de Viana da Foz do Lima na primeira metade do século XVI” Arquipélago: História, 2ª. série, vol. VIII, p. 237 - 260. (2010) - “O mundo dos mortos no quotidiano dos vivos: Celebrar a morte nas Misericórdias portuguesas da época moderna” Comunicação & Cultura. Nº 10, p. 101 - 114. A.A.V.V. (1992) - Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, vols. 1 - 6. APÊNDICE DOCUMENTAL 1581 – 01 – 27 – Testamento de João Pinhão /fl. 2/ Em nome de deos amem saibam os que esta sedolla/ de testamento uirem que no anno do nas/ cimento de noso senhor Jehsu christo de mill e/ quinhentos e oitenta e hum annos aos/ uinte sete dias do mes de janeiro nesta/ uilla de muie nas pousadas de joão/ pinhão laurador e morador nesta/ dita uilla estando elle deitado em/ hũa cama doente de doença e emfir/ midade que lhe noso senhor deu por elle/ me foi dito que por não saber o que noso/ senhor delle determina fazer me pedia/ lhe quizese fazer esta sedolla de testa/ mento serrada a quall lhe fis na ma/ neira seguinte/ Primeiramente disse que depois de/ encomendar sua allma a noso senhor/ Jehzu christo que o fes de nada e depois de per/ dido o remio com seu precioso sangue/ tomaua por auofuada a uirgem nosa/ senhora da conceição que sera sua auogada/ ante seu bento filho que lhe pesa que o leue/ a sua santa gloria e bemauentu/ rança amen/ /fl. 2-v/ ¶ dise elle testador que leuandoo noso senhor/ desta uida prezente manda que seu/ corpo seia enterrado no adro de/ nosa senhora da conceisão desta uilla/ na coua en que jas sua mai delle/ testador na quall coua porão hũa/ campã de pedra com hũas letras/ que diguão como elle jas/ ¶dise elle testador que ao dia de seu/ enterramento leuarão doferta/ co seu corpo per sua allma hum/ saquo de triguo e hum almude de uinho/ e lhe farão sendo o corpo prezente/ hum oficio de noue liçoes e assi lhe farão/ mais outros dous oficios de noue/ liçoes ofertados cada hum delles com/ hum saquo de triguo e hum almude de uinho/ a saber ao mês e anno de seu enterramento/ ¶dise elle testador e manda que se faça hum/ oficio dos custumados por allma de sua/ mai do quall darão doferta dous all/ queires de triguo e duas canadas/ de uinho/ Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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¶dise elle testador e manda que diguão/ por sua allma sinquo misas […]/fl. 3/ das cinquo chaguas de noso senhor Jehzu christo/ ¶manda que diguão ao martir são Sebas/ tião outras sinquo misas todas rezadas/ ¶manda que diguão ao martir santo andre/ outras sinquo misas/ ¶manda que lhe diguão na misericordia/ de lisboa hũa misa cantada segundo/ custume/ ¶dise elle testador que a sua uinha dos/ couoes tem encarguo de duas misas/ cada hum anno as quaes manda que se/ diguão e as mandara dizer quem pu/ sujr a dita uinha sempre/ ¶dise elle testador que deixa cem mill/ reis os quaes manda que se gastem/ no espritall desta uilla auendo mais/ esmollas per que se posa fazer igreia/ se fara e se não se farão cazas e camas/ pera pobre e peregrinos de maneira que/ se gastem os ditos cem mill reis de que/ sera administradora e fara o dito gasto/ minha molher anna marques/ /fl. 3/ ¶ Dise elle testdor que manda que se dem/ a branca pinhoa e a susana de guoes/ doze mill reis comuem a saber seis mill/ reis a casa hũa os quaes lhe manda dar/ por amor de deos/ ¶ dise elle testador que deue a Jsabell sobri/ nha de sua molher anna marques noue/ mill reis os quaes manda que lhe paguem/ ¶ manda elle testador que se uistam sinquo/ pobres de pano dallcobaça gabam/ pellote callsoes camisas çapatos/ ¶ dise elle testador que deixa a dioguo seu/ sprauo foro com condisão que sirua/ a sua senhora anna marques em sua/ uida/ ¶ dise elle testador que toma sua direjta/ parte de toda sua fazenda onde quer/ que for auida e achada da quall manda/ que se cumprão os leguados conteudos/ neste testamento e ho que mais/ remanecer deixa a sua molher anna/ marques a quall fas sua erdeira e/ testamenteira a quem pede e rogua/ que lhe cumpra este seu testamento/ fl. 3-v/ e faça com sua allma como elle confia/ que fara com declaração que por morte da dita/ sua molher anna marques toma a elle testa/ dor cem mill reis da sua parte delle dito/ testador os quaes deixa e manda que se dem/ Comuem a saber cinquoenta mill reis/ a confraria do santisimo sacramento/ e cinquoenta a confraria de nosa senhora/ da conseição com obriguação que os mor/ domos de cada hũa comfraria que pello tempo/ forem lhe mandem dizer per sua allma/ delle testador hũa misa rezada per/ dia dos finados de cada hum anno e por aqui / dise elle testador que auia por acabada/ esta sua cedolla de testamento e deser/ da e ha por deserdados a todos seus parentes/ por onde forem achados somente fas sua/ erdeira a dita sua molher como/ dito he e manda que se cumpra este/ seu testamento pello quall ha por/ de roguados todos outros testamen/ tos sedollas condisilhos que dantes feitos/ aja por que este que ualha e he/ sua ultima e derradeira uontade/ e pedio a mim manoell fernandes/ spriuão do almoxarifado do paull desta/ dita uilla que este lhe fisese e Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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com elle o asina/ se o quall fis no dito dia mes e anno/fl. 4/ Com na uolta por sima da primeira/ regra se por uerdade manoell/ fernandes do testador/

1584 - 10 - 15 - Alvará de Filipe I para que a Misericórdia de Muge use o compromisso e o regimento da Misericórdia de Coruche Eu e el Rey faço saber aos que este aluara uirem que vistas/ as causas que os officiães da camara da uilla de muJa ale/ garão em hũa carta que me escreuerão sobre o Regimento que pe/ dião para a confrarja da mizericordia que na dita uilla esta ordenada/ e como pelas enformações que o prouedor da comarca e/ prouedorja da uilla de santarem por meu mandado sobre Jso/ tomou e constou terem os ditos officiães da camara feita/ a casa para a dita confrarja e calix e uestimenta e os/ majs ornamentos necessarios para dizer missa que Ja se diz ey/ por bem e me praz vistas as ditas enformações por fazer/ merçe por esmolla ha dita confraria da mjzericordia da uilla de muja/ que o prouedor e Jrmãos della que ora são e ao diante forem/ possão vsar e vsem do Regimento e compromisso da con/ frarja da mjzericorda da uilla de curuche de que o dito prouedor/ da comarca lhes fara dar o trellado autentiquado por elle/ asinado e pello prouedor e Jrmãos da mjzericordia della e isto/ naquelas cousas a que o dito Regimento e compromisso se/ poderen aplicar soomente e o declararão que o numero/ dos Jrmãos que ouuerem de seruir na dita confrarja da mjsericordia/ de muja sera ate xxx pessoas Envio ao dito prouedor/ da comarca de santarem que ora hee e aos que ao diamte/ forem e a quaes quer outras justiças e officiães e/ pessoas a que este aluara for mostrado e o conhecimento delle per/ tençer que o cumprão jnteiramente como se nelle contem sem lhe/ ser posto duujda nem embargo algum o qual sse Re/ gistara no primcipio do Livro da mesa da dita mjzericordia e o pro/ prio se pora no cartorjo della em toda boa guarda e/ esto me praz que valha como Aluara sem embargo da ordenação/ do Lº 2º Tº 20 que o contra despoem pedro de seixas o fez/ em lixª a xb doutubro de b e lxxx iiijº A.N.T.T., Chancelaria de Filipe I, lº 10, fl. 191.

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Magos A.N.T.T., Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 2, doc. 29. 1683 - 07 - 16 - Certidão dos enterros de Domingos Rodrigues e Frutuosa Gomes /fl. 23/ Obedecendo ao despacho do Cenhor prouedor se/ uio o liuro dos defuntos e no liuro numero des a/ folhas qorenta e ceis achei hum acento qugo tior he o ce/ ginte Aos outo dias do mês de agosto de mil ceis centos e ce/ centa e tres anos enterou a tumba desta canta qaza a domingos rodrigues/ de uila Longa e deu de esmola tres mil reis e Tres Toalhas/ e hum traviceiro e huma almofadinha e huma alqati/ fa e não dezia mais o dito acento a qe me reporto e no Liuro/ numero dezaceis qe qomeca en dois de gulho de mil e ce/ fl. 23-v/ is centos e qoren digo cecenta e quatro anos/ a folhas onze achei o acento ceginte aos uin/ te e cinqo dias do mes de maio ente/ rou a tumba desta canta qaza a furtoza/ gomes molher que fiqou de domingos/ rodrigues moradores que forão en uila lon/ ga qe deu de esmola tres mil reis e não/ dezia mais o dito liuro a qe me reporto e de/ qlaro qe os ditos ceis mil reis qon o fato qe/ ueio na tumba esta entrege esta canta/ qaza muga oie dezaceis do mês de gulho/ de mil e ceis centos e oitenta e tres anos e heu/ manoel da ueiga esqriuon da menza o esqre/ ui e acinei/ Manoel da ueiga

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A.N.T.T., Provedoria de Santarém e Tomar, Testamentos, Muge, mç. 3, doc. 13. 1778 - 1779 - Receita e despesa desse ano /fl. 1/Conta corrente que se mostra/ do Jrmão Thezoureiro Antonio Ro-/ drigues Marcelos do Anno de/ 1778 desde dia de Stª. Izabel do/ ditto Anno the outro semelhante/ dia do Anno de 1779/ Receita/ Recebeo o ditto Thezoureiro de Joanna Angelica Bar-/ boza de foros das suas cazas sittas na Rua dos cantos/ desta villa em dia de Santa Jzabel de/ mil sette sentos e setenta e outo, mil e quinhentos - 1500/ Recebeo mais de hua fogaça que deo Joaquim Ro-/ drigues que foi hua milancia, quatro centos e setenta 0470/ Recebeo de mais de hũa fogaça que deo Mano-/ el Gomes Seara dozentos e quarenta reis 0240/ Recebeo mais de Antonio de Souza o foro […]/ carril vencido em dia de Santa Jzabel de 1778 se-/ is sentos reis - 0600/ Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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Recebeo mais hua fogaça que deo o Cap-/ pitam Theodozio Ferreira de Macedo sento e trin-/ ta reis - 0130/ Recebeo mais de hua fogaça que deo Joa/ na Maria sesenta e sinco reis - 0065/ Recebeo mais de hũa fogaça que deo Joze/ Pereira Trabalhador sento e vinte reis - 0120/ Recebeo mais de hũa fogaça sento e setten/ ta e sinco - 0175/ 3450/ Por ser verdade asegnou comigo Francisco Go-/ mes Barboza de Goes/ /fl. 1-v/ Conta corrente que o Jrmão Tezoureiro/ Antonio Rodrigues Marcelos Da, do Anno de/ 1778 desde dia de Stª. Jzabel do ditto/ the outro semelhante do Anno/ de 1779/ Despeza/ Despendeo o ditto Tezoureiro com hum homem/ que cavou salão para a Caza do Hospital/ e Hospitalleiro dozentos e quarenta reis - 240/ Despendeo mais com trinta pregos para com/ serto das portas do Hospitalleiro quarenta/ reis - 040/ Despendeo o ditto Thezoureiro com hum homem/ que cavou salão para as Cazas do Hospital/ e Hospitalleiro dozentos e quarenta reis 240/ Despendeo mais com trinta pregos para com/ serto das portas do Hospitalleiro quaent reis 040/ Despendeo mais com Antonio do Carmo do al-/ luguel do seo jumento para ir buscar/ o pão do peditorio de Cruche seis centos/ reis 600/ Despendeo com hum Aluguel de hum/ jumento de ir buscar o pão do peditorio/ da Erra trezentos reis 300/ Despendeo com hum frete de tres carradas/ de sabão sento e outenta reis 180/ Despendeo com o Aluguel de hum jumento/ e hum homem que foi buscar o pão do pedi/ torio de Salvaterra trezentos e des reis 310/ 1670/ e Eu Francisco Gomes Barboza de/ Gois Escrivão da Meza o Escrevi/ /fl. 2/ Vem da lauda 3490 Receita de 1778 para 1779 3490 Recebeo mais de hũa fogaça que deo Joze Ma/ tos de Carvalho sento e trinta reis - 0130/ Recebeo mais de hũa fogaça que deo Ma/ noel de Oliveira e Silva sento e vinte - 0120/ Recebeo mais de hua fogaça que deo Fra/ ncisco Correa settenta reis 0070/ Recebeo mais do Jrmão Pedro de Ma/ cedo Barboza do Annual que devia/ de 1778 novecentos reis - 0900/ Recebeo mais de Francisco Ambrozio/ do Enterro de seu sogro Francisco Duarte/ seiscentos reis - 0600/

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Recebeo mais de Joze Antonio Pe/ soa de Carvalho do Enterro de Joze Ta-/ vares dois mil reis - 2000/ Recebeo mais do Jrmão o Cappitam Theo/ dozio Ferreira de Macedo por conta do fo-/ ro das Cazas de seus sobrinhos Erdei-/ ros de Joze Pacheco Pimentel dois/ mil reis - 2000/ Recebeo mais perdutto de dois Alquei/ res e quarta de feijão frade quatro cen-/ tos e setenta reis - 0470/ E por ser verdade asignou e Eu/ Francisco Gomes Barboza de Goes Escri-/ vão da Meza Escrevi/ provedor Carvalho e Silva Antonio Rodrigues Marcellos/ 9780 / /fl. 2-v/ Vem da Lauda = 1670 = Despeza de 1778 para 1779/ 1670/ Despendeo com o servente do ditto official/ cento e quarenta reis 140/ Despendeo com dezaseis alqueires de Cal/ para o ditto concerto duzentos reis 0200/ Despendeo com huma Carrada de A-/ rea para o ditto concerto sesenta reis 0060/ Despendeo com hum homem de Ensa/ luar as dittas cazas dozentos e quarenta/ reis 0240/ Despendeo com as rocolhidas do Roco/ lhimento de Evora cento e vinte reis/ que tanto se lhe deo de Esmola 0120/ Despendeo com o Porteiro da villa de Sal/ vaterra de vir trazer as Terras desta Santa/ Caza em praça dozentos e setenta reis 0270/ Despendeo com pobre de rugate que se lhe deo de Esmola sento vinte reis 0120/ Despendeo com outro rugate que se lhe mandou dar de esmola quatrocen/ tos e outenta reis 0480/ 3540 e Eu Francisco Gomes Barboza de Goes/ Escrivão da Meza o Escrevi/ A.H.J.F.M., Misericórdia, lº 4, fls. 1-v - 2-v. 1779 - 04 - 10 - Petição para a Misericórdia poder enterrar todos os defundos do termo de Muge /fl.1/ Vossa Magestade me manda informar com/ o meu parecer do negocio que contem o requerimento/ do Provedor e Irmãos da meza da Mizericordia da/ Villa de Muje que pertendem que vossa Mages-/tade lhe permita a graça de eles poderem/ fazer os interros de todos os seos territorios a/ fim de se extinguir o escandalo com que os/ Parochos algumas vezes se eximem totalmente/ desta obrigação quando os Paroquianos não dei-/ xão bens competentes as porsoins fonerais, que eles per/ tendem extrair./ He certo que deste modo se evitão muitas dispu-/ tas, que em algumas occazioins se excitão entre/ os suplicantes e suplicados sobre a pobreza dos que morrem, e/ condução do seu corpo a sepultura./ Como os suplicantes caritativa, e louvavelmente Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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porem/ sugeitar-se, neste cazo a major trabalho, obrigando-se a fazerem os enterros de todos sem excesão al-/ guma, e sem purjuizo do Direito Paroquial, nem alter-/ ando os costumes antigos daquela fregezia, he/ sem duvida isto ajuxtado a rezão, e aos fins de com/ seguirem hũa pas./ A vista de tudo me parece que devem ser de/ feridos/ O que não obstante Vossa Magestade mandara o que/ for servida./ Santarem 10 de Abril de 1779/ O Juiz de Fora, servindo de Provedor/ Antonio Roberto Rorchers Pimentel Macedo/ /fl. 3 / O requerimento a que nos manda responder hê/ sem duvida, por muitos motivos utelissimo porque/ tendo por objecto fins tão santos, acautellão se ri-/ xas as consequencias, em que apezar de maior traba-/ lho desta Irmandade, evitamos de huma/ vêz con/ tendas tantas: Paresse justo, e comvimos no que/ se alega, são estas as nossas respostas. Muge/ 7 de Abril de 1779, e Eu Françisco Gomes/ Barboza de Goiz Escrivão actual da Mêza da/ Santa Caza da Mizericordia a fiz e asignei/ Provedor João Gonçalves de Carvalho e Silva/ Francisco Gomes Barboza de Goiz/ Antonio Rodrigues Marçelos/ Luiz Bottelho de Figueiredo/ Joze Ferreira de Almeida/ Manuel Pedro/Joze Mendes/ Alexandre Rodrigues/ Pedro Rodrigues/ Francisco Gomes/ A.N.T.T., Desembargo do Paço, Repartição da Estremadura e Ilhas, mç. 954, doc. 28. 1824 - 06 - 15 - Inquirição aos rendimentos da Misericórdia fl. 2/ Paulo Maria de Campos de/ Souza Cavalleiro da Ordem de Christo, Condecorado com a Me-/ dalha de Honra, e servindo de Escrivão e Tabellião Privativo/ do Juiz das Cappelas da Real Coroa no impedimento do Pro-/ prietario por Portaria do Excellentissimo Senhor Chancel-/ ler que serve de Regedor et cetera Certifico que no Cartorio do di-/ to Officio se acha hum Livro denominado o primeiro onde se/ Lanção a descripção dos Bens das Mesericordias e no mesmo se acha a descripção dos Bens seguintes. - / Possue esta Santa Caza da Mesericordia huma terra/ chamada Carril junto ao Paul do Excellentissimo Du-/ que de Cadaval que hoje se acha devedida em quatro porçoens afforadas a diverços effiteutas, primeiro a Ber-/ nardes Marques pela quantia de sette mil e duzentos reis cada/ anno com Laudemio de Dessima, Confronta pela Ban-/ da Nascente com terra da mesma Santa Caza pelo sul/ pela Vala da Chamusca, do Norte com Terras do Cappitão/ Barbosa do poente com estrada que vem do Paul sercada á/ roda da parte do Norte com sua valla = afforamento prepe-/ tuo a esta parte do Norte com sua valla digo parte do ditto/ carril terra de pam que se lavra não toda por estar arruiná-/ da por olhos de agoa que nela nacem e por entupimento Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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de/ huma vala que está junto cuja abertura pertençe ao dono/ de quem he a ditta Valla tem de vallor cento quarenta mil/ reis/ fl. 2-v/ Segunda Devisão do mesmo carril se acha aforada em afo-/ ramento perpetuo ao Excellentissimo Duque do Cadaval/ para sua Serventia por doze Alqueires de Trigo cada hum an-/ no calculandose pelo preço do meio, hum anno pelos outros/ a trezentos e sessenta reis, são quatro mil trezentos e vinte reis,/ não tem Laudemio e confronta da mesma sorte que assi-/ ma se dis, esta inculta pela serventia, e tem de valor oitenta mil reis: - / Terceira devizão do ditto Carril quatro acha aforada a Joze/ Rodrigues Espinho com aforamento perpetuo e Laudemio/ de Desima por trinta e seis Alqueires de milho cada Anno, cal-/ culandose pelo preço do meio huns Annos pelos outros a du-/ zentos e oitenta reis cada alqueire são des mil e oitenta reis/ tem de valor = Confronta pela parte do ditto Carril do Norte/ com Terras de Joaquim Antonio Moreira e com terras dos/ Herdeiros de Fortunato Santa Anna e terra de Joaquim de Sousa Pimentel e terras do Conde de Villa Nova Nas-/ cente com a tapada do Paul do Excellentissimo Duque do/ Cadaval e do Sul com terras das Abadeças e poente com es-/ trada real que vem de Benfica para esta Villa o estado/ de Cultura he terra de pam que se lavra e tem seus olhos/ de Agoa que se podem digo se não podem secar.- / Quarta devisão do ditto Carril, se acha aforada a Fran-/ cisco Coimbra com foro perpetuo e Laudemio de disima/ por oito alqueires de milho, avaliado da maneira assi-/ ma refferida tem de rendimento dois mil duzentos e/ quarenta, e de valor vinte mil reis Confronta do Nor-/ te com terras de Joaquim de Souza Pereira do Sul/ com vinha do Prazo das Abadessas, do Nascente com/ fl.3 / Nascente com estrada Real desta Villa e do Poente com/ a Valla Real de Alpiarça, achase esta Terra plantada de vinha já arruinada. - / Possue mais esta Santa Caza da Mesericordia outro car-/ ril chamado de Sima que hoje possue de aforamento per-/ petuo e Laudemio de Decima Florentina Efigenia e/ Calhamar, que paga de foro novecentos reis, que he o seu ren-/ dimento. Tem de valor dezoito mil reis, segundo a avaliação da Ley = Confronta do Norte com terras do Conde de Villa/ Nova, do Nascente com vinha de Flauzino Cardozo, e com/ Azinhaga que vay ao Paul e do Sul com Paul do Excellen-/ tissimo Duque do Cadaval achase parte do dito carril/ metido de vinha já velha com suas Oliveiras e algumas/ Arvores de fructo, e outra parte he terra lavradia de má qualidade/ tem mais esta Santa Caza da Merzericordia huma Cou-/ rella de Terra na Leziria do Palanque que hoje possue/ de aforamento fateuzim perpetuo e Laudemio de Di-/zima Dona Ellena Barboza Torres pela quantia de/ desanove mil e duzentos reis que o (sic) seu rendimento o seu va-/ lor tutal tresentos e oitenta mil reis Confronta do Nascen-/ te com o Tejo, e do Sul com terras do Morgado de Oli-/ veira do Norte com Cabeceiros da mesma Lesiria o/ estado de cultura da Refferida Courella he terra de/ pão lavradia de boa natureza e qualidade. - / Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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Possue mais esta Santa Caza hum Serrado Arrui-/ fl. 3-v/ Serrado Denominado o Nobre, que possue hoje de/ aforamento o Capitão Antonio/ de Carvalho com Laudemio de Desena com foro de/ trezentos reis que he o rendimento, e tem de Valor seis/ mil reis comfronta do Norte com a travessa que vay da/ Crús para os moinhos de vento, do Sul com Arnei-/ ros do Excellentissimo Duque, do Nascente com a/ travessa que vem da Crús para a Gloria e Poente com/ os arneiros do Moinho de Vento = He este Serrado/ de terras de senteio // achase cultivada e em bom estádo // / Possue mais esta Santa Caza da Mesericordia hum/ Serrado chamado Sette Donos, que hoje possue co-/ mo afforamento perpetuo, e fateuzim e Laudemio de/ Desima o Excellentissimo Duque de Cadaval paga/ de foro quatro centos reis que he o seu Rendimento/ annual avaliado em oito mil reis, Confronta do Nascen-/ te com Serrado que foi do Calado, e do Doutor Do-/ mingos Rafael Dinis e hoje do ditto Excellentis-/ simo Duque do Norte com Paul de Val de Lobos/ do Poente com o mesmo Paul e do Sul da Estrada que vai/ desta Villa para Escaroupim, Este Serrado he terra de senteio/ achase cultivado e em bom estado. - / Possue mais a Santa Caza da Mesericordia hum Ser-/ rado que hoje pessue com aforamento infateuzim perpe-/ tuo os Herdeiros de Romão Baptista que pagão mil e du-/ zentos livres que he o rendimento annual com lau-/ demio de disima e tem de valor de vinte mil reis // Confronta pelo Norte com Serrado de Pedro Gomes/ fl. 4 / Gomes de Almeida e Vinha de Manoel Gonçalves e Serra-/ do do Capitão Pedro Macedo Barboza do Sul e Nascente/ com Serrado de Miguel de Souza e do Poente com a estrada/ Real que vai desta Villa para a Gloria = achase este Ser-/ rado metido em Vinha parte, e outra Terra de senteio. – // / Tem mais a Santa Caza hum quintal que possue hoje/ Antonio Nunes com aforamento infateuzim perpetuo/ com Laudemio de desena paga de foro cento e vinte mil/ reis, que o (sic) seu rendimento annual tem de valor dois/ mil reis = Confronta da banda do Norte com Casas de/ digo paga de foro cento e vinte reis que he o seu rendimen-/ to annual tem de valor dois mil reis // Confronta da/ Banda do Norte com Cazas de Domingos Oleiro, do/ Sul com quintal do mesmo Antonio Nunes, do Nas-/ cente com casas do ditto e do Poente com quintal dos/ Barbozas inculto. - // / Possue mais a Santa Caza da Mesericordia hum Serra-/ do chamado do Santo Antonio que possue hoje de afora-/ mento infateuzim perpetuo Jose da Fonseca com Lau-/ demio de Disima, paga de foro annual quatro esteiras, e/ tem de valor outo mil reis achase plantado de Vinha/ com suas Arvores de fruto em bom estado = Confronta do Nascente com a estrada que vay da Igreja para a Crus/ do Poente com vinha de João Antonio de Mattos, do Nor-/ te com a estrada do Areal e do Sul com Serrado de/ Antonio do Carmo e Carvalho - / Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Tem mais a Santa Casa da Mesericordia hum/ fl. 4-v / Mesericordia hum serrado que pessue hoje Antonio Pedro/ Seara com aforamento infateuzim perpetuo e laudemio/ de Disima, que paga de foro annual seis centos reis e he o/ seu rendimento, e tem de valor dose mil reis comfronta do / Norte com quintal de Antonio Matheus do Sul com/ travessa publica do arrebalde do Nascente com quintal/ de Flausino Gomes Cardozo e do Poente com a travessa/ que vai ao Roçio = achase o ditto Serrado plantado de/ Vinha e arvores de fructo em bom estado. - / Pessue mais esta Santa Caza da Mesericordia hum/ serrado cito em Vila Longa que hoje pessue Jose/ Fortunato Raposo o qual paga de foro annual seis/ centos reis com aforamento infateuzim perpetuo Lau-/ demio de Disima tem de valor dose mil reis = Con-/ fronta do Norte com o carril que vai para o Pinhal/ de Vila Longa do Sul com a Vinha de Ma-/ noel Correa de Bemfica e do Poente com a estrada/ que vay de Vila Longa para Bemfica achase o ditto/ serrado plantado com hum bocado de Vinha algumas/ Oliveiras e terra de senteio. -/ Pessue mais esta Santa Caza da Mesericordia duas/ semarias huma denominada moncalvo (?) que pagava/ quatro centos e oitenta reis de foro annual = e outra cha-/ mada as malhadinhas livre porem á muitos annos/ que esta Santa Caza nada recebe por estas duas ses-/ marias estarem em terra que tem servido de Cou-/ tada a Sua Magestade, e por isso nada produzia/fl. 5/ produzia motivo porque deixarão de pagar o foro de huma/ e de se benefeciar a outra, porem agora como se abulirão as/ Reaes Couttadas esta Santa Caza entrará outra vez na sua/ antiga posse para a désfructar como antes fazia. - // / Pessue mais esta Santa Caza da Mesericordia hum Pi-/nhal junto a esta Villa o qual Pinhal não tem renda cer-/ ta porque só he disfructado quando nelle ha disbaste ou der-/ rama o qual senão faz senão de sinco em sinco annos e este he/ Conforme a sua necessidade, conforme o bastio em que elle/ se acha, ou a rama que tem assim mesmo se mandou ava-/ liar pelos Avaliadores do Conselho desta Villa e acharão ser/ o seu valor emquanto a Propriedade quatro centos mil reis./ Porem este mesmo pinhal o valor que se lhe dá hé muito incerto/ por estar sugeito a incendios este se acha ao prezente com bom/ estado = Confronta da Banda do Norte com terras do Paul/ chamado val de Lobos que he do Excellentissimo Duque do/ Cadaval do Sul com o pinhal de El Rey do Nascente com/ a estrada que vai de val de Cachorro (sic) para Escaroupim e do/ poente com a vala denominada de Alpiarsa. - // / Predios Urbanos/ Pessue esta Santa Caza da Mesericordia o foro de huma/ morada de cazas na rua direita desta Villa da parte do Nascen-/ te cujo foro pagão os herdeiros de Romão Baptista cujo he trezentos/ reis = confronta do Norte com Cazas do Capitão Pedro Ma-/ cedo Barboza do Sul com cazas de Miguel Cavaca do/ Nascente com os quintaes de Flauzino Cardozo e do Po-/ [ente] com a rua direita = achão se em bom estado. - // / Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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Pessue mais a Santa Caza o foro de humas Cazas na/ Rua direita desta Villa da parte Nascente cujo foro/ he annual de trezentos reis que hoje as pessue Jose da Fon-/ seca com aforamento infateuzim perpetuo de Laude-/ mio de Disima, e tem de valor seis mil reis // confron-/ ta do Norte co Cazas de Francisco Santa Anna do sul/ com Cazas do Capitão Pedro Macedo Barboza do Nascen-/ te com o quintal do ditto Santa Anna e do Poente com a rua direita achão se em bom estado. - / Tem mais esta Santa Caza duas moradas de Casas pegá-/ das huma de quatro agoas outra de sobrado com quintal/ cittas na rua direita desta Villa da parte do Poente que pa-/ gão de foro annual tres mil e quinhentos reis que hoje as/ pessue Joze da Fonseca, com aforamento infateuzim e/ Laudemio de Disima e seu valor setenta e sinco mil/ reis // Confronta do Norte com Cazas de Joze Mattos do Nascente com a rua/ direita e do poente com a rua de trás da Mezericordia = achão-/ se em bom estado. - // / Tem mais esta Santa caza huma morada de Cazas na/ rua da Praça desta Villa que hoje as pessue Maurícia/ Gertrudes com foro anual a esta Santa Caza de du-/ zentos reis com aforamento infateuzim Laudemio de/ desena, e seu valor quatro mil reis confronta do Norte com/ a Rua da Praça do Sul com quintal de Pedro Ma- / cedo Barboza do Poente com Cazas digo do Nascente/ fl. 6 / Nascente com Cazas da Mesma Maurícia e do Poente com/ Cazas do Capitão Antonio do Carmo e Carvalho = achão se em / bom estado. - // / Pessue mais esta Santa Caza da Mesericordia hum foro/ de humas Cazas e seu quintal sitas na rua que vai dos can-/ tos para o Roçio pessuidas hoje pelos herdeiros de Liberato/ Rodrigues pagão de foro anual mil reis seu valor he de/ vinte mil reis = com aforamento infateuzim e Laude-/ mio de Disima confronta do Norte com quintaes das Ca-/ zas dos herdeiros de Jose Freire Fanha do Sul com a/ rua ditta do Nascente com cazas de João Antonio Bur-/ ro e do poente com o Roçio achão-se em bom estado. - // / Pessue mais esta Santa caza hum foro de huns for-/ nos de Coser pão que hoje os pessue o Capitão Pedro Ma-/ cedo Barboza paga de foro anual oito centos reis com afo-/ ramento infateuzim e Laudemio de Dizima seu/ valor dezoito mil reis = Confronta do Norte com a rua da/ Gloria do Sul com Cazas do mesmo Capitão Pedro Mace-/ do Barboza do Nascente com quintal do mesmo ditto/ Barboza e do poente com a rua do areal = achãose em bom estado. - // / Pessue mais esta Santa Caza da Mesericordia hum/ foro de huma Caza e seu quintal na Praça desta Villa/ que hoje pessue Jose Luis que paga de foro anual/ quatro esteiras para o Hospital ou o valor de hum Tostão/ cada huma que faz quatro centos reis = com aforamento in-/ fateusim prepetuo e Laudemio de Disima e seu va-/ lor outo mil reis confronta do Norte com o seleiro de/ Felix Manoel da Motta so Sul com a Praça e/ do Nascente com o mesmo Seleiro, e do Poente com/ a rua que vay ao Palaçio do Duque achão-se em bom/ estado. - // / Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Pessue mais esta Santa Caza hum foro de huma Ca-/ za chamada Gorita pessuida hoje por Barbora Lucia/ que he o seu foro anual de cento e vinte reis com aforamen-/ to infateuzim perpetuo e Laudemio de Disima, e seu/ valor dois mil reis = confronta do Norte com as Cazas de Pedro Godinho do Sul com a Mesericordia do Nas-/ cente com a rua direita e do Poente com a rua de tras/ da Mesericordia = achão se em bom estado. - // / Tem esta Santa caza huma morada de cazas sitas/ na rua da Mesericordia junto aos cantos que as pessue/ Jose Gomes de carvalho com foro anual de quinhentos/ reis com aforamento infateuzim Perpetuo e Laude-/ fl. 7 / [mio de] Disima // seu valor de des mil reis = confronta do Norte com/ Cazas de Antonio Gomes do Sul com os Cantos do Nascente/ com Adega de Florentina Efigenia e do poente com a rua direita da Mesericordia = achão se em bom estado // / Pessue mais esta Santa Caza da Mesericordia hum/ foro de huma morada de Cazas sitas na rua da Mese-/ ricordia que hoje pessue o Excellentissimo Duque/ do cadaval que paga de foro anual mil reis = com afo-/ ramento infateuzim perpetuo e Laudemio de Di-/ zima e seu valor vinte mil reis = comfronta do Norte com/ a rua da gata do Sul com a adega dos herdeiros de Joa-/ quim de Sousa Pimentel do Nascente com cazas de/ Francisco Lopes e do poente com a rua da Mese-/ ricordia = achãose demolidas. - // / Pessue mais esta Santa caza da mesericordia o foro de/ humas casas com seu quintal e posso citas na rua de Pa-/ lhaes que hoje as pessue o Capitão Pedro Macedo Bar-/ boza com seu foro anual mil e dusentos reis com aforamento/ infateuzim perpetuo e Laudemio de Disima seu Valor vinte e/ quatro mil reis = Confronta do Norte com Casas do ditto Ca-/ pitão do Sul com Cazas do mesmo do Nascente com a Rua/ de Palhaes e do Poente com horta do mesmo Capitão Bar-/ boza = achão se em bom estado. - // / Pessue mais esta Santa Caza da Mesericordia hum foro de humas Casas citas na rua direita que hoje as pes-/ sue Jose Ferreira de Almeyda Boticario que pagão/ anualmente de foro trezentos e sessenta reis = com afo/ fl. 7-v / aforamento infateuzim prepetuo e Laudemio de disima/ e seu valor sette mil e dusentos reis confronta do norte com Casas do/ mesmo efiteuta do Sul com a rua da gata do Nascente com/ quintal do mesmo efiteuta e do poente com a rua direita = achão-/ se em bom estado. - // / Pessue mais esta Santa Caza de Mesericordia huma ca-/ za e seu terreno que serve de guarda de Carvão que hoje pessue/ a fazenda e paga de foro anual sinco mil reis com afora-/ mento infateuzim e Laudemio de disima seu valor cem mil reis // confronta do Norte com Terras do Excellentissimo Du-/ que do Cadaval so sul com o oiteiro de Monte alvo da mês-/ ma Santa Caza do Nascente com Modesta Antunes e/ do Poente com a vala de Alpiarsa achãose em bom estado. - // Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


A Misericórdia de Muge durante o Antigo Regime

Magos

Pessue mais esta Santa Caza de mesericordia hum foro de/ humas casas que hoje pessue Jose Luis citas na rua que vay/ para os Paços que paga anualmente de foro quatro centos reis/ com aforamento perpetuo infateuzim e Laudemio de disima, seu valor he outo mil reis // confronta do Norte com/ Cazas delle efiteuta e do Sul com a rua que vay para/ os Paços do Nascente com a Praça desta villa e do poente/ com Palheiro do Efiteuta achase em bom estado. - // / Pessue mais esta Santa Caza huma caza na rua da Gloria/ que hoje pessue Manoel Ambrozio por a ter herdado/ o seu Pay Francisco Ambrozio paga anualmente quatro/ centos reis, com aforamento infateuzim e Laudemio de/ Disima e seu valor oito mil reis = Confronta do Nor-/ te com a rua da Gloria do Sul com quintal do ditto/ fl. 8 / do ditto Manoel Ambrozio e do Nascente com quintal do mês-/ mo e do poente com cazas do mesmo achão-se em bom estado // / Pessue esta Santa Caza da Mezericordia hum chão e/ huma Caza demolida no arrebalde desta Villa que pagava/ de foro quatro centos reis, porem há muito tempo que nada recebe/ ate se ignora que seja efiteuta presentemente e por isso não/ vai lancada (sic) a conto do foro na sua competente caza e só se fás/ enumeração para constar nesta Santa Caza pessuio esta pro-/ priedade e hoje só o terreno cujo he inculto e por isso não tem/ havido quem o arrende. - // / Pessue mais esta Santa caza duas moradas de cazas com-/ tiguas huma que serve de Hospital, e outra em que assis-/ te a Hospitaleira e o conductor dos pobres ca carreira que/ esta Santa Caza paga a todos os Irmãos que vem de Co-/ ruche para o Hospital de Santarem assim como da Car-/reira que aqui há de todos os pobres que vem de toda a Pro-/ vincia do Alemtejo para as Caldas da Raynha na sua/carreira he por esta Villa são recebidos neste Hospital, e daqui conduzidos por este Hospitaleiro a quem se paga do-/zentos e quarenta reis cada cavalgadura e quando estes to- / rnão das ditas Caldas da Raynha para os seus lares são/ remetidos de Santarem a este Hospital e daqui são trans-/ portados ao Hospital da Villa de Coruche aonde se paga o/ seu transporte ao mesmo Hospitaleiro duzentos e quarenta/ reis cada huma Cavalgadura e com esta dispesa a bem dos / misaraveis enfermos se absolve toda a Receita desta/ Santa Caza e alguma couza que excede se gasta com/ o Capellão e paramentos para o culto Devino, e ha/fl. 8-v/ e a anos que he preciso esta Santa caza recorrer as es-/molas dos Irmãos e Bemfeitores para suprir as neces-/ sidades tanto do Hospital como do culto, como se deixa/ ver do Livro da Receita e despeza. - // / Estas avaliaçoens forão feitas pelos avaliadores do Conse-/ lho desta Villa abaixo assignados e para constar fis este que/ vay por mim assignado com Escrivão actual = Padre/christovão de Sousa Carvalho = Antonio Mattos – Joaquim dos Santos. - / E trasladada a concertei com a própria a que me Reporto/ Lisboa quinze de Junho de mil outo centos vinte e quatro e/eu Paulo Maria de Campos e Souza a sobscrevi e assigney = Paulo Maria de Campos e Souza. - // / Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos /fl. não numerado/ Á Misericordia da Villa de Muge, se há de passar Carta d’Adminis-/ tração de bens: a saber, sincoenta mil trezentos e vinte reis em dinheiro, qua-/ renta e quatro alqueires de milho, e outo esteiras, ou outo centos reis por ellas,/ tudo de foro annoal, no destricto da ditta Villa de Muge. Lxª. 24 de Ju-/ lho de 1824. A.N.T.T., Desembargo do Paço, Repartição da Estremadura e Ilhas, mç. 810, doc. 32.

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1826 - 04 - 08 - Petição sobre o legado do Capitão Pedro de Macedo Barbosa / fl.1 / Representou a Vossa Magestade Imperial e Real esta Mêza, o Provedor, e mais Mezarios da Santa Caza/ da Mizereicordia da Villa de Muja, Co-/ marca de Santarem: Que Pedro Bar-/ boza de Macedo lhe deixára os Legados constantes na Certidão que juntavão;/ e por isso pertendião que Vossa Magestade Imperial e Real lhe/ Dispensasse dos mesmos Legados, Dispenssan-/ do-lhe tudo o mais que necessario fosse/ em beneficio da mesma Santa Caza./ Determinou-se ao Provedor da Co-/ marca que informasse com seu parecer/ averiguando qual era o Rendimento/ desta Mizericordia, e a sua Despeza, e o/ valor dos Bens de que se tratava; o que satisfez dizendo:/ Que fazendo as averiguações orde-/ nadas, achára ser o Rendimento an-/ nual da sobredita Mizericordia, a quan-/tia de cessenta e tantos mil reis, e a sua/ Despeza também anual a de cento e/ tantos mil reis; chagando a mesma em/ alguns anos a duzentos, e a trezentos e/ fl.1-v / e tantos mil reis, como constava dos Docu-/ mentos que juntava; e que o valor dos Bens/ de que se tratava no requerimento, som-/ mava em seis contos sete centos cessenta/ e seis mil reis de Capital, e de rendimen-/ to anual em trezentos e trinta e sete mil/ e trezentos reis, como mostrava o Documento que também juntava: Que sendo pois a Despeza da Mi-/ zericordia recorrente muito maior do que/ a sua Receita actual, parecia-lhe Def-/ ferivel a Graça que a mesma implora-/ va, e esperava conseguir da Piedade/ de Vossa Magestade Imperial e Real./ Deu-se vista do negocio ao Procu-/ rador da Corôa, que respondeu:/ Que devia tornar a informar ouvin-/ do a Herdeira do testador, e quem fosse/ interessado na Herança./ Determinou a Mêza que tornasse a/ enformar satisfazendo ao que requeria/ o Procurador da Corôa, o que cumprio di-/ zendo:/ Que das Respostas que juntava/ da Herdeira daquele testador, e de/ hum terceiro que promovia a nulidade/ do ditto testamento para suceder na/ Herança como Parente mais próximo do mesmo testador, se via que nem a/ Herdeira testamentaria, e nem o futuro/ e suposto Herdeiro, embara-/ çavão absolutamente a posse dos sobre-/ ditos Legados; que por tanto lhe parecia/ de equidade que a Mizericordia Reco-/ rente entrasse já na dita posse em be-/ nefficio da Huanidade, se assim fosse/ fl.2/ posse do Agrado de Vossa Magestade Imperi/ al e Real./ Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


Magos Dando-se novamente vista do ne-/ gocio ao Procurador da Corôa, disse:/ Que também lhe parecia Defferivel a/ Graça, e Licença de poder possuir; intactos/ porém quaes quer efeitos da posse sobre/ que havia Litigio, e que só por meios or-/ dinarios a devião os Supplicantes conse-/ guir./ E sendo tudo visto:/ Parece á Mêza o mesmo que ao Mi-/ nistro Informante, e Procurador da Corôa./ Lisboa vinte e cinco de Feverei-/ ro de mil oitocentos e vinte seis/ Mattos Ferrão Lencastre /fl. não numerado/ Ao Provedor e Mezarios da Santa Caza de Misericordia/ da Vila de Muja se hade passar Provizão de Dispensa da Ley/ e Licença para poderem possuir huns bens que lhes forão Lega-/ dos por Pedro Barboza de Macedo cujo valor hé 6:766$ rs;/ intactosquaesquer efeitos da mesma posse sobre que há liti-/gio, e que só por meios ordinários devem conseguir. Lxª. 28 de/ Junho de 1826 os bens legados são hum relogio de parede, e desoito/ foros em dia/ Bernardo Jose de Souza Lobatto/ /fl. não numerado/ Ao Provedor e Mezarios da Santa Caza de Misericordia da Vila de Muge/ se ha de passar Provizão de Dispensa da Ley para poderem possuir huns/ bens que lhes forão Legados por Pedro Barboza de Macedo, intactos quaisquer/ efeitos da mesma posse, sobre que há Litigio, e que só por meios ordinários/ devem conseguir; cujos bens são dois Prazos do valor de 5:600$ rs hu-/ mas cazas do valor de 400$ rs, hum foro avaliado em 126$ rs, hum/ relogio avaliado em 20$ rs, e quatorze pençoens todas estimadas em/ 620$ rs de capital – total 6:766 rs. Lixª. 20 de Novembro de 1830/ Manoel Jacinto Moniz Leitão A.N.T.T., Desembargo do Paço, Repartição da Estremadura e Ilhas, mç. 2148, doc. 18.

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Magos

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Muge antes de 1304 Gonรงalo Lopes1 1

O autor reserva-se ao direito de nรฃo seguir as normas do acordo ortogrรกfico em vigor. Salvaterra de Magos | n.ยบ 3 | Ano: 2016


Muge antes de 1304

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“E outorgo uos os termhos Assi como os melhor auya alcobaça e deuia a auer e os ouueron Aqueles ante que os alcobaça ouuesse”. Esta é das últimas disposições do foral de Muge2, outorgado por D. Dinis a 6 de Dezembro de 1304, a qual define com aparente certeza uma realidade que tem apensos vários significados, mutáveis conforme a dimensão temporal a que se reportam: o antes e o depois... Quando em 13013, em momento prévio ao foral, o rei negoceia com o Mosteiro de Alcobaça o escambo da quintã de Muge por parte do seu reguengo de Valada, já pressupunha uma concreta definição da dimensão e das fronteiras deste lugar que, entenda-se, transcendiam boa parte da propriedade rural desta instituição monástica. Até ao início do século XIV, Muge pertencia ao termo de Santarém que documentação refere inequívocamente “in termino sanctarene in loco qui vocatur muia” 4. Facto reafirmado sempre que havia querelas a propósito das demarcações entre os dois concelhos, não sendo preciso esperar muito para que acontecessem. No reinado de D. Fernando começam as contendas com Santarém, as quais só vão terminar em meados do século XV com a colocação definitiva de marcos nas áreas em questão. Com efeito, havia um termo, e isso parece bastante claro a partir do século XIII, no entanto baseava-se na tradição e na assumpção de que as terras que rodeavam a pequena povoação de Muge faziam parte de um todo geográfico. Aqui, vários senhores laicos e eclesiásticos detêm as suas propriedades e cujos títulos de posse referem sem qualquer dúvida onde se situam, com quem confrontam e até onde se estendem as terras a que chamam “muja”. Em 1298, a propriedade alcobacense tem estatuto de couto, com termo próprio e a na eminência de receber carta de foro do Mosteiro. Porém, os limites do couto não coincidem exactamente com a área total que empiricamente identificavam como sendo as terras do lugar qui uocatur mugia. Baseado na ideia de que o couto tinha termo próprio, D. Dinis não se preocupará com a demarcação, seja no escambo de 1301, seja no foral de 1304. Mais ainda, não há qualquer prova que tenha negociado sua a alienação do termo de Santarém, ou sequer notificado o concelho da sua intenção de dar foral a esta parte da sua jurisdição. Tanto assim é que, nos autos de demarcação de 1434, os oficiais do concelho de Santarém não têm qualquer pejo em afirmar: A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, lº 3, fl. 34-v. ANTT, Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs Reais, Mº 3, Doc.1. 4 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs. Particulares, mç. 6, doc. 12. 5 A.H.M.S.M., Tombo da Câmara de Muge, fl. 57-v. 2 3

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Magos “por ende lhe os Senhores Rex derão, e confirmarão Seos termos porem que sejão por elles mostrados; e o Concelho de santarem he prestes de lhos cumprir, e lhos nom contradizer, o que o dito Concelho tem, e cree, que nunca mostrarom, porque nunca lhes foi dado termo salvo o paul aRiba, por onde lhe diviza e demarca o Conselho de Santarem com sas ademas da parte do dito Logo de Muja, e algum termo, Seo tem; he por se estenderem elles pellos termos de Santarem” 5 . Obviamente, o limite geográfico, que poderemos conceptualizar como “entidade geográfica” não é o mesmo que área de jurisdição e a sua confusão, acabaria por gerar os conflitos atrás mencionados. Interessa então desenvolver esta ideia para entendermos em que moldes a ocupação do espaço progride até à criação do concelho de Muge em 1304 e de que forma se desenrola o processo ao longo dos 100 anos que medeiam entre a primeira notícia escrita e a concessão do foral.

1 | Entidade geográfica

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Este conceito é utilizado sobretudo nos meios de informação geográfica e de forma simples diz que uma entidade geográfica “é qualquer entidade identificável no mundo real possuindo características espaciais e relacionamentos espaciais com outras entidades geográficas” (Gatrell, 1991, p. 119 - 134). Neste sentido, recuando até aos meados do século XII, importa a breve trecho, compreender como se articula o povoamento a partir da linha do Tejo e de que forma estas pequenas unidades regionais se articulam no espaço. Durante a Reconquista, o Sul é organizado no sentido defensivo-ofensivo perante o remanescente do domínio almorávida e, sobretudo, face ao império almóada em expansão na Península Ibérica. Deste modo, a lógica de povoamento privilegia as cidades recém-conquistadas e as povoações fortificadas ou com uma posição estratégica dominante em detrimento de uma malha de povoamento mais apertada. Por outro lado, a falta de contingentes populacionais, contribuirá de igual modo para uma ocupação humana do espaço algo rarefeita. Isto leva a que alguns concelhos disponham de alfozes de dimensão considerável com descontinuidades acentuadas e geografia incoerente. Santarém, entre o século XII e a primeira metade do século XIII, controla um território que a oeste

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A.H.M.S.M., Tombo da Câmara de Muge, fl. 57-v.

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chega quase ao mar, apenas barrado pelos coutos de Alcobaça, a norte confronta com as faldas Maciço Calcário Estremenho, Torres Novas, Tomar e Abrantes, a este e sudeste entrava pelo Alentejo tocando os domínios da Ordem de Avis e a sul chegava quase a Lisboa, ficando Azambuja de permeio. Para que tenhamos uma ideia da sua real dimensão, o concelho e Santarém até meados do século XIII abarcava uma área de cerca de 2000 km2. Condensava, portanto, uma multiplicidade de “geografias” díspares formatadas por aspectos geomorfológicos e orográficos que, a uma microescala, são determinantes na formação da paisagem e, por conseguinte, na obtenção de recursos. Para noroeste, na margem direita do Tejo, prevalecem as formações calcárias de relevo irregular, ao passo que para sudeste, a margem esquerda, mais plana, é ocupada por uma faixa de aluviões e depósitos de terraços, contida por uma orla de altos terraços quaternários formados por deposições sedimentares mais ou menos consolidadas. Por sua vez, estas unidades são cortadas por uma densa rede hidrográfica subsidiária do Tejo que modela o relevo e cria unidades ainda mais pequenas. Os limites da paisagem humanizada acabarão por decalcar o contorno destas pequenas unidades geomorfológicas e converter-se naquilo a que se pode chamar de “entidades geográficas”. A cada uma delas correspondem características naturais e humanas que as individualizam dentro de uma realidade espacial mais abrangente - o concelho - esta, de óbvia natureza administrativa. Ao longo do século XIII, cada uma destas “entidades” vai sendo gradualmente ocupada e chegando a meados desse século, aumentam consideravelmente as transacções de terras, sinónimo de um aproveitamento mais eficaz do solo. Isto leva também ao crescendo dos factores identitários, não por uma questão de oposição entre lugares, mas por necessidade de reconhecimento do espaço. Assim, nas margens do Tejo toda a gente sabia onde ficava Moncão, Muge, os campos de Caçarabotão, ou onde começam e acabavam os campos de Valada. Não é por acaso que muitas desta “entidades geográficas” acabarão por se tornar sedes de concelho e/ou de paróquia, chegado o final da centúria.

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Magos 2 | Acerca do topónimo

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“No tempo do Rei Dom Dinis que reinou atê 1325 se tomou hum solho no mesmo Tejo, em hum lugar que chamão Mugem, oito leguas de Lisboa pelo rio acima, que pesou dezasete arrobas e mea que foi apresentado ao dito Rei estando em Villa Franca o qual se mandou poer hũa raposa (que entam mataram) junto da boca, por o grande soido que aquelle pexe fazia com o halito; elle com o folego lançou desi um grande spaço. E por aquelle pexe ser tam grande, & se tomar naquelle lugar desacostumado, mandou el Rei Dom Dinis se perguntassem testimunhas que se acharam presentes, & se tirasse um publico instromento e se lançasse no tombo do reino.” (Leão, 1610, p. 56). Esta notícia, retirada da obra de Duarte Nunes de Leão (1610), é o reflexo da mais antiga interpretação etimológica sobre Muge, embora que o nome derivava dos peixes aqui pescados. A associação deste feito notável com a abundância de tainhas, da família mugilidae cujo nome vulgar é muge ou mugem e de muito semelhante a “muja”, fez com que esta coincidência se tornasse numa verdade inquestionável. Terá sido a proximidade entre as duas palavras, associada à queda do “a” final a concretizar a mudança, embora não definitiva, do topónimo para Muge/ Mugem, em meados do século XVI. No princípio do século XVIII, quando o padre António Carvalho da Costa edita a Corografia Portugueza já estava definitivamente enraizada esta interpretação, bastante amplificada pelos corógrafos que se lhe seguiram: “Duas legoas de Santarém para o Sul & doze de Lisboa para o Nascente em lugar plano está situada a Villa de Mugem, assim chamada dos muytos peyxes mugens de que abunda.” (Costa, 1712, tom. III, p. 271). A referência escrita mais antiga relativa a Muge surge num documento de compra e venda datado de 11986. Regista a forma “muia” (Muja) que é também a que ocorre maior número de vezes na documentação do século XIII. Por vezes, alterna com “mugia” e num único caso, aparece sob a grafia “muie” 7 (Muje), versão onde começa a notar-se a queda do “a” final. Poderá ser um registo da variante oral da palavra, já que no mesmo documento também aparece a forma “muja”. No século XIV, aparece ainda a variação “moga” 8, num documento do cartório de Stª. Maria de Almoster, que é de pouca relevância para a questão e não passa de uma ortografia extravagante do vocábulo “muja”. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs. Particulares, mç. 2, doc. 37. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs. Particulares, mç. 6, doc. 10. 8 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Almoster, mç. 3, doc. 7. 6 7

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Em Portugal podemos encontrar para o século XIII mais uma ocorrência deste topónimo, aplicado à herdade de Muja de Arem, na zona de Alvito (distrito de Beja), pertencente ao chanceler Estevão Anes, a quem são concedidas cartas de encoutamento por D. Afonso III (Ventura e Oliveira, 2006, vol. II, p.351). Entre Abrantes e Ponte-de-Sor, próximo da nascente da ribeira de Muge, aparece o topónimo Muja, registado em 1323 relacionado com uma herdade coutada por D. Dinis a Gonçalo Vasques de Góis9. Isto sugere que o topónimo advém do nome da ribeira (Viana, 2007, p. 37), à semelhança da relação que podemos estabelecer entre a actual vila de Alpiarça e a ribeira do mesmo nome cujo hidrónimo é muito anterior à povoação, ou ainda muitos outros exemplos da mesma natureza em que a povoação principal acabará por se apropriar do nome do rio em cuja vizinhança se localiza. Do outro lado da fronteira, na Galiza, o topónimo repete-se nas paróquias de S. Pedro, Stª. Maria e S. Salvador de Muja e as variantes Muje e Mujen nomeiam dois pequenos lugares próximos. Todos eles estão distribuídos nos arredores da cidade de Lugo, nas margens do rio Minho (Miñano, 1827, tom. VII, p. 177). Também na Galiza, perto de Santiago de Compostela, junto à costa, localiza-se a paróquia de Mujia. No nordeste da Itália, perto da fronteira com a Eslovénia, na Península de Ístria, localiza-se a comuna de Muggia (provincia de Trieste) que, em dialecto veneziano se diz Muja. Ambas as formas são, como atrás vimos, perfeitamente reconhecíveis e a sugestão da origem etimológica apontada para o topónimo italiano parece ser bastante consistente sobretudo, pelo seu significado topográfico - pântano costeiro, pântano (muglia), perfeitamente aplicável no caso de Muge, com extensas áreas pantanosas nos vales das ribeiras afluentes do Tejo, drenadas ao longo da baixa Idade Média. A evolução ter-se-á feito no sentido: muglia - mulia - muia - muggia 10. Muggia, ou a forma latina mugia 11, é um feminino (em latim vulgar) de mugio, derivado do verbo mugire que tem o óbvio significado de “mugir”. Pode ainda significar “baixar” ou “abaixo”, que concorda, em certa medida, com a topografia do curso da ribeira, cheio de áreas baixas e paludosas.

A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, lº 3, fl. 152-v. https://en.wikipedia.org/wiki/Muggia 11 As formas verbais impessoais latinas não admitem feminino, pelo que este vocábulo será uma forma tardia, tirada do latim vulgar. 9

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Magos Não havendo documentação escrita que refira Muge antes do final do século XII, é impossível confirmar se esta designação era usada antes de meados do século XII ou se, pelo contrário, surge ex novo durante a colonização cristã do vale do Tejo depois de 1147. É provável que o topónimo já existisse durante a alta Idade Média, tendo sedimentado durante a Época Islâmica por proximidade fonética forma árabe mūja, da raiz (mūj) com o significado “ondular” que, de alguma forma, se forçarmos o significado, adapta-se bem ao tipo de paisagem em questão marcada por suaves ondulações.

3 | A posse da terra

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Em Novembro de 1198, Pedro Serrano e a sua esposa, D. Eugénia vendiam a Martinho André uma sua herdade que tinham entre a lezíria da Figueira e a foz da Adua, ficando o registo desta transacção naquele que é o mais antigo documento conhecido referente a Muge, como atrás dissemos. O sítio não apresenta dificuldades de localização, uma vez que as áreas onde confrontava ainda mantêm os mesmos nomes. A lezíria da Figueira é a actual Corte de Figueira, no Paul, imediatamente a norte da vila, a mesma que é cedida por D. João I a Gonçalo Peres, vedor da sua fazenda, em 138812. A foz da Adua, é a entrada da ribeira do Coelheiro na ribeira de Muge, na extremidade leste da Corte de Figueira. Pelos limites definidos na carta não é possível aferir a dimensão da herdade que, contudo, não seria muito extensa considerando a soma, relativamente baixa de 1 maravedi pago no acto da compra.

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Fig. 1 - Extracto da Planta do rio Tejo do extemo do dique de Vallada até aos campos de Salvaterra (1861). Mouchão da Lezíria da Silveira acima e a Corte de Figueira (à direita).

Infere-se pelas confrontações, ambas de natureza geográfica - a sul, a ribeira de Muge e a este o Paul - o fraco loteamento da terra no século XII, sendo que este sítio em especial vai ser bastante disputado, poucos anos depois por se encontrar no meio de uma das áreas de melhor solo do baixo Tejo, vocacionado sobretudo para a produção de trigo.

A.N.T.T., Chancelaria de D. João I, lº 2, fl. 19-v.

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A partir dos anos 20 do século XIII, começam a surgir os nomes de vários donos de propriedades em Muge, traduzindo-se isto numa óbvia e mais eficiente repartição da terra. Em 1222, mesma lezíria da Figueira já se encontrava na posse de algumas famílias, nalguns casos com parcelas legadas pela geração precedente como se pode ver pelo número de presentes nos actos notariais. Desta lezíria, em 1222, Joane Pais vende 1/3 a Soeiro Gonçalves de Alfange, sendo arroladas nada menos que 16 pessoas da primeira parte, todos familiares: filhos, netos, irmãos e cunhados 13. Na mesma ocasião Paulo Fernandes e a sua mulher vendem outro terço, em conjunto com 13 familiares 14.

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Fig. 2 - Venda da lezíria da Figueira por Pedro Serrano a Martinho André, Novembro de 1198. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs. Particulares, mç. 2, doc. 37.

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A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs. Particulares, mç. 4, doc. 5. Idem.

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Em meados do século XIII, grande parte das terras próximas ao Tejo e no vale da ribeira de Muge já estão densamente ocupadas e fragmentadas em propriedades de pequena e média dimensão. É frequente ver-se na documentação a nomenclatura típica deste tipo de parcela: courela parte de lezíria, herdade com lezíria etc. À frente do sítio mencionado como Montalvo e Foz de Muge, num steiro (mouchão) existia uma grande propriedade que foz daquela ribeira e a sul e entestava na estrada do castelo de Valada para Coruche15. Embora não chegasse esta via é, para todos os efeitos, uma extensão considerável se comparada com qualquer outra courela de campo. Até 1231 pertencia a Paio Gonçalves Bochos, que a alienou por 66 maravedis16. Em 1239 o mesmo Soeiro Gonçalves compra a João Nicolau17 e seus familiares uma herdade adjacente à anterior por 80 maravedis, que é a maior soma paga neste período por uma propriedade no campo de Muge. As terras da parte oriental do Paul, ainda em estado pantanoso por falta de arroteamento, os arneiros, charnecas e as herdades de baixo valor agrícola são, em geral, menos e de pouco interesse aquisitivo. Associado a isto e pegando novamente na questão do número de herdeiros presentes nos actos notariais, aparentemente um dado irrelevante, verifica-se a constância deste padrão conforme a natureza do bem negociado; quanto mais valorizada a terra, maior o número de familiares e suas gerações envolvidas no processo. Quando se trata de extensões de terreno de pouco préstimo agrícola os elementos familiares citados na venda são, geralmente, o casal detentor do bem e, eventualmente os filhos. Margem para as interpretar como resultado de herança transmitida num lapso temporal alargado, mas antes como aquisições recentes das quais os proprietários se desfazem a breve trecho. A este de Muge, entre a ribeira do Coelheiro e o início do vale da ribeira da Lamarosa havia uma herdade de grandes dimensões pertencente a Elvira Afonso e seus filhos, vendida em duas partes, uma em 1233 18, a outra em 1238 19, ambas pelo valor de 32 maravedis. Este preço é menos de metade do valor da herdade da Foz de Muge embora ocupe uma superfície cerca de 14 vezes maior.

Esta estrada deveria ter início no lugar de Escaroupim, seguindo depois pelos limites da actual freguesia de Marinhais. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs,. Particulares, mç. 5, doc 37. 17 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs,. Particulares, mç. 6, doc 34. 18 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs. Particulares, mç. 6, doc. 12. 19 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs. Particulares, mç. 6, doc. 30. 15

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A diferença reside no tipo de solo, essencialmente pedregoso e/ou arenoso, muito pouco produtivo e usado até ao século XIX quase exclusivamente como pastagem ou zona floresta. O privilégio do lugar de Stª. Maria da Glória, entre Muge e Coruche, datado de 1364 espelha esta mesma realidade: um espaço ocupado por montado, alternado com charnecas dedicadas ao pastoreio, à recolha de madeira e à produção de carvão20. Dentro deste raciocínio, o sítio de Montalvo, constituído por uma enorme duna também estéril do ponto de vista agrícola, será vendido em 1254 21 por Miguel Joanes de Alhada a Nuno Soares de Alfange, por 5 maravedis. Da análise das confrontações descritas no contrato, chegamos a uma área de cerca de 54ha, mais uma vez, pagos por um valor bastante modesto. Ambos os casos mostram em que medida o saltus era preterido em relação ao ager, ou seja, em como a charneca é desvalorizada em relação à lezíria.

3.1 | Os Soares de Alfange Grande parte da documentação duocentista relativa a Muge encontra-se no cartório do Mosteiro de Alcobaça que incorporou várias cartas do arquivo familiar de Nuno Soares de Alfange, morto por volta de 1273-74, o qual deixa em testamento a esta instituição os seus bens aqui localizados. A quintã de Muge não era mais do que um domínio senhorial, começado a constituir pelo pai, D. Soeiro Gonçalves de Alfange, continuado por ele próprio e pelos irmãos através de sucessivas aquisições, a última concluída em 1256. Soeiro Gonçalves, uma figura algo discreta na historiografia medieval, era de ascendência nobre, ligado à corte de D. Sancho I e, eventualmente, à de D. Afonso II. Na carta de encoutamento das suas herdades, passada por D. Sancho II surge como Suerius gunsaluij meos superiudex, o que significa que desempenhava o cargo de sobrejuiz na corte deste rei. Era casado com Elvira Peres e desse casamento tiveram seis filhos: Soeiro, Mendo, Nuno, Maior, Ximena e Maria. De Soeiro Soares, há parcas referências documentais, as quais se reportam à partilha dos seus bens pelos herdeiros. Os irmãos Mendo e Nuno Soares eram reitores, respectivamente das igrejas de S. João de Alfange e S. Bartolomeu de Santarém. 20 21

A.H.M.S.M. Tombo da Câmara de Muge, fl. 88-v. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs. Particulares, mç. 9, doc. 14.

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Nuno Soares de Alfange que, no final da vida tinha acumulado um avultado património distribuído por Santarém, Benavente, Portalegre, Moura e Beja presença assídua na corte de D. Afonso III e o seu nome consta várias vezes como testemunha das doações régias registadas no tombo dos bens de João Peres de Aboim22 (D. João de Portel), mordomo-mor de D. Afonso III. A irmã, Ximena Soares estava casada com Estevão Peres de Aboim, irmão de D. João de Portel e de cuja união nasceu Gonçalo Esteves de Aboim, alcaide de Santarém em 1303 (Pizarro, 1997, vol. II, p. 872). A outra irmã, Maior, casou com o cavaleiro Fernão Soveral, descendente dos Avelar, da antiga linhagem de Entre-Douro-e-Minho (Pizarro, 1997, vol. II, p. 872). Sobre Maria Soares nada se sabe. Voltando ao patriarca da família, Soeiro Gonçalves, a partir de 1222 inicia o processo aquisitivo da maior parte das terras de Muge. Não é possível definir com exactidão a intenção inicial, se a de simples obtenção de renda através do aumento do património fundiário, o que é possível tendo em conta a produtividade do solo, se a constituição de um senhorio que, para todos os efeitos, depende do primeiro factor. Em Novembro de 1222 compra de uma só vez três partes da lezíria da Figueira e outras três partes de lezíria que confrontavam com o steiro (Mouchão do Escaroupim). Examinando detalhadamente as confrontações de cada uma das terras, duas do segundo grupo entestavam com propriedades que já lhe pertenciam, obtidas certamente antes desta data, embora não saibamos em que circunstâncias. Numa carta de doação, pouco posterior, Soeiro Gonçalves entrega à igreja de S. Pedro de Alfange a quarta parte da lezíria da Figueira a qual era adjacente à parcela que havia pertencido a Pedro Serrano e comprada a Martinho André, em 1222. Esta data, como início do incremento patrimonial de Soeiro Gonçalves não é uma coincidência estando provavelmente relacionada com uma lei de D. Afonso II, de Maio desse ano, que proíbe que se lavrem várias lezírias da margem esquerda do Tejo e as da margem direita que ficavam entre Santarém e Lisboa, sob pesadas multas (Viana, 2007, p. 33). Tal lei pode ter contribuído para o surto aquisitivo de Soeiro Gonçalves ficando as lezírias de Muge fora da imposição de D. Afonso II por não serem reguengo e assim disponíveis para ser disfrutadas. Em 1231 Soeiro Gonçalves compra a uma grande herdade “de campo” que ficava defronte de Montalvo, indo da foz da ribeira de Muge até aquele monte, à qual se juntaria outra terra vizinha em 1239, pertencendo-lhe nesta altura quase toda a área compreendida entre a ribeira de Muge e o Tejo. 22

A.N.T.T, Documentos particulares do Núcleo Antigo, nº 201, fls. 5-v, 13, 15-v, 18, 19-v.

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Entre Maio de 1233 e Outubro de 1238, adquire todas as herdades que vão da Adua ao vale da ribeira da Lamarosa e, finalmente, a área onde estava implantado o povoado islâmico (talvez já vazio e arruinado) implícito na zona demarcada: “isti sunt terminj ejus ad orientem per uenam de aqua de lamarosa ad occidentem per uenam aqua de aduba ad aquilonem per uenam aqua de muia ad occidentem (sic) per uia qua uadit de castello de ualada pra culuchi.” 23 .

84 Fig. 3 - Compra de uma herdade em Muge, Abril de 1233. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 6, doc. 10.

Nesse mês de Outubro de 1238, D. Sancho II couta suas herdades de Muge pelo multo servitio quod mi fecit Suerius gunsalvij 24; concessão feita para sempre vigorando sobre os filhos, netos e todos os herdeiros que dali em diante tivesse Soeiro Gonçalves. A partir daqui passa a gozar de imunidade perante as justiças de Santarém, a quem a carta é endereçada, e toda a sua propriedade móvel e de raiz colocada sob a protecção do monarca. Assim, quem violasse as terras coutadas ficava sujeito a uma multa de trezentos morabitinos (aureis) e quem fizesse dano aos moradores, gados e cães deveria pagar trezentos maravedis e remediar o prejuízo em dobro. 23 24

A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 6, doc. 12. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Reais, mç. 1, doc. 23.

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Magos Esta passagem é bastante reveladora sobre interesse económico da área em questão constituída por charnecas aptas à pastorícia Os termos coutados esclarecem de forma bastante precisa a dimensão da herdade: “hereditarem de mugia et de Lamorosa et suam deuesam de conilis et mando quam deuesa sit imperata et cautata sic incipit per vallem de monte aluo et uadit ad fontem superiorem de Matalubus et sic uadit per vallem de ameyra et intrat in aduba et quomo qua uadit directe ad matam de Lamorosa et intrat in aqua de mugia et sic aqua de mugia intrat in Tagum cauto ej ipsam hereditatem totam et ipsam deuesam per terminos supradictos in trecentis aureis”. Começavam no vale de Montalvo (hoje vale de Lobos) seguia pela fonte acima de Matalobos que corresponderá à extremidade nordeste do vale do Cocharro e daí à Amieira, onde se começa o vale do Coelheiro. Daqui ia pela Adua, acima do actual Paul do Concelho até à mata que ficava na foz da ribeira da Lamarosa, seguia pela ribeira de Muge até esta entrar no Tejo.

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Fig. 4 - Terras do Soares de Alfange em 1274. Fonte: Google Earth.

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A carta de D. Sancho exclui o sítio de Montalvo que ainda não fazia parte do património familiar, sendo comprado pelo seu filho Nuno Soares, em 1254. O último contrato de compra e venda conhecido é celebrado em Fevereiro de 1241 25. Nesta ocasião negoceia com Tomás Peres e restante família a compra de três courelas de uma herdade mais a norte, no canpo de mugia, entre a ribeira de Alpiarça e o steiro qui uenit de alqueidon 26 . Entretanto, Soeiro Gonçalves de Alfange terá falecido e, em 1249, é o filho Mendo Soares que compra uma herdade no campo, a Gonçalo Peres27, para ocidente da lezíria de Bravães, aumentando a parte que lhe coube por herança do pai. Quatro anos depois escamba com Pedro Mendes e a mulher Maria Joanes quatro courelas, duas de campo e outras duas de adema, contra uma vinha que possuía em Valada. No ano de 1253, embora em meses separados, obtém oito courelas (4 de campo e 4 de adema) na lezíria de Bravães28, a qual por via desta compra lhe pertence integralmente. Em 1256 29 troca-a com Mendo Farinha por quatro courelas, também em Muge, não muito distantes dali. Mendo Soares morre em 1271 ou pouco depois, conforme a data que se pode ver na sua verba testamentária (Viana, 2007, p. 37) e para este lapso de tempo (1256 -1271) não existe documento algum que ateste qualquer outra transacção de terras Soares de Alfange em Muge. Um ano antes, Estevão Peres de Aboim e a mulher Ximena Soares fazem uma composição amigável com os irmãos desta, por conta do conflito sobre os bens herdados dos progenitores e do outro irmão, Soeiro Soares Fernandes, já falecido. Pelos bens deste último haviam pago mil libras e o diferendo recaía sobretudo na herança de Elvira Peres em Lisboa e outros legados comuns ao casal em Portalegre, Benavente e Moura30. Em simultâneo o cunhado Fernão Soveral (marido de Maior Soares) pede arbitragem a D. Afonso III sobre a contenda que tinha com Nuno Soares por entender que deveria usufruir livremente da propriedade dos sogros em Muge. O rei decide pela divisão dos bens em partes iguais e Fernão Soveral disporia só dos bens herdados pela mulher31.

A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 7, doc. 2. Este esteiro deveria ser uma faixa isolada de terra que começava no Alqueidão de Valada e terminava perto do Mouchão de Esfola-Vacas. 27 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 7, doc. 32. 28 A Lezíria de Bravães era uma parcela que ficava próxima da entrada da ribeira de Alpiarça na ribeira de Muge. 29 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 9, doc. 2. 30 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 12, doc. 7. 31 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Reais, mç. 2, doc. 5. 25 26

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Para todos os efeitos, o caso parece ter ficado resolvido porque em 1273 32 Nuno Soares manda redigir o seu testamento e nele já consta a totalidade, sem qualquer embargo, do haver que lhe cabia por morte do irmão Soeiro, para além do que já tinha herdado do pai: “Item mando que Alcobaça aya o meu quinhom da quintãa uelha de Muya que mj ficou de meu padre assi como antre mi e o Abade de Alcobaça est posto per estrumento feyto pelo tabellião da Guarda e mando a Alcobaça a mha quintãa que fiz em Muya sobrelo uale de matalobos a par de Monte aluo com as vinhas e com sas herdades e con seu monte de conhedo e con todolos outros montes e uales e dereytos que ey en toda essa terra que ey de parte de meu padre e de meu yrmaão Soeyro Soariz e con sas entradas e con ssas exedas e con todas perteenças e quanto eu hy ey so tal condiçon que o Abade de Alcobaça faça leuar Mayor a que tem Maria soariz e a meta en Coz e a contenha en quanto for uiua pelos fruitos desse logar.” Aqui é possível ver uma clara distinção entre as terras legadas originalmente pelo pai, às quais se junta o quinhão herdado do irmão e as que ingressaram pela sua própria mão, neste caso Montalvo e vale de Lobos. Último sítio havia uma vinha, mandada plantar por ele e referida no foral 1304 como terra reguenga. A quintã velha com o seu núcleo urbano, de que desconhecemos a dimensão, era composta por várias casas, terras de cultivo e vinhas. Transformar-se-á também em propriedade régia e, no início do século XIV, era assistida por servos mouros e bois33, cedida em meados da mesma centúria aos estribeiros dos reis Afonso IV e D. Pedro. O testamento de Nuno Soares marca o fim da presença dos Soares de Alfange em Muge. Nuno Soares, tal como Mendo Soares era clérigos e dificilmente poderiam dar continuidade a uma propriedade de natureza senhorial. O outro irmão, Soeiro Soares morreu bastante tempo antes e não há qualquer sinal que tenha aumentado a sua parte da herança do pai. Quanto às herdades das irmãs, vendidas a particulares no último quartel do século XIII. Pelo menos é o que se depreende de um documento que refere as propriedades de Estevão Peres de Aboim (e Ximena Soares) na posse de Soeiro Mendes Petite, alcaide de Santarém.

32 33

A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 2ª. Inc., mç. 10, doc. 224. A.N.T.T., Feitos da Coroa, Inquirições de D. Dinis, lº 10, fl. 21.

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3.2 | Instituições religiosas Como vimos, durante o século XIII, as terras de Muge estavam distribuídas por vários proprietários, à cabeça Soeiro Gonçalves que durante a vida agregou numerosas herdades encabeçadas sua quintã. A par dos domínios laicos o espaço era partilhado com as parcelas de várias instituições religiosas e religiosas militares. As lezírias eram terras muito requisitadas durante a Idade Média pelos mosteiros e por gente da nobreza que aqui procuravam obter bons talhões. Vejam-se os exemplos do mosteiro de Stª. Clara de Santarém em Caçarabotão, o de S. Domingos em Alvisquer, D. João de Portel na lezíria de Alcoelha ou ainda as dezenas de casas monásticas que dividiam os campos em Valada ou Moncão. Em Muge a regra confirmava-se embora com porções de terreno muito mais pequenas em virtude da extensão da propriedade de Soeiro Gonçalves que absorveu grande parte da lezíria. Exceptua-se a herdade do Mosteiro de Chelas de maiores dimensões mas em terreno mais pobre e acidentado. O documento mais antigo que menciona directamente a transacção de bens de raiz por uma agremiação eclesiástica data de 1213. Trata-se da compra de 5 hastins de herdade na lezíria da Silveira por D. Julião, prior de Stª. Maria da Alcáçova de Santarém, a Garcia Peres e Maria Godinha. Pagou 50 maravedis que haviam sido deixados por D. Afonso Henriques àquela colegiada para a celebração seus aniversários34. A igreja de S. Pedro de Alfange também aqui tinha a quarta parte da lezíria da Figueira, por doação de Soeiro Gonçalves, datada de 122835. Estas são as duas únicas igrejas seculares, por assim dizer, que comprovadamente possuem bens em Muge no século XIII e até ao momento não foi possível confirmar se nos séculos seguintes ainda as mantinham ou se, pelo contrário, já as haviam alienado. Em 1256, João Gomes e a mulher Sancha Peres36 instituem uma capela no Mosteiro de Chelas deixando para o efeito uma herdade que tinham em Muge compreendida entre a foz da Lamarosa a oeste e o vale de Grou a este. O vale de Grou deve corresponder à ribeira da Calha do Grou, hoje no concelho de Almeirim. Obviamente não ia entestar directamente nesse sítio, mas seria a referência toponímica mais próxima. A herdade tinha início no limite leste das terra

A.N.T.T., Colegiada de Stª. Maria da Alcáçova de Santarém, mç. 2, doc. 28. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 5, doc. 9. 36 A.N.T.T., Cónegos Regulares de Stº. Agostinho, Mosteiro de Chelas, mç. 12, doc. 228. 34 35

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dos Soares de Alfange, na foz da Lamarosa e chegava, provavelmente, onde hoje está localidade de Raposa. O Mosteiro de Chelas tinha várias courelas em Muge no final do século XV, embora nenhuma delas corresponda a esta localização. As que são referidas neste período eram terras de pão situadas no campo próximo à ribeira de Alpiarça37. No final do século XIII, em Novembro de 127138, o Mosteiro de Alcobaça recebe doação de todas a herdades e vinhas pertencentes a João Vicente, filho de mestre Vicente de Santarém. No mês seguinte é o próprio mestre Vicente e a sua mulher D. Maria Gonçalves que doa todos os seus bens em Muge que constam de oito herdades e courelas, divididas entre “campo” e “adema”, vizinhas da lezíria de Bravães39. Esta é a primeira vez que Alcobaça aqui recebe terras, as quais irão constituir o primeiro núcleo patrimonial da instituição em Muge, acrescidas de Nuno Soares após 1273. No mesmo espaço, convivem ainda diversas porções de terra pertencentes às ordens militares de Santiago, Templo e Hospital. Sabe-se da sua existência pelas confrontações com outras parcelas, sem que seja possível determinar quando e como surgem. Os fratres palmele (Ordem de Santiago) tinham uma faixa de terreno a ocidente da Adua, a seguir a uma terra que pertencia a Pedro Gonçalves e Dª. Catarina, vendida a Soeiro Gonçalves em 123340. É com toda a certeza uma propriedade situada no campo de Muge e, eventualmente a mesma que no século XV pertence ao Mosteiro de Santos, das comendadeiras de Santiago41. Os templários, por seu turno, são referidos inúmeras vezes, a partir de 1253, como donos de várias courelas no Campo de Muge. Mais uma vez não se sabe a partir de quando, mas estão na sua posse até pelo menos aos finais do século XV enquanto património da Ordem de Cristo. Sabe-se da propriedade dos fratres ospitalem (Ordem do Hospital) a partir das confrontações de uma das courelas doadas por mestre Vicente de Santarém ao Mosteiro de Alcobaça; também se situava no campo, entre as ribeiras de Muge e Alpiarça. Depois de 1271, perde-se-lhe completamente o rasto e não aparece mencionada em mais documento algum.

A.N.T.T., Cónegos Regulares de Stº. Agostinho, Mosteiro de Chelas, mç. 54, doc. 1078. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 13, doc. 7. 39 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 12, doc. 12. 40 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 6, doc. 10. 41 A.N.T.T., Ordem dos Pregadores, S. Domingos de Santarém, 1ª. Inc., mç. 12, doc. 31.

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90 Fig. 5 - Terras de instituições/ordens religiosas e religiosas militares no séc. XIII: 1- Igreja de Stª. Maria da Alcáçova; 2 - Igreja de S. Pedro de Alfange; 3 - Templários; 4 - Ordem de Santiago; 6 - Hospitalários. À direita, herdade do mosteiro de Chelas, doada em 1256. Fonte: Google Earth.

4 | Depois de 1273 O ano de 1273 marca o início do domínio do Mosteiro de Alcobaça em Muge, de que irá ser senhor nos trinta anos seguintes; período durante o qual podemos uma percepção mais alargada sobre a gestão da terra que vai além da informação documental proporcionada pelos instrumentos de compra e venda da primeira metade do século XIII. Como dissemos, em 1271 os cistercienses recebem todas as herdades e vinhas de mestre Vicente e do seu filho João Vicente de Santarém. Talvez aproveitando o exemplo, Nuno Soares deixalhes em testamento tudo quanto possuía em Muge, com a condição de uma familiar sua, Maior, com a qual desconhecemos o grau de parentesco, ingressasse no Mosteiro de Cós. Os proventos seriam utilizados para mantimento desta Maior enquanto fosse viva e revertiam a Alcobaça Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos


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após a sua morte. O acordo foi cumprido e, poucos anos depois, o Mosteiro já dispõe de posse plena, não só destas propriedades, como das de Mendo Soares e dos bens conjuntos de Estevão Peres de Aboim e Ximena Soares. Desconhecemos a forma como foram incorporadas as terras dos dois últimos, já que não existe qualquer prova da sua doação aos cistercienses e o mais provável é que Estevão Peres de Aboim as tenha vendido ao alcaide Soeiro Mendes Petite, resultantes do quinhão herdado de Soeiro Gonçalves que lhe cabia por casamento com Soeiro Mendes Petite acabará por trocar a “ (...) uineam et totam nostram partem domuum et herdamentorum que nos habemus in Quintana de mugia que fuit dominj Sugerij gunsaluj de Aqua mugie ultra termjno Sanctarene” por cinco hastins de herdade no lugar de Bacelos, em Valada42. Em Janeiro de 128543, Pero Esteves e a sua mulher Maria Peres, ambos moradores na freguesia de Stª. Maria da Alcáçova de Santarém, doam ao Mosteiro de Alcobaça, uma herdade que têm em Muge, comprada ao cavaleiro João Martins Botelho, com as suas vinhas, fontes e haveres. A partir daqui a quintã alcobacense atinge o máximo da sua extensão e, tanto quanto se sabe, não há mais incorporação de terra ao seu termo, agora povoado de casas, vinhas e campos de cultivo aplicados maioritariamente à produção de trigo. A forma de exploração, daqui em diante, será sempre de forma indirecta com emprazamentos e/ou cedência da totalidade dos bens a um particular. É uma prática frequente ao longo da Idade Média, primeiro com o património fundiário, depois com os rendimentos da igreja paroquial. O afastamento do núcleo principal dos coutos pode ter levado a esta forma de gestão, menos onerosa para o Mosteiro. Por outro lado, ao contrário do que se possamos julgar, toda a metade oriental do Paul ainda se encontrava por arrotear e não há prova alguma que os cistercienses alguma vez o tenham feito sendo estes trabalhos imputados aos diversos particulares a quem foi cedida/emprazada a quintã. Uma parte significativa do foral de 1304 versa exactamente sobre os trabalhos de drenagem do Paul, que nunca haviam sido feitos e por conseguinte a produção ficava sempre aquém do esperado. Este é um aspecto omnipresente nas fontes, a grande fertilidade do solo inversamente proporcional ao seu rendimento por inexistência de drenagem. No século XVIII o pároco de Muge a esse propósito diz o seguinte: “Os fructos desta terra são muitos e bons especialmente os Legumes, que são singulares. Se houvesse mais cuidado nos administradores da Casa do Duque 42 43

A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 17, doc. 43. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 17, doc. 42.

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de Cadaval ainda poderião ser muitos mais os fructos, por que sendo o paul Real tão grande, que há memoria de haver anno tão fertil que só o ditto paul deo novecentos, e noventa, e quatro moyos sô de trigo sem fallar nas outras especies, hoje nem delle, nem de outros dous pauis que há se fazem quinhentos moyos entre tudo, nascendo esta falta, do descuido de abrir as vallas (...)” 44. Em 128145, o Mosteiro de Alcobaça já havia cedido todos os herdamentos que possuía em Muge ao almoxarife Pero Esteves (o mesmo que doou as terras de João Botelho) em troca dos seus herdamentos em Arriel. O mesmo tipo de contrato é celebrado em 128546, com a concessão do usufruto vitalício dos bens emprazados e o pagamento anual de um moio pão. Pelas inquirições de D. Dinis47, sabemos que Pero Esteves obtinha, uns anos por outros, cerca de cem moios de trigo e vinho que era um rendimento, para todos os efeitos, vantajoso em relação à obrigação para com o Alcobaça. Volvidos treze anos, em 129848, o Mosteiro volta a emprazar a sua quintã de Muge a D. João Simão, meirinho do rei, sob as mesmas condições que havia consignado a Pero Esteves, ou seja, o pagamento de um moio de trigo. Deveria ainda entregar 21 hastins de herdade no campo de Toxe alguns bens de raiz na Golegã. Caso João Simão falecesse o prazo continuava válido na pessoa da sua mulher, Maria Guilherme e estipulou-se que esta deveria dar anualmente ao Mosteiro 25 libras de conhocença. Pela primeira vez a quintã é referida como o que significa que é uma terra equiparada aos restantes coutos, com personalidade jurídica própria e não somente um aglomerado de propriedades rurais encabeçado por um pequeno aglomerado urbano. O estatuto de couto deverá estar relacionado, certamente, com a fundação da igreja paroquial um ano antes, em 1297. Numa das disposições do contrato de 1298, D. João Simão fica obrigado a povoar o couto de Muia com carta de foro passada pelo Mosteiro, na prática um foral, coisa que nunca veio a ocorrer. Uma tradição replicada inúmeras vezes na historiografia setecentista e oitocentista é a de que a tributação imposta aos povoadores era demasiado pesada. Na realidade, o contrato cessa antes de 1301 e em virtude disso podem estar em jogo dois factores, o primeiro por ser um contrato desvantajoso para D. João Simão já que teria de ser ele a criar condições para melhorar A.N.T.T., Dicionário Geográfico de Portugal, vol. 25, memória 225, fl. 1906. A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 2ª. Inc., mç. 32, doc. 817. 46 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 17, doc. 45. 47 A.N.T.T., Feitos da Coroa, Inquirições de D. Dinis, lº 10, fl. 21. 48 A.N.T.T., Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 2ª. Inc., mç. 56, doc. 1. 44 45

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Magos e povoar a quintã contra rendimentos que se revelarão insuficientes; segundo, por ter de ceder a sua posição ao rei, que acabará por obter a quintã por escambo directamente com o Mosteiro, já que o acordo de 1298 impossibilitava a transmissão da propriedade a terceiros. Curiosamente, D. João Simão vai ser uma das testemunhas que assinam do foral de 1304. O documento de 1301 é, portanto, o elemento preparatório do foral, sendo nele definidas as condições do povoamento e, acima de tudo, o tipo de jurisdição eclesiástica que Alcobaça deveria ter, já que as prorrogativas senhoriais foram passadas ao rei. Assim, o Mosteiro conservava para si o padroado da igreja de Stª. Maria sendo o rei era obrigado a manter a pobra em redor dela (Lopes, 2015, p. 19 - 20). Caso a vila mudasse para outro lugar e fosse necessário construir outra igreja, o seu padroado pertenceria ao Mosteiro. Outros templos que fossem fundados ficavam anexos à igreja de Stª. Maria de Muge, na prática sob a jurisdição de Alcobaça, como será Stª. Maria da Glória, edificada em 1362 e arrendada conjuntamente no século XV.

| Conclusão

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É bastante redutor pensar que o espaço chamado muia no século XIII correspondia linearmente ao “senhorio” dos Soares de Alfange, ou mesmo aos limites do couto alcobacence referidos em 1298. De um ponto de vista estritamente económico, nesse caso corresponde em exclusivo à área de aproveitamento agrícola. Em termos de paisagem humanizada, ambas as realidades não são, de modo algum, coincidentes e é algo bastante mais abrangente porque segue limites geográficos/identitários, talvez anteriores Reconquista. Importa referir que o sentido de identitário não se relaciona com o sentimento de pertença, claramente anacrónico nesta época, mas antes com a percepção de limite, de onde começa e acaba determinado sítio; para todos os efeitos, aquilo que aqui consideramos “entidade geográfica” Um facto importante embora não desenvolvido neste trabalho por ficar fora do seu âmbito é a existência de um pequeno povoado ou domínio rural desde pelo menos o século X (Lopes, 2015, p.171 - 186). Não sabemos segunda metade do século XII ou se, pelo contrário, permanece enquanto aglomerado/aldeia ao longo do século XIII. Independentemente disso, não é coincidência o facto de as primeiras terras vendidas serem as da lezíria da Figueira, imediatamente a norte do povoado islâmico, no início do Paul. Próximas à zona habitada, pelo menos na primeira metade do século XII, estariam desbravadas e em melhor estado para receber cultivo. A aquisição de terras far-se-á, a partir desta lezíria em direcção aos campos adjacentes, seguindo para as áreas entre a ribeira de Muge e o Tejo e só tardiamente para a parte oriental do Paul, entre a Adua e a ribeira da Lamarosa, alagada e coberta de matos. Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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Assim, a percepção do espaço muda gradualmente á medida que aperta a malha de ocupação e exploração da terra, inicialmente circunscrita ao povoado e às áreas limítrofes e deixando de fora outras, mais marginais, que até à década de 20 do século XIII não são aqui incluídas. Um exemplo é a lezíria da Silveira, comprada pelo prior de Stª. Maria da Alcáçova, em 1213, localizada no termo de Santarém, mas não considerada como parte desta geografia. Quer isto dizer que a faixa entre a ribeira de Muge e o Tejo, para ocidente, não era considerada como tal. Trinta anos depois já se inclui como termo de outras propriedades, na continuação dos arneiros de Mendo Farinha, a norte do steiro (Mouchão do Escaroupim), cujo dono era Soeiro Gonçalves. Na mesma altura começa a ser referida, enquanto confrontação das propriedades na foz da ribeira de Muge, a estrada que ia do Castelo de Valada para Coruche. Este caminho reveste-se de particular importância porque acabará por ser o limite mais duradouro do concelho de Muge. Chega a meados do século XV intacto, além de ser uma das principais vias de passagem entre o Alentejo e a Estremadura. Tinha início no Escaroupim onde se fazia a travessia da barca de Valada e continuava para leste em direcção ao lugar onde surgirá Stª. Maria da Glória e daí para Coruche. Na planta do Tejo de 1861 esta estrada aparece marcada como caminho do Escaroupim “para a Glória”, cujo traçado pouco deve ter mudado desde o século XIII. Depois do século XIV, já com território próprio, o concelho de Muge avança sobretudo a norte retalhando partes do termo de Santarém de onde resultaram numerosos conflitos de interesses, insolúveis durante 50 anos.

| Fontes Impressas

VENTURA, Leontina; OLIVEIRA, António Resende de (2006) - Chancelaria de D. Afonso III. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, Vol. II.

Fig. 6 - 1 - Povoado islâmico do Serradinho. 2 - Lezíria da Figueira. Fonte: Google Earth

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Arquivo Nacional da Torre do Tombo Chancelaria de D. Dinis, lº 3, fls. 34-v, 152-v. Chancelaria de D. João I, lº 2, fl. 19-v. Dicionário Geográfico de Portugal, vol. 25, memória 225, fl. 1906. Documentos particulares do Núcleo Antigo, nº 201, fls. 5-v, 13, 15-v, 18, 19-v. Feitos da Coroa, Inquirições de D. Dinis, lº 10, fl. 21. Gavetas, XI, m. 7, doc. 4. Colegiada de Stª. Maria da Alcáçova de Santarém, mç. 2, doc. 28. Cónegos Regulares de Stº. Agostinho, Mosteiro de Chelas, mç. 12, doc. 228. Cónegos Regulares de Stº. Agostinho, Mosteiro de Chelas, mç. 54, doc. 1078. Ordem de Cister, Santa Maria de Almoster, mç. 3, doc. 7. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs. Particulares, mç. 2, doc. 37. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs. Particulares, mç. 4, doc. 5. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 5, docs. 9, 37. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs. Particulares, mç. 6, docs. 10, 12, 30, 34. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 7, docs. 2, 37. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 9, docs. 2, 14. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 12, docs, 7, 12. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 13, doc. 7. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Particulares, mç. 17, docs. 42, 43, 45. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Reais, mç. 1, doc. 23. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª. Inc., Docs. Reais, mç. 2, doc. 5. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs Reais, Mº 3, Doc.1. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 2ª. Inc., mç. 10, doc. 224. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 2ª. Inc., mç. 32, doc. 817. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 2ª. Inc., mç. 56, doc. 1. Ordem dos Pregadores, S. Domingos de Santarém, 1ª. Inc., mç. 12, doc. 31. Arquivo Histórico Municipal de Salvaterra de Magos A.H.M.S.M., Tombo da Câmara de Muge, fls. 57-v, 88-v.

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BEIRANTE, Maria Ângela (1980) - Santarém medieval. Lisboa: Universidade Nova de LisboaFCSH. COSTA, Pe. António Carvalho da (1712) - Corografia portugueza, e descripçam topografica do famozo Reino de Portugal... Lisboa: na officina real Deslandesiana, t. III. GATRELL, A. C. (1991) - “Concepts of space and geographical data” in Geographical Information Systems: principles and aplications. Longman Scientific & Technical, p.119-134. LEÃO, Duarte Nunes de (1610) - Descripção do Reino de Portugal. Lisboa: imp. por Jorge Rodriguez. LOPES, Gonçalo (2015) - “Materiais islâmicos do Serradinho (Muge) Cira Arqueologia. Vila Franca de Xira, nº 4, p. 171 - 186. (2015) -” A igreja de Muge na Idade Média: Uma proposta de reconstrução virtual” Magos: Revista cultural do Concelho de Salvaterra de Magos. Salvaterra de Magos, vol. II, p. 16 - 50. MIÑANO, Sebastian de (1827) - Diccionario geografico-estadistico de España y Portugal. Madrid: Imprenta Pierart-Peralta, tomo VI, p. 176 - 177. PIZARRO, José Augusto Sotto Mayor (1997) - Linhagens medievais portuguesas: Genealogias e estratégias (1279 - 1325) Porto: dissertação de doutoramento em História da Idade Média apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, vol. II. VIANA, Mário (2007) - Espaço e povoamento numa vila portuguesa (Santarém 1147 - 1350). Lisboa: Caleidoscópio/ Centro de História da Universidade de Lisboa. WEB Em linha: https://en.wikipedia.org/wiki/Muggia 14 - 08 – 2016

ANEXOS Propriedades transaccionadas em Muge, entre 1198 e 1302

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99 1301 - 07 - 12 - Escambo entre D. Dinis e o Mosteiro de Alcobaça da quintã de Muge por parte do reguengo de Valada Sabham quantos esta carta uirem e leer ouuirem que eu Dom Denis pela graça de deus Rey de Portugal e do Algarue enssenbra con a Rainha / dona Jsabel mha molher e con o Jnffante don Affonsso nosso ffilho primeiro e herdeyro ffaço tal escanbho conuosco dom Pero nunez / abade dalcobaça e con o Conuento desse meesmo logar conuem a ssaber dou a uos e ao uosso Moesteiro dalcobaça e a todolos uosso successo / res hũa parte do meu Reguengo de Valada contra o Alquidom de Lixbõa assy come deuysado e demarcado per marcos hy postos antre mjm / e uos conuem a ssaber os termos do qual herdamento ssom estes contra aguiom o dicto meu rreguengo contra a Trauessia a ademha contra o Aurego o / termo da Azanbuia contra soaão Teio dou a uos e a uosso Moesteiro e a todolos uossos ssuccessores e outorgo o dito herdamento / assi come deuisado e demarcado antre mjm e uos com todos sseus montes e ffontes e com todas ssas entradas e com todas ssas ssaidas e con todolos / sseus dereitos e con todas ssas perteenças que uos aiades e possuades pera todo senpre e façades e ordinhedes del des aqui Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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adeante todalas / cousas que a uos prouguerem assy como de uosso herdamento proprio. E todolos dereitos e fforos e iur e ssenhorio que eu hy ey e de dereito / deuo a auer em esse herdamento de ssusso dicto que a uos dou tolhoo de mjm logo e ponhoom en uos que o aiades liuremente e en paz e ssem nen / huum enbargo pera todo ssenpre assy como de ssusso he dicto. E eu nem meus ssuccessores nunca sseeremos poderosos de uijnr contra este es / canbho que eu conuosco ffaço nem no enbargar en nenhũa maneyra des aqui adeante. Mais sseia ffirme e stauil pera todo senpre. E porem / per esta pouca de terra meto uos e o dicto Moesteiro logo en corporal possyssom desse herdamento. E esto dou a uos e aos uossos ssucce / ssores e ao dicto Moesteiro pela uossa Quintãa de Muia que de uos rrecebo. E nos de ssusso dictos aBade e Conuento de / Alcobaça damos a uos ssobre dito Rey Don Denis e a uossos ssuccessores pelo dicto herdamento que de uos rrecebemos a no / ssa Quintãa de Muia con ssas casas e con ssas vinhas e con ssas herdades e con sseus montes e con ssas ffontes con ssas matas / con toda ssas entradas e con todas ssas ssaydas e con todas sas perteenças e con todolos dereitos que nos hy auemos e de dereito / deuemos a auer que aiades e possuades pera todo senpre e que ffaçades dela todalas cousas que uos prouguer como de uosso herda / mento propio. E desta doaçom que a uos damos e scanbho que conuosco ffazemos facamos e rreteemos pera nos a Eigreia de muia / o padroado dela que seaa nossa liure e exenta assy ela come o padroado dela pera todo senpre pera fazermos todalas cousas que / nos prouguer come de nossa cousa propia. Aa qual Eigreia deue a fficar terreo en que possa ffazer casas de morada que / auonde a essa Eigreia e pera cimiterio e pera almuynha e pera pomar e pera vinha. E uos senhor deuedes a pobrar / esse herdamento de muia en aquele logar hua (sic) Eigreia he deuisada e a primeyra pedra posta per affonso paaez per outoridade / do Bispo. E sse per uentura quiserdes poer a pobra en outro logar ffora do herdamento que a uos damos primeyramente ffaçades e or / dinhedes con o Bispo en tal maneyra que nos aiamos a Eigreia desse logar por nossa pera todo senpre con as dezimas da dita / poboa e de todo herdamento de muia e de todoo seu termho e con todos sseus dereitos per aquelas conposições e condições e aueenças que auemos con o Bispo e con o Cabidoo ffeytas e ordinhadas ssobrela Eigreia de muia. E sse per / uentura o poboo tanto crecer que ffaça hy outra capela sseia subiecta aa capela de sancta maria de muja e a ssam Bertolameu dota a qual Eigre / ia de sancta maria deue aauer e rreceber as dezimas todas conpridamente que ouuer en muia e en sseu termho e na dita poboa. E eestas / cousas de ssusso dictas deuem sse a entender e a guardar ben e conpridamente aa boa ffe e sem maao engenho da hũa parte e da outra e assy / e mays stauil pera todo senpre ffezemos ende ffazer duas cartas duum teor ssemelhauis e sseeladas dos sseelos de mjm Rey don / Denis e de mjm sobre dito abade dAlcobaça das quaees cartas eu Rey dom Denis deuo teer hũa e nos sobre ditos abade e / conuento Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos outra. E porque nos de suso dito Conuento dalcobaça nom auemos sseelo propio o poimento do sseelo de nosso aBade lou / uamos e outorgamos. Dante em Lixbõa doze dias de Julho. El Rey o mandou vassco aanes a ffez. Era de mill / Trezentos e Trinta Noue anos ANTT, Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Inc., Docs Reais, Mº 3, Doc.1.

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As Memórias Paroquiais (1758) de Salvaterra de Magos e Muge João António Mendes Neves Mestre em História da Idade Média (FLUC) e Professor de História do 3º ciclo e secundário jbalbinoster@gmail.com Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


As Memórias Paroquiais (1758) de Salvaterra de Magos e Muge

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O trabalho agora apresentado pretende divulgar e permitir a leitura a todos das Memórias setecentistas das paróquias de Salvaterra de Magos e de Muge. E desta forma, permitir ao leitor uma viagem no tempo, até ao século XVIII, até ao coração da lezíria ribatejana. Como seriam a terra e as gentes, que tradições e costumes teriam as populações de então, são algumas das questões que encontram resposta nestas Memórias.

1 | O contexto Três anos após o terramoto que mergulhou Portugal no caos, o Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino de D. José I, Sebastião José de Carvalho e Melo exortava os prelados e os párocos, num aviso de janeiro de 1758, a responderem a um inquérito sobre o estado das paróquias do reino. Mais do que averiguar os estragos provocados pelo terramoto de 1755, este interrogatório pretendia esboçar um retrato do Portugal de então. A estrutura e o inquérito em si foram decalcados do Diccionario geográfico, do padre Luís Cardoso1. Este clérigo da Congregação do Oratório, imbuído do espirito enciclopédico iluminista procurou recolher informações de todas as cidades, vilas e vilarejos portugueses; publica o primeiro volume do seu Diccionario, alusivo à letra A, em 1747 e o segundo em 1751, abrangendo as letras B e C. Os restantes volumes não chegaram a ser publicados e os manuscritos ter-se-ão perdido aquando do terramoto de 1755. O padre Luís Cardoso procurou que o seu Diccionário informasse sobre as terras (primeira parte), as serras (segunda parte) e os rios (terceira parte). Esta estrutura foi mantida nos inquéritos paroquiais pombalinos, mas foram acrescentadas mais algumas questões sobre os estragos evidentes terramoto2, a que distância se encontrava a paróquia da sede de bispado e da capital do reino3 ou se era servida por correio4. Outras questões anteriores Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas / que escreve, e offerece ao muito alto... Rey D. João V nosso senhor o P. Luiz Cardoso, da Congregaçaõ do Oratorio de Lisboa - Lisboa : na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, 1747-1751. - 2 tomos. 2 Questão 26, da 1ª parte. 3 Questão 21, da 1ª parte. 4 Questão 20, da 1ª parte. 1

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Magos foram reformuladas e exigidas mais informações sobre distâncias5, números6, medidas7, tempos8. Este inquérito preanunciava o advento de uma nova mentalidade, racional, científica, quantificável e mesurável. Do Portugal antigo, que se pensava ter sucumbido com o terramoto, começava agora a emergir um Portugal moderno e iluminado9.

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Nesse mesmo ano, párocos diligentes remeteram as suas respostas para Secretaria do Reino, respondendo ao inquérito pombalino10. O padre Luís Cardoso deveria coligir as respostas e republicar o seu Diccionário, contudo a idade avançada, a vontade ou a doença e por fim a morte impossibilitaram o clérigo dessa empresa. Os papéis com as respostas ficaram esquecidos mais de meio século na biblioteca do convento de Nossa Senhora das Necessidades, pertença da Congregação do Oratório. Em 1832, um padre da mesma congregação terá organizado esse montão de papéis, por ordem alfabética, em forma de dicionário, originando 43 volumes encadernados. Além de compilar os quarenta e três volumes memorialistas das paróquias, esse mesmo clérigo elaborou um outro volume com um índice alfabético de todas as localidades registadas nos volumes anteriores. A revolução liberal, a guerra civil, a extinção das ordens religiosas e a consequente nacionalização dos bens das ordens religiosas masculinas permitiram que os volumes do Diccionário Geográfico ingressassem na Livraria Régia da Ajuda; nos anos seguintes, a guarda e a posse desta coleção está envolta em alguma incerteza, certo é que em 1843 estava na Torre do Tombo , onde se mantêm até aos nossos dias12. Questão 4, da 1ª parte, indaga sobre a distância que povoação está das povoações mais próximas. Questão 5, da 1ª parte, procura fazer o levantamento do número de vizinhos e de pessoas existentes no lugar. 7 Questão 2, da 2ª parte, pede esclarecimentos sobre quantas léguas de largura e comprimento têm as serras conhecidas; e a questão 19, da 3ª parte, pretende saber quantas léguas de comprimento têm os rios. 8 Na questão 20, da 1ª parte, além da existência de correio também é questionada a frequência desse correio. 9 Sobre a mentalidade moderna veja-se a obra de Vitorino Magalhães Godinho, Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar, sécs. XIII-XVIII, Difel, Lisboa, 1990; ou de Joaquim Romero Magalhães «O enquadramento do espaço nacional», in História de Portugal (Dir. de José Mattoso) 3.º vol., pp. 13-61, Ed. Círculo de Leitores, Lisboa, 1993. 10 Para mais informações sobre as Memórias Paroquiais veja-se o texto introdutório de José Viriato Capela, As freguesias do Distrito de Braga nas Memórias Paroquiais de 1758. A construção do imaginário minhoto setecentista, Braga, 2003. 11 Joana Braga num instrumento descritivo do Dicionário Geográfico faz a história da coleção (Joana Braga, Memórias Paroquiais: Índice, Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 2014, pp 7-9) 12 Na Torre do Tombo estão disponíveis os originais com consulta condicionada, cópias microfilmadas e desde de 2009 é possível consulta virtual em http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4238720. 5 6

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As Memórias Paroquiais (1758) de Salvaterra de Magos e Muge

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Em duzentos e cinquenta anos muitos estudiosos e curiosos acederam aos quarenta e três volumes do Diccionário Geográfico, transcreveram e publicaram apenas os textos memorialistas referentes a uma terra (paróquia) ou uma a uma região. No título dessas publicações surge a designação de Memórias Paroquiais, expressão por que é conhecida atualmente esta coleção. Nos últimos anos, as universidades portuguesas abraçaram o projeto publicar e estudar de forma sistemática o Diccionario Geográfico. A Universidade de Lisboa assumiu a publicação integral da obra, num esforço coordenado pelos professores José Varandas e João Cosme13 que já publicaram sete volumes. As Universidades do Porto e do Minho14 e de Coimbra15 têm apostado mais na edição e tratamento da informação a nível regional, tal como a Universidade de Évora assumiu a edição e o estudo das Memórias alentejanas16. Por fim, a Universidade Nova de Lisboa desenvolveu um projeto de cartografia histórica virtual17. Como se referiu, no quadragésimo quarto volume está o índice alfabético da coleção, antecedido por um prólogo que indica as questões a que os párocos procuram responder, as quais se transcrevem de seguida:

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Coleção Memórias Paroquiais (1758), José Varandas, João Cosme e outros, Universidade de Lisboa/ Caleidoscópio, vol. I, Abação-Alcaria (2010); vol. II, Alcaria-Alijó (2010); vol. III, Almonde-Amorim (2012), vol. IV, Ançã-Arnóia (2013), vol. V, Arões-Azurem (2015); vol. VI, Babe-Benquerença (2015); vol. VII, Benavente-Bustelo (2016). 14 A coleção Portugal nas Memórias Paroquiais de 1758, coordenada por José Viriato Capela, com a Chancela da Universidade do Minho, em Braga, tem publicado As freguesias do Distrito de Braga nas Memórias Paroquiais de 1758, em 2003; do Distrito de Viana do Castelo, em 2005; de Vila Real, em 2006; de Bragança em 2007; do Porto em 2009; de Viseu, em 2010; de Aveiro e Coimbra, em 2011; da Guarda, em 2013, estando para breve os volumes osbre Castelo Branco, Portalegre, Lisboa, Santarém e Setúbal. 15 A coleção Notícias e Memórias Paroquiais Setecentistas, da Palimage, tem trazido à estampa algumas monografias concelhias com transcrições e estudos de localidades do centro do País. 16 Com o projeto de trabalho colaborativo, online, intitulado http://portugal1758.di.uevora.pt/. 17 Disponível em http://www.fcsh.unl.pt/memorias/atlas/apresentacao.html. 13

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Parte 1ª: O que se procura saber dessa terra, he o seguinte. Venha tudo escripto em letra legível e sem breves 1. Em que província fica, a que bispado, commarca, termo e freguesia pertence? 2. Se he d’el-Rei, ou de donatario, e quem o he ao presente? 3. Quantos vizinhos tem, e o número das pessoas? 4. Se está situada em campina, valle, ou monte e que povoações se descobrem della, e quanto dista? 5. Se tem termo seu, que lugares, ou aldeas comprehende, como se chamam, e quantos vizinhos tem? 6. Se a Parochia está fora do lugar, ou dentro delle? e quantos lugares, ou aldeas tem a freguesia, e todos pelos seos nomes?/fl. III v/ 7. Qual é o seo orago, quantos altares tem, e de que sanctos, quantas naves tem; se tem Irmandades, quantas e de que sanctos? 8. Se o Parocho he cura, vigário, ou reitor, ou prior, ou abade, e de que appresentação he, e que renda tem? 9. Se tem beneficiados, quantos, e que renda tem, e quem os appresenta? 10.Se tem conventos, e de que religiosos, ou religiosas, e quem são os seos padroeiros? 11.Se tem hospital, quem o administra e que renda tem? 12. Se tem casa de Misericordia, e qual foi a sua origem, e que renda tem; e o que houver de notavel em qualquer destas coisas? 13. Se tem algumas ermidas, e de que sanctos, e se estão dentro ou fora do lugar, e a quem pertencem? 14. Se acode a ellas romagem sempre, ou em alguns dias do anno, e quaes são estes? 15. Quais são os fructos da terra, que os moradores recolhem com maior abundância. /fl. IV/ 16. Se tem juiz ordinário, etc., camara, ou se está sujeita ao governo das justiças de outra terra, e qual he esta? 17. Se he couto, cabeça de concelho, honra ou behetria? 18. Se ha memoria de que florescessem, ou della sahissem alguns homens insignes por virtudes, letras ou armas? Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


As Memórias Paroquiais (1758) de Salvaterra de Magos e Muge

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19. Se tem feira, e em que dias, e quanto dura, se he franca ou cativa? 20. Se tem correio, e em que dias da semana chega, e parte; e, se o não tem, de que correio se serve, e quanto dista a terra aonde elle chega? 21. Quanto dista da cidade capital do bispado, e quanto de Lisboa, capital do Reino? 22. Se tem algum privilegios, antiguidades, ou outras coisas dignas de memoria? 23. Se há na terra, ou perto della alguma fonte, ou lagoa celebre, e se as suas aguas tem alguma especial virtude. 24. Se for porto de mar, descreva-se o sítio que tem por arte ou por natureza, as embarcações que o frequentam e que pode admittir? /fl. IV v./ 25. Se a terra for murada, diga-se a qualidade dos seus muros; se for praça d’armas, descreva-se a fortificação. Se ha nella, ou no seu districto algum castello, ou torre antiga, e em que estado se acha ao presente. 26. Se padeceo alguma ruína no terramoto de 1755, e em que, e se está reparada? 27. E tudo o mais que houver digno de memoria, de que não faça menção o presente interrogatório. Parte 2ª: O que se procura saber dessa serra he o seguinte 1. Como se chama? 2. Quantas leguas tem de comprimento e quantas tem de largura, aonde principia e acaba? 3. Os nomes dos principais braços d’ella? 4. Que rios nascem dentro do seo sitio, e algumas propriedades mais notaveis d’elles; as partes para onde correm e onde fenecem? 5. Que villas, e lugares estão assim na serra, como ao longo d’ella? 6. Se ha no seo districto algumas fontes de propriedades raras? /fl. V/ 7. Se ha na serra minas de metais, ou canteiras de pedras, ou de outros materiais de estimação? 8. De que plantas ou hervas medicinais he a serra povoada, e se se cultiva em algumas partes, e de que generos de fructos he mais abundante? 9. Se ha na serra alguns mosteiros, igrejas de romagem, ou imagens milagrosas? 10. A qualidade do seo temperamento? 11. Se ha n’ella creações de gados, ou de outros animais ou caça? Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos 12. Se tem alguma lagoa ou fojos notáveis? 13. E tudo o mais que houver digno de memoria.

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Parte 3ª: O que se procura saber do rio dessa terra he o seguinte 1. Como se chama assim, o rio, como o sitio onde nasce? 2. Se nasce logo caudaloso, e se corre todo o anno? 3. Que outros rios entram nelle, e em que sitio? 4. Se he navegavel, e de que embarcações he capas? 5. Se he de curso arrebatado, ou quieto, em toda a sua distancia, ou em /fl. V v/alguma parte d’ella 6. Se corre de norte a sul, se de poente a nascente, se de sul a norte, se de nassente a poente. 7. Se cria peixes, e de que especie são os que trás em maior abundancia? 8. Se ha nelle pescarias, e em que tempo do anno? 9. Se as pescarias são livres ou de algum senhor particular, em todo o rio, ou em alguma parte d’elle? 10. Se se cultivam as suas margens, e se tem muito arvoredo de fructo, ou silvestre? 11. Se tem alguma virtude particular as suas aguas? 12. Se conserva sempre o mesmo nome, ou começa a ter diferente em algumas partes, e como se chamam estas, ou se ha memoria que em outro tempo tivesse outro nome? 13. Se morre no mar, ou em outro rio, e como se chama este, e o sitio em que entra n’elle? 14. Se tem alguma cachoeira, repreza, levada, ou açudes que lhe embaracem o ser navegavel? /fl. VI/ 15. Se tem pontes de cantaria, ou de pao, quantas e em que sítio. 16. Se tem moinhos, lagares de azeite, pizões, noras ou algum outro engenho? 17. Se em algum tempo, ou no presente, se tirou, ou tira ouro das suas áreas? 18. Se os povos usão livremente das suas aguas para a cultura dos campos, ou com alguma pensão? 19. Quantas leguas tem o rio, e as povoações por onde passa desde o seu nascimento ate onde acaba? 20. E qualquer coisa notavel, que não vá neste interrogatorio.

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As Memórias Paroquiais (1758) de Salvaterra de Magos e Muge

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3 | As Memórias Paroquiais de Salvaterra de Magos e de Muge Os párocos das freguesias de Salvaterra de Magos e de Muge acataram o aviso pombalino, rapidamente responderam ao inquérito e enviaram as respostas para a Secretaria de Negócios Internos do Reino, liderada por Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro conde de Oeiras e marquês de Pombal. Chegados à Secretaria do Reino os papéis terão sido entregues ao padre Luís Cardoso que os amontou no Convento de Nossa Senhora das Necessidades e só em 1832 tiveram o tratamento devido, tendo sido encadernados. As respostas relativas a Salvaterra de Magos encontram-se então no trigésimo terceiro volume, entre as páginas 215 e 242, com o verbete de entrada número 34. Os dados de Muge estão incompletos e ficaram compilados no vigésimo quinto volume, entre as páginas 1899 e 1908, com o verbete de entrada número 255.

3.1 | As Memórias Paroquiais de Salvaterra de Magos

O padre Miguel Francisco Teixeira faz a descrição da vila de Salvaterra de Magos e seu termo, fornecendo-nos importantes informações18. Começa por localizar esta vila na província da Estremadura, no Patriarcado de Lisboa e na Comarca de Santarém. Distando de dez léguas da cidade de Lisboa e quatro de Santarém. A vila de Salvaterra não tinha outro senhor que o rei. Viviam neste concelho 453 vizinhos (homens que participavam no governo do município), num total de 1399 pessoas maiores de idade (com mais de 14 anos); 173 seriam menores (com idades entre os 7 e 14 anos), “a quem o preceito obriga” a confissão e, como tal, a inclusão do seu nome no rol dos confessos. Com menos de sete anos era impossível saber o seu número. A esmagadora maioria das pessoas vivia na vila de Salvaterra de Magos, sendo residual o número de habitantes de outros lugares ou aldeias, onde apenas se encontravam 33 dos 453 vizinhos. De seguida, somos informados que Salvaterra de Magos se situa numa planície de areia e que tem sete ruas principais: a Rua de Santo António, a Rua Direita, Rua de S. Paulo, Rua do Pinheiro, Duas das Águas, Rua do Calvário e a Rua do Arneiro; todas elas com orientação norte - sul, da Vala Real em direção ao Palácio.

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Veja-se o documento 1 transcrito em anexo.

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Magos Faz a localização relativa, indicando localidades próximas, para Este a uma légua de distância está o Escaroupim, a Norte e passando Rio Tejo está Valada, Virtudes e Azambuja. Para Oeste encontrava-se o Convento de Jenicó e o caminho para Lisboa. No termo do concelho situam-se os lugares/aldeias do Culmieiro, da Misericórdia, dos Coelhos, os Cabidos, das Figueiras, de Bilrete de Cima e do Escaroupim.

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Figura 1 - Mapa Topográfico de Salvaterra de Magos, 1788, AHMF (Publicado por Joaquim M. Silva CORREIA e Natália Brito Correia GUEDES, O Paço Real de Salvaterra de Magos - a Corte, a Ópera, a Falcoaria, Lisboa, 1989, p.33)

Em termos religiosos, a igreja matriz da paróquia que tem por orago S. Paulo é constituída por duas naves laterais, onde se encontravam cinco altares. Do lado direito, um altar dedicado a Santa Ana, outro a S. Miguel e outro a S. João Batista; do lado esquerdo, um em honra de Nossa Senhora do Rosário e outro em honra de Nossa Senhora da Assunção. Na paróquia existia uma irmandade do Santíssimo Sacramento e outra das Almas. Existiam ainda na vila, a Capela Real situada no Palácio e a Capela da Misericórdia, ainda hoje existentes; as ermidas de Santo António e de S. Sebastião, entretanto desaparecidas. O pároco era vigário era da apresentação mitra do Patriarcado de Lisboa. Tinha de renda 63200 réis e um moio de trigo, advindos sobretudo de uma courela que a paróquia detinha no Paul de Magos. Não havia mais religiosos no concelho. Existia uma Santa Casa da Misericórdia e dois albergues, um já destruído.

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As Memรณrias Paroquiais (1758) de Salvaterra de Magos e Muge

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Figura 2 - Mapa da Coutada de Salvaterra de Magos. 1811-1848, Junta de Freguesia de Salvaterra de Magos (Publicado por Joaquim M. Silva CORREIA e Natรกlia Brito Correia GUEDES, O Paรงo Real de Salvaterra de Magos - a Corte, a ร pera, a Falcoaria, Lisboa, 1989, p.77)

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Magos A nível económico, a agricultura era principal atividade, a terra rica em cevada, trigo, milho e legumes, a produção animal era significativa (bovinos, ovinos, equídeos, aves, suínos, coelhos). O comércio fazia-se através da sangria (Vala Real) que ligava a vila ao rio Tejo, permitindo o comércio de Salvaterra com Lisboa ou com Santarém, localidades que abastecia de produtos hortícolas, cereais, carnes e pescado (os comummente designados salmões). O porto era de boas dimensões e podia acomodar 60 embarcações. Não tinha nenhuma feira anual e o correio não parava aqui, usando-se o correio de Benavente. Salvaterra de Magos é um concelho antigo, com várias cartas de privilégios dos monarcas portugueses, sendo os vereadores e procuradores nomeados pelo rei, tem um juiz de fora (que partilha com Benavente), mas não se sujeita a justiças fora da terra. A presença da corte em Salvaterra permitiu que alguns naturais se distinguissem. Como o doutor Francisco Seabra de Freitas, o desembargador António da Costa Freire, o comissário (de Carlos III) José Lopes Temudo. Além do Palácio Real, em especial a Casa da Ópera, da Igreja Paroquial, da Capela da Misericórdia, das ermidas de S. António e de S. Sebastião e do Cruzeiro do Calvário, não existiam outras construções dignas de memória, e todas elas foram muito afetadas pelo terramoto de 1755.

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3.2 | As Memórias Paroquiais de Muge

O pároco de Muge, de nome desconhecido, terá em 1758 respondido “á obrigação que se… impoz de descrever a terra de Muja”. Localiza a vila de Muge na província da Estremadura, no arcebispado de Lisboa e na comarca de Santarém. Esta vila integrou o couto do mosteiro de Alcobaça, foi escambada por um reguengo junto de Valada e passou para ser propriedade régia, mais tarde foi dada ao duque de Cadaval. A vila teria 260 fogos, onde viviam 1084 pessoas com mais de sete anos, quase todas elas na vila. A vila de Muge era sede de um concelho que integrava no seu termo o lugar de Nossa Senhora da Glória, com oitenta pessoas; o Escaroupim, com quarenta e quatro pessoas; a aldeia de Eanes, onde vivam vinte pessoas; a aldeia de Ribeira de Muge, com dezoito pessoas; e Vialonga, com vinte pessoas. E ainda os casais dos Colmeeiros, de Magos e dos Caniçais com treze pessoas. A igreja paroquial é dedicada a Nossa Senhora da Conceição, é de nave única de boas proporções. O altar-mor é feito de talha dourada, com uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, em nichos laterais é possível observar uma imagem de S. Sebastião do lado direito e outra de S. João Batista do lado esquerdo. Já fora do altar-mor era possível ver dois altares colaterais, Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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do lado do evangelho, no lado esquerdo, um altar de Nossa Senhora do Rosário; no lado da epístola, o lado direito, um altar de Santo António. No corpo da igreja era possível identificar, do lado esquerdo, um altar de Cristo Crucificado e um altar da Nossa Senhora da Cursa, neste altar ainda se podia observar a imagem de S. Francisco. Do lado direito, um altar dedicado às Almas e onde se venerava o Arcanjo S. Miguel. Existiam três irmandades: a do Santíssimo Sacramento, de Nossa Senhora do Rosário e a de Almas. O pároco intitula-se prior, é de apresentação da mitra patriarcal e tem uma renda de dous mil cruzados. Tinha Misericórdia e um Hospital que dava hospedagem a algum peregrino ou a quem precisasse de cuidados, contudo para cuidados médicos deveria ir para o Hospital de Santarém. Existiam ainda mais edifícios religiosos, como a Capela do Senhor Jesus da Misericórdia, a ermida de Nossa Senhora da Glória, a capela de Santo António, no Escaroupim; uma ermida arruinada em Vialonga, dedicada a S. João Batista, outras duas também arruinadas na vila de Muge dedicadas a Santo André e outra a S. Sebastião. A romagem e o culto de Nossa Senhora da Glória tinham especial destaque, desde que o milagre da salvação do rei D. Pedro acontecera. Ao nível económico, uma das principais atividades era a agricultura, com a produção de cereais (trigo, centeio, milho grosso, cevada), legumes (grãos, feijão branco, feijão frade, favas, ervilhas, chícharos, lentilhas), vinho, outra atividade era a criação de gado bovino (taurino e holandês), ovino, caprino, equídeo, suínos e ainda a extração de produtos como o mel e a cera. Não havia nem feira nem correio nesta vila, pelo que os moradores recorriam ao correio de Santarém ou à barca do Duque de Cadaval para esse efeito. A camara governa o concelho, onde dois juízes um de fora e outro o dos órfãos e presidem alternativamente às sessões de camara, que tem três vereadores, um procurador e um escrivão. A eleição destes dependia da confirmação do donatário, o Duque de Cadaval. Contudo está incompleta esta memória de Muge, onde apenas as respostas às primeiras vinte três questões da primeira parte. Metade das respostas perderam-se no amontoado de papéis que estiveram depositados mais de cinquenta anos no Convento das Necessidades a aguardar cuidados.

4 | Concluído As memórias paroquiais contidas no Diccionario Geográfico são uma excelente fonte para o estudo da história local e de algumas instituições. Duzentos e cinquenta anos, as Memórias Paroquiais permitem lançar um olhar para as nossas terras e reconhecer traços da nossa identidade coletiva. O verdadeiro desafio é cada um lê-las e sentir-se interpelado pelas vozes dos nossos antepassados. Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos DOCUMENTO 119 1758, Março 31- Memórias Paroquiais de Salvaterra de Magos Torre do Tombo, Memórias Paroquias, vol. 33, n.º34, pp. 215-242) Cota: IANTT/MPRQ/33/34 Publicado por Joaquim M. Silva CORREIA e Natália Brito Correia GUEDES, O Paço Real de Salvaterra de Magos - a Corte, a Ópera, a Falcoaria, Lisboa, 1989, pp. 92-99 [N.º 34 Salvaterra de Magos <comarca de Sanctarem>20] Dace resposta a primeira ordem das interrogasoens pela forma seguinte

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SALVATERRA DE MAGOS Primeira Interrogatorio 1- Pertendece saber em que provincia, a que bispado, comarca, termo e freguezia pertence? Respondece R.1- Fica esta villa em a Provincia da Extremadura, pertence ao arcebispado de Lisboa, he comarca de Santarem, tem termo seu, he juntamente freguesia. Segunda Interrogatorio 2- Pertendece saber mais se he d’el rey, ou de donatário, e quem o he ao prezente?

Normas de Transcrição- Nos documentos transcritos seguiram-se as Normas gerais de transcrição e publicação de documentos e textos medievais e modernos, Avelino Jesus da COSTA, Coimbra, FLUC, 1993. Sendo estas as principais regras aplicadas: transcrição do documento em linha contínua, separando os respectivos fólios por um traço obliquo; mantêm-se a ortografia do texto original, bem como o uso de maiúsculas e minúsculas sempre que oportuno; pontuou-se o texto pelos critérios modernos, de modo a facilitar a leitura e interpretação; desenvolvimento das abreviaturas excepto nos numerais; colocação em “[ ]” daquilo que se acrescentou ao original ou resulta de leitura interpretativa, e de [sic] a seguir aos erros do texto original; as partes ilegíveis do texto são indicadas por […]; as palavras entrelinhadas colocam-se entre < >; as dúvidas são assinaladas por (?); em nota de rodapé estão as indicações que ajudam à leitura do texto. 20 O mesmo autor, além de numerar a entrada, paginou à margem, no canto superior direito: “215”, registou as entradas seguintes “Salvaterra de Magos, Serra del Rei, Salir do porto, Salir do Mato, Seixal, Sobral, Serra do Bouro, Santiago dos Velhos”.

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As Memórias Paroquiais (1758) de Salvaterra de Magos e Muge

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Respondece R. 2- Esta villa ao prezente não he de donatário, porque os senhores condes de Atalaia a trocarão com el rey, o qual lhe deo em troca Atalaya, Erra, e Asseiceira. Terceira Interrogatorio 3- Pertendece mais saber quantos vizinhos tem e o numero das pessoas? Respondece R. 3- Tem esta villa, segundo o rol que todos os anos se faz para effeito de se satisfazer ao preceito da igreja, em a villa e aldeias a ella pertencentes, quatrocentos e sincoenta e tres vizinhos; vem a saber, quatrocentos e vinte em a villa, e em as suas aldeias trinta e tres, os quais todos fazem a quantia antecedente referida dos quatrocentos e sincoenta e tres vizinhos. O numero das pessoas que he em esta villa, e suas aldeias, he este segui/fl. 216/seguinte: pessoas mayores mil e trezentos e noventa e nove, e as menores a quem o preceito obriga em a villa, e suas aldeias, faz o numero de cento e secenta e tres. Não fallo porem em aqueles a quem a igreja ainda não obriga, por estar muito21 movel sua multidão. E para com mais clareza satisfazer a este interrogatório, digo, tem a villa pessoas mayores mil e trezentos e sincoenta e huma, menores quarenta e oito, digo mayores em suas aldeyas quarenta e oito, menores em a villa cento e sincoenta e sette, e nas suas aldeias seis esta he a noticia que se pede das pertencentes a este interrogatorio Quarta Interrogatorio 4- Pertendece saber mais se está esta villa situada em campina, valle, ou montes, e que povoaçoens se descobrem della, e quanto dista? Respondece R. 4- Está esta villa situda em hum plano de terra, cuja natureza he de areya, tem esta villa sette ruas principais, a saber: da parte do nascente a Rua de Sancto Antonio, a qual parte de norte para sul e vay dar em a Capella Real em cuja capella esta hum altar de Sancto Antonio do qual tomou nome esta rua; para a parte do poente ao pé desta, se acha a Rua Direita, a qual tãobem parte de norte para sul ficando desta parte a praça desta villa, junta a esta se acha a Rua de Sam Paulo, a qual tãobem parte de norte para sul, e desta parte de em o lado direito direito da freguezia desta villa, da qual freguezia tomou esta rua nome, adjuncta a esta se ve a Rua do Pinheiro, a qual tãobem parte de norte a sul, e desta parte antiguamente se/fl. 217/ se via hum pinheiro radicado proximo a esta rua por cuja cauza se ficou chamando Rua do Pinheiro. Junta a 21

Leitura duvidosa, dificultada por um borrão de tinta.

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Magos esta está a Rua de Agua, a qual pelas muiitas aguas que em si recolhe quando chove, assim lhe chamão, cuja rua parte do norte para sul. Adjuncta a esta está a Rua do Calvario, a qual tãobem parte de norte a sul, e desta parte admira huma cruz grande de pedra, e serve esta do septimo passo, quando se faz memoria da Paixão do Nosso Salvador, por cuja cauza tomou esta rua o nome referido. Esta da parte do poente a rua chamada do Arneiro, por esta hir dar a hum arneiro do concelho desta villa. Sobre sahe a toda esta villa a eminencia da Caza da Opera de Sua Magestade e adjuncto a esta o Palacio Real. Isto he no que pertence a villa, passo às povoaçoens que daqui se descobrem. Descobrece da parte do nascente o lugar de Escoropim, o qual dista huma légua de terra firme. Descobrece mais da parte do norte a villa de Vallada, a qual dista huma legoa, metendo ce de premeyo o rio Tejo, no qual há huma barca para a ditta villa de Vallada. Descobre ce mais da mesma parte do norte o lugar das Virtudes, o qual dista duas legoas, ficando de permeyo neste espaço o rio Tejo. Descobrece mais da mesma parte do norte a villa de Azambuja, a qual dista desta villa duas legoas, metendo ce permeyo neste espaço o rio Tejo com sua corrente. Descobrece mais desta villa o Convento dos Frades de Genicó o qual dista meyo quarto de/ fl.218/ de legoa para a parte de Lisboa por terra firme.

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Quinta Interrogatorio 5- Pertendece saber mais se esta villa tem termo seu, que lugares ou aldeas compreende, como se chamão, e quantos vizinhos tem? Respondece R. 5- Esta villa tem termo seu, em o qual tem seis aldeas. E em huma chamada o Culmieiro esta tem nove vizinhos. Tem mais outra chamada Mizericordia a qual tem hum vizinho. Tem mais outra chamada os Coelhos, a qual tem sinco vizinhos. Tem mais outra chamada os Cabidos, a qual tem dous vizinhos. Tem mais outra chamada as Figueiras, a qual tem seis vizinhos. Tem mais outra chamada Bilrete de Sima, a qual tem nove moradores. Esta tãobem em o lugar de Escarupim hum vizinho em o termo desta villa, cujo numero de vizinhos das aldeas faz a quantia referida em o numero terceiro das respostas desta serie.

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Seista Interrogatorio 6- Se a parroquia esta fora da villa, ou dentro della, e quantos lugares ou aldeas tem a freguesia, todas pelos seus nomes? Respondece R. 6- A parroquia esta dentro desta villa, existe pertencentes, ha seis aldeas, a saber Bilrete, Figueiras, Cabidos, Mizericordia, Coelhos, Culmieiro, e não tendo mais que a dizer pertencente a este interrogatório. Septima Interrogatorio 7- Pertende ce mais saber qual he desta parroquia o orago, quantos altares tem e de que sanctos, quantas naves tem, se tem irmandades, quantas, e de que sanctos? Respondece /fl. 219/ R. 7- He o orago desta parroquia Sam Paulo. Ha em a dicta Igreja sinco altares: a saber do lado direito tem hum da Senhora Sancta Ana, o segundo de Sam Miguel, o terceiro de Sam João Baptista. Tem mais dous para a conta dos sinco, da parte esquerda: a saber, o primeiro de Nossa Senhora do Rozario, o segundo de Nossa Senhora de Assumpsão. Tem mais a mesma parroquia duas naves, tem esta mesma igreja duas irmandades, huma do Sanctissimo Sacramento e outra das Almas. E he o que posso dizer a resposta deste interrogatório, todos altares são exceptundo o altar mor. Ouctava Interrogatorio 8- Pertendece mais saber se o parroco da parroquia he cura, vigário, ou reytor, prior, ou abade, e de que aprezentasão he, e que renda tem? Respondece R. 8- O parroco desta parroquia he vigário, he aprezentasão da mitra, tem de renda secenta e tres mil e duzentos, e mais hum moyo de trigo, que tanto paga o lavrador que fabrica huma corella, a qual pertence a esta igreja. Nona Interrogatorio 9- Pertendece mais saber, se este tem beneficiados, quantos, e que renda tem e quem os apresenta? Respondece R. 9- Esta parroquia nem teve, nem ao presente tem beneficiados, e como os não tem, tãobem não tem rendas algumas para estes./fl. 220/ Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos Decima Interrogatorio 10- Pertendece mais saber se esta terra tem conventos, e de que religiozos, ou religiosas, e quem são seus padreiros? Respondece R. 10- Não tem esta terra caza de convento algum dentro em si, ou seu termo. Undecima Interrogatorio 11- Pertendece mais saber se esta terra tem hospital, quem o administra, e que rendas tem? Respondece R. 11- Não tem esta terra hospital para o coratorio de enfermidades. Tem duas cazas em diferentes citios, os quais chamão alvergarias, huma já destruída, e a outra serve de alvergue para os pobres mendicantes.

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Duodecima Interrogatorio 12- Pertendece mais saber se em esta terra há Cazas de Mizericordia, e qual foy a sua origem, e que renda tem? Respondece R. 12- Foy me necessário para dar resposta a este interrogatório no que pertence a segunda parte, o pedir ao provedor, escrivães e aos irmãos da meza me patentiacem aquelles livros aonde existiam os seus princípios e juntamente aquelles em que estavão os títulos das suas rendas. A primeira resposta due derão foi que não constava em livro, ou papel algum do seu principio, tanto assim que de algumas rendas que cobravam as hão mandado notificar seus rendeiros para parecerem com os títulos para destos se/ fl. 221/ se tirarem treslados os quais ficacem servindo de titulos para cobrarem as suas rendas. Passados alguns dias me derão hum papel que assim dizia: A Mizericordia desta villa não consta de seu achivo, por se achar ou com o decurso do tempo, ou por cauza da nigligencia de seus administradores exaurido de livros ou documentos antigos, por este motivo não constar qual fosse seu o seu principio, mas só entendiam poder esta ter o seu principio em a fundasão que fizerãos das mizericordias neste reyno os munto altos e poderosos reys Dom Manuel e Dona Leanor que sancta gloria hajão, pela protecção que esta tem achado em os reys seus sucessores e espicialmente em os que hoje ocupão o assento régio. Enquanto as rendas dizem ter esta Caza da Mizericordia em dinheiro trita e sette mil quatrocentos e sincoenta reis. Isto são certos. E as rendas que tem certas de pão cada hum anno são seis moyos e vinte alqueires de trigo, e Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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dois moyos e quarenta alqueires de milho grosso, tanto no que respeita ao dinheiro como ao pão dizem ser certos estas duas adisoens todos os anos. Passo agora as que dizem serem emcertas. As rendas que dizem serem emsertas por estas terem acrecimos e demimuisoens todos os annos acharão ter esta Caza o anno próximo passado de trigo hum moyo e de segunda dois moyos e quarenta e dois alqueires e huma quarta. Tem mais esta Caza da Misericordia de foros de pão doze alqueires de trigo e de azei/fl.222/ azeite seis canadas. Dizem ter mais de renda certa todos os annos hum porco e huma marran. Esta he a noticia que posso dar em o que respeita a este interrogatório, tirada esta de hum papel que me derão. Decima tercia Interrogatorio 13- Pertendece mais saber se tem esta villa algumas ermidas, e de que sanctos, dentro ou fora do lugar, e a quem pertencem? Respondece R. 13- Tem esta villa, exceptuando a Capella Real e a Caza da Mizericordia, duas ermidas, huma de Sam Sabastiam e outra de Sancto Antonio, ambas estão existentes dentro desta villa, sua administração pertence ao parrocho desta freguesia de Sam Paulo. Decima quarta Interrogatorio 14- Pertendece mais saber se acode a estas tais ermidas romagens e se estas são sempre ou alguns dias do anno, e quais são estes? Respondce R. 14- A estas tais ermidas referidas não consta que nunca acudicem romagens, e nem ao presente acodem. Decima quinta Interrogatorio 15- Pertendece mais saber quais sejão os fructos que os moradores desta terra recolhem em mayor abundancia? Respondece R. 15- Os fructos que os moradores desta terra recolhem em maior abundancia he sevada/ fl.223/ sevada, trigo, milho e legumes e não há em esta terra outra casta de fructos.

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Magos Decima sexta Interrogatorio 16- Pertendece mais saber se esta terra tem juiz ordinário etc, camera, ou se esta subjecta as justiças de outra terra, e qual he esta? Respondece R. 16- Tem esta terra juiz de fora, o qual se entitulla de Salvaterra e Benavente, dandoce a primazia a esta villa em o cargo de judicaturas. Tem esta villa camera e não esta subjecta nem consta que em algum tempo o estivece ao governo das justiças que não focem da mesma terra. Decima septima Interrogatorio 17- Pertende ce mais saber se esta terra he couto, cabeça de concelho, honra, ou behetria? Respondece R. 17- He esta terra villa, cujo senhorio he sua majestade com já fica refferido da qual os veriadores e procuradores para seu regímen são eleitos por el rei nosso senhor e publicados debaixo de seu sinal.

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Decima octava Interrogatorio 18- Pertendece mais saber se ha memoria de que em esta terra florecessem ou della sahissem alguns homens insignes por virtudes, letras ou armas? /fl. 224/ Respondece R. 18- Em o que pertence a primeira parte desta interrogasão, não tenho noticia de que a virtude em esta villa florecesse, em o que respecta a segunda parte isto he as letras, teve esta villa dois peritíssimos varoenes, a saber o doctor Francisco Siabra de Freitas e o dezembargador Antonio da Costa Freire, em quem o subtil engenho depozitou huma das suas grandes partes. Em o que respeita a terceira e ultima parte deste interrogatorio tenho noticia de que resoluto Joze Lopes Themudo a deixar a sua amada pátria, quazi logo em o seu principio lhe derão o cargo de comissario do exercito grande de cavalaria, o qual passou com o senhor Carlos Terceiro à Batalha de Cataluna em a qual fez alarde de seu mayor valor, obrando tão exforsadamente em esta, e outras muntas emprezas que se lhe oferecerão em o espaço de sua vida que merceo em o imperio o cargo de coronel da cavalaria, em cujo cargo faleceo.

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Decima nona Interrogatorio 19- Pertendece mais saber se esta villa tem feira, e em que dias e quantos dura, e se he franca, ou captiva? Respondece R. 19- Em esta terra ao prezente nao ha feira alguma em o anno. Vigecima Interrogatorio 20- Pertendece mais saber se esta terra tem correyo, e em que dias da semana chega/fl.225/ chega e parte, e se não tem, de que correyo se serve, e quanto dista a terra aonde elle chega? Respondece R. 20- Não tem esta terra correyo, porem servece com o correyo de Benavente, cuja terra dista desta huma legua de terra firme. Este chega a esta terra ao domingo, em o qual continua a sua jornada para Santarem, distando Santarem desta terra quatro léguas metendoce per meyo em este espasso o rio Tejo, em o qual ha huma barca para transportar a gente de huma parte a outra. Costuma este correyo chegar aqui de Santarem ás segundas feiras, outras vezes ás terças. Vigecima primeira Interrogatorio 21- Pertendece mais saber quanto desta esta terra da cidade capital do bispado, e quanto de Lisboa, capital do reino? Respondece R. 21- Dista esta terra da cidade capital do bispado dez legoas por mar, e por terra doze. E da cidade capital do reino dista o mesmo por ser esta terra do bispado de Lisboa? Vigecima segunda Interrogatorio 22- Pertendece mais saber se esta terra tem alguns privilégios, antiguidades, ou ou/fl. 226/ outras couzas dignas de memoria? Respondece R. 22- Querendo saber os privilégios que esta villa tem, os procuradores e tabeliães da camera da mesma para asim poder responder neste capitolo e este effeito me foy dado hum papel, feyto este pelo veriador mais velho por concerto que fez o escrivão da camera com o tal veriador, cujo papel sobre escreveo o mesmo iscrivão, o qual fielmente prometo tresladar, e he pello theor seguinte. Memoria das antiguidades, privilegios, ezensoens, merces consedidas a villa de Salvaterra de Magos.

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He esta villa de Salvaterra de Magos, e sempre foy da protecção real, segundo se colhe de hum treslado que se tirou da Torre do Tombo dado pelos officiais da camera desta villa em seis folhas de pergaminho que forão entregues a Rui Dias de Menezes, fidalgo da caza de sua majestade, escrivão das confirmaçoens, de que passou huma certidão, a qual ainda hoje se concerva no arquivo da camera desta villa , que hoje se acha muito deminuto pelo descuido dos antigos na arrecadasão de seus papeis, e livros, etc. O senete de suas armas sãos as reais com coroa redonda etc. E tem huma carta do senhor rey Dom A/fl. 227/ Dom Affonso quinto porque fez graça e merce ao concelho desta villa, e homens bons da mesma de lhes confirmar todos favores, graças, previlegios, liberdades e merces que lhes forão dadas, outorgadas, e confirmadas pellos reis que ante elle forão deste reino, e assim seus bons uzos e costumes que sempre uzarão atte a morte del rey seu pay. Feita ditta carta em Lisboa, aos vinte e tres de junho de mil quatrocentos e trinta e nove, etc. E assim consta mais da ditta certidão haver mais treze cartas dadas pelos senhores reis deste reino, que contem vários previlegios, liberdades, izensoens, grassas, e merces, e por ultimo huma carta do senhor rey Dom Fernando em que izenta aos moradores desta villa, ou outros quaisquer seus vizinhos que deverem algum dinheiro ou outras couzas a alguma pessoa não poderem ser demandados senão perante o juis da ditta villa, etc. Tem mais hum foral que lhe foi dado pelo senhor rey Dom Diniz, e confirmado pelo senhor rei Dom Manuel, cujo foral em si contem sincoenta e cinco capítulos de graças, merces, liberdades, eizensoens que concederão a esta villa e seus moradores, em o capitulo sincoenta e hum: em cujo capitulo os eizenta de pagarem portage, asim como a cidade de Lisboa, outras muitas villas e cidades deste reino, etc. E não continha mais o dito papel pertencente a este interrogatório, cujo papel fez o veriador/ fl. 228/ o veriador mais velho João de Oliveira Falcão e o assignou de concerto com o escrivão da camera Joze Carvalho dos Sanctos e dos officios de escrivão do judicial e tabalião de leis os três officicios he porpiatario. Vigecima tercia Interrogatorio 23- Pertendece mais saber se ha nesta terra, ou perto della alguma fonte, ou lagoa celebre, e se as suas aguas tem alguma especial qualidade? Respondece R. 23- Tem esta terra huma fonte a qual chamão Fonte do Concelho, cujas agoas são especiais para a queixa de ostrucção, porque se tem experimentado em algumas pessoas que para esta Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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terra tem vindo feridas do ditto mal, as quais sem uzarem de outro remedio mais que de beberem da ditta fonte se achão bons e de tal sorte que emgordão Ha tãobem em esta terra, mas porem fora da villa, em hum citio a que chamão Vale de Unheiros, juncto ao Paul de Magos, cujo Paul he do senhor infante Dom Pedro, um olho de agua, o qual faz milhor efeito que o xá, porque despois de bebida a pouco espaço logo ha vontade de comer. Vigecima quarta Interrogatorio 24- Pertendece mais saber há em esta terra perto de mar, e o seu sitio, que tem por arte ou por natureza, as embarcaçoens que o frequentão, e que pode admitir? Respondece R. 24- Tem esta terra porto de mar, o qual parte/fl. 228/ parte do nascente a poente, cujo porto he huma sangria, por a qual desagoa o Paul e mais ribeiras, costeya esta da parte da norte desta villa ao prezente se achão em esta mesma sangria dous barcos de vella latina. Cada hum dos quais carrega quarenta moyos de pão. Ha tãobem huma bateira da mesma sorte armada, a qual carrega quatorze moyos de pão, em quanto ao despejo e transportaçoens para a cidade capital deste reino; nem estas tem que fazer por haver poucos fructos que desta villa á ditta cidade se transportam; emquanto a capacidade do porto, pode este admitir secenta das sobreditas imbarcacoens. Vigecima quinta Interrogatorio 25- Pertendece mais saber se esta terra he murada e a qualidade de seus muros, e se he praça de armas e sua fortificasão, e se ha nella ou seu districto algum castello, ou torre antiga, e em que estado se acha ao prezente? Respondece R. 25- Esta terra nem he nem foi murada segundo a tradisão dos antigos da mesma villa, nem tão pouco ha praça de armas, nem em a villa, ou juncto della esta torre, ou castello algum. Vigecima sexta Interrogatorio 26- Pertendece mais se esta terra padeceo alguma ruina no terremoto de mil e settecentos e sincoenta e sinco, e em que e se está já reparada? Respondece/fl. 230/ R. 26- Principiando primeiro pelos lugares sagrados digo padeceo a Igreja Parrochial desta villa huma grande ruina, a qual ainda se não reparou esta quasi dande comsigo em terra, e não se ter ja reparado esta ruina tem sido cauza as grandes demoras que tem havido em a Menza da Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Conciencia com as consultas. Padeceo a mesma igreja bastante ruina na torre, e tilhados e a parede da parte esquerda da mesma igreja se acha bastantemente cortada cujas ruinas ainda se não repararão. Padeceo a Capella Real em hum zimbório que sendo de estuque sua ruina, porem já se acha reparada. Padeceo huma Irmida chamada de Sam Sebastiam sua ruina em o arco da capella do ditto sancto, porem esta tãobem se acha reparada. Padeceo tãobem a Mizericordia desta villa a sua ruina em varias partes da mesma igreja porem já estas se achão reparadas e não só para estes reparos, porem para todos os mais já referidos concorreo sua majestade com a sua real grandeza, tanto asim que todos forão feitos à sua custa. Padeceo tãobem grande ruina as cazas de audiencia desta villa porque se lhe desabou a parede que ca he para a prassa desta villa, cuja ruina ainda se não reparou. Padeceo tãobem grande ruina o Passo de sua real majestade, cuja ruina ainda não está reparada./fl. 231/ Padeceo mais esta villa em algumas das suas partes ruinas porem já se achão reparados por serem estas de pouca concidração. Estas são as noticias que posso dar no que respeita a esta ordem de interrogatórios. [Assinou] O vigário Miguel Francisco Teixeira Primeira Interrogatorio 1- Pertendece saber como se chama esta terra? Respondece R. 1- He o nome desta Terra, Salvaterra de Magos, cujo nome, e cognome, ha noticia que o tomou dos feiticeiros, que antigamente vierão desterrados para esta terra, porque segundo narrão os mais antigos, herão estas partes umas montanhas, para as quais mandavão os Ministros do Santo officio os feiticeiros, bem como agora os mandão para Castro Marim, e como o degredo para esta terra os livrava daquelles carceres, estes mesmos lhe chamavão terra salva; sendo as primeiras partes aonde servirão cazas em em22 esta terra feitas pelos tais, em um citio, a que chamão Magos, por este sempre la asistirem ficando por esta cauza chamandoce Salvaterra de Magos.

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Palavra repetida

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Segunda Interrogatorio 2- Pertendece mais saber quantas legoas tem esta terra de comprimento, em seu termo, e quan /232/ tas de largura, onde principia, e onde acaba? Respondece R. 2- Tem esta terra de termo duas legoas de comprido, as quais pricipião desta terra, e chegão athe ao Culmieiro, tem uma legoa de largo a qual principia em Escoropim, e chega athe esta terra. Terceira Interrogatorio 3- Pertendece mais saber quais são os principais braços desta terra? Respondece R. 3- Os principais braços desta terra, são Manuel Ferreira de Carvalho, Francisco Simoens Monteiro de Faria, João de Oliveira Falcão, João Rodrigues dos Reis, Antonio da Fonseca e Costa, Jose de Oliveira Leal; todos estes são lavradores menos Jose de Oliveira Leal, o qual he Almoxarife dos direitos Reais, e juncto a estes o Almoxariffe Jose dos Sanctos Freire. Quarta Interrogatorio 4- Pertendece mais saber desta terra, que rios nascem dentro do seu sitio, e algumas propriedades mais notaveis delles; as partes para onde correm, e onde fenecem? Respondece R. 4- Em o sitio desta terra não nascem rios alguns, porem pello seu sitio corre uma sangria a qual se fez para desaugar a grande abondancia de agoas, que o sitio chamado Ameixhoeira recolhe em si; e não ha propriedade alguma, que se possa referir por especial em suas agoas. /fl.233/ Quinta Interrogatorio 5- Pertendece mais saber, que villas, e lugares estão assim na Serra, como ao longo della. Respondece R. 5 -Segundo o que ja fica ditto não tem esta terra villa alguma, ou lugar ao longo de si; porque o lugar mais perto, que tem he Bilrete de Sima, o qual dista uma legoa desta terra. Sexta Interrogatorio 6- Pertendece mais saber se esta terra tem em seu districto algumas fontes de propriedades raras? Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos Respondece R. 6- As propriedades, que tem as fontes que ha em esta terra, a de uma ja as referi, cuja propriedade he fazerem suas agoas milhor efeito que faz o xa, a propriedade da outra chamada do Concelho, he correr tepida quando o frio está em seu mayor vigor, e correr fria quando o calor do sol está mais intenso. Septima Interrogatorio 7- Pertendece mais saber se ha em esta terra minas de metaes, ou canteiras de pedra, ou de outros materiais de estimasão? Respondece R. 7- Não ha em esta terra couza alguma pertencente a esta interrogação, e como não ha tãobem não tenho que responder, no que a elle pertence./fl. 234/

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Octava Interrogatorio 8- Pertendece mais saber se esta terra, ou seu districto ha plantas, ou ervas medicinais, ou se se cultiva em algumas partes, e de que generos de fructos he mais abundante? Respondece R. 8- Ha em esta terra em o sitio chamado os Moinhos de Magos uma planta, cuja raiz se intitula devina a vertude da qual he especial para hydropezia. Em algumas cortes das do Paul de Magos, cujo Paul he do Serenissimo Infante Dom Pedro, que Deus guarde, e em algumas sesmarias desta villa se acha uma erva, chamada Bruco, cujas raizes, e folhas são espicialissimas para fazer estantaniamente orinar, e a este respeito se tem visto desta planta efeitos milagrosos. Em o sitio a que chamão a Coutadinha nasce huma herva a que os profeçores da Pharmacia tem por verdadeira Arthanita, seu Cyclaminis, de cuja raiz se tira o sumo que della toma o nome, tem vertude de excitar os vomitos, untando com o ditto sumo a região do estomago; e purgar por baxo untandoce o ventre. Isto he no que respeita a plantas e no que toca á cultivação, digo, só se cultiva o campo, e algumas sesmarias, e o mais tudo he cotada e a respeito dos generos de fructos já em a resposta, que dei á interrogasão decima quinta especifiquei os fructos desta villa, e juntamente dice que em ella se não davão mais nenhuns fructos de que podece dar noticia, e o mesmo digo agora. Nona Interrogatorio 9- Pertendece mais saber se ha em esta terra /fl. 235/ alguns mosteiros, igrejas de romagens, ou imagens milagrozas? Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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Respondece R. 9- Em esta terra não ha mosteiros, nem tampouco igrejas de romagens, emquanto a imagens milagrozas, digo ha em a parrochial igreja desta villa uma imagem de um Senhor Morto, cuja imagem tem obrado maravilhozos pordigios; e antigamente, affirmão muntos, que lhe crescião os cabellos da cabeça, e barba santissima, e juntamente as unhas dos pés e mãos, o que ao prezente não succede, talves por cauza de nossas culpas, e pecados, ve-ce esta imagem colocada em um esquiffe posto este em a Capella de Sam Miguel. Em a Capella Real em o altar mór se ve colocada a imagem de Nossa Senhora da Piedade, a qual tem feito maravilhozos milagres, e para que conste, quero refferir hum, que me ocorre. Ha em as espaldas do Palacio desta villa huma horta, chamada del Rei, em a qual há huma fonte chamada de Sancto António, cuja fonte he destapada pello fronteespicio: por cuja cauza cahio em ditta fonte uma menina chamada Lucia, e não havendo quem lhe acudice logo, por ser a fonte algum tanto funda, ficou esta afugada em o fundo da tal fonte, em fim tirada esta e tida pellos pais e mais pessoas, que ali se acharão por morta estes a levarão em seus braços á Capella Real e pondo-a sobre o altar aonde está a sobre ditta imagem da Piedade, e fazendo-lhe suas suplicas, lhas ouvio a soberana Senho/fl. 236/Senhora e a pouco espaço de tempo entrou a menina a chorar e por ultimo ainda hoje se conserva viva por milagre da Senhora da Piedade cujo milagre mandarão seus Pais esculpir e se acha em a mesma Capella em um painel. Ha tãobem em a Mizericordia desta villa huma imagem de Nossa Senhora da Conceisão, a qual tem obrado maravilhozos pordigios, entre os quais fez um ha poucos annos que foi dar vista a huma menina, que havia sinco annos estava sega. Ha tãobem em esta villa uma imagem de Nossa Senhora Mai dos Homens a qual esta colocada em hum nixo em a rua de Sam Paulo, cuja imagem tem feito varios milagres, porque a hum, que se imaginava morto por cauza de huma ferida penetrante que tinha recebido a mesma Senhora lhe restetuio huma saude perfeita que ainda hoje logra. Decima Interrogatorio 10- Pertendece mais saber desta terra o temperamento? Respondece R. 10- He o temperamento desta terra de verão mui calido, e de inverno munto frigido isto por cauza de ser a sua situação sobre área. Undecima Interrogatorio 11- Pretendece saber mais se os moradores desta terra tem creaçoens, ou se ha Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos creaçoens de gados, ou de outros animais /fl. 237/ ou de caça? Respondece R. 11- As creacoens, que ha em esta terra, são de vacas, bois, bestas, e ovelhas, e todas estas se tem em esta villa por serem necessarias para factura das terras, ha tãobem em o matto caça, a saber viados, gamos, corsas, servas, porcos, perdizes, galinhas, coelhos, lebres; e por ultimo em a coutada ha de toda a casta de caça. Duodecima Interrogatorio 12- Pertendece mais saber se tem esta terra alguma lagoa, ou fojos notaveis? Respondece R.12- Não tem esta terra lagoa, em a qual se de couza notavel; porque as que tem em seu termo, isto he, sitios a que dão o nome de lagoa são baxios aonde de inverno se ajuntão as aguas chovediças e a estes sitios dão desta terra os naturaes nome de Lagoa. Fojos não tenho noticia que em esta terra, e em todo o seu termo os haja. E desta forma hei por satisfeito a esta segunda ordem de interrogatorios; passo a terceira e ultima parte das interrogasoens.

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[Assinou] O vigário Miguel Francisco Teixeira Dace resposta á terceira, e ultima ordem das interrogacoens pella forma seguinte Primeira Interrogatorio 1- Pertendece saber asim o nome do rio, que ha em esta terra, como o sitio onde nasce? Respondece R. l -Já em o capitulo vinte e quatro dice, que esta terra tinha uma sangria, a qual servia de porto ás embar/fl.238/embarcaçoens, este he o rio, que ha em todo o termo desta villa a esta chamão Valla e o sitio a onde tem o seu principio lhe chamão Ameichoeira, principiando em uns olhos de agoa, que ha em o referido sitio. Segunda Interrogatorio 2- Pertendece mais saber desta terra se o seu rio nasce logo caudalozo e se corre todo o ano? Respondece R. 2- Falando da mesma sangria, digo, que em o tempo do inverno corre mais caudalozo, por Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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se recolherem de varias partes aguas ao seu principio, e de verão menos caudalozo corre, corre tãobem todo o anno. Terceira Interrogatorio 3- Pertendece mais saber do rio desta terra, que outros rios entrão nelle, e em que sitio? Respondece R. 3- Falando da mesma sangria, digo, e afirmo não entrar outro rio nelle, ou nella. Quarta Interrogatorio 4- Pertendece mais saber se o rio desta terra he navegavel, e de que embarcaçoens he capaz? Respondece R. 4- He a mesma sangria navegavel athe ao governalho, da parte do poente athe esta villa he capaz de embarcaçoens de vella latina, e desta villa athe ao governalho, que he para a parte do nascente he capaz de canoas. Quinta Interrogatorio 5- Pertendece mais saber do rio desta terra se he de curso arebatado, ou quieto em toda a sua distancia, ou em alguma parte della? Respondece R. 5- He o referido rio desta terra de curso arebatado em o tempo de innundaçoens, porem em todo o mais tempo em toda a sua distancia do curso quieto e socegado. /fl. 239/ Sexta Interrogatorio 6- Pertendece se o rio desta terra corre de norte a sul, se de sul a norte, se de poente a nascente, se de nascente a poente, isto he o que se pertende saber? Respondece R. 6- Principia o referido rio desta villa em o nascente e desta parte corre para o poente, aonde sahe isto he se estende. Septima Interrogatorio 7- Pertendece saber se o rio desta terra cria peixes e de que especie são, os que tras em mayor abundancia? Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos Respondece R. 7- Consta criar o rio desta terra peixes e a especie que tras em mayor abundancia são sarmoens Octava Interrogatorio 8- Pertendece saber se ha em o rio desta terra pescarias, e em que tempo do anno? Respondece R. 8- Em o referido rio desta terra todo o anno se pesca á canoa, e com tarrafa. Nona Interrogatorio 9- Pertendece mais saber se as pescarias do rio desta terra são livres, ou de algum senhor particular, em todo o rio, ou em alguma parte delle? Respondece R. 9 - As pescarias, que em o capitulo antecedente referi são livres em todo este rio.

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Decima Interrogatorio 10- Pertendece mais saber se se cultivão as margens do rio desta terra, e se tem munto arvoredo de fructo ou silvestre? /fl. 240 / Respondece R. 10- As margens do rio que já dice havia em esta terra em algumas partes se cultivão, isto he, lavrão. Não tem suas margens arvores de fructo, porem em algumas partes tem arvores silvestres, como salgueiros. etc. Undecima Interrogatorio 11- Pertendece mais saber se as aguas do rio desta terra tem alguma virtude particular? Respondece R. 11- Não me consta ache ao prezente ter-se achado virtude alguma particular em o referido rio que dice ha em esta terra. Duodecima Interrogatorio 12- Pertendece saber se o rio desta terra conserva sempre o mesmo nome, ou o começa a cer differente em algumas partes e como se chamão estas, ou se ha memoria de que em outro tempo tivesse outro nome?

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Respondece R. 12- Despois que esta sangria, ou este rio artificiozamente se fez sempre teve e tem conservado o nome de Valla Real, desde donde nasce athe onde acaba. Decima tercia Interrogatorio 13- Pertendece saber se o rio desta terra morre em o mar, ou em outro rio, e como se chama este, e o sitio em que entra nelle? Respondece R. 13- Morre o refferido rio desta terra em o rio Tejo, entrando nelle de fronte da Caza Branca, em sitio do Campo dos Freires./fl. 241/ Decima quarta Interrogatorio 14- Pertendece mais saber se o rio dessa terra tem alguma cachoeira, represa, levada, ou açude que lhe embaracem o ser navegavel? Respondece R. 14- Não tem o rio que já dice ha em esta terra couza alguma que lhe embarace o ser navegavel senão umas portas que servem para represar a aguas, este embaraço he para a parte do nascente que para a parte do poente não tem embaraço algum. Decima quinta Interrogatorio 15- Pertendece mais saber se o rio desta terra tem pontes de cantaria ou de pao, quantas, e em que sitios? Respondece R. 15- Ha em o rio desta terra duas pontes de cantaria, huma ao pe da villa, e outra para a parte do nordeste ao pe de hum sitio a que chamão o Cazal, ficando de permeyo destas duas pontes de cantaria aquellas portas ou sarilhos, de que já falei em o capitulo antecedente. Ha mais sobre o mesmo rio uma ponte de tejolo em o Paul do Serenissimo Senhor Infante Pedro, em hum sitio chamado o Governalho e não ha mais pontes em todo elle. Decima sexta Interrogatorio 16- Pertendece mais saber se o rio desta terra tem moinhos, lagares de azeite, pizoens, noras ou outro algum engenho? Respondece R. 16- Ha em o sobreditto rio desta terra dous moinhos em o sitio a que chamão Magos e em Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos todo elle não tem mais noras, pizoens, lagares, etc. Decima septima Interrogatorio 17- Pertendece mais saber se se tirou em algum tempo das areas do rio desta villa ouro ou ao/fl. 242/ ao prezente se tira de suas areas? Respondece R. 17- Não me consta que se tirace em algum tempo nem tão pouco ao prezente se tire ouro das suas areas, isto he, da sangria desta villa, que vem a ser aquelle rio de que já falei. Decima octava Interrogatorio 18- Pertendece mais saber se os povos uzão livremente das aguas deste tal rio para a cultura dos campos, ou com alguma pensão? Respondece R. 18- Das aguas do rio de que ja falei podem uzar livremente os moradores para a cultura dos campos sem pensão alguma.

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Decima nona Interrogatorio 19- Pertendence mais saber quantas legoas tem o rio desta terra e as povoaçoens por onde passa desde o seu nascimento, athe a onde acaba? Respondece R. 19- Tem o refferido rio de comprido legoa e meya, desde o seu nascimento athe ao seu ocazo, passa pella povoação de Magos, de que já falei. Isto he o que posso dizer no que pertence a primeira, segunda, e terceira ordem dos interrogatorios, e a cada uma das interrogaçoens de per si e affirmo que dei conta de tudo o que me foi pocivel saber, hoje trinta e um de março de mil e settecentos e sincoenta e oucto. etc. [Assinou] O vigário Miguel Francisco Teixeira

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DOCUMENTO 2 [1758]- Memórias Paroquiais de Muge (Torre do Tombo, Memórias Paroquias, vol. 25, nº 255, pp. 1899 a 1908) Cota: IANTT/MPRQ/25/34 [Nº 25523] Descrições da villa de Muja <comarca de Sanctarem> Satisfazendo á obrigação que se me impoz de descrever a terra de Muja pelos interrogatorios que della se fazem seguindo a mesma ordem deles respondo 1- A villa de Muja fica na Provincia da Estremadura pertence ao Arcebispado de Lisboa na repartição do Arcediagado de Santarem, a cuja comarca pertence pelo que toca ao provedor della, não pertence a freguesia alguma porque a tem propia. 2- A sobredita villa depois de o ser sempre foi da Coroa porem ao presente he de donatário e este he o duque de Cadaval, que como tal apresenta nella as justiças e he o unico domínio e jurisdição que tem nella. 3- Tem a ditta villa dentro em si duzentos e sessenta e seis fogos, e outocentos e sincoenta e duas pessoas as quaes juntas com as dos lugares e aldeas que pertencem a mesma parroquia vem a fazer o numero de trezentos e sessenta e tres fogos, e mil e outenta e quatro pessoas das quaes mil são pessoas mayores de comunhão e outenta e quatro menores só de confição, e não se falla em crianças que não chegão à idade de sette annos. 4- Esta situada em campina pouco distante da villa de que se servem as embarcações que a ella vem tendo esta em sua entrada no lugar de Escaroupim nas margens do rio Tejo da banda do sul, hũa legoa distante da ditta villa. Descobresse della o lugar de Porto de Muja que fica da outra parte do Tejo as margens della da banda do norte sem mais distancia que a largura do mesmo rio. Tambem se descobre em partes a villa de Santarem que dista desta villa duas legoas grandes de campina./fl. 1900/ 5- Antigamente era esta terra couto do mosteiro de Alcobaça, onde os religiosos tinham muitas quintas e fazendas. No anno de 1301 largarem os ditos padres a El Rey D. Diniz, por hum escaimbo que com elle fizeram o ditto couto e fazendas, largando-lhes El Rey a eles na ditta troca no escaimbo grande parte do reguengo de Vallada. No anno de 1304 a fez povoar o sobredito Rey D. Dinis e lhe deo foral de villa signando-lhe

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Com a mesma tinta e possivelmente o mesmo autor escreveu à margem, no canto superior direito: “1899”.

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por termo o mesmo que antes tinha quando era couto e mandando-lhe levantar na praça que tem hum pelourinho com as suas armas reaes que ainda hoje existe da mesma sorte e para facilitar a povoação e atrahir povoadores concedeo-lhes a estes grandes privilegios livrando-os de pessoas e jugadas e dando-lhes as mesmas fazendas e pauis que tinha, impondo-lhes a unica obrigação de lhe pagarem o quarto e o dizimo a Deos. Os lugares e aldeas que hoje compreende o ditto termo são os seguintes: o lugar de Nossa Senhora da Gloria que dista da villa hũa legoa grande, e tem dezeouto fogos e outenta pessoas entre mayores e menores. O lugar de Escaroupim o qual ainda que parte delle pertence ao termo de Salvaterra todo elle se inclua no limite da igreja, som quatorze fogos e quarenta e quatro pessoas, e dista villa som hũa legoa pequena. A aldea do Ianes que dista outra legoa e som seis fogos e vinte pessoas, a aldea chamada da Ribeira de Muja que dista legoa e meya e tem sette fogos e dezouto pessoas, outra aldeã chamada Vialonga quazi á vista da villa na distancia de hum quarto de legoa e tem seis fogos e vinte pessoas. 6- A parroquial igreja desta villa esta dentro della e comprehende alem dos lugares e aldeas referidas no numero antecedente alguns casaes separados, a saber: o chamado dos Comeyieiros que tem so hum fogo e hũa pessoa e está em pouca distancia da villa. O de Magos que dista da villa legoa e meya e tem so hum moinho de agua que moe com três pedras, e tem hum só fogo com outo pessoas. E dos Caniçaes que dista quazi duas legoas e tem hum so fogo com quatro pessoas./fls. 1901/ 7- O orago da igreja parroquial he Nossa Senhora da Conceição. Tem a ditta igreja hũa só nave e he proporcionada nem muito grande nem piquena, tem seis altares a saber: o altar mor todo de talha dourada e nelle esta o tabernáculo, ou sacrario do Santissimo Sacramento. e no alto e no meyo da tribuna esta hũa imagem grande da Senhora da Conceição muito formosa e nos dous lados dous nichos nos quaes se venera no da parte do evangelho hũa imagem muito perfeita do mártir S. Sebbastião e no da epistola hũa de S. João Baptista. Tem mais a ditta igreja dous altares colaterais ambos de talha dourada, sobre fundo cor de perola muito semelhantes hum ao outro na altura, nos lavores, e na perfeição: no da parte do evangelho se venera a imagem de Nossa Senhora do Rosario, no da parte da epistola está a imagem do nosso insigne portugues Santo Antonio de Padua, esta de vulto e aquella de vestido Na mesma parte do evangelho no corpo da igreja há dous altares também de talha dourada: hum em que se venera e festeja com grandes e anual culto hũa imagem grande de Christo Crucificado no acto da agonia e hoje tem esta perfeitíssima imagem o tittulo de Sehnor Jesus defensor dos terremotos, cujo tittulo lhe poz a devoção dos fieis pela ocasião Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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do terramoto do primeiro de novembro do anno de mil settecentos e sincoenta e sinco porque na grande aflição em que se viver lançarão mão da sobredita imagem, não obstante se muito pesada e com ella andarão muitos dias fazendo as suas procissões e rogativas com tão poder sucesso que sendo tão universal o estrago que fez o ditto terramoto não exprimentarão algum os moradores desta villa, nem pessoa alguma perigou atribuindo todos a hũa voz esta felicidade à proteção que buscarão na ditta milagrosa imagem de que resultou a aclamação geral e tittulo referido de Senhor Jesus Deffensor dos Terremotos a quem consagrão desde então hũa festa votiva anual que the agora se tem cumprido com duração e grandeza. /1902/ O outro altar que está da mesma parte do evangelho abaixo do assima referido do Senhor Jesus he da Senhora da Cursa imagem de vulto piquena que veyo da India e de lá trouxe este mesmo tittulo, como se podem ver no santuario mariano, he muito milagrosa e antigamente foi muito frequentada de romarias de todolo reyno, mas esta devoção está hoje toda muito acabada e apenas tal ou qual pessoa de tempos a tempos vem ofrecer à Senhora alguma mortalha, ou voto por alguma merce e beneficio que tem experimentado invocando a ditta Senhora. Neste mesmo altar se venera a imagem do seraphico padre São Francisco, e nelle fez as suas funções a ordem terceira do mesmo santo que de novo se instituhio nesta villa há dous anos e lhe signalou o prior o ditto altar para fazerem nele as praticas e exercícios que costuma fazer a mesma ordem . Da parte da epistola do mesmo corpo da igreja há outro altar tambem de talha dourada chamado o altar das almas, e nelle se venera a imagem do Archanjo S. Miguel, que he de vulto e perfeita. Para serviço da igreja e culto divino há nella três irmandades; a primeira he do Santissimo Sacramento; a segunda he da Senhora do Rosario; e a terceira he das almas santas. Há ainda reliquias de outras três que estão quasi extintas e erão a do Senhor Jezus , a da Senhora da Conceição e a de Santo Antonio, nascendo esta quasi extinção da muita pobreza da terra, e do pouco zelo dos moradores della. 8- O parroco desta igreja intittullasse e he prior, porque desfructa duas partes de todos os dízimos do seu limite ficando a outra parte para a terça pontifical: he igreja de concurso e apresentação da mitra patriarcal: a renda do sobredito prior em huns anos por outros chega a dous mil cruzados. 9- Não tem beneficiados, nem mais clérigos ou ministros da igreja, que hum cura, e hum tesoureiro ou sanchristão que apresenta o prior todos os anos signalando-lhes congrada sua Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos


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renda; e hum cappelão das almas, que he nomeado pella irman/fl. 1903/dade das mesmas almas com obrigação dar-lhes dizer missa de madrugada todos os domingos e dias santos. 10- Não há nesta villa convento algum nem de religiosos nem de religiosas, nem padroeiro algum da cappela. 11- Há nesta terra hũa logea ou casa terrea a que dão o nome de Hospital e ao morador delle o tittulo de hospitaleiro, este he nomeado pela meza da misericordia e só serve de recolher, e hospedar algum peregrino, que traz carta de guia das outras misericordias, ou algum enfermo que vai de caminho para o hospital de Santarem, para onde he obrigado a transporta-llo o mesmo hospitaleiro à custa da Misericordia e se acaso aqui periga e não pode ser transportado so pena de lhe agravar a enfermidade na mesma casa se lhe assiste com o preciso, e se lhe administrão os sacramentos, e se morrer o enterrão na igreja da Misericordia, e toda a despeza que se fez corre por conta da meza da ditta Misericordia, porque não há renda alguma signalada e estabelecida para o ditto chamado Hospital. 12- Do referido se infere haver Casa de Misericordia nesta villa, mas he muito pobre, e não tem mais renda que alguns poucos foros, e o que rende a tumba quando he chamada para os enterros, e algumas esmolas dos irmãos e fieis, que tirão pelos erros na occasião das colheitas. A origem della não he muito antiga; principiou pelo zelo de alguns devotos que primeiro a erigirão com licença do ordinário, e depois se fez secular e isenta com aquelles privilégios que resultão de ser Casa Real. Tem sua igreja piquena, e nella hum altar em que venerão hũa imagem de Christo Crucificado a que dão o tittulo de Senhor Jesus da Misericordia. O povo tem grande devoção com esta imagem e a ella recorrem nas suas aflições experimentando na sua protecção repetidos benefícios. Tem hum capelão com obrigação de algumas missas e de acompanhar os enterros, e levar a imagem do Senhor /fl.1904/nas suas procissões de rogativas ou quando se corre a via sacra que he todas as sextas feiras da quaresma com sermão no fim, ou quando sahem pelas ruas rezando a devoção do terço que he ordinariamente aos domingos. 13- As ermidas que há no limite desta parroquia são as seguintes. A primeira e principal he a de Nossa Senhora da Gloria onde se venera hũa imagem da mesma Senhora que he o iman dos corações de todos os que a vem, porque he muito formosa e perfeita, e hê tradição de ser feita pelos anjos menos a singularidade de nunca se lhe <por> pó no rosto: esta ermida he do padroado real, por ser fundação d’el rey D. Pedro o primeiro, por occasião do seguinte successo digno de memoria. Andando o ditto rey à caça por aquelle sitio vio-sse repentinamente quasi submergido em hum pêgo e esteve em tanto perigo que perdido da sua comitiva, e não o achando esta depois Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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de muitas diligencias se recolheo a Almeirim muito triste dando a el rey por perdido e morto, porem passado algum tempo apareceo el rey contando o que lhe tinha sucedido, e que chamando por Nossa Senhora para lhe valer naquele perigo, esta lhe aparecera e livrara delle, mandando-lhe lhe24 fundasse naquele lugar caza em que fosse venerada: Com cumprimento deste preceito mandou el rey fazer a ditta ermida que não he piquena, mas correspondente á architetura daquele tempo. Desta fundação hâ memoria em hũa pedra que está no frontispício da mesma ermida que escritta de letra gótica relata o mesmo successoo. El rey não só mandou fazer a ditta ermida mas tambem signalou alguma renda para seu guisamento e para se conservar atampada a cova diante da imagem e deo grandes privilégios a todos os que quisessem ir habitar e povoar aquelle sitio para que assim melhor tivessem continuado culto em memoria e agradecimento do beneficio recebido; porem hoje por/1905/miseria daquela pobre gente não se lhe paga o guisamento signallado nem se tras guardamento, privilégios, porque se esqueceram de os confirmar. E pelo que respeito á imagem diz a tradição dos antigos que mandando a El Rey fazer por varios esculptores nunca lha sahira, conforme as informações que elle dava segundo as especiais que lhe ficaram da imagem que no perigo lhe apareceo , the que huns forasteiros desconhecidos se ofreceram para a fazerem e com efeito fizeram a que hoje se venera por sahir muito do agrado d’El Rey e muy conforme a idea que conservava do que vira e querendo o ditto Rey remunerar a obra não foi possível achar aos dittos forasteiros que a fizeram, e este he o principio em que se funda a tradição já ditta de ser feita a ditta imagem pellos anjos. Esta segunda ermida que he no limite da parroquia he hũa de santo Antonio no lugar de Escaroupim, e esta não tem singularidade digna de notar-se, he fundação dos pobres moradores do mesmo lugar pello interesse de terem ali missa, e não serem obrigados a vir á parroquia por ella nos domingos e dias de festa, e para este efeito se fintam para pagarem a quem lha diz. Tambem há outra ermida na aldea de Viallonga que he dedicada a S. João Baptista, e dentro da villa há mais duas ermidas hũa chamada de Santo Andrée e outra dedicada ao mártir São Sebbastião, mas todas estas três ultimas ermidas estão totalmente arruinadas há muitos anos e não se servem dellas, nem se cuida na sua reedificação não obstante, que para essa obra pia se tem por vezes tirado algumas esmolas, mas a pobreza e o pouco zelo fazem não ter tido efeito algumas ideas devotas.

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Sic, possível palavra repetida.

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14- A nenhuma destas ermidas acode romagem algũa e só á de Nossa Senhora da Gloria he que na primeira outava da festa do Espirito Santo acodem os moradores desta villa a fazer todos os anos hũa festa á qual concorrem muitas pessoas das terras circunvizinhas, como de Salvaterra, Benavente e Coruche, e nove sabbados antes da Paschoa concorrem alguns devotos da villa a fazerem a sua novena/fl 1006/ou em cumprimento dos seus votos e promessas ou para visitarem aquela milagrosa imagem levados da sua devoção e atrahidos da formosura della. 15- Os fructos desta terra são muitos e bons especialmente os legumes que são singulares. Se houvera mais cuidado nos administradores da Casa do Duque de Cadaval ainda pudera ser muitos mais os fructos, porque sendo o Paul Real tão grande, há memoria de haver anno tão fértil que só o ditto paul deo25 novecentos e noventa e quatro moyos só de trigo, sem falar nas outras espécies, hoje nem della nem de outros dous paûis que há se fazem quinhentos moyos entre tudo, nascendo esta falta do descuido de abrir as vallas não obstante que para esta fabrica se lhe paga quatro alqueires de pão de cada moyo, porem recolhendo-se esta renda não se emprega no para que está aplicada, e resulta estar alagada grande parte do paul com prejuízo do bem comum e do reino. O fructo de que há mais abundancia ordinariamente em huns anos he o milho grosso, e em outros he o centeyo, e muitas vezes he o excesso por parte da sevada. Há legumes de toda a casta, a saber grãos, feijão branco, feijão frade, favas, ervilhas, xixaros, e lentilhas. O vinho não he mao mas não he muito, porque apenas haverá o que baste para o gasto da terra, não he de muita duração, porque chegando o verão quasi que, ou degenera ou perde muito do seu vigor. O azeite não o há na terra ordinariamente e quando em algum anno se fabrica algum he tão pouco que não se pode contar por pipas. Há bastante mel e cera porque são muytas as colmeas, que há nas charnecas vizinhas da villa. Tambem se fazem ordinariamente muitos e grandes meloees de contracto que dão excelente fructo no gosto e na grandeza de que resultão não pucos interesses aos lavradores e muito especialmente á Casa do Duque de donatario. O de que abunda mais este paiz he de gado grosso e miúdo, das ovelhas, e das cabras resulta tal abundancia de leite, que por façanha se pode contar que vendendo-sse a ca/fl. 1907/nada delle a trinta réis e pagando as ovelhas do duque metade do dizimo ás igrejas de Santarem por pastarem estas em ambos os limites, não obstante isso tem havido anno em que se tem

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Seguem-se palavras riscadas “de trigo”

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arrendado o dizimo do leite pertencente a esta igreja em trinta moedas de ouro, de que nasce haver na terra muitos e excelentes requeijões, e fabricaram-se muitos queijos, que ordinariamente se levão para Lisboa resultando deste contracto bastantes livres para os criadores. Além deste gado miúdo há também manadas de gado grosso de vacas, e egoas. O Duque de Cadaval tem hũa de vacas turinas, e olandezas de cujo leite se faz excelente manteiga que elle por mimo mandou ir para a corte para as fazer pessoas da sua amizade e obrigação. Tem tambem o ditto Duque manada de vacas bravas, que crião muitos bezerror e destes huns servem para o regalo de sua meza, e outros ficão para touros, que tem fama de muito bravos. Tambem tem manada de egoas infantiz, que parem e crião poldros de raça e de muita estimação. O mesmo Duque tem muitas manadas de porcos de que lhe resulta hum grande interesse porque grandes montados que tem nas suas matas os crião, e engordão, não só o Duque senão tambem outros criadores tem deste gado de que se segue para eles interesse e para a terra fartura. 16- Nesta villa há dous juízes ordinários, hum que corresponde ao lugar de juiz de fora e outro ao lugar de juiz dos órfãos. Alternativamente ás semanas presidem na camara, a qual consta de três vereadores, hum procurador, e hum escrivão, que tambem o he do judicial. Tanto os juízes como os vereadores, e procurador são eleitos por pautas e que vem assistir o ouvidor, e se confirmão pelo Duque donatario, e assim não tem sujeição ao governo das justiças de outra algũa terra, e só por appellação ou agravo vão as coimas e pleitos para o ouvidor, que o Duque nomea e ordinariamente he algum dos ministros de vara branca da villa de Santarem e do presente o he o corregedor da mesma villa. Além desta justiça ordinaira há hum juiz das coutadas reaes, o qual tem seu escrivão, e meirinho. Tambem/fl.1908/o almoxarife do Duque he juiz dos direitos reaes, e tem seu escrivão, e meirinho. Fora disto há dous almotacés que servem cada tres mezes, e hum alcaide. Há tambem actualmente quatro couteiros das coutadas de Sua Magestade, e varios guardas dos paûis, pinhaes e mattas, entre estes couteiros há hum que se chama o comissario das licenças. A primeira licença dar as quaes são precizas para cortar lenha para o gasto dos moradores da villa, e assistir aos cortes das madeiras que o monteiro mor do reyno, ou El Rey manda fazer para as suas obras, ou para esmolas, que manda dar ás comunidades pobres17- Neste numero, como nos seguintes 18, e 19, não há nada que dizer, porque esta villa nom he couto, nem cabeça de conselho, nem há memoria de que nelle florescessem homens insignes em virtudes, letras, ou armas, nem tem feira algũa franca, nem captiva. 20- A esta villa não vem correyo, e ordinariamente se comunica com a corte e as villas do Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos Ribatejo por via de barcos da terra, que ao presente são quatro, que continuadamente andão na carreira, especialmente hum que he do Duque de Cadaval, que serve para o transporte dos fructos das suas fazendas, e quando he preciso avisar sobre algum negocio que pede brevidade e segurança se servem os moradores do correyo de Santarem, que como já está ditto dista duas legoas grandes desta villa. 21- A distancia que há desta villa á corte, que he a capital do bispado em que reside o nosso emminentissimo prelado cardeal patriarca, he de doze legoas tanto por mar como por terra. 22- Não me consta, que haja nesta villa privilegio algum particular, nem antiguidades dignas de especial memoria, mais que as que estão ditas. 23- Tambem não há nella, nem nas suas vizinhanças fonte ou lagoa celebre, nem aguas de especial qualidade. Servem-se os moradores della de hũa fonte que esta no arrabalde da mesma villa, cujas aguas não são más, ainda que a ditta fonte está mal tratada por incúria da camara, e na minha opinião he injusto atribui-se a eles o mal quasi… <Incompletto26>

| Bibliografia

- BRAGA, Joana, Memórias Paroquiais: Índice, Lisboa, ANTT, 2014 - CAPELA, José Viriato (coord.), As freguesias do Distrito de Braga nas Memórias Paroquiais de 1758. A construção de um imaginário minhoto setecentista. Braga, 2003 - CAPELA, José Viriato (coord.), As freguesias do Distrito de Viana do Castelo nas Memórias Paroquiais de 1758. Alto Minho: Memória, História e Património. Casa Museu de Monção / Universidade do Minho, 2005 - CAPELA, José Viriato (coord.), As freguesias do Distrito de Vila Real nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História e Património. Braga, 2006 - CAPELA, José Viriato (coord.), As freguesias do Distrito de Bragança nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História e Património. Braga, 2007 - CAPELA, José Viriato (coord.), As freguesias do Distrito do Porto nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História e Património. Braga, 2009 - CAPELA, José Viriato (coord.), As freguesias do Distrito de Viseu nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História e Património. Braga, 20110 - CAPELA, José Viriato (coord.), As freguesias dos Distritos de Aveiro e Coimbra nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História e Património. Braga, 2011

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De uma mão diferente, lê-se no fundo da página.

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- CAPELA, José Viriato (coord.), As freguesias do Distrito da Guarda nas Memórias Paroquiais de 1758. Memórias, História e Património. Braga, 2013 - CORREIA, Joaquim M. Silva e GUEDES, Natália Brito Correia, O Paço Real de Salvaterra de Magos - a Corte, a Ópera, a Falcoaria, Lisboa, 1989 - Diccionario geografico, ou noticia historica de todas as cidades, villas, lugares, e aldeas, rios, ribeiras, e serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as cousas raras, que nelles se encontraõ, assim antigas, como modernas / que escreve, e offerece ao muito alto... Rey D. João V nosso senhor o P. Luiz Cardoso, da Congregaçaõ do Oratorio de Lisboa - Lisboa : na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, 1747-1751. - 2 tomos. - GODINHO, Vitorino Magalhães, Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar, sécs. XIII-XVIII, Difel, Lisboa, 1990; - MAGALHÃES, Joaquim Romero «O enquadramento do espaço nacional», in História de Portugal (Dir. de José Mattoso) 3.º vol., pp. 13-61, Círculo de Leitores, Lisboa, 1993 - VARANDAS, José e COSME, João e outros, Memórias Paroquiais (1758), vol. I, Abação - Alcaria Universidade de Lisboa/ Caleidoscópio, 2010. - VARANDAS, José e COSME, João e outros, Memórias Paroquiais (1758), vol. II, Alcaria - Alijó, Universidade de Lisboa/ Caleidoscópio, 2010. - VARANDAS, José e COSME, João e outros, Memórias Paroquiais (1758), vol. III, Almonde Amorim, Universidade de Lisboa/ Caleidoscópio, 2012. - VARANDAS, José e COSME, João e outros, Memórias Paroquiais (1758), vol. IV, Ançã - Arnóia, Universidade de Lisboa/ Caleidoscópio, 2013. - VARANDAS, José e COSME, João e outros, Memórias Paroquiais (1758), vol. V, Arões - Azurem, Universidade de Lisboa/ Caleidoscópio,2015. - VARANDAS, José e COSME, João e outros, Memórias Paroquiais (1758), vol. VI, Babe - Benquerença, Universidade de Lisboa/ Caleidoscópio 2015. - VARANDAS, José e COSME, João e outros, Memórias Paroquiais (1758), vol. VII, Benavente Bustelo, Universidade de Lisboa/ Caleidoscópio, 2016.

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Joaquim Manuel da Rocha - A Pintura da capela-mor na igreja de S. Paulo Nuno Saldanha Professor Auxiliar/IADE-U Investigador Associado: UNIDCOM/IADE-U CHAM/U.N.L. nuno.saldanha@universidadeeuropeia.pt Salvaterra de Magos | n.ยบ 3 | Ano: 2016


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Joaquim Manuel da Rocha - A Pintura da capela-mor na igreja de S. Paulo de Salvaterra de Magos

Podemos afirmar que Joaquim Manuel da Rocha é um pintor com características particulares, em vários sentidos. Embora faça parte do rol dos artistas mais conhecidos, ou melhor, dos mais referidos, da História da Pintura Portuguesa do século XVIII, na verdade, a sua obra mantem-se ainda praticamente por descobrir e inventariar. Por outro lado, sabemos que ela se revestiu de uma grande diversidade temática, desde os grandes retábulos de altar e cenários de teatros, às mais pequenas Naturezas-mortas, passando pelo Retrato, incêndios, e Pintura de Género. Diferente situação se passa no tocante à sua vida, cujos dados biográficos foram descortinados de forma significativa no importante trabalho de Júlio Jesus1, que muito acrescentou às parcas informações deixadas pelos seus contemporâneos, José da Cunha Taborda2, ou Cirilo Volkmar Machado3. Na verdade, já decorridos mais de oitenta anos desde a sua edição, pouco mais se conseguiu acrescentar ao texto de Júlio Jesus, de cuja biografia esboçamos um pequeno resumo. De origem humilde, Joaquim Manuel da Rocha nasceu em Lisboa, na freguesia de Santa Catarina, a 18 de janeiro de 1727, filho do bracarense Manuel Francisco da Quinta (criado ao serviço de D. Luís Pereira de Sá), e de Maria Leonor, uma castelhana natural de Placência (Cáceres), de quem o pintor nos deixou um pequeno retrato. (Fig.1) Os pais destinaram-no à aprendizagem do ofício da Pintura, actividade que parecia ganhar foros de alguma importância no faustoso reinado de D. João V. Opção a que não terão sido alheios os bons contactos sociais da família, como o demonstra a escolha do padrinho do jovem, António Saldanha de Oliveira, Marquês de Rio Maior.

* Os nossos especiais agradecimentos a Sandra Costa Saldanha, Directora do Secretariado Nacional dos Bens Culturais da Igreja, a Miguel Santos, da igreja de São Paulo em Lisboa, pelas facilidades concedidas; ao Vítor Serrão, pela cedência do seu texto sobre a igreja de S. Miguel de Alfama; ao Alexandre Salgueiro, a Jaap den Hollander, a Roberto Caneira, da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, e a Hugo Nunes, pela cedência das imagens respectivas identificadas nas legendas. 1 JESUS, Júlio, Elementos para a História da arte portuguesa. Joaquim Manuel da Rocha e Joaquim Leonardo da Rocha, pintores dos séculos XVIII-XIX. Subsídios para as suas biografias e alguns elementos para o estudo das suas obras, Lisboa, Tip. Gonçalves, 1932. 2 TABORDA, José da Cunha, “Memória dos mais famosos pintores portuguezes”, In Regras da arte da pintura: com breves reflexões criticas sobre os caracteres distinctivos de suas escolas: vidas e quadros dos seus mais célebres professores: escritas na lingua italiana por Micael Angelo Prunetti dedicadas as excellentissimo senhor Marquez e Borba…, Lisboa, Impr. Regia, 1815, pp.235-237. 3 MACHADO, Cyrillo Volkmar, Collecção de Memorias relativas às vidas dos pintores e escultores, architectos, e gravadores portuguezes, e estrangeiros que estiverão em Portugal, Lisboa, 1823, pp.116-120.

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Magos A sua formação inicial terá tido lugar na oficina de André Gonçalves (1685-1762)4, um dos mais conhecidos e bem-sucedidos pintores da época. Pouco depois, foi discípulo do pintor Domingos Nunes5, um dos primeiros enviados por D. João V a Roma, para a recém-formada Academia Portuguesa. Com a cegueira de Nunes, Joaquim Manuel da Rocha viria a ocupar o lugar do mestre, na direcção da sua escola. De André Gonçalves terá sobretudo herdado, mais que o estilo, o método da cópia de estampas, e o usufruto da grandiosa colecção de gravuras e desenhos, que Rocha tentará seguir, reunindo “vinte e sete livros e cadernos de estampas e debuxos, desenhos e esboços feitos a lápis do Autor Joaquim Manuel da Rocha”6.

145 Figura 1 - Joaquim Manuel da Rocha, Retrato de Maria Leonor, s.d., óleo s/ tela, 37x32,5cm, Museu de Évora. Foto MatrizNet

Segundo afirmam Taborda e Cirilo. Sobre este importante pintor, profusamente estudado nas últimas décadas, vejase (por ordem cronológica) SALDANHA, Nuno, “André Gonçalves Pintor Ingénuo Ulissiponense (1685-1762) “, Vértice, n.º 8, Lisboa, Nov. 1988, idem, “André Gonçalves - Pintor e Mestre da Época Clássica (1685-1762) “, Artes Plásticas, nº 6, Lisboa, Dez.1990, idem, “A Vida de José do Egipto de André Gonçalves - Iconografia, Paisagem e Ideia de Natureza”, Lisboa, 1991, idem, “André Gonçalves”, In Joanni V Magnifico - A Pintura em Portugal ao tempo de D. João V (1706-1750), Lisboa, IPPAR, 1994, e idem, Artistas, Imagens e Ideias na Pintura do Século XVIII. Estudos de Iconografia, Prática e Teoria Artística, Lisboa, Livros Horizonte, 1995; MACHADO, José Alberto Gomes, André Gonçalves - Pintura do Barroco Português, Estampa, 1996; GONÇALVES, Susana Cavaleiro Ferreira Nobre, André Gonçalves e a Pintura de Cavalete em Portugal no tempo de D. João V (1706-1750). O caminho da Internacionalização, (policop., dissertação de Mestrado), Universidade de Lisboa, 2002; ISIDRO, Susana Patrícia Correia, O “Laboratório” de André Gonçalves e os programas de pintura do Barroco Quinto-Joanino (policop., dissertação de Mestrado), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2015. 5 TABORDA, José da Cunha, op. cit., p.235. 6 JESUS, Júlio, op. cit., p. 57. 4

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Joaquim Manuel da Rocha - A Pintura da capela-mor na igreja de S. Paulo de Salvaterra de Magos

Quanto a Nunes, de quem quase nada se sabe7, deverá ter sido escassa a influência pois, como refere Cunha Taborda, a propósito, “dos Pintores do seu tempo, foi elle um, que não obstante ter estudado com Domingos Nunes, Artista pouco conhecido, mais profundou os conhecimentos d’Arte, por isso póde-se afirmar, que muito excedeo o mestre, e que o seu grande talento lhe facilitou ser generico na Pintura”8. Destes mestres terá sobretudo aperfeiçoado a sua formação nas áreas do Desenho e da Pintura, e a inclinação para o classicismo romano tardo-barroco, que marca a primeira fase da sua carreira, (“teve no principio colorido agradavel”, como refere Cirilo), patente nalgumas obras de maiores dimensões, como a do altar da igreja de S. Paulo, em Lisboa (Despedida de S. Pedro e S. Paulo conduzidos ao martírio, actualmente na Igreja das Chagas) (Fig.2), ou na da igreja da Misericórdia de Elvas (Visitação). Porém, embora não tenha sido discípulo, o pintor que certamente mais terá influenciado a sua obra foi Francisco Vieira de Matos, dito Vieira Lusitano (1699-1783). Para além dos contactos pessoais e profissionais, que em muito contribuíram para a formação, e uma redobrada influência da escola romana, foi um “admirador enthusiasta, e imitador”, copiando “quantos desenhos pôde de Vieira; e copiava-os tão bem que se equivocavão muito com os originais” consoante escreve Cirilo9, e como o comprovam os inúmeros desenhos que têm surgido no mercado leiloeiro (nacional e internacional) assinados “Eques Viera Inv.” e “Roxa Cop.”.

Infelizmente, está anda por estudar esta importante figura da pintura portuguesa da primeira metade de Setecentos. Cirilo apenas refere um “painel que se queimou pelo terremoto” (Cirilo, op. cit., p. 116), e sabemos também que executou a buril um retrato, de medíocre qualidade, do médico Curvo Semedo, pintado por Pier Lorenzo Spoletti. Segundo um inventário da Biblioteca de Évora de 1884, existia um retrato masculino pintado por Domingos Nunes, “retrato de excelente execução”, dando-nos também a inédita informação deste pintor ser natural da Figueira (Vidigueira?), e pai do cónego eborense José Jacinto Nunes de Mello. Ver PEREIRA, Gabriel, A Colecção de Desenhos e Pinturas da Bibliotheca d’Évora em 1884, Lisboa, Officina Typographica, 1903, p. 20. Informação depois transcrita em ESPANCA, Túlio, “As antigas colecções de pintura da Livraria de D. Frei Manuel do Cenáculo e dos extintos conventos de Évora”, in A Cidade de Évora, A. 6, vol. 6, nº 7-8 (Mar./Jun.), 1949, pp. 444-498. Na relação do inventário da Quinta de Valverde, onde ficava o Paço Arquiepiscopal, refere-se também a existência de um importante Auto-retrato de Domingos Nunes, no baixo topo da galeria da biblioteca: “Um retrato de Domingos Nunes, Pintor, pintado por ele mesmo“. Veja-se ESPANCA, Túlio, “Espólio Cultural de Cenáculo” in A Cidade de Évora, A. 12-13, nº 37-38, pp. 227265. Em ambas as colecções existiam diversos quadros de Rocha, retratos e naturezas-mortas. Também é sabido que Francisco de Almada, quando faleceu a 7 de Maio de 1730, no seu palácio da Boavista, deixou uma dívida por saldar a Domingos Nunes, no valor de 12$800 reis. 8 TABORDA, José da Cunha, op. cit., p.235. 9 MACHADO, Cyrillo Volkmar, op. cit, p.116. 7

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Magos Também algumas das suas pinturas, como as executadas para a igreja do Beato António, em Lisboa (Santa Maria Salomé, S. João Evangelista, S. Tiago), foram feitas a partir de desenhos do Lusitano. (Fig. 3).

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Figura 2 - Joaquim Manuel da Rocha Despedida de S. Pedro e S. Paulo conduzidos ao martírio, s.d., óleo s/ tela, 524x 253cm, Igreja das Chagas, Lisboa. Foto Nuno Saldanha

Figura 3 - Joaquim Manuel da Rocha, seg. Lusitano, Santo António com o Menino, s.d., desenho a sanguínea sobre papel, 25,5x22,5cm, Palácio do Correio Velho, Leilão 201, 16 Out.2008, Lote 0387A.

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Trabalhou ainda como ajudante do pintor geno- Santa Isabel, S. Francisco de Paula, ou na sacristia vês Peregrino Parodi (1705-1785), que desenvol- dos Paulistas. (Fig.4) veu a sua actividade em Portugal entre finais da década de 40 e 1785, ano em que faleceu. Tendo-se dedicado também à execução de retratos, é natural que Rocha tenha com ele aperfeiçoado esta arte. Mas de Parodi parece ter herdado uma nova tendência estilística, que marcaria a segunda fase da sua pintura, menos clássica, onde os valores tonais se sobrepõem aos valores cromáticos, mais preocupado com os efeitos de claro-escuro, próprios de um grande desenhador. Como referia Francisco Xavier Lobo, na sua Sylva Laudatória da Pintura, “era sisudo na côr, e forte no claro-escuro”. No mesmo sentido, também Cirilo o critica por usar “muito de preto de marfim a que chamava preto santo, e da terra rossa que dá na cor de tijolo”10. De igual modo, Júlio de Jesus, no estudo citado, lhe aponta alguns defeitos, insistindo na questão do colorido: “tinha uma técnica por vezes sêca; a sua pintura não era das mais brilhantes e a gama da sua paleta sumamente restricta. As tonalidades amareladas, de que abusava extraordináriamente no retrato, transformavam-se por vezes... num rosado velho, dando às imagens o aspecto da tradicional carnação de santeiro, dum convencionalismo pobre e monótono “11. Este estilo podemos observar/reconhecer de forma evidente nas diversas pinturas da Imaculada Conceição, realizadas para os altares de diversas igrejas, como Figura 4 - Joaquim Manuel da Rocha, Imaculada Conceição, s.d., óleo s/ tela, Sacristia Igreja dos Paulistas, Lisboa. Foto Nuno Saldanha

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MACHADO, Cyrillo Volkmar, op. cit, p.118 e 116. JESUS, Júlio, op. cit., p. 33.

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Também de Parodi parece ter adoptado o modelo compositivo das várias representações da Última Ceia, como a que podemos ver na Matriz de Salvaterra, Loreto, ou Conceição Velha em Lisboa. Embora sem o cunho “naturalista”, e os magníficos efeitos cenográficos da pintura do genovês (como no excepcional exemplo da tela da capela dos Castros, em São Domingos de Benfica)12 (Fig.5), as obras de Rocha reflectem os mesmos valores tonais do claro-escuro, iluminação superior através de candeeiros de braços, ou a disposição circular das figuras, na esteira da obra de Louis Silvestre, como veremos. No entanto, mais do que requisitos de ordem pedagógica, Rocha terá trabalhado com Parodi por motivos de ordem financeira, que sabemos terem constituído um problema para a família do artista, sobretudo após 1751, quando a mãe, já viúva, foi obrigada a receber hóspedes na casa onde viviam. No ano seguinte, já o encontramos inscrito na Academia de S. Lucas (22 de Outubro). Em 1756 nasce o primeiro filho do artista, Joaquim Leonardo da Rocha, que se tornaria um pintor de renome, fruto de uma ligação ilícita com Ana Maria, mulher de um arrieiro chamado Bernardo José, natural de Penedos de Alenquer. Quatro anos depois, surge um segundo filho da mesma ligação, João Francisco da Rocha que, juntamente com o seu irmão Joaquim, apenas viriam a morar com a mãe dois anos após o enviuvamento desta, em 1764, tornando-se ambos discípulos do pai. Por fim, em Março de 1769, o pintor regulariza a situação, desposando Ana Maria, que lhe daria um terceiro filho em 1778, de nome Manuel Joaquim, mas que faleceria no ano seguinte. Entretanto, a família mudara a residência na Rua dos Cardais, em 1772, para a Rua do Mon- Figura5 - Pellegrino Parodi, Última Ceia, c. 1764, óleo s/ tela, capela te Olivete e, em 1775, para a Rua da Penha de dos Castros, Igreja de São Domingos de Benfica, Lisboa. Foto Alexandre Salgueiro

Embora significativamente truncada, e em muito mau estado de conservação, trata-se sem dúvida de um dos mais extraordinários exemplares deste tema em Portugal. Existe uma outra versão de Parodi, por ele assinada, de 1764, bem mais pequena, adaptada a um formato completamente diferente, e muito retocada, num dos altares da igreja de Santa Isabel, em Lisboa.

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França, onde novamente recebem hóspedes. Após 1781, passa finalmente para a Rua Larga de São Roque, local onde o pintor acaba por falecer, com 59 anos de idade, a 28 de Dezembro de 1786.

| O Mestre de Desenho Segundo Cirilo, Joaquim Manuel da Rocha não foi um pintor muito prolífico, não obstante, como referimos, se ter dedicado a diversas temáticas pictóricas. Depois de algumas experiências a realizar cenários, nos anos 60, não mais voltou a pintar a têmpera, a fazer panos decorativos para ornar casas, ou a pintar tectos, ficando por isso muito limitado nas encomendas que recebia ou aceitava. O “seu costume era pintar de manhã e passear de tarde”13, hábito que só mudou quando foi admitido como professor da Aula Régia de Desenho, empregando as tardes nas lições. Efetivamente, outra das ocupações de Joaquim Manuel da Rocha, e a que mais lhe granjeou louvores, foi a do Ensino, em especial do Desenho, cuja notoriedade levou à frequência das suas aulas um considerável número de alunos e discípulos, entre os quais se encontram nomes sobejamente conhecidos como Arcângelo Fusquini, Bartolomeu Calisto, Cipriano Nunes, Domingos António de Sequeira, Henrique José da Silva, seus filhos João Francisco e Joaquim Leonardo da Rocha, Joaquim Gregório Rato, José da Cunha Taborda, José Teixeira Barreto, Miguel Rodrigues del Cusco, Ricardo José Lobo, Roque Vicente Gomes, entre outros14. Vimos já que o pintor havia desempenhado funções docentes na aula de Domingos Nunes, que veio a substituir após a cegueira do mestre. Em 1780 institui-se finalmente a tão desejada Academia do Nu, graças aos esforços empreendidos por uma série de estudiosos liderados pelo pintor e escritor Cirilo Volkmar Machado, e pela boa vontade de Gregório de Barros e Vasconcelos, que lhes cedeu para o efeito algumas salas do seu palácio a S. José. Manuel da Rocha foi então contactado para lecionar na nova academia, lugar que aceitou, embora por pouco tempo, dado ter-se criado, no ano imediato, a Aula Régia de Desenho (alvará de D. Maria I de 23 de Agosto de 1781), por diligências do padre Fr. José da Rocha e do gravador Joaquim Carneiro da Silva. Posição que lhe agrada bastante, mais pela distinção e proventos que lhe poderia trazer, acrescida do facto da desafortunada Academia do Nu ter fechado as portas pela segunda vez (por MACHADO, Cyrillo Volkmar, op. cit, p.117. Sobre os alunos da Aula Régia de Desenho, consulte-se o Livro da Matrícula dos Discipulos Ordinários e Extraordinários da Aula Publica de Desenho, a qual principiou a ter exercício no 1.o de dezembro do anno de 1781. Publicado por SOARES, Ernesto, Lisboa, Edições Bíblion, 1935

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Magos falecimento do seu protector, em Outubro de 1781), o artista não hesitou em aceitar a nomeação para professor de desenho da recém-criada instituição. No entanto, quatro anos depois, a 17 de Outubro de 1785, a instâncias do Intendente Diogo de Pina Manique (que forneceu a própria intendência para a instalação provisória), a antiga Academia do Nu voltaria a abrir as portas ao público. Devido à falta de pessoal docente, convidou-se novamente Joaquim Manuel da Rocha, Machado de Castro e Joaquim Carneiro da Silva, para ocuparem os seus lugares no ressuscitado estabelecimento.

| Rocha e a Crítica

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Uma das histórias mais conhecidas, associada a este artista, já no final da vida, é a famosa crítica às obras de Pompeo Batoni para a Basílica da Estrela, publicada no Espectador Português de 12 de Outubro de 1784, cuja autoria lhe tem sido atribuída. De facto, uma das controvérsias geradas em relação a este assunto assenta na circunstância do trabalho não ter sido entregue a um pintor nacional, questão discutida desde a chegada dos quadros de Batoni a Portugal. Embora por razões diversas, a Rainha repetia o gesto de D. João V para a Basílica de Mafra, cuja maior parte da decoração pictórica fora executada por artistas de formação romana. Graças ao interregno provocado pelo ministério de Pombal, a formação e o fomento artístico desenvolvidos no reinado anterior tinham decaído de maneira vertiginosa. Os poucos que tiveram a sorte de disfrutar de um estágio em Roma, como Inácio de Oliveira Bernardes ou Vieira Lusitano, pousariam para sempre os seus pinceis em 1781, um por morte, o outro por desgosto. Mas as principais razões que terão motivado a rainha a escolher um pintor romano, para as grandes telas da basílica, seriam de ordem teológica e diplomática. Na verdade, alguns artistas portugueses tiveram oportunidade de colaborar na decoração da igreja, como o famoso Pedro Alexandrino de Carvalho, que executou para o tecto da “Casa da Rainha” uma alegoria com a Rainha doando os planos da Basílica a Santa Teresa de Jesus, seguindo de perto uma das telas de Batoni, uma Adoração do Santíssimo Sacramento para a capela do convento, ou uma Nª. Sª. da Conceição com S. José, Santo António e S. Domingos, para uma das dependências da igreja, e eventualmente os Quatro Doutores na capela-mor. De Cirilo Volkmar Machado é também o tecto alusivo à entrega da Basílica à Igreja Romana por D. Maria. Ao pintor Eleutério Manuel de Barros, que acompanhará o primeiro painel de Batoni para Lisboa em 1782, ser-lhe-á dada a execução de uma tela representando Elias deitando a capa a Eliseu, uma Educação da Virgem por Santa Ana, e uma Ceia em Emaús (cena encomendada a Batoni que não chegaria a ser realizada). Até as princesas D. Maria Ana e D. Maria Benedita tiveram a oportunidade Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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de representar o seu grande quadro com o Anjo Custódio, Miguel, Gabriel e Rafael, pintado já em 1789. Naturalmente que nenhuma destas obras se compara à qualidade do mestre de Luca, mas as razões que levaram à sua escolha foram outras, como dissemos. Basta lembrar que o culto ao Sagrado Coração era recente, sem grande tradição iconográfica, e ainda não aceite por todos e, embora já legitimado, a Bula de Pio VI só sairia em 1794. Assim, D. Maria, para além de ter conseguido arranjar de Pio VI a autorização para poder erguer uma basílica dedicada a esse culto, primeira igreja do mundo a receber oficialmente esse título sancionado por bula pontifícia, carecia igualmente de aprovação oficial da iconografia prevista. E foi precisamente isso que aconteceu. De facto, o primeiro quadro enviado por Batoni, acabado de terminar em 1781, representando a Consagração do Mundo ao Santíssimo Coração de Jesus, e que se destinava à capela-mor, foi visto e aprovado por Pio VI (que se diz retratado no quadro como figura da Igreja) durante uma visita ao estúdio do pintor. Este sistema, do recurso a pintores romanos para mais rápida aprovação papal, e a necessidade de se constituir uma nova iconografia pelas mãos de artistas de renome internacional, foi por diversas vezes utilizado pela corte portuguesa15, como nos casos do processo de beatificação das princesas Teresa, Sancha e Mafalda nos inícios do século XVIII16. Segundo refere Cirilo, Joaquim Manuel da Rocha terá escrito uma sátira aos quadros, por iniciativa de João Rosado Vilalobos, professor de Retórica e teórico das artes, traduzida em italiano, e enviada a Batoni17. A conhecida resposta publicada na altura pelo jornal O Espectador Portuguêz, a 12 de Outubro de 1784, não é de forma alguma a carta de Rocha, mas a resposta de Mayne (não obstante o possível contributo do pintor), que surge no seu seguimento18. Contendo algum fundo de verdade nos argumentos expostos, ela reflecte, mais do que o desencanto pela concorrência estrangeira, a teoria e as ideias estéticas do Portugal dos finais de Setecentos, assente muito mais nos preceitos e regras da arte - verossimilhanças externas e internas, decoro, etc. do que em querelas estilísticas ou de escolas. Por outro lado, a ideia de Rocha ambicionar para si a execução de tão vasto programa decorativo, para quem só trabalhava da parte da manhã, Como já tivemos oportunidade de referir em SALDANHA, Nuno, “A Quinta Chaga de Cristo - A Basílica das Carmelitas Descalças do Coração de Jesus à Estrela”, In Monumentos, n.º 16, Lisboa, DGEMN, 2002, p.15. 16 SALDANHA, Nuno, “Estilo e Iconografia - As beatas de Portugal e a pintura romana”, Revista Cultura - Iconografia Religiosa, nº 27, Lisboa, Centro de História da Cultura / Universidade Nova de Lisboa. 2010. 17 MACHADO, Cirilo Volkmar, op. cit., p.118, n.1. 18 Existe cópia manuscrita de Frei José Mayne na Academia das Ciências de Lisboa, transcrita em JESUS, Júlio, op. cit., pp. 28-32, e mais recentemente em AVERINI, Ricardo, “As pinturas de Pompeo Batoni na Basílica da Estrela”, Bracara Augusta, vol. XXVII, 1974, pp. 14-18. 15

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e tão pouco empenho demonstrou na pintura religiosa, parece-nos um pouco forçada. Bastante mais desconsolado teria certamente ficado Pedro Alexandrino, a quem mais naturalmente teria recaído a escolha, e que teria muito mais facilidade em dar resposta à encomenda, tendo em conta a sua numerosa e produtiva oficina. Para além de não excluirmos de todo a hipótese de Rocha ter colaborado na decoração da Estrela, pelo menos na parte conventual, uma obra sua está comprovadamente ligada ao projecto. Trata-se de uma pequena pintura que integra o espólio do Museu do Patriarcado de Lisboa, semelhante a um ex-voto, tanto pelas reduzidas dimensões, como pelo interesse iconográfico da pintura, que se revela particularmente inédito. Muito provavelmente estamos perante uma obra que se encontrava no cenóbio carmelita, talvez ornando um pequeno altar, perpetuando a memória e o patrocínio da régia protectora, como refere a própria legenda subscrita: Maria I Fidelissima Cordi Iezu Templum Monasterium Excalceatarum Carmelitarum, Quod Olim Promiserat. Opere Adimplet Ac Offert. (Fig.6) O traço mais original desta pintura assenta na representação da Virgem com o Menino - Ela, como Senhora do Carmo; e Jesus, expondo o Seu Sagrado Coração - constituindo-se como uma das pioneiras representações nacionais deste novo culto, para o qual D. Maria I tanto contribuiu. Outro pormenor importante do pequeno quadro é a reprodução do desenho

Figura 6 - Joaquim Manuel da Rocha, Doação da Basílica da Estrela a Nossa Senhora por D. Maria I, c. 1778., óleo s/ tela, 46,5x35cm, Museu do Patriarcado de Lisboa. Foto Alexandre Salgueiro

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Joaquim Manuel da Rocha - A Pintura da capela-mor na igreja de S. Paulo de Salvaterra de Magos

original da fachada projectado por Mateus Vicente, e posteriormente alterada - fachada em dois pisos de sete tramos com o corpo central (de três tramos) ) saliente, dando acesso à basílica por meio de galilé, coroamento com frontão borromínico, e ausência de torres sineiras - o que nos permite data-lo de cerca de 177819.

| O Sagrado e o Profano Parte significativa da obra de Joaquim Manuel da Rocha, no entanto, e aquela que nos parece mais importante e original, não foi dedicada à Pintura Religiosa, mas a temáticas consideradas “menores” na época, como a da Natureza-Morta e a dos Incêndios. Não compete aqui, naturalmente, o desenvolvimento desta faceta da sua actividade, mas não podemos deixar de salientar este aspecto, que ocupava os “tempos livres” do pintor, e cujo resultado impressionou mesmo um classicista militante como Cirilo Machado: “nesses intervalos pintava fógos, búzios, conxas, e outros objectos da natureza morta, tudo com a maior verdade, optima composição, e toque magistral”20. Não deixa de ser significativo que a obra mais conhecida e citada internacionalmente de Joaquim Manuel da Rocha, seja o famoso negro pigarço Ciríaco, que o mestre “pintou do natural”

em 1786. Desta pintura existem várias versões - uma no Laboratório de Parasitologia da Faculdade de Medicina de Paris, e outra no Museu Etnográfico de Madrid, ambas do autor, e uma outra, datada do ano seguinte, da mão do seu filho Joaquim Leonardo, no Museu Bocage em Setúbal21. Joaquim Manuel da Rocha insere-se assim num novo sentimento e ideia de Natureza que desponta na segunda metade do século XVIII, cuja visão está para além das simples paisagens “campestres” ou “heroicas”, das fêtes galantes, saídas da fantasia, e que concordam plenamente com a teoria e o gosto literário vigente. Surge-nos então uma vertente da pintura que pretende reproduzir fielmente o que o olho percebe na natureza, exprimindo-se de um modo que nem os próprios teóricos, salvo raras excepções, se atreveram a falar. E apesar

SALDANHA, Nuno, “Doação da Basílica da Estrela a Nossa Senhora por D. Maria I por Joaquim Manuel da Rocha”, In Jornal Público, Lisboa, 27 Julho 2010. 20 MACHADO, Cirilo Volkmar, op. cit., p.117. Sublinhado nosso. Sobre as Naturezas-mortas de Rocha veja-se FRAGOSO, Vanessa, Le sentiment de nature dans la peinture ‘baroque’ portugaise: de Baltazar Gomes Figueira (1604-1674) à Joaquim Manuel da Rocha (1727-1786), (tese Doutoramento), Université Charles-de-Gaulle, Lille-Lisboa, 2011. 21 Para uma descrição recente da história dos mesmos, veja-se ALMAÇA, Carlos, Ciríaco, um negro pigarço do século XVIII, Museu Nacional de História Natural (Museu Bocage), Lisboa, 1996. 19

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das hesitações da teoria, ou mesmo da crítica, os pintores prosseguirão as suas experiências chegando a influenciar os próprios críticos. Afastando-se do paradigma clássico da imitação ideal, do método selectivo da natureza, retratam nas suas obras uma natureza sem mentira, indiferente ao género heroico ou pastoral, sem se preocupar com os embaraços dos poetas em obter a mesma licença, condenados à impossibilidade de admitir verdadeiros camponeses nos seus versos22. Estes pintores, sensíveis às formas e às cores, tinham também por seu lado uma forte tradição que os salvava dos entraves da poesia, das regras rígidas que pesavam sobre as letras, anunciando e exprimindo uma poderosa corrente que culminaria no período do Romantismo. Mais do que nas naturezas-mortas, esta nova sensibilidade, Pré-Romântica (se assim podemos chamar, mas claramente anticlássica), está bem patente nos seus conhecidos Incêndios. Se por um lado eles refletem um interesse nitidamente marcado pelo gosto dos efeitos de claro-escuro, já referidos na obra de Rocha, e que se aproximam de algumas vertentes da

pintura barroca seiscentista, por outro, estamos perante uma realidade bem diversa, que tem a ver com a ideia da Natureza entendida como Natura naturata, criativa, alheia e independente da vontade humana. O Fogo é percebido como um dos elementos essenciais da Natureza, presente na obra de muitos paisagistas da segunda metade de Setecentos, como os contemporâneos Jean Pillement (17081808), Joseph Vernet (1714-1789), ou PierreJacques Volaire (1729-1799), que oscilam entre uma procura do pitoresco, do sublime, e um experimentalismo “científico”. A par dos incêndios, encontramos naufrágios, tempestades, e outras calamidades naturais (como os famosos vulcões de Volaire)23, cujo fascínio pela Natureza, como refere Agostinho Araújo, “ambiguamente mãe/devoradora, é sem dúvida um aspecto marcante entre as diversas formulações que o romantismo comporta”24, e tão de acordo com o gosto desse final de século. Note-se que alguns dos mais famosos incêndios de Rocha têm um cunho mais “natural”, para além do mero interesse pelos efeitos plásticos e lumínicos do claro-escuro, no sentido

Comparem-se por exemplo as gravuras que ilustram muitas das obras literárias, onde contrariamente à descrição no texto, as imagens representam os verdadeiros hábitos dos camponeses, objectos simples e rudes, quintas miseráveis, paisagens agrestes (Cochin para o Virgile français, Eisen para as Saisons de Thomson, Gravelot para as Saisons de Saint-Lambert, Moreau para as Chansons de De La Borde, etc.). 23 Cuja obra terá certamente influenciado a de Rocha. Uma cópia dum quadro de Volaire, existente no Museu Nacional de Arte Antiga, atribuído a Rocha, não sendo da mão do próprio pintor de Toulon, é possível que se trate de uma cópia do pintor português. 24 ARAÚJO, Agostinho, “As Forças da Natureza. A Força do Tempo”, In SALDANHA, Nuno, ARAUJO, Agostinho (ed.), Jean Pillement (1728-1808) e o Paisagismo em Portugal no Século XVIII, cat. exposição, Lisboa, FRESS, 1997, p. 122. 22

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Joaquim Manuel da Rocha - A Pintura da capela-mor na igreja de S. Paulo de Salvaterra de Magos

de partirem do pressuposto que assentam em factos reais, contemporâneos, “tirados do natural”, não literários, bíblicos, lendários ou mitológicos, com um cunho de reportagem, quase jornalístico (Incêndio da Patriarcal (1769), Incêndio do Campanário da Patriarcal (c.1756), Incendio da fragata Graça Divina e S. João Baptista (1771) (Fig. 7)) emulando os grandes temas da Pintura de História25. Este é, precisamente, um dos aspectos que torna Rocha num pintor ímpar, no panorama da pintura portuguesa da segunda metade de Setecentos.

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Figura 7 - Joaquim Manuel da Rocha, Incendio da fragata Graça Divina e S. João Baptista, 1771 óleo s/ tela, 46x67cm, Sotheby’s, Old Master Paintings, Londres, 8 Dez. 2005, Lote 352.

Desta pintura fez Rocha duas versões, com ligeiras diferenças. Uma foi leiloada recentemente, e a outra está no Museu da FRESS em Lisboa. Uma está datada, e a outra assinada. Será uma delas mais um exemplo da cópia do filho Joaquim Leonardo? Isto parece indicar, contudo, que este tipo de obras se destinava ao mercado dos viajantes estrageiros, tão em voga no tempo, e também muito comum em Volaire.

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Face à inexistência de um inventário completo da pintura religiosa de Joaquim Manuel da Rocha, infelizmente ainda por fazer (ou refazer), a listagem da sua obra tem-se vindo a construir aos poucos, com o contributo de alguns investigadores que, nos últimos anos26, têm trazido à luz algumas obras inéditas dispersas, como é o caso das de Salvaterra de Magos. Ao contrário do que se passou com o Palácio e Capela Real, ou com o Real Teatro de Ópera, a igreja de S. Paulo (actual igreja matriz), não tem sido alvo de grande atenção por parte dos estudiosos, o que terá levado a ignorar este conjunto de telas da capela-mor. Fundada nos finais do século XIII, com duas naves e cinco altares, a igreja sofreu algumas alterações durante os séculos XVI e XVII, nomeadamente a nível decorativo, de que o melhor exemplo são o conjunto de telas do pintor Bento Coelho da Silveira. Com o Terramoto de 1755, a igreja sofreu graves danos, tendo-se perdido parte do espólio, o que levou à sua reconstrução. Esta, só teve lugar a partir de 1758, com a consequente renovação decorativa, onde se insere algum do novo conjunto azulejar, e o das pinturas da capela-mor. A demora no início da reedificação da igreja deve-se provavelmente à prioridade dada por D. José I às obras da Casa da Ópera, que padeceu alguns danos com o terramoto (embora em menor escala que as restantes divisões do paço), que se arrastaram precisamente ao longo de quatro anos. Tudo indica, portanto, que as telas deverão datar de cerca de 1760, o que nos leva a considerar a hipótese de se ter estabelecido uma ligação entre a igreja e a Casa da Ópera. Isto porque, justamente nessa data, encontramos Rocha a trabalhar para o teatro do Bairro Alto, pintando cenários a têmpera, conforme assegura Cirilo: “Pelos anos 1760 pintou o panno da embocadura para o Theatro do Bairro Alto, aonde representou Apollo com as Musas, e hum bellissimo Tejo.”27 teatro só ficaria concluído em Fevereiro de 1761, sob a direcção de Nicolau Luís, e decoração do pintor Lourenço da Cunha28. Colocamos assim a hipótese de Joaquim Manuel da Rocha ter trabalhado para a Casa da Ópera de Salvaterra, na pintura de cenários, antes de ter sido contratado para a decoração da igreja de S. Paulo. O conjunto decorativo da capela-mor é constituído apenas por duas telas, de temática eucarística Veja-se por exemplo SERRÃO, Vítor, “Elogio das teses imaculistas do Dr. Duns Scoto num painel setecentista de Joaquim Manuel da Rocha em São Miguel de Alfama”, Lisboa, (no prelo), ou LEAL, Lécio, “«Tem o Céu Santos» O Tecto em caixotões da igreja de Nossa Senhora dos Reis de Lamalonga”, In Invenire - Revista dos Bens Culturais da Igreja, nº9, Lisboa, SNBCI, Jul-Dez 2014, pp.49-54. 27 MACHADO, Cirilo Volkmar, op. cit., pp.116-117. 28 BRITO, Manuel Carlos, Opera in Portugal in the Eighteenth Century, Cambridge, Cambridge University Press, 1989, p.84.

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Joaquim Manuel da Rocha - A Pintura da capela-mor na igreja de S. Paulo de Salvaterra de Magos

(em muito deficitário estado de conservação), nas ilhargas laterais, representando uma Última Ceia, (Fig.8) e Jesus em casa de Simão Fariseu (Fig.9). Estes dois temas eram muito populares na decoração dos refeitórios dos mosteiros.

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Figura 8 - Joaquim Manuel da Rocha, Última Ceia, c. 1761, óleo s/ tela, Igreja de S. Paulo, Salvaterra de Magos. Foto Hugo Nunes

Figura 9 - Joaquim Manuel da Rocha, Jesus em casa do Fariseu, c. 1761, óleo s/ tela, Igreja de S. Paulo, Salvaterra de Magos. Foto Hugo Nunes

Sabemos também que existia uma terceira tela, de enrolar, a cobrir o trono do altar-mor, com uma Conversão de S. Paulo, desaparecida desde finais dos anos 50 do século XX, por ocasião de uma outra grande empreitada de obras que ali decorreu. (Fig.10) Tratar-se-ia de uma sobrevivência da intervenção decorativa de Bento Coelho da Silveira, ou de uma nova tela de Joaquim Manuel da Rocha? Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos


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Figura10 - Vista do interior da igreja de S. Paulo de Salvaterra de Magos, c. 1950, fotografia privada da ĂŠpoca. CMSM

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Joaquim Manuel da Rocha - A Pintura da capela-mor na igreja de S. Paulo de Salvaterra de Magos

O tema de Jesus em casa de Simão Fariseu é um episódio da vida de Cristo relatado pelos quatro Evangelhos: Mateus (Mt 26,6-13), Marcos (Mc 14,3-9), Lucas (Lc 7,36-50) e João (Jo 12,1-8). No entanto, os textos não são de todo coincidentes, apresentando grandes diferenças sobre o lugar, a identificação da mulher, o nome do dono da casa, e as palavras de Jesus. A tradição associou desde o início a pessoa de Madalena a três mulheres do Evangelho: a anónima pecadora referida por Lucas na ceia de Simão fariseu; Maria de Betânia, irmã de Marta e Simão Lázaro; Maria de Magdala (Maria-Madalena), convertida por Jesus, que se apresenta ao pé da Cruz no Calvário. O papa Gregório I, no século VI, considerou que Maria Madalena é a mesma que Maria de Betânia, e a pecadora que ungiu Cristo, referida em Lucas. Esta interpretação não é canónica, apesar de fortemente difundida pela tradição popular. O par é um pouco desequilibrado, dado que Rocha se valeu de dois processos distintos quer fazendo recurso à cópia de uma gravura, como recuperando um arquétipo usual. No caso da Última Ceia, estamos perante um modelo que deriva da pintura de Louis de Silvestre, de 1709 (Museu de Versailles), assim como da tela de Pellegrino Parodi a que nos referimos – disposição circular das figuras, iluminação artificial, vinda de cima, o típico candeeiro de velas, e assente em valores tonais de claro-escuro - que Rocha repete com frequência noutras obras de igrejas lisboetas, como no Loreto, Paulistas ou Conceição Velha (Fig. 11).

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Figura 11 - Joaquim Manuel da Rocha, Última Ceia, s.d., óleo s/ tela, Igreja da Conceição Velha, Lisboa. Foto Nuno Saldanha

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Magos Quanto à representação de Jesus em casa de Simão Fariseu, a solução é bastante diferente, revelando-se o pintor menos criativo e individual, recorrendo a uma gravura do célebre quadro de Jean Baptiste Jouvenet (1644-1717), pintado em 1706 (Fig.12) (Lyon, Musée des Beaux-Arts, INV. A 205). Desconhecemos, até à data, qual o autor da respectiva gravura, dado que foram produzidas várias, mas sabemos que o quadro de Jouvenet foi largamente copiado, e até transposto para tapeçaria29.

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Figura 12 - Jean Baptiste Jouvenet, Jesus em casa de Simão fariseu, 1706, óleo s/ tela, 393x663cm, Musée des Beaux-Arts, Lyon. Foto MBA Lyon

Com o Mercadores expulsos do templo (Museu de Lyon), a Ressurreição de Lázaro e a Pesca Milagrosa (Paris, Musée du Louvre), esta enorme tela decorava a nave do Priorado beneditino de Saint-Martin-des-Champs, em Paris. A série quase completa foi apresentada a Louis XIV em Julho de 1705. Encantado, o rei ordenou a sua transposição em tapeçaria.

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Conhecem-se cópias com algumas variações e de menores dimensões, como no exemplo de Salvaterra, ou nas destinadas à igreja Saint-Martin-des-Champs de Paris, com três outras composições no mesmo formato. Já em 1699, Jouvenet tinha pintado uma versão inicial do quadro, de configuração semelhante ao de Lyon (Igreja de Vervins). Outras cópias, ou variantes de atelier podem encontrar-se no Museu Magnin de Dijon, ou no Château de Maisons-Laffitte (Château de Maisons ou Château de Maisons-sur-Seine). O sucesso da pintura levou-a mesmo para fora do continente europeu, o que sucedeu também pelas mãos de um pintor lisboeta. Curiosamente, a capela-mor da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, em S. João del Rei (Minas Gerais, Brasil), apresenta exactamente o mesmo programa iconográfico pictórico de Salvaterra. Templo tomado pela Irmandade do Santíssimo Sacramento, por licença de 12 de Setembro de 1721, destinou-se a substituir a primitiva Capela do Pilar, edificada no Morro da Forca, incendiada alguns anos antes, durante a Guerra dos Emboabas. Reconstruída no mesmo local, em Setembro de 1732 já se achavam concluídas as paredes-mestras, os portais, altares e capela-mor. No mesmo ano, chegam de Lisboa, ouro em folha, gessos, óleos, tintas e mais aprestos destinados à capela-mor, além dos dois painéis da Última Ceia e Jesus em casa de Simão Fariseu, que ainda lá se conservam30. Embora a Última Ceia da capela mineira se baseie noutro modelo, a figuração de Jesus em casa de Simão Fariseu é justamente uma cópia reduzida do quadro de Jouvenet. Ambas as pinturas (de Salvaterra e S. João del Rei) apresentam a composição invertida, o que comprova inequivocamente o uso de gravuras. Dado que as da Senhora do Pilar se encontram atribuídas a André Gonçalves31, é fácil de perceber que Rocha terá usado o mesmo exemplar gravado do seu antigo mestre. Uma das hipóteses possíveis, é tratar-se da gravura sobre cobre produzida por Louis Desplaces (1682-1739) e Alexis Loir (1640-1713), nos inícios do século XVIII. (Fig. 13) Conhece-se uma versão que deverá ter sido impressa para ilustrar uma obra religiosa (Novo Testamento?), mas é provável que tenha sido também feita uma contra-prova para circulação avulsa, o que justificaria a imagem invertida das duas pinturas. Como se pode observar no exemplo de Desplaces/Loir, a composição é bem mais reduzida, quer no espaço, como no número de figuras. Mesmo assim, nas pinturas de S. João de Rei e Salvaterra, por razões de dimensão

SOUZA, Wladimir Alves de, Guia dos Bens Tombados: Minas Gerais, Minas Gerais, Arquivo Museu Regional, 1984 MACHADO, José Alberto Gomes, André Gonçalves - Pintura do Barroco português, Editorial Estampa, Lisboa, 1996, pp.236-237.

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Magos e economia de espaço, houve necessidade de as restringir ainda mais, mormente na figura de costas, à frente da mesa. A versão do Brasil, que apresenta alguns desvios (por ex. posição do braço esquerdo de Cristo) mantém, contudo, os objectos de cobre em primeiro plano.

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Figura 13 - Louis Desplaces e Alexis Loir, Jesus em casa de Simão fariseu, seg. Jouvenet, gravura em chapa de cobre, 22.5x34 cm (chapa) Folha: 25.7x37.5 cm. © Jaap den Hollander, Holanda.

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Joaquim Manuel da Rocha - A Pintura da capela-mor na igreja de S. Paulo de Salvaterra de Magos

Não obstante a simplicidade do programa da igreja de S. Paulo de Salvaterra de Magos32, e a mediana qualidade das obras, não podemos deixar de assinalar a importância de que se reveste. Em primeiro lugar, pelo contributo que naturalmente poderá trazer para o inventário das obras de cariz religioso de Joaquim Manuel da Rocha, assim como pelo conhecimento da sua distribuição a nível geográfico. Por outro lado, elas ilustram as diferentes técnicas de trabalho do pintor, constituindo-se igualmente como um preciso testemunho dos recursos e das fontes artísticas que tinha a seu dispor, e de que modo se integram na Cultura Visual da criação pictórica portuguesa na segunda metade de Setecentos.

| Bibliografia - ALMAÇA, Carlos, Ciríaco, um negro pigarço do século XVIII, Museu Nacional de História Natural (Museu Bocage), Lisboa, 1996. - ARAÚJO, Agostinho R. Marques de, Experiência da Natureza e Sensibilidade Pré--Romântica em Portugal. Temas de pintura e seu consumo (1780-1825), Porto (dissertação de Doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto), Porto: FLUP, 1991. - BRITO, Manuel Carlos, Opera in Portugal in the Eighteenth Century, Cambridge, Cambridge University Press, 1989. - CAETANO, Joaquim Oliveira, Pintura - Colecção de Pintura da Misericórdia de Lisboa. Século XVI ao Século XX, T.II, Lisboa, Museu de S. Roque/Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 1998. - FERRÃO, Julieta, «A Pintura no Século XVIII», in Arte Portuguesa dirigida por João Barreira, ed. Excelsior, 1951, pp. 321-340, - FRAGOSO, Vanessa, Le sentiment de nature dans la peinture ‘baroque’ portugaise: de Baltazar Gomes Figueira (1604-1674) à Joaquim Manuel da Rocha (1727-1786), (tese Doutoramento co -orientada pelos Profs. Michèle-Caroline Heck e Vítor Serrão), Université Charles-de-Gaulle, LilleLisboa, 2011. - JESUS, Júlio, Elementos para a História da arte portuguesa. Joaquim Manuel da Rocha e Joaquim Leonardo da Rocha, pintores dos séculos XVIII-XIX. Subsídios para as suas biografias e alguns elementos para o estudo das suas obras, Lisboa, Tip. Gonçalves, 1932. - LEAL, Lécio, “«Tem o Céu Santos» O Tecto em caixotões da igreja de Nossa Senhora dos Reis de Lamalonga”, In Invenire - Revista dos Bens Culturais da Igreja, nº9, Lisboa, SNBCI, Jul-Dez 2014, pp.49-54. 32

No entanto, note-se que é muito raro encontrarmos mais do que uma obra de Rocha pintada para a mesma igreja.

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- MACHADO, Cyrillo Volkmar, Collecção de Memorias relativas às vidas dos pintores e escultores, architectos, e gravadores portuguezes, e estrangeiros que estiverão em Portugal, Lisboa, 1823. - Natureza (A) Morta nas Coleções Alentejanas, Cat. Expo., Évora, Museu de Évora/IPM, 1999. - SALDANHA, Nuno, Artistas, Imagens e Ideias na Pintura do Século XVIII. Estudos de Iconografia, Prática e Teoria Artística, Lisboa, Livros Horizonte, 1995. - SALDANHA, Nuno, O Tesouro das Imagens, Lisboa, Museu Ricardo do Espírito Santo Silva, 1996. - SALDANHA, Nuno, ARAUJO, Agostinho (ed.), Jean Pillement (1728-1808) e o Paisagismo em Portugal no Século XVIII, cat. exposição, Lisboa, FRESS, 1997 - SALDANHA, Nuno, “A Quinta Chaga de Cristo - A Basílica das Carmelitas Descalças do Coração de Jesus à Estrela”, In Monumentos, n.º 16, Lisboa, DGEMN, 2002. - SALDANHA, Nuno, “Arte popular, arte erudita e multiculturalidade. Influências, confluências e transculturalidade na Arte Portuguesa”, In Portugal Intercultural: Razão e Projecto, vol. III, Lisboa, CEPCEP/ACIDI, 2008. - SALDANHA, Nuno, “Doação da Basílica da Estrela a Nossa Senhora por D. Maria I por Joaquim Manuel da Rocha”, In Jornal Público, Lisboa, 27 Julho 2010. - SERRÃO, Vítor, “Elogio das teses imaculistas do Dr. Duns Scoto num painel setecentista de Joaquim Manuel da Rocha em São Miguel de Alfama”, Lisboa, (no prelo). - SOARES, Ernesto, Livro da Matrícula dos Discipulos Ordinários e Extraordinários da Aula Publica de Desenho, a qual principiou a ter exercício no 1.o de dezembro do anno de 1781, Lisboa, Edições Bíblion. 1935 - SOUZA, Wladimir Alves de, Guia dos Bens Tombados: Minas Gerais, Minas Gerais, Arquivo Museu Regional, 1984 - TABORDA, José da Cunha, “Memória dos mais famosos pintores portuguezes”, In Regras da arte da pintura: com breves reflexões criticas sobre os caracteres distinctivos de suas escolas: vidas e quadros dos seus mais célebres professores: escritas na lingua italiana por Micael Angelo Prunetti dedicadas as excellentissimo senhor Marquez e Borba / por José da Cunha Taborda, Lisboa, Impr. Regia, 1815. - TADEIA, Maria Helena R. Duarte, Contributos para o estudo da colecção de pintura do Museu Rainha Dona Leonor (Beja), (policop. Dissertação de Mestrado em Estudos de Património, Lisboa, Universidade Aberta, 2013. - XAVIER DA COSTA, Luís, As Belas Artes Plásticas em Portugal durante o Século XVIII, Lisboa, 1935.

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A FÁBRICA DE DESCASQUE DE ARROZ DA CASA CADAVAL: Património Industrial de Muge Jorge Custódio 1 Investigador integrado no Instituto de História Contemporânea (FCSH – UNL). Presidente da APAI – Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial. Este estudo encontra redigido sem a aplicação do novo acordo ortográfico, por opção consciente do autor. jmrcustodio@gmail.com

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A FÁBRICA DE DESCASQUE DE ARROZ DA CASA CADAVAL: Património Industrial de Muge

Uma chaminé em tijolo vermelho sempre me suscitou curiosidade quando circulava junto ao Palácio de Muge, pela antiga estrada nacional, entre Almeirim e Samora Correia. Sobressaía imponente do conjunto edificado das edificações fronteiras ao Palácio. Testemunhava um momento industrial da Casa do Cadaval. O palácio, localizado na margem esquerda do Rio Tejo, junto à Ribeira de Muge, é um solar que pertenceu aos duques, desde 1648, embora revele muitas construções mais recentes. Personifica ainda o poder de um antigo senhorio agrícola cujos vastos domínios e terrenos se estendiam pelos pauis, lezírias, valados, hortas, sesmarias, arneiros, charnecas e montados, onde o cereal, a vinha, o olival, o pinhal, a azinheira ou o sobreiro, para além das manadas de gado, constituíram desde o remoto passado a riqueza daquele representante da estirpe da nobreza rural portuguesa. O título nobiliárquico deveu-se a D. João IV, por lei de 26 de Abril de 1648. Na altura procurava reconhecer-se o papel que D. Nuno Álvares Pereira de Melo (1638-1727) tivera na restauração de Portugal, em 1640. Mas D. Nuno de Melo era filho de D. Francisco de Melo, 3.º marquês de Ferreira e os domínios de Muge conservaram-se na mesma casa, desde tempos imemoriais. Encontram-se referidos nas cartas de coutada de Santarém, de Almeirim e Muge. O Duque do Cadaval chegou a ter funções governativas no país, ainda na 2.ª metade do século XVII. Com o tempo o senhorio ampliou-se com novos domínios Entretanto também se alteraram os modos da sua exploração. Desde o liberalismo, muita coisa mudara, na situação da nobreza, na vida política e na organização económica portuguesa, que se reflectiu na transformação e na modernização das grandes propriedades agrícolas. A agricultura capitalizou-se e introduziram-nos nos horizontes de inovação tecnológica, tendente à valorização industrial dos produtos agrícolas. Certos produtos da grande lavoura, como o cereal, o vinho, o azeite, o tomate, adquiriram um valor industrial, por via das moagens de farinha, da destilação das aguardentes e do álcool, da produção de óleos alimentares ou industriais, do fabrico de concentrados. Essa era a tendência desde a 2.ª metade do século XIX. Chegara, entretanto, a vez do arroz, influindo na economia agrícola e na procura de um novo tipo de bem alimentar que a sociedade de consumo procurava pelo seu valor nutritivo. Nos vastos terrenos dos Duques do Cadaval, os arrozais faziam parte da economia agrária das vastas propriedades, pelo menos, desde os meados do século XIX. Estendiam-se pelos pauis e terrenos conquistados às águas estagnadas por obras hidráulicas recentes, sobretudo nas margens da Ribeira de Muge, entre o Tejo e a freguesia da Raposa, como a cartografia nos releva com a suficiente clareza. Ano após ano, sucediam as campanhas dos arrozais, com efeitos sociais na vida do Ribatejo, implicando contratação de operários agrícolas (sobretudo mulheres) e a mobilidade de grupos de trabalhadores exógenos à procura do ganha-pão. Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos Mas tudo foge aos nossos presentes objectivos. Interessa-nos a chaminé de tijolo, sinalizando uma fábrica da era industrial. Em 2008, finalmente, desfez-se o mistério. Em Muge o vapor fora energia até 1987. A chaminé destinava-se à expulsão dos gases de combustão de um gerador de uma central termoeléctrica, integrada numa moderna unidade fabril da Casa do Cadaval. Chamou-se-lhe Fábrica de Descasque de Arroz. Pertenceu, como tudo nestas herdades, a Olga e Graziela, administradoras da Casa do Cadaval. Instalada numa rua privativa, inaugurou em 1962, convivendo com outras instalações industriais: a adega, o lagar, a moagem de rações, a ensilagem do cereal, mostrando como a agricultura se concebera ao longo do século XX. Após o fim da 2.ª Guerra Mundial, o corporativismo e a política agrícola do Estado Novo abriram novos horizontes à agricultura do arroz e à sua industrialização. Desvendado aquele enigma, foi tempo da consciencialização do valor cultural que ali se conservada e estabelecer o significado do património industrial que a Casa do Cadaval protegera como testemunho daquela era, não apenas como arquitectura industrial, mas como exemplar singular e único dos valores culturais tecnológicos, científicos e técnicos integrados que permitem compreender o sítio fabril como um bem industrial a preservar e a valorizar.

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| Um património industrial de referência da Casa do Cadaval No Palácio de Muge conserva-se uma «jóia» do património industrial. O arquivo histórico da Casa do Cadaval e os valores arquitectónicos são por si bastante elucidativos do património histórico, artístico e arquivístico da Casa Cadaval. No interior preservam-se estações arqueológicas da pré-história portuguesa: os concheiros de Muge. Fronteiro ao Palácio, um portão de ferro franqueia as portas aos espaços da casa agrícola. Uma rua privativa, ordena os edifícios destinados às actividades essenciais da vida económica e social da empresa. Ali estão a loja dos produtos produzidos na grande herdade, entre os quais a Fábrica do Descasque de Arroz, em cujo tardoz permanece a chaminé industrial. Três pisos caracterizam a sua arquitectura industrial, racional e funcional, cujo recorte na paisagem obedece ao risco inicial que viabilizou a sua construção. Sem quaisquer laivos decorativos, apenas a fenestração ritmada e regular faz subentender a sua natureza fabril, cumprindo muitos dos requisitos que se impuseram na edificação industrial desde o tempo das fábricas mecanizadas de algodão e que se manteve como contentor-tipo das fábricas de moagem e de descasque, incluindo no tempo do betão armado. Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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A FÁBRICA DE DESCASQUE DE ARROZ DA CASA CADAVAL: Património Industrial de Muge

170 Fig. 1 - Fábrica de Descasque de Arroz da Casa do Cadaval. Muge. Fachada principal, virada à Rua Privativa. Fotografia do autor. 2016.

Quando entrei, pela primeira vez, no recinto fabril apercebi-me do recheio tecnológico ali se conservado e do que ele já significava. A sensação foi de espanto. Por que razão se perpetuou um bem industrial que caíra em desuso? Ali residia um testemunho da história da industrialização do arroz em Portugal. Uma fábrica completa que resistira ao vandalismo, ao abandono e à demolição, como sinal de um outro tempo histórico e de um momento em que Portugal recorrera à cultura tecnológica italiana para instalar uma fábrica modelo, mecanizada para o descasque do arroz. O conjunto revelava um momento histórico específico, envelhecido na década de 1990 face à revolução permanente da tecnologia orizícola internacional, como aliás de toda a tecnologia de ponta desde a Revolução Industrial até à Sociedade Pós-Industrial. Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos


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O nosso tempo é de outras realidades industriais associadas à terceira ou quarta vaga, como referem vários autores. Constrói-se, neste momento, a Tesla Gigafactory, perto de Sparks, Nevada (EUA), destinada ao futuro eléctrico da circulação automóvel, uma unidade fabril de 1000 metros de comprimento e 500 m2 de área, destinada à produção de baterias para automóveis eléctricos, à razão de 1,1 bateria/segundo e movida totalmente por fontes de energia renovável2. É mais uma fase da revolução industrial e da transformação do Homem, que Lewis Mumford estudou e preconizou (MUMFORD, 1956 e MUMFORD, 1967 e 1970). MUMFORD, 1956 e MUMFORD, 1967 e 1970). A fábrica do arroz de Muge fechara em 1987, mas o que ali se encontrava é ainda a última película do ciclo funcional da unidade industrial preconizada nos finais dos anos de 1950. Quase original… embora o seu ciclo funcional se balizasse pelos 25 anos! Como é que isso aconteceu?3. Quase intacta… embora sofresse melhorias, pelo decurso do tempo e mostrasse pequenas mudanças de equipamento que se introduziu nos processos de fabrico e na incorporação de máquinas de outras proveniências4. Mas encontra-se ali tudo, quase intocado: sistema motor, sistemas operadores, unidade mecanizada, inovação tecnológica, arquitectura fabril, construções de apoio integradas (embora menos poupadas), o antigo laboratório, enquanto sinal as indústrias neotécnicas (MUMFORD, 1977: 237). Uma raridade, como em geral são as singularidades do mundo fabril, onde o tempo flui com maior rapidez devido à constante inovação tecnológica e às vantagens económicas que capitaliza (CASANELLS, 2007: 63).

Cf. https://www.tesla.com/gigafactory e https://en.wikipedia.org/wiki/Gigafactory_1 [Consultado em 05-06-2016]. O encerramento de funções fabris, em 1987, não explica a sua conservação e manutenção posterior que pertencem ao foro familiar dos proprietários e administradores da Casa do Cadaval. A última gerente da fábrica, D. Teresa, filha da condessa D. Graziela Alvares Pereira de Melo Schönborn Wisentheid, informou-me acerca da sua ligação afectiva à unidade de descasque de arroz, dado que fora o seu primeiro trabalho profissional realizado na Casa do Cadaval. 4 O sistema tecnológico da Minghetti, que analisaremos mais adiante e que não sofrera alterações até 1977, confere um valor cultural industrial universal à Fábrica de Muge. As pequenas alterações são de pouca monta e tem que ver com o aproveitamento maior dos subprodutos, como transparece na documentação de 1980. Introduziram-se, pelo menos três máquinas diferentes: uma tarara sem marca, uma balança automática para arroz com casca, da firma alemã Librawerk, de Braunschweig e um despedrador de flutuação para limpeza do cereal (air flotation stoner), da firma canadiense Kipp Kelly. 2 3

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A FÁBRICA DE DESCASQUE DE ARROZ DA CASA CADAVAL: Património Industrial de Muge

Fig. 2 - Fábrica de Descasque de Arroz. Muge. Interior. Piso 1 – conjunto de máquinas branqueadoras do arroz descascado. Fotografia do autor. 2014.

Terminado o ciclo funcional, a fábrica de descasque assistiu à sua preservação pela Casa do Cadaval. Guardava memórias que convocavam a história da família, da empresa e dos operários de Muge, em tempo de vivências e de valores intangíveis do património imaterial. No fundo a fábrica do descasque do arroz é também uma parte da história de Muge desde os anos 60 do século XX até que se processou o despedimento colectivo (1986-1987)5. Encerrou por efeito da concorrência e da desindustrialização, associada às novas regras da regulação do sector arrozeiro e da Adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Na sua origem, a fábrica era um produto da valorização industrial dos produtos agrícolas da Casa do Cadaval, uma fábrica à boca da Herdade, tal como havia fábricas à boca das minas. Existia para valorizar o arroz das suas campanhas agrícolas. Sabemos hoje que a sua fundação foi uma coroa de glória, mas que a sua actividade revelou ter altos e baixos, sinal de empresas com existência própria e vivências próprias. Contudo, a sua persistência faz dela um verdadeiro objecto arqueológico-industrial, com o património técnico integrado, com a sua arquitectura conformada à natureza da sua função e mostrando

Com as alterações da política industrial, na sequência do processo de democratização do país, a fábrica de Muge viu-se na contingência de encerrar, conforme se pode ver no “Parecer de Ordem Conjuntural”, da autoria da administradora, Condessa Graziela Alvares Pereira de Melo Schönborn Wisentheid, datado de 15 de Abril de 1986 e ofício dirigido ao Secretário de Estado de Emprego e Formação Profissional, em 13 de Maio de 1986. In Processo de Despedimento Colectivo. Casa do Cadaval (CC) - Arquivo da Fábrica do Arroz.

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um dos últimos exemplares do uso da energia a vapor na história industrial portuguesa (19621987)6. Passados vinte e nove anos do seu encerramento, os cuidados com a antiga fábrica de descasque são já outros7. Que intenções se perfilam no horizonte? Espaço de visitas, local de documentários televisivos, espaço de espanto e de curiosidade cultural provam que os patamares de valor cultural se alteraram desde o seu encerramento. O seu “congelamento” como estrutura de funcionamento, durante quase três décadas – digamos assim –, conferiram-lhe um valor acrescentado, que já não é o mesmo daquele que esteve na origem do capital investido, da finalidade de indústria transformadora, da produção de bens alimentares consumíveis. Após o ciclo funcional, eis que um novo ciclo surge para revelar o que se preservou e o que significa, como bem cultural. Perpetua-se enquanto raridade, protege-se e potencia-se, como algo mais do que um amontoado de máquinas, de equipamentos e de memórias, não referente a um passado remoto, mas enquanto antiguidade recente, confrontando-se com a evolução tecnológica das modernas fábricas de descasque de arroz. Observando a unidade fabril preservada estamos na presença de um documento da história da industrialização do arroz, com as suas principais características técnicas, que conferem a todo o conjunto um lugar de excelência dos valores culturais, in situ, que pode ser assumido como uma valia do património cultural português8. Ali residem documentos e testemunhos históricos, técnicos, científicos, industriais que conferem àquela fábrica completa um lugar no universo dos bens patrimoniais portugueses, enquanto valores de futuro (CUSTÓDIO, 2015). Valores que lhe conferem a categoria de uma «jóia», um quase «tesouro» das indústrias desaparecidas. Algo que ganha um outro sentido económico, inerente à própria essência de património cultural, no qual o património industrial se insere9.

A energia a vapor (gerador e máquina motora) destinavam, como veremos neste estudo para a produção de energia eléctrica, constituindo o equipamento da central termoeléctrica da fábrica. 7 A Casa do Cadaval tem investido na conservação da Fábrica do Descasque de Arroz, como substituição da caixilharia das janelas e das vidraças, limpeza dos espaços interiores, tratamento das portas. 8 Estatuto, como ainda poucos exemplares do património industrial português têm conseguido alcançar. 9 De acordo com o conceito de valor económico da Carta de Bruxelas, 2009. Para a identificação dos conceitos e categorias de bens culturais ver a Lei 107/2001, de 8 de Setembro - Lei de Bases do Património Cultural. Quanto à teoria da salvaguarda, conservação e valorização do património industrial, cf. DOUET, 2012. 6

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A FÁBRICA DE DESCASQUE DE ARROZ DA CASA CADAVAL: Património Industrial de Muge

A valorização do património industrial em Portugal, embora remontando nas suas origens à década de 1980, requer exemplares deste tipo, embora orientados em função de uma gestão promissora. A Fábrica de Descasque de Arroz requer ainda de estudos de complementaridade, análises comparativas assentes na cultura industrial e técnica internacional. Os conceitos que integra fazem parte das ferramentas que carreamos para a sua salvaguarda, conservação e valorização. A lógica da sua afirmação social depende, no entanto, da empresa privada detentora da sua propriedade e do modo como entende a valorização e gestão do seu património cultural. Depende ainda das instituições públicas e da sociedade civil e da forma como potenciam os valores industriais do ponto de vista social e cultural. Salvaterra de Magos pode ser o centro de uma interessante Rota da Cultura do Arroz, que envolva pauis, arrozais, tradição e modernização agrícola, unidades fabris de secagem do arroz (como o Secador da Vala, da Casa do Infantado), antigas fábricas completas como a de Muge, uma ou outra unidade fabril em laboração, introduzindo-se a moderna perspectiva do turismo industrial e, porque não, colocando a atenção nos seus produtos de marca e na gastronomia das receitas culinárias do arroz. Da nossa parte, iremos carreamos alguns dados para a contextualização, a identificação e o conhecimento deste notável exemplo que sobreviveu à hecatombe da desindustrialização dos anos Oitenta do século XX. É disso que nos vamos ocupar.

| Arroz e arrozais em Portugal: algumas notas Não é tempo de estudar de forma completa a questão da cultura agrícola do arroz nos campos ribatejanos, que urge fazer com mais afinco e proficiência. As notas que devemos lançar para o papel são tão-somente esparsas para contextualizar o tema deste estudo. Quando a fábrica de descasque de arroz da Casa do Cadaval inicia a sua curta fase de laboração, entre 1962 e 1987, já a questão do cultivo do arroz tinha prosperado no país, em terras alagadiças e pauis que desde os meados do século XIX tinham sido preparadas pela engenharia hidráulica como que a fomentar o seu aproveitamento económico, tirando-as da improdutividade e do sezonismo. Os avanços tecnológicos do cultivo eram especialmente evidentes nas bacias hidrográficas do Tejo e do Sado. Por demonstrar fica ainda a introdução do arroz nas lezírias do Tejo, do Sado e do Mondego pelos árabes, eles que fizeram a ponte entre os campos de arrozais do Extremo Oriente e o Ocidente peninsular. O conhecimento das condições naturais (luz, água, calor) e os sistemas de cultivo implicaram o conhecimento e a combinação das condições naturais com as tecnologias artificiais de alagamento da cultura orizícola. Por um lado, não bastavam as cheias Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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daqueles rios portugueses para justificar o plantio, se bem que a água fosse uma condição essencial. Era necessário, abrir comportas para alagamento das áreas de cultivo e, por outro, exigia-se meios de drenagem das águas, para lhes subtrair os excessos, quando as condições de maturação do cereal impunham retirá-la de forma engenhosa, no tempo certo. Os pauis - foram durante séculos lugares de paludismo e de morte - e margens ribeirinhas de rios e afluentes, afectos às cheias periódicas foram, pois, os espaços artificialmente nivelados para a agricultura do arroz. Tal não significa que, noutras épocas históricas, também não fossem cultivados, com métodos empíricos, que não propiciavam o combate à terrível doença que dizimava populações das vizinhanças. Decretos do século XIV, testemunham que o arroz estava divulgado na Espanha e que se fazia o transplante das culturas de terrenos menos bons para outros mais sãos10. Um documento do século XVI, mostra que o arroz se afeiçoara ao regime hidráulico do rio Maior, nos campos da Asseca, junto a Santarém, plantado no Paul do Arroz, um topónimo existente em 1509, que entretanto se fixara no lugar (BEIRANTE, 1981: 112). Vitorino de Magalhães Godinho identificou o plantie do arroz nos pauis da Ota, Asseca e Muge antes de 1546, no reinado de D. João III (GODINHO, 1971: vol. 2 - 391). Tratava-se, no entanto, de um outra variedade de cereal, oriundo da Guiné, pois há muitos anos se conhecia o arroz levantino (BEIRANTE, 1981:112). Esta e outras variedades mais tradicionais persistiam no fundo cultural da agricultura peninsular, mas a sua expansão encontrara resistências, interditos régios, dificuldades técnicas que limitava a sua esfera de aceitação como cereal alternativo. Oliveira Marques nota a sua presença no Livro de Cozinha do século XVI, associado aos manjares de leite - os beilhós de arroz ou as tigeladas de arroz cozido com leite - indicação da sua pertença nas dietas alimentares de estratos sociais não populares (MARQUES, 1981: 13). Pelo menos neste século, o arroz tem os seus consumidores garantidos, num tempo em que o comércio internacional viabilizava a sua importação, sobre a qual também pouco se sabe. Cultura agrícola de pauis, a cultura do arroz devia estar confinada a locais bem específicos e a momentos mais críticos da economia agrícola. A relação entre irrigação dos campos, tecnologias hidráulicas e a secura do clima no território reflectiu-se na história da agricultura do arroz em Portugal. Segundo Sertório do Monte Pereira, a “melhor utilização da água é a pedra angular Cf. Projecto de Lei sobre Arrozaes apresentado pelo Ministro de Agricultura, Industria e Commercio ao Parlamento Italiano em sessão de 9 de Junho de 1862, Lisboa: Imprensa de J. G. de Sousa Neves, 1863. Ver preâmbulo histórico. Através deste projecto italiano, traduzido e publicado em Portugal, pode entender-se o esforço das autoridades portuguesas na propaganda dos métodos de cultura do arroz, então em desenvolvimento na Itália.

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da agricultura portuguesa” (PEREIRA, 1908: 114). A água, a insuficiente tecnologia e organização agrárias, o crédito bancário eram os marcos estruturais e o sinal do atraso do país ainda nos inícios do século XX, suscitando análises comparativas com o que se passava na Itália (Lombardia e Toscana), que segundo os agrónomos e os serviços técnicos oficiais, marcava o fosso existente entre as duas economias agrícolas (PEREIRA, 1908: 126). Em Portugal, depois da Revolução Liberal, criaram-se as condições para essas alterações da agronomia moderna, num ritmo assaz lento, incomodativo e socialmente pouco vantajoso. Contrataram-se agrónomos italianos, como aconteceu na Granja do Calhariz da Arrábida, para resolver as questões da irrigação e dos arrozais da Apostiça (Casa Palmela), que foram melhorados por Alexandre Herculano, quando ali veio a investir o seu capital para uma mais eficaz exploração11. Entre os meados do século XVIII e 1834, o arroz parece ter voltado aos campos ribatejanos e do Sado, embora se conheçam algumas interdições e decisões régias que o anatematizaram, retomando lógicas do passado (medieval e do Antigo Regime). Armando de Castro, devido à falta de documentação, chega a afirmar que, no início do século XIX, “a produção de arroz voltara praticamente a desaparecer, para o que devia ter concorrido a desconfiança e os receios públicos devido às condições anti sanitárias em que se estabeleciam os arrozais, aproveitando águas estagnadas”. Este facto mostrava que até ao final do século XIX, o arroz não desempenhava qualquer “papel activo na actividade económica interna” (CASTRO, 1971: III, 243). Esta análise, todavia, pode não corresponder à realidade, quer pelo facto de existir uma tradição de cultivo de sementes de arroz “rapado” e da “terra”, autóctones ou persistentes quanto à lavoura, desde remotas eras, e também por haver notícia de hábitos alimentares à base de arroz que, porventura, podem indiciar zonas de cultivos nos séculos XV e XVI, como já se referiu, que foram persistindo com lógicas históricas, séries documentais e cartografia ainda não dominados pelos historiadores.

As referências a arrozais e arroz surgem com frequência na obra económica e na epistolografia do historiador liberal. Na polémica que teve com Paulo de Moraes, conhecida pela designação “A Emigração”, 1873-1875, refere conhecer pela própria experiência “ salários capitalizados”, que também viu acontecer nos “enxugos de ribeiras paludosas e em extensas lavras de arroz, entre as baías do Tejo e do Sado”, por via de “mancebos solteiros, no vigor da idade, que vinham durante meses trocar a saúde e alguns anos de vida num clima insalubre por poucas moedas de economias, obtidas mais pelas pequenas empreitadas do que pelo salário” (HERCULANO, 1983: 106). Ver também, CUSTÓDIO, Jorge (2005), “A «Felicidade pela Agricultura» em Alexandre Herculano”. In Alexandre Herculano: um Pensamento Poliédrico. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, pp. 99-150.

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Magos Diversos sinais tecnológicos mostram a aceitação do arroz no mercado, entre os quais os velhos12 e os novos engenhos de descasque a vapor, o primeiro dos quais foi instalado no Bom Sucesso, em Lisboa, em 1821, marcando um nova fase da indústria de preparação deste cereal13. Outro ainda na Apostiça, de duas moendas, com o qual Herculano laborou (CUSTÓDIO, 2005: 139). Note-se que quando se estuda os arrozais portugueses, a maior parte dos autores preocupam-se com as tecnologias agrícolas, mas muito pouco com a produção industrial que garantia o arroz como alimento (limpeza do cereal, secagem, descasque, separação dos produtos e ultimação das variedades). Onde estão os moinhos de descasque tradicionais? Quem se debruçou sobre os engenhos de descasque a vapor? E o que se sabe sobre os engenhos de secagem ou drenagem dos pauis, entre os quais os moinhos de vento da Barroca de Alva14?

177 Fig. 3 - Máquina para elevação de água destinada à drenagem dos campos da Asseca, Santarém. Desenho de João Fagundo da Silva (SILVA, 1876).

O estudo dos moinhos para descasque de arroz tradicionais constitui praticamente um tema virgem na etnologia e na molinologia portuguesa. Veja-se o caso do complexo de moinhos da ribeira de Ul, Oliveira de Azeméis onde houve uma especialização no descasque de arroz, cuja tecnologia era diferenciada dos moinhos de farinação de trigo, centeio ou milho. Ver http://www.bestanca.com/2014/caminhada-em-ul-oliveira-de-azemeis-rota-dos-moleiros/ . 13 Sobre este engenho de descasque inventado por António Julião da Costa, introduzido no Brasil e em Portugal, entre 1817 e 1820, cf. SANTANA, 1984: 294. Sobre a relação entre este engenho e introdução da energia a vapor em Portugal, em termos de cronologia absoluta, cf. CUSTÓDIO, 1994: 459-460. 14 Moinhos eólicos de secagem de pauis foram construídos na Barroca de Alva, no século XIX, por exemplo (CUSTÓDIO, 1983: [64-66]). Fagundes da Silva concebeu um engenho de drenagem para os campos da Asseca. Cf. SILVA, João Fagundo da (1897), nos Estudos para a Protecção dos Campos Marginais do Tejo e Navegabilidade do mesmo Rio. O autor propõe a drenagem (Fig. 4). 12

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A regularização do rio Tejo veio fomentar o cultivo do arroz. Fazem-se estudos para a identificação dos terrenos adequados à cultura (1859) e limitam-se os alvarás de licença em campos não apropriados. Inicia-se, no princípio do século XX, uma embrionária coordenação económica, com base na regulamentação publicada durante o século XIX e XX (GONÇALVES & MARTINS, 1998: 12). Estimava-se que a agricultura moderna do arroz nascera no Casal do Outeiro, em Ulme, no concelho da Chamusca, por iniciativa do lavrador Manuel de Oliveira15. O distrito de Santarém teria em lavoura de arroz 2500 geiras16, pertencendo a Ulme dois quintos desta área17. Estava em causa ainda o aperfeiçoamento das operações do descasque, que aquele lavrador resolvera inovar. O valor dos arrozais e dos seus produtos a nível económico cresce na época contemporânea, justificando as medidas alfandegárias promovidas desde o tempo de Passos Manuel ou a promulgação legislativa, com leis publicadas desde os meados do século XIX. Do ponto de vista estatístico, a região do país com maior número de zonas de orizicultura é o Ribatejo, a partir de 1920-1924 (CASTRO: 1971, 245). Outra tendência é a superação da importação (4 % apenas, em 1934-1939) devido ao crescimento das áreas de cultivo e produção interna que, durante o Estado Novo, justifica o boom das grandes unidades industriais de descasque18, sobretudo nos distritos de Santarém, Lisboa e Setúbal. Como cereal dominado pela agricultura e indústria, o arroz torna-se um dos mais emblemáticos produtos agrícolas do país. Tendo por base as notícias dadas por António Cândido Palhoto, Da Influência das Searas d’Arroz na Agricultura e na Salubridade Pública, Lisboa: Imprensa Nacional, 1852. A visão deste autor é a de um Delegado de Saúde Pública do Distrito de Santarém, médico dos partidos da Câmara Municipal da Chamusca e do Hospital da Misericórdia. Esta notícia tem induzido a ideia que teria sido nos campos da Chamusca que se deu uma primeira etapa do seu desenvolvimento orizícola moderno. No estado actual dos nossos conhecimentos ainda é cedo para tirar quaisquer conclusões. Cf. NETO, Álvaro F. do Amaral (1936), “Subsídio para o estudo do início do aproveitamento agrícola do solo Chamusquense e de algumas das suas produções mais notáveis”. Boletim da Junta Geral do Distrito de Santarém, n.º 43. Lisboa: Junta Geral de Distrito pp. 247-252. 16 Geira ou Jeira – medida agrária pré sistema decimal, de origem medieval, equivalente a uma superfície que podia ser semeada num dia de trabalho ou lavrada por uma junta de bois. Andava relacionada com uma obrigação servil quer de servos da gleba ou de colonos livres. 17 Dados muito empíricos, mas bastante interessantes, como aquele onde refere que um alqueire de semente no concelho de Salvaterra garantia ao lavrador 240 alqueires de produção. 18 Em 1947 encontram-se registadas 15 fábricas de preparação, secagem e descasque de arroz no Ribatejo (distritos de Santarém e concelhos de Vila Franca de Xira e Ponte de Sôr), sendo 3 em Almeirim, 1 no Cartaxo, 1 na Chamusca, 2 em Coruche, 1 em Ponte de Sôr, 1 em Salvaterra de Magos, 1 em Santarém, 5 em Vila Franca de Xira. Em 1945, ocupava já, o primeiro lugar em termos de instalações de indústria de transformação deste cereal, embora na produção fabril estivesse em quarto lugar e, quanto à capacidade de laboração, em quinto - cf. “O Ribatejo sob o aspecto industrial”. In O II Congresso Ribatejano. Lisboa: Casa do Ribatejo, 1948, pp. 539-576. 15

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De acordo com Francisco Câncio, o Ribatejo orizícola inicia-se no tempo de D. José, mas tudo se baseia em escassas informações não compatíveis com aquilo que era já uma evidência e uma propaganda económica desde 1935, visível na revista Vida Ribatejana. Aliás este autor tão prolixo nos apontamentos histórico-económicos nem uma página lhe dedica nos seus Subsídios para a História Económica do Ribatejo, fazendo depender o seu incremento das obras hidráulicas do Tejo, projectadas ou em curso, destinadas a implementar métodos mais eficazes de irrigação (CÂNCIO, 1944: 355-356). A regulamentação e fiscalização das culturas determinadas pela lei são acompanhadas, durante a 1.ª República, por medidas de divulgação de novas sementes selecionadas e exógenas, da introdução de tecnologias mais eficazes de irrigação e drenagem dos campos, usando-se por exemplo locomóveis agrícolas para a bombagem das águas dos pauis ou para a rega dos arrozais, de que há alguma documentação fotográfica e máquinas preservadas19. As variedaFig. 4 - Publicidade ao valor nutritivo do arroz. Edição do Grémio des de arroz eram o Chinês, o Allorio, o Precoce dos Industriais de Descasque de Arroz. In Vida Ribatejana. 1948. 6, além do Maratelli (em retracção, em 1939), 20 Nero Vialoni e o Ardisoni (em expansão) . Mas a experimentação das variedades orizícolas era uma constante. Na década de 1960, quando inaugura a Fábrica de Descasque da Casa Cadaval, as variedades de arroz que foram preferidas pela nova empresa eram Balilla, Ribe, Allorio, Gigante, Carolino. Destas só a variedade Allorio se encontrava no lote de sementes cultivadas em 1939.

Como a locomóvel inglesa, fabricada pela metalomecânica Davey, Paxman & C.º, Ltd, de Colchester, máquina exposta no Núcleo Agrícola do Museu Municipal de Benavente (Cf. GONÇALVES & MARTINS, 2009: 65) 20 Cf. ANTUNES JÚNIOR, 1939: 179. 19

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As variedades de arroz descascadas em Muge, em 1981-1986, eram além das referidas ainda Dzingo, Ponta Rubra, Stirpe 136, Safari, Uruguaio, Exótico e Gigante e Carolino estrangeiros testemunhando não apenas a produção interna, mas a importação de arroz em casca, para um funcionamento normal por ano da unidade fabril. Durante o Estado Novo são criados a Comissão Reguladora do Comércio do Arroz e o Grémio dos Industriais Descascadores de Arroz, na conjuntura do corporativismo português (19331934)21. Estas duas instituições são essenciais na história do arroz em Portugal, no período entre a década de 1930 e 1974. Por um lado, para observar a evolução da cultura agrícola, avaliar as campanhas deste cereal por ano, perceber o que se passou a nível do equipamento de ensilagem, também em fase de mutação e, por outro, para estudar a política de condicionamento industrial e suas razões, permitindo compreender o sentido da industrialização do arroz e a génese de novas fábricas como a sua modernização. Os tempos eram outros.

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Fonte: Vida Ribatejana, Vila Franca de Xira, 1942

Até ao Estado Novo, deveu-se à Associação Central da Agricultura Portuguesa, nascida na época liberal, o combate pelo arroz, se bem que não tivesse sido uma voz tão escutada como merecia sobre a problemática das vantagens deste cereal.

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Na Campanha de 1941-1942, que serve de exemplo, o grosso da produção destinada ao descasque encontrava-se em quatro distritos onde o cultivo dispunha de melhores terrenos de lavra, como pauis e acrescidos: Coimbra, Lisboa, Santarém e Setúbal, sobressaindo Santarém, onde Coruche, Benavente e Salvaterra de Magos detinham 77% da produção distrital. O Grémio adquiria o arroz por campanha e depositava a produção nos seus celeiros, comprando aos grandes e pequenos produtores. Na Campanha de 1941-1942, ano de guerra na Europa, os pequenos produtores entregaram ao grémio do descasque mais 12.000 t. de arroz, isto é, 14,7% do cereal. O maior volume pertencia aos médios e grandes proprietários onde se incluía a Casa do Cadaval. Entre 1933 e 1942, o arroz crescera de 16.000 para 32.000 t., mais de 50%. A análise da produção na bacia hidrográfica do Tejo mostra valores mais elevados, devido aos arrozais incluídos no cômputo da produção do Vale do Sorraia (terrenos pertencentes ao concelho de Ponte de Sor, no distrito de Portalegre). As lezírias grandes da margem esquerda e direita do Tejo, pertencentes ao concelho ribatejano de Vila Franca de Xira (distrito de Lisboa) também pesavam nos valores regionais. Novas tecnologias mecânicas destinadas ao ciclo da debulha (utilização de locomóveis, locomotoras ou tractores) ou de secagem do arroz por via artificial, implementadas nos três primeiros quartéis do século XX, mostram a par das técnicas mais modernizadas da higienização dos campos de lavoura, uma afirmação dos hábitos de consumo passando o arroz a caracterizar uma das tendências da dieta alimentar dos meados portuguesa do século XX, sobretudo entre 1930 e 1960, um fenómeno contemporâneo do auge da orizicultura na Itália. As obras de hidráulica agrícola do Paul de Magos, das Lezírias de Vila Franca ou do Vale do Sorraia das décadas de 1940-1950 abriram novas perspectivas à produção de arroz na região ribatejana, para além de Vale do Sado e da Várzea de Campilhos. Atingia-se um novo patamar na sua economia, com a diminuição das epidemias, na medida em que a tecnologia agrária evoluíra. A instalação das fábricas mais modernas na bacia hidrográfica do Tejo e do Sado datam deste período, algumas fundadas ainda na década de 1920. O surto industrial do arroz na Itália veio a influir no avanço italiano dos sistemas tecnológicos do tratamento, secagem, descasque e ultimação e a fomentar a inovação nos moinhos de descasque ou na mecanização fabril. Tratava-se da afirmação do arroz como indústria base de origem agrícola, tal como na mesma época sucedera na indústria dos concentrados de tomate. O arroz prestava-se a mostrar a diversidade de variedades, todas elas com influência na degustação culinária. O arroz estava na moda antes da 2.ª Grande Guerra e manteve-se depois com a paz. O consumo crescia, mostrando a eficácia da nova indústria alimentar no despontar da Sociedade de Consumo22. 22

O arroz tornou-se tema do neo-realismo, no cinema e na literatura.

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Entre 1930 e 1960 existiam importantes fábricas de descasque de arroz no Ribatejo. Arrolemos algumas das mais significativas. Entre as de maior prestígio encontrava-se as de Lopes, Ferreiras & C.ª, Ld.ª e de Francisco Rodrigues Maneira & Herdeiros (esta fundada em 1932), em Vila Franca de Xira. Em Coruche tinhamse instalado as fábricas do Monte da Barca, de Mário Augusto de Mendonça e a de Branco Silva & Simões, Ld.ª23. Outra encontrava-se estabelecida na Ponte do Reguengo, no Cartaxo. Todas estas unidades utilizavam como motor industrial a electricidade, embora a energia eléctrica fosse gerada por motores a vapor ou a diesel. Na Sociedade do Ribatejo, Ld.ª (Cartaxo) a produção de energia era gerada por motor a diesel. Em Coruche, o gerador era o motor a vapor que, oriundo da 1.ª fase da industrialização, continuava a mostrar persistência e vantagens, usando a casca do arroz como combustível. A firma vila-franquense de Lopes, Ferreiras & C.ª, Ld.ª, em conjugação com a Sociedade Industrial de Vila Franca, Ld.ª dispunha de uma central eléctrica que produzia 1 milhão e quinhentos mil kilowats por ano. Para além do consumo dos equipamentos operadores forneceu iluminação pública à vila e às freguesias do concelho. Em Vila França de Xira, a moagem e o descasque de arroz, eram edifícios modernistas, modelares, construídos em betão armado,

com sistemas de ventilação e iluminação dos mais avançados, obedecendo a uma organização que se afirmara no contexto do condicionamento industrial, edifício de 4 pisos, onde os engenhos de descasque e a restante maquinaria se encontravam interligados por um sistema mecanizado que evoluíra imenso desde que, nos inícios do século XIX, se introduzira as moagens de trigo de Oliver Evans, um pioneiro da Revolução Industrial, nos EUA. Três anos depois da inauguração da Fábrica da Casa do Cavadal, em 1965, para além das fábricas de Vila Franca e do Cartaxo, existiam ainda a Companhia Agrícola Barrozinha em Alcácer do Sal, a Companhia Arrozeira Mercantil (Aveiro), a Cooperativa Transformação Produtos Agrícolas do Vale do Sorraia (Coruche) e Manuel da Silva Torrado (Irmãos), no concelho de Loures.

Sobre estas últimas, cf. SEQUEIRA, João e CUSTÓDIO (2016), Jorge, “A Energia a Vapor no Concelho de Coruche”, Núcleo Agrícola de Coruche (no prelo).

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Fig. 5 - Conjunto das fábricas de moagem e descasque de arroz da Sociedade Industrial de Vila Franca, Ld.ª e de Lopes, Ferreiras & C.ª, Ld.ª, em Vila Franca de Xira. In Vida Ribatejana, 1947.

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| Um pouco de História… Génese e evolução da unidade fabril de Muge. O casamento entre Graziela Álvares Pereira de Melo (1929-1998), condessa de Schönborn Wisentheid e o Conde Karl F. Graf von Schönborn Wisentheid (1916-1998), celebrado em Muge a 14 de Junho de 1953, permitiu introduzir nas propriedades da Casa do Cadaval, uma mudança nas tradições agrícolas das vastas propriedades ribatejanas que Graziela detinha por herança familiar. O Conde era um vitivinicultor alemão do Reno e do Meno e resolveu intervir na organização vinícola da quinta. A sua mulher, descendente da marquesa Olga Nicolis dei Conti de Robilant (1900-1996), era uma mulher de cultura italiana, proporcionada pela origem piemenotesa da mãe, natural de Turim24. Esta simbiose de sensibilidades, um conhecimento aprofundado da economia do pós-guerra e do rumo que tomava a Europa das Comunidades permitiram-lhes introduzir inovações nos cerca de 5000 hectares da Casa do Cadaval, a dimensão agrária resultante da divisão dos 13000 hectares existentes à data de 194825. Do acordo familiar ocorrido em 1965, dos vastos domínios dos Duques de Cadaval existentes em várias partes do país, ficaram para a marquesa Olga e sua filha Graziela as propriedades de Muge, na totalidade os cerca de 5000 hectares, nos quais se encontravam os terrenos agrícolas de produção de arroz, uma dimensão mais apropriada para os objectivos agrícolas que ainda hoje permanecem como matriz da produção do Cadaval, nomeadamente o vinho. Naquele tempo, uma das grandes apostas da Casa Cadaval na década de 1950, para além do vinho, era o arroz, assente nas conquistas tecnológicas alcançadas desde 1930, tanto na lavoura, como na completa mecanização, um dos mais interessantes resultados das tentativas de industrialização agrícola, preconizada pelos industrialistas do Estado Novo, assente no conceito de indústrias-base, no qual se incluíam os bens agrícolas produzidos em larga escala, como eram o tomate e o arroz. O conhecimento dos factores da industrialização agrícola do Norte da Itália e a nova conjuntura industrial portuguesa dos anos de 1950 permitiram que a tecnologia agrária e fabril italiana em conjugação com a cultura europeia dos proprietários da Casa do Cadaval contribuíssem para a ideia Sobre este importante ramo familiar da Casa Cadaval, para além da informação obtida junto da família, gentileza de D. Teresa Schönborn, filha do conde Karl e da condessa Graziela, cf. http://www.thepeerage.com/p9286.htm#i92857 e http://geneall.net/pt/titulo/290/duques-de-cadaval/ . Aproveitamos para agradecer a colaboração do Sr. Manuel Nunes, funcionário da empresa, o apoio que nos concedeu durante a investigação. 25 Eram 5000 hectares só entre Muge e Salvaterra de Magos (século XIX). Cf. “Muge” in Vida Ribatejana, Edição Especial, Julho-Agosto, 1948. O administrador nesta data era Armindo Filipe Biscaia de Jesus e “Freguesia de Muge”, in Junta de Província do Ribatejo, vol. 1, Lisboa, 1940, pp. 507-510. 24

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185 Fig. 6 - Os arrozais da Ribeira de Muge, entre o Tejo e Rapoza de Baixo. Pormenor da Planta da Propriedade em Muge pertencente à Ex.ma Casa do Cadaval. Esc.: 1:15.000. Levantada pelo Conductor de Obras Públicas, António Pedro Ferreira. 29 de Junho de 1910 (ou 1919). Desenho de M. Tud[?]. Propriedade de Casa do Cadaval.

e a instalação de uma fábrica moderna e completa de descasque de arroz em Muge, entre 1956 e 1962, facto que se concretizou em seis anos. A decisão da instalação ocorreu – segundo a documentação consultada – a partir de 1957. A vontade de alterar o rumo dos negócios do arroz da Casa do Cadaval, assente apenas na produção do cereal em bruto, levou o Conde Schönborn e o administrador em actividade, Lúcio Martins de Sousa a procederem à consulta de uma empresa italiana especializada no ramo. Esta consulta pressupõe contactos, por ventura directos, que provavelmente retomam a meados de 1957. Em resposta ao pedido de consulta a firma italiana P. Minghetti apresentou em 28 de Outubro de 1957, duas propostas de instalação de uma fábrica moderna de arroz limpo, para 2500 kg/hora (para dois pisos) e um secador contínuo e automático, também para arroz limpo, para 100 t./dia ou para 50t/dia. As propostas são acompanhadas de orçamentos, desenhos, catálogos técnicos e fotos, estas de uma instalação montada por esta firma. Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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O orçamento proposto para a fábrica foi de 15.955.000 liras, o equivalente em escudos de 749.885$00. Esta instalação requeria uma força motriz de 100 a 105 HP (horse power26), desde que envolvesse o branqueamento do arroz e a exportação da fábrica compreendia 140 m3 de caixas. Quanto aos secadores, o mais completo ficava em 11.320.000 liras e o mais pequeno em 6.850.000 liras. As instalações implicavam um preço de montagem de um técnico italiano da firma italiana, cujo preço estava estimado a 700 liras/hora27. A correspondência trocada revela, durante um ano, ainda uma indefinição quanto à natureza da instalação e quanto ao tipo secador de arroz, cuja patente pertencia àquela firma de Vercelli. O secador de maior capacidade era constituído por seis corpos de secagem de três andares cada e respectivos aparelhos elevadores do cereal, aparelhos de limpeza, termógrafo indicador de tempo e aparelho de queima para o novo combustível a utilizar na caldeira. No Arquivo da Casa do Cadaval encontrámos o desenho exemplificativo destinado à tonelagem máxima de secagem do arroz, mas não o da fábrica para dois andares ou o desenho exemplificativo da fábrica mais completa, que foi enviado com os orçamentos. As conversações desde Outubro de 1957 e Outubro de 1958, que envolveram a representante da firma de Vercelli em Portugal, a Sociedade Luso-Italiana, Ld.ª, deram origem à escolha de uma instalação fabril para 2500 kg/hora. A resposta teve em consideração os requisitos exigidos pelas autoridades portuguesas, nomeadamente dos organismos que superintendiam no descasque do arroz. Esta instalação foi acompanhada do diagrama de fabrico e respectivo desenho (667-R) e da proposta de orçamento respectiva, destinada a edifício de 2 pisos (R/C e 1.º andar), no valor de 1.220.000$0028. Medida inglesa para C/V (cavalos vapor) em que 1 HP equivale a 0, 8457 kW, enquanto 1 C/V equivale a 0,735499 kW. 1 C/V é uma unidade de força de trabalho que se baseia no quilogrâmetro (uma unidade de peso de 1 kg, elevado à altura de 1 m, durante um segundo). 27 Cf. Os ofícios enviados pela firma P. Minghetti, datados respectivamente de 28 de Outubro (com dois anexos) e de 23 de Novembro de 1957 (para que fosse confirmada a remessa enviada). O primeiro contém as duas opções de secadores (proposta n.º 1498) e o segundo da fábrica (proposta n.º 1510). P. Minghetti, o proprietário da construtora metálica italiana, informa também dispor de dois outros tipos de fábrica, a primeira para 3 andares e o segundo aquilo que se chamava então fábrica combinada, com máquinas completamente montadas num rés-do-chão, em estrutura metálica correspondente à fábrica completa. Arquivo da Casa do Cadaval (ACC) – Processo de Instalação da Fábrica de Descasque. Nestes documentos encontram-se também consultas à firma alemã MIAG, que assumira o legado da empresa Bühler, de Braunschwig, empresa que se especializara no fabrico de maquinaria e fábricas de moagem austro-húngaras. A escolha da empresa italiana mostra que o Conde, apesar de alemão, se inclinou para as inovações tecnológicas italianas deste tipo de estruturas fabris. 28 Ofício n.º 8013, da Sociedade Industrial Luso-Italiana dirigido a Lúcio Martins de Sousa, datado de 24 de Outubro de 1958 e acompanhado pela Proposta n.º 1192 26

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Magos Embora, a instalação resultasse de acordos anteriores que não se encontraram na documentação, incluindo o desenho-modelo n.º 667-R e se bem que esta instalação será objecto de compra por parte da Casa do Cadaval, em meados do ano seguinte, as dificuldades de decisão foram gradualmente se impondo tanto ao Conde, na altura na Alemanha e ao seu administrador. Estavam em causa outras soluções técnicas, como o transporte pneumático da matéria-prima, produtos e subprodutos, assim como a assistência técnica. Também ainda nada se decidira quanto às máquinas a vapor semifixas, que viriam da Alemanha, colocando-se duas possibilidades quanto ao preço, por ventura uma usada e outra nova. Os primeiros problemas, determinaram a deslocação de Lúcio Martins de Sousa a Vercelli e novas conversações com P. Minghetti. Lúcio de Sousa, aproveitou a estadia no estrangeiro para visitar outros fornecedores estrangeiros, noutros locais, conforme transmitiu ao Conde a 21 de Dezembro de 1958. Este procurava na Alemanha, o motor.

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Lúcio Martins de Sousa Muge TEF. 4 Muge, 21 de Dezembro de 1958 Ex.mos Condes de Schonborn Alemanha Fazemos votos sinceros para que V. as Ex. as e Ex. ma Familia estejam bem, a Ex. ma Marqueza e todos aqui estão bem graças a Deus. Depois de ter saído de Vercelli ainda visitei algumas fabricas a fim de estudar a possibilidade de aplicação do transporte pneumático na fabrica do descasque de arroz, tendo ficado incubido (sic) de saber do Minghetti se aceitaria a colaboração dum engenheiro italiano especializado neste ramo. Junto duas cartas, para no caso de ser possível, o Snr. Conde dar uma saltada para ver as maquinas a vapor, semifixas. A que mais nos interessa sera a mais nova, portanto a mais cara. Por Muge e Sintra, tudo bem, apesar de termos neste momento uma cheia razoavel no Vale do Tejo, com as consequencias habituais. Estiveram hontem, sábado, em Muge os congressistas de arqueologia, de visita aos concheiros, a quem a Ex.ma Senhora Marqueza, lhes ofereceu um almoço, servido pelo Café Ribatejano, e tudo correu bem. Já temos um novo guarda livros, rapaz do Porto, que me parece bem, o tempo dirá. Junto também documentos da Celulose a fim de V.as Ex.as tomarem resolução que julguem conveniente. Com os nossos respeitosos cumprimentos. Desejamos a V.as Ex.as e Ex.ma Familia um Bom Natal e Ano Novo cheio de prosperidades. Sem mais, até breve, votos de boa viagem, cumprimentos de minha mulher e filhos, subscrevo-me com muita estima e consideração. De V. as Ex. as Muito grato e dedicado Lucio Martins Sousa

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A FÁBRICA DE DESCASQUE DE ARROZ DA CASA CADAVAL: Património Industrial de Muge

A opção da Casa do Cadaval não foi tomada depois da visita do Conde Schönborn29 e Lúcio Martins de Sousa a Vercelli, em fins de 1958, e do próprio director da empresa italiana, P. Minghetti, vir a Muge, uns tempos antes30. Os representantes da firma italiana em Portugal submeteram, na sequência destas conversações, orçamentos referentes a dois novos projectos, numerados respectivamente por 676-R e 678-R com respectivos anexos. O que passou a distinguir estes novos projectos de fábricas completas foi a capacidade de laboração horária, sendo o primeiro para 2.500 kg/hora (equivalente ao que fora equacionado em Outubro de 1958) e para 3.500 kg/hora de arroz descascado. O último era o de maior escala para três pisos, mais um para as transmissões. Em Muge, onde se tinha deslocado o engenheiro Minghetti, teria havido uma discussão técnica com Lúcio de Sousa, sob a orientação e as condições em que a fábrica devia laborar. Dessa discussão resultara o primeiro orçamento, datado de 24 de Outubro de 1958, cujos projectos e novos orçamentos de 24 de Janeiro, vinham agora modificar31. Em 5 de Fevereiro de 1959 discutia-se também a questão do secador, aquele que seria mais adequado à fábrica completa que se pretendia adquirir. Em 1957, os projectos n.º 643-A e n.º 643-B, datados de 30 de Novembro de 1956 eram genéricos (Fig. 7)32. O primeiro constitui a versão mais antiga da proposta n.º 1498, datada de 28 de Outubro de 1957. Seriam duas versões técnicas, de acordo com a quantidade de arroz seco a obter, conforme se refere nos ofícios de Outubro e Novembro de 1957, de seis ou três colunas verticais de secagem. O segundo desenho (685-A) um pouco mais tardio, a que a correspondência entre empresas se refere (datado de 3-2-1959), referia-se a um secador de colunas ditas de “chicanes”, diferente dos propostos anteriormente que eram contínuos e automáticos (Fig. 8).

Existem referências na correspondência da deslocação do Conde à Itália, tanto nesta data, como noutra. Ofício da empresa representante, Sociedade Luso-Italiana, à Administração da Casa Cadaval, datada de de 24 de Janeiro de 1959. Neste ofício faz-se referência ao primeiro orçamento de 24-10-1958. ACC - Processo da Fábrica de Descasque. 31 Orçamentos n.º 11928 (24-10-1958), n.ºs 31.287 (de substituição) e 31.290 (alternativa), estes últimos referentes aos indicados na correspondência de que existem os desenhos, publicados neste estudo. Cf. Anexos do ofício citado. ACC - Proc.º da Fábrica. 32 No Arquivo da Casa do Cadaval só foi encontrado aquele que se publica. 29 30

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Fig. 7 - Projecto do secador artificial de arroz de funcionamento contínuo de seis corpos, patente Minghetti, para polimento de arroz seco. 1000kg/hora, para a Casa Cadaval, Muge. Esc.: 1:100. Planta, corte longitudinal e corte transversal. P. Minghetti, Construção Mecânica. Vercelli, Itália. Des. 643-A. 30-11-1956. Original colorido sobre desenho reproduzido. ACC - Proc.º Fábrica do Arroz

Fig. 8 - Projecto do secador artificial de arroz tipo de colunas à Chicanes. Capacidade de 1000kg/hora, para a Casa Cadaval. Esc.: 1:100. Planta, corte longitudinal e corte transversal. P. Minghetti, Construção Mecânica. Vercelli, Itália. Des. 685-A. 3-21959. Original colorido sobre desenho reproduzido. ACC - Proc.º Fábrica do Arroz

Para a Casa o Cadaval esta questão não era simples, pois a secagem que poderia ser desenvolvida por dia, dependia da produção de arroz nas campanhas, da capacidade de laboração contratada para a nova fábrica e da tecnologia mais moderna que pudesse existir. Havia ainda um secador de patente Minghetti, com coluna em zig-zag para 100 t/dia, mas com maior redução de humidade dos que as propostas anteriores (Fig. 9). Minghetti fornecia-se também as características dos motores eléctricos destinados a todo o conjunto fabril e ao novo tipo de secador. Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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Fig. 9 - Nova coluna para secador de tipo zig-zag. Esc.: 1:25. Corte de um elemento ou coluna do secador artificial. P. Minghetti, Construção Mecânica. Vercelli, Itália. Des. 2148. Data: 4-2-1959. Original colorido sobre base de desenho reproduzido. ACC Proc.º Fábrica do Arroz

Também em 18 de Março de 1959, depois de nova consulta para o fornecimento de máquinas de construção metálica (em vez de madeira), a empresa italiana informou que “não ofereceu, de princípio, máquinas metálicas, porque, não existindo entre as duas construções razões de carácter técnico” que influenciassem o rendimento, havia, contudo, entre elas diferenças de preço, isto é, mais 283.570$00 para a fábrica de 2500 kg/hora ou mais 449.375$00 para a de maior produção. A Minghetti havia também desaconselhado o transporte pneumático dos subprodutos, com a excepção das farinhas por serem quantidades relevantes (cerca de 10 tipos), com estrutura diferente umas das outras, embora em quantidades individuais de baixa percentagem. Não justificava a instalação do sistema pneumático, tanto do ponto de vista económico como de eficiência33. Esta e outras questões estiveram presentes nas discussões e encontros para a instalação da fábrica, mostrando uma ampla controvérsia sobre o modelo mais adequado à realidade da Casa do Cadaval. Em 11 de Maio desse ano concluiu-se a encomenda, de acordo com o orçamento n.º 1192 de 24 de Outubro de 1958. Todavia, corria em julgado um recurso interposto pelo Grémio dos Industriais do Arroz ao Supremo Tribunal

Ofício da Sociedade Comercial Luso-Italiana de 18 de Março de 1959 para a Administração da Casa do Cadval. ACC - Proc.º da Fábrica. Proposta n.º 1192, de 24 de Outubro de 1958. ACC - Proc.º da Fábrica.

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Administrativo contra os despachos do Ministro da Economia e do Subsecretário de Estado da Indústria que concedera autorização de instalação à Fábrica de Muge (15 de Setembro de 1958)34. Nesta ocasião, a Administração da Casa do Cadaval, cujo processo de adquisição se encontrava muito adiantado, conseguiu suspender a compra da fábrica, por via de uma cláusula de segurança de confirmação de venda, que tinha com a resultado a anulação “pura e simples” do contrato firmado entre a Casa do Cadaval e a Minghetti, em caso da decisão jurídica contra a administração da empresa de Muge. Finalmente em Outubro de 1959, depois da decisão judicial a favor da Casa do Cadaval, o conceito de fábrica de descasque ficou completo. A opção resultava da escala mais conveniente ao empreendimento de Muge, assente no orçamento de 24 de Outubro de 1958, para a capacidade horária de 2500kg/hora, no valor de 1.220.000$00 liras, isto é, mais de 560 contos do que a proposta inicial de 1957.

A maquinaria seria instalada num edifício de dois andares (rés-de-chão e 1.º andar) e não em quatro pisos que representava uma dimensão talvez incomportável às realidades e ao ambiente de concorrência que - apesar dos reguladores corporativos - tinha chegado à indústria do arroz nos vales do Tejo e do Sado. Importava acelerar o processo de construção e submeteu-se o sistema tecnológico, o diagrama de fabrico e os desenhos técnicos, condições da futura fábrica de Muge, ao risco de um arquitecto português, António Lino. Foi de acordo com o desenho deste autor que a construção se veio a realizar, em face das diferenças existentes entre o projecto de Dezembro de 1958, a proposta arquitectónica apresentada pela firma de Vercelli e a os desenhos que se encontram arquivados na Casa do Cadaval (Fig. 10 e 14)35.

Cf. Cópia da Contestação feita pelos Senhores Dr. José de Azeredo Perdigão e Dr. José Dantas Perdigão, advogados da Casa do Cadaval. ACC - Proc.º da Fábrica de Descasque. O principal argumento da defesa era a prova da quantidade de produção anual da Casa do Cadaval que atingia o mínimo fixado por lei, de 2.100 t. (decreto-lei n.º 39634), por declaração do Grémio de Lavoura de Salvaterra de Magos. Este Grémio confirmou que a produção média de arroz da Casa do Cadaval era, para os anos de 1953 a 1955, de 3.238.145 kg. 35 Ofício da Sociedade Comercial Luso-Italiana de 11 de Maio de 1959, confirmação de venda. ACC – Proc.º da Fábrica. 34

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Fig. 10 - Projecto de Instalação da Moderna Fábrica de Descasque de Arroz para a Casa Cadaval (Muge), com a capacidade horária de 3500kg/hora (adaptado a 2500kg/hora), para produção de arroz descascado, arroz mercantil e arroz brilhante (Glacé). Esc.: 1:100. Alçado longitudinal e alçado transversal. P. Minghetti, Construção Mecânica. Vercelli, Itália. Des. 678-R. 10-12-1958. Original colorido sobre desenho reproduzido. ACC - Proc.º Fábrica do Arroz.

No período em que decorreu a construção houve tempo para ultimar a decisão final – subscrita por Lúcio de Sousa - do tipo de secador, o último proposto pela construtora mecânica Minghetti (fig.9), de colunas em zig-zag, que irão ser montadas pela Metalúrgica Luso-Italiana, Ld.ª (8 de Junho de 1961). Uns dias depois, Lúcio de Sousa ainda tinha dúvidas sobre o sistema técnico e pretendia deslocar-se a Vercelli para tomar a decisão final sobre o secador que envolvia e conclusão da Fábrica (12 de Junho de 1961). Num segundo telegrama enviado para Vercelli, Lúcio de Sousa manifestou a sua impossibilidade de deslocação conforme o combinado e solicitava a vinda do técnico de montagem da firma, um tal Coggiola, de Vercelli para Muge. Mas Goggiola encontrava-se na Suíça a montar uma instalação fabril semelhante, estando impedido de tratar do assunto da Casa do Cadaval. As dificuldades consulares para que o técnico italiano viesse a Portugal, impediam a resolução expedita do assunto, que tanto interessava à administração de Muge36.

P. Mingetti sugeria que dado o tempo necessário para a obtenção do visto consular destinado à deslocação do técnico de Vercelli, pergunta se “a meno che siate d’accordo e sai possibile far venire il Coggiola come turista evitando in tal caso il visto di ingresso di cui sopra”. Ofício expresso enviado pela firma italiana a Lúcio de Sousa, em 11 de Junho de 1961. ACC - Proc.º da Fábrica.

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Lúcio de Sousa queria que o secador estivesse a trabalhar em 15 de Setembro de 1961. Faltavam os acordos relacionados com os silos do cereal e ainda se pretendia montar doseadores para a mistura de arroz inteiro e trincas, de modo a evitar muitas perdas de cereal descascado e garantir o sucesso económico do empreendimento. Note-se que a empresa metalúrgica portuguesa, como representante da firma de Vercelli, começa a tomar um papel cada vez mais relevante na ultimação da fábrica, numa altura em que já se encontravam construídos os edifícios onde seria montada a secção de secagem artificial, pois havia a intenção de dispor do sistema técnico na campanha do arroz de 196137. O equipamento é entregue em Agosto e a sua montagem viabilizou a sua inauguração em 1962, mas na data da campanha seguinte. Ainda em 1961 se discutia a questão da montagem, dada a pressão existente pela Direcção-Geral da Indústria, e se analisava o equipamento mais adequado para os silos do arroz. Discutia-se o preço de doseadores para haver percentagens dos lotes de arroz, segundo a filosofia emanada do Grémio, através de instruções oficiais38. A história da instalação de descasque de arroz de Muge mostra que a decisão da Casa do Cadaval foi difícil, que as opções tiveram de ser muito ponderadas, não só em relação aos objectivos pré-definidos pela administração, mas em função de outros vectores como a quantidade de arroz produzido na grande quinta ribatejana por campanha, como da concorrência fabril existente e das expectativas de consumo. A mudança de estratégia de uma visão estritamente agrícola para uma lógica industrial da Casa do Cadaval foi também tomada em consideração, o que pressupunha uma coerência de relacionamento diferente com as instituições políticas reguladores da produção, do comércio e da distribuição do arroz de acordo com a política gremial portuguesa afecta ao regime político da época. O recurso a medidas proteccionistas também pesou na decisão, nomeadamente quanto à produção de energia eléctrica, num tempo em que corria já a distribuição de electricidade pela Rede Eléctrica Nacional. Em 25 de Setembro de 1962 é inaugurada a unidade fabril de descasque de arroz da Casa do Cadaval. Na fachada foi colocada uma pedra com a chancela da propriedade da empresa: as iniciais de Olga e Graziela. Uma inscrição numa lápide de mármore preto evoca a data da inauguração, encimada por um crucifixo. A inauguração teve pompa e circunstância nos meios regionais. A autorização oficial foi concedida em 21 de Março de 1963, através do Alvará 57695 - 3.ª classe passado pela 3.ª Circunscrição Industrial. Ofício de Lúcio Martins de Sousa à Metalúrgica Luso-Italiana, de 23 de junho de 1961, Guia de Remessa de 19 de Agosto de 1961. ACC - Proc.º da Fábrica. 38 Ofício de Lúcio Martins de Sousa à P. Minghetti, de 10 de Junho de 1961. ACC - Proc.º da Fábrica. 37

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Alguma coisa de errado aconteceu entre 1962 e 1967, pois a administração da Casa do Cadaval voltou a requerer um novo secador artificial, do tipo de zig-zag, com capacidade de 100.000 kg39. A realidade tratava-se de um equipamento semelhante aquele que fora recebido em 1961, embora o novo secador apresentasse melhorias técnicas, que a experiência aconselhara a introduzir na origem, pela construtora mecânica40. Mas os tempos eram outros. O custo da nova instalação completa de secagem era de 1.293.250$00, enquanto o custo do anterior (em 1961) ficara em 470.000$00. Quem montava agora os equipamentos eram técnicos pertencentes à Metalúrgica Luso-Italiana. A montagem não correra bem suscitando troca de acusações entre empresa e a Casa do Cadaval, contenciodo que veio a prolongar-se pondo em causa a sua instalação para a nova campanha do arroz. Este facto obrigou a administração de Muge a proceder à desistência da montagem do secador novo, fazendo depender a sua compra da campanha de 196841. Qual foi a solução encontrada a partir daí? Mantiveram-se os equipamentos adquiridos em 1961 e inaugurados em 1962? Até quando? Só nova documentação nos guiará para outros momentos da história da fábrica de arroz do Vale do Tejo. Tudo parece indicar que a solução se manteve até ao encerramento definitivo. Pelo menos é o que transparece da correspondência trocada com o engenheiro chefe da 3.ª Circunscrição Industrial, onde a Graciela Schonberg refere que desde a autorização oficial “tudo se mantém na íntegra, sem reconversões ou alterações e ampliações das instalações da maquinaria” (Abril de 1977)42. O edifício do secador artificial com a sua caldeira encontra-se sem o equipamento técnico que foi desmontado depois do encerramento da fábrica para servir de armazém. A Fábrica de descasque da Casa do Cadaval teve a superintendência superior da marquesa Olga Nicolis dei Conti de Robilant, a qual partilhou a responsabilidade na administração com D. Graziela. Ambas já tinham iniciado a partilha a administração familiar da empresa agrícola Ofícios de Lúcio de Sousa de 25 de Janeiro de 1967, da referida Metalúrgica, de 26 de Janeiro de 1967, com a Proposta n.º 28/67T e ainda ofícios de 30 de Janeiro de 1967 (oriundo da Metalúrgica) e de 8 de Fevereiro do mesmo ano, subscrito por Lúcio de Sousa. ACC - Proc.º da Fábrica. 40 Por exemplo a introdução de tararas metálicas completamente fechadas e equipadas de ventiladores turbinados para melhorarem o rendimento. Estas turbinas eram de origem americana, mais modernas, para evitar as vibrações sentidas nos anteriores dispositivos, devido ao processo de amortecimento. Cf. Ofício da Metalurgia Luso Italiana SARL dirigido à Administração da Casa do Cadaval, datado de 26 de Janeiro de 1967. ACC - Proc.º da Fábrica. 41 Ofícios da Metalúrgica Luso-Italiana, n.º 67816 de 30 de Janeiro de 1967 e oficio da Casa do Cadaval, ref.ª n.º 266/67 de 8 de Fevereiro de 1967. ACC - Proc.º da Fábrica. 42 Ofício da Administração, n.º 311/77, à 3.ª CI, datado de 27-4-1977. ACC - Proc.º da Fábrica. 39

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Magos antes do casamento de Graziela e o Conde Schönborn, conforme se atesta pela documentação arquivada nos serviços administrativos. Com a instalação da fábrica de descasque é criada uma marca registada que servia de identificação dos produtos orizícolas ali produzidos ou fabricados. A marca juntava as iniciais dos nomes da mãe (O) e da filha (G), por baixo de uma coroa de nobreza (marquês), símbolo heráldico da identidade da Casa do Cadaval.

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Fig. 11 - Marca registada da Fábrica de Arroz impressa nos sacos de papel de 50 kg de arroz trabalhado. Fotografia do autor.

A família proprietária nomeou diversos administradores da fábrica ao longo dos anos de laboração da unidade de arroz. O primeiro foi Lúcio Martins de Sousa (activo 1962-1975). Seguiram-se o Eng. José Bento (activo desde 1975), Francisco Lino Magalhães Palma (activo entre o fim do tempo do 2.ª e 1981) e Romeu Pina, engenheiro orizicultor, entre 1982 e 1987, data do fecho das portas. O seu exercício fabril decorreu de acordo com as normas de funcionamento da empresa agrícola, obedecendo aos ritmos da actividade rural, tendo como trabalhadores os operários da empresa, sempre em obediência e de acordo com a vida sazonal do ciclo do cereal, designado por «campanha do arroz». O seu número era em 1986, antes do despedimento colectivo, 23 trabalhadores, incluindo gerente e pessoal de gestão Na realidade o que estava em causa, na estratégia da empresa agrícola era dispor, no fim da produção do cereal, de uma ferramenta industrial que desse valor ao arroz resultante das campanhas anuais, tal como acontecia nas unidades fabris colocadas à boca das minas de extracção do minério ou de combustível. A regra de funcionamento não podia compaginarse com as regras emitidas pela Direcção-Geral da Indústria, dado não ser uma unidade fabril urbana, criada pelo capital industrial e obedecendo à lógica do sector secundário, isto é, destinada à produção segundo vectores e lógicas de distribuição dos produtos acabados e sua comercialização.

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Nas suas origens, esta fábrica pertencia à cadeia agrícola da herdade da Casa do Cadaval, em Muge. Os operários são os operários da casa agrícola, cuja afectação industrial depende da lógica do calendário agrícola. A campanha do arroz e a sua sazonalidade determinavam o tempo de afectação, que como é natural não correspondia a um ano completo de 12 meses (incluindo as férias). Por outro lado a Casa do Cadaval respeitava esta ordem agrícola no interior das vastas propriedades, o que determinava a natureza complementar dos trabalhos industriais e o tempo que deviam ser cumpridos para não afectar as restantes lavouras. Com a viragem política de Portugal, pós 25 de Abril, aquelas realidades vieram ao de cima, nas circunstâncias das alterações das políticas económicas e sociais. Segundo informações orais, a unidade teve cinco anos sem trabalhar, porque não conseguiram atingir o limiar de autorização industrial, que se impôs desde então. Anteriormente, o que determinara a produção e descasque do arroz eram normas internas estabelecidas entre 1962 e 1975. A nova organização política do Estado português e a sua integração na Comunidade Europeia passaram definir outras exigências, que faziam de qualquer fábrica uma unidade industrial tipo, com o tempo completo de trabalho durante o dia e durante o ano, neste caso com a obrigação de compra de matéria-prima exógena por descascar durante todo o ano (isto é, não apenas o cereal que era produzido nas campanhas agrícolas da Casa do Cadaval) e a liberalização da indústria, com todas as suas consequências43. A fábrica manteve-se ainda em laboração segundo lógicas mistas, mas contrárias à ideia que esteve presente na sua génese. O surgimento de unidades de descasque de arroz mais evoluídas no Vale do Tejo, em especial de investimento de capital espanhol, determinou o seu encerramento no ano de 1987.

Tratamento da informação prestada por D. Teresa Schönborn, em Maio de 2016. D. Teresa filha dos condes fundadores da fábrica, manteve sempre uma ligação afectiva com a história e a direcção da Fábrica, onde trabalhou desde as suas origens. Tem sido uma das maiores defensoras da sua preservação.

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Magos | O modelo de fábrica de P. Minghetti para o descasque de arroz: uma inovação

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A fábrica que se pretendia instalar em Muge destinava-se a descascar o arroz por processos mecânicos evoluídos, através dos engenhos apropriados e inovados pela firma italiana. O objectivo era produzir tanto arroz mercantil, como arroz glacé (brilhante), fazendo o tratamento simultâneo de todos os subprodutos da laboração. A Casa do Cadaval comprou uma instalação completa, de acordo com o sistema mais moderno do género que existia na Europa e no Mundo, nos fins dos anos 1950: o sistema Minghetti. Realizava assim um objectivo agrícola empresarial que se resumia a intervir no mercado do arroz transformado e auxiliar o seu consumo em Portugal, beneficiando o investidor e os consumidores finais. A P. Minghetti era uma firma especializada em projectos e construção de máquinas para fábricas modernas de descasque de arroz, envolvendo diversos sistemas técnicos e diagramas de fabrico de diferente escala e potência energética. Fundara-se em 1917 e orgulhava-se de ter disseminado as suas novidades tecnológicas e, pelo menos fábricas de três tipos diferentes pela Europa. Esta especialização resultara, por um lado, da larga experiência piemontesa em unidades de moagem austro-húngaras, cujas origens remontavam ao último quartel do século XIX e, por outro, ao moderno desenvolvimento da mecanização do descasque de arroz, que tivera lugar na Itália entre as duas guerras mundiais. A tecnologia do descasque de arroz implicava plantas fabris, tanto combinadas como modernas, estas últimas de enorme racionalidade para o aproveitamento integral do arroz e dos seus subprodutos, numa economia de escala. A fábrica de P. Minghetti, situada na Via Marcello Prestinari, 53-55, na cidade de Vercelli (Milão) para além de comercializar o separador Paddy para o arroz descascado (sgustiato), tanto simples como refinado (raffinato), máquinas de branquear o arroz descascado, um tipo diferente de separadorcalibrador (scortecciatrici) e diversos «planchisters»44, fabricava ainda máquinas operadoras para O planchister (substantivo alemão para designar «peneiro») foi um nome adotado pela indústria portuguesa de moagem, sobretudo depois da introdução deste modelo avançado de peneiros mecânicos nas moagens industriais austro-húngaras. Trata-se de uma máquina de peneirar destinada a separar a farinha dos rolões no caso dos cereais farinados. Eram caixas rectangulares, construídas inicialmente em madeira, suspensas horizontalmente e fixas por varas flexíveis em junco ou um metal, ligadas a um veio de excêntricos que as movia de acordo com as rotações dos mecanismos transmissores. O movimento lembrava a acção manual de peneirar, em círculos horizontais concêntricos e contínuos. Como estas máquinas têm diversos tabuleiros planos permitiam peneirar mais eficazmente e com maior rendimento a separação de farinhas, classificando-as em diversas categorias. No caso do arroz, eram peneiros com tabuleiros especiais, cuja principal função era a separação dos grãos inteiriços, das trincas, estas de diversos tamanhos.

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a produção de arroz glacé, filtros, etc. Dispunha ainda de várias patentes para debulhadoras de arroz (trebbiatrici), de diversos tipos de secadores (essiccatoi), de modelos automáticos de experimentação para laboratórios (automatica), de plantas fabris completas com resultados testados, quer em termos de rendimento como de qualidade alimentar (num tempo em que a normalização industrial se afirmava na Europa do pós-guerra), para a produção em escala de arroz de diferentes variedades e gostos, destinados a diversos tipos de consumidores, com possibilidade de comercialização a grosso ou a retalho.

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Fig. 12 - Marca da P. Minghetti. 2014. Fotografia do autor. Note-se a representação do cereal do arroz como elemento decorativo.

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Vercelli era um dos principais centros da indústria do arroz na Itália, tendo adquirido esse estatuto devido à expansão agrícola dos arrozais. A cultura do arroz tivera um grande surto desde o Ressurgimento italiano (1861) e entre as duas guerras mundiais, fazendo parte da política agrícola da época de Mussolini. Em Vercelli especializou-se na construção mecânica de equipamentos de debulha, de moagem e de descasque e de máquinas e técnicas de valorização industrial do arroz (branqueamento, matizagem, glaciagem e estufagem). Ali se instalaram diversas fábricas de construção mecânica para instalações fabris de descasque de arroz, entre as quais a Guidetti & Artioli, que se celebrizou pela patente do aparelho Universal para branqueamento (TORRES, 1941) ou a metalúrgica Olmia (http://www.emmebienne.com/prodotti.html ). No Norte da Itália desenvolvera-se a tecnologia da moagem austro-húngara (como na Suíça e no sul da Alemanha), estimulando as patentes de fábricas completas, enquanto sistemas de inovação patenteados, enveredando-se para uma interpretação do modelo de moagens altamente mecanizadas e a sua adaptação ao descasque do arroz, cujas tecnologias mecânicas eram mais tardias, em relação à moagem do trigo, do centeio ou da cevada. A firma P. Minghetti era, portanto, na década de 1950, uma das mais conceituadas na Itália, pela interpretação mais avançada da modernização industrial, assente na energia eléctrica, para a preparação e a transformação industrial do arroz. A escolha da administração da Casa do Cadaval mostra que havia um conhecimento objectivo daquela construtora mecânica, estando em causa as suas diversas patentes, em especial o sistema de fábrica completa enquanto planta industrial tipo, destinada a desenvolver todas as operações essenciais desde a ensilagem à secagem artificial do arroz dito verde até à ultimação mais avançada para a época do arroz brilhante, tipo glacé, sem querer descurar as economias de escala, que se pudessem obter através dos subprodutos (combustível, loteamento do arroz, etc.). Esta empresa italiana passou a dispor nos meados do século XX de uma representante da sua tecnologia em Portugal. Era a Metalúrgica Luso-Italiana, Lda. (tarde uma SARL45), com fábrica em Cabo Ruivo (lote 10).

Inicialmente designava-se por Sociedade Comercial Luso-Italiana, Ld.ª e foi fundada em 1935. Em 1948, surge com o nome de Metalúrgica Luso-Italiana, enquanto empresa especializada a nível industrial, que se organizara desde 1944, embora a firma comercial mantenha ainda actividade até 1961, como a documentação da Casa do Cadaval revela. Esta empresa passou a ter a participação do Grupo José de Mello, em 1981. Ainda existe e localiza-se na Estada das Corredouras, em Arruda dos Vinhos, para onde mudou em 2001, depois de António Frade Saraiva ter assumido a sua administração.

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A Luso-Italiana era especialista em ar condicionado, ventilação, caldeiraria, construções metálicas, esquentadores a gás e eléctricos, fabrico de torneiras (Mamoli, Palácio, Zenite) super-centrifugadoras e refinação de metais. Em Portugal, esta empresa representava, para além da P. Minghetti, de Vercelli, os lagares de azeite italianos do tipo Galardi. Fabricavam também secadores artificiais, entre os quais os Lusital. Comercializarem ainda os separadores Paddy da Minghetti.

1 | Arquitectura industrial enquanto contentor do equipamento técnico A instalação completa da construtora mecânica P. Minghettti destinava-se à área dos serviços agrícolas do Palácio de Muge um espaço interior da Casa do Cadaval, servido por espaçosa via privativa para a circulação de veículos automóveis com cais para o desembarque do cereal (matéria-prima) e carga dos produtos e subprodutos (armazéns). O projecto italiano completava a parte do contentor da nova unidade fabril, em função do sistema tecnológico comercializado. Os documentos referem o número de edifícios, a sua localização e o tipo de instalação, em função das características técnicas do modelo. O desenho da casa italiana pressupôs um acordo de princípio e um conhecimento objectivo do espaço destinado à instalação da fábrica completa, mas aceitava alternativas de escala e de partido arquitectónico e submeteu-se à lógica do comprador quanto à construção, disposição e dimensão dos edifícios. O conjunto edificado proposto que constituía a fábrica completa era entendido como um invólucro do sistema tecnológico. A proposta arquitectónica italiana conhecida, concluída a 9 de Janeiro de 1959, corresponde à fábrica para 3.500 kg/hora, obedecendo à seguinte organização espacial e estrutura interna (Fig. 12)46: 1 - Edifício da fábrica, ocupando o corpo central do conjunto fabril, desenvolvido em três pisos, mais um andar de serviço para colocar as transmissões de acionamento dos elevadores de arroz verde ou descascado, as máquinas de peneirar (ditas planchisters), os sem fins de aspiração sobre as máquinas, para casca e pós;

Desconhecemos que razões particulares invocadas para a substituição do ante-projecto apresentado pela P. Minghetti (des. N.º 678-R. Ver Fig. 10), para além do que referimos neste estudo.

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Magos 2 - Edifício do secador artificial, colocado à esquerda da entrada do edifício principal, assumindo uma lógica de trabalho em contínuo visando a preparação da matéria-prima destinada aos moinhos descascadores (a melhor solução). A tecnologia assentava na desumidificação do arroz segundo uma percentagem pré-determinada; 3 - Edifício dos silos do arroz em casca, verde e seco, destinado ao descasque, mas albergando mecanismos destinados ao transporte interno que o conduziria ao secador artificial e ainda para ser armazenado após a secagem, mantendo-se pronto para o descasque no edifício 1; 4 - Edifício do arroz descascado (em branco), um conjunto de armazéns, para o seu depósito, pesagem e embalagem. Este edifício dispunha de separação entre os dois tipos de arroz produzidos: mercantil e glacé (branqueado) e um depósito dos subprodutos; 5 - Uma instalação completa de força motriz - uma central termoeléctrica a vapor - situado num edifício adjacente ao corpo do edifício principal 1.

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Para além desta estrutura arquitectónica e organizativa da cadeia técnica, a Casa do Cadaval negociou a instalação de máquinas branqueadoras de arroz, cuja autorização obteve dos organismos oficiais. Assim, o arroz até 1250 mm podia ser branqueado em Muge e preparado para o mercado. Este equipamento foi colocado no edifício 1. Comprou também duas balanças automáticas. Instalou um laboratório de análises para pesagem, limpeza, descasque e branqueamento de arroz, seguindo modernas directizes destinadas à implementação da qualidade dos produtos alimentares. Fig. 13 - Ante-projecto da Fábrica de Descasque de Arroz para a Casa Cadaval. Alçado, planta, secção longitudinal. P. Minghetti, Construção Mecânica. Vercelli, Itália. Des. 678-R. 9-1-1959. Original colorido sobre desenho reproduzido. ACC - Proc.º Fábrica do Arroz

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Os donos da Casa do Cadaval mandaram construir edifícios que se afastaram arquitectonicamente do projecto italiano dado que tiveram como base a proposta de Outubro de 1958, da qual não existe desenho técnico nem projecto arquitectónico compatível. O mais aproximado é aquele que foi apresentado em Janeiro de 1959 (Fig. 14). Porventura, a proposta italiana seria apenas uma referência para o desenvolvimento do risco mais conveniente à edificação da fábrica. Talvez se impusessem-se também questões relacionadas a autorização dos serviços oficiais, nomeadamente municipais. A Casa do Cadaval escolheu um arquitecto português para sancionar o risco italiano referente à instalação da fábrica completa e subscrever o projecto de arquitectura nas suas linhas finais, passando a dispor da documentação essencial, indispensável para a obtenção da autorização camarária de construção. A estratégia seguida pela Casa do Cadaval, independentemente da razão que a motivou, garantiu uma complementaridade entre a engenharia industrial e civil italiana e o partido arquitectónico assinado pelo arquitecto modernista António Lino (Outubro de 1959). O risco definitivo deste arquitecto não se encontra nos arquivos da Casa do Cadaval, nem no arquivo de obras do Município de Salvaterra de Magos47. Todavia, encontrámos doze desenhos originais inacabados, em papel vegetal, mas não assinados que constituem o suporte do edifício fabril que se construiu entre 1960 e 1962, ainda que com soluções que não foram implementadas na fase de execução. A escolha de António de Brito Macieira Lino da Silva (1909-1961) não nos parece ocasional. Era um arquitecto do regime consagrado pela autoria da igreja de S. João de Deus em Lisboa, obra que realizara entre 1951 e 1953 e pelo Monumento ao Cristo-Rei, em Almada. A execução desta última obra correu em paralelo com a sua participação no projecto da Fábrica de Descasque de Arroz da Casa do Cadaval. O projecto da fábrica de Muge não se encontrava ainda associado ao seu nome, exprimindo uma visão moderna de funcionalismo industrial que, doravante, urge explorar em função dos desenhos agora conhecidos. António Lino formou-se na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Era familiar do arquitecto Raul Lino. Desde 1936 fora chamado para participar em projectos arquitectónicos de monumentos ou de conjuntos escultóricos (Estátua do Infante D. Henrique, em Sagres, com o escultor Leopoldo de Almeida; áreas envolventes da Assembleia da República, com o arquitecto Cristino da Silva) e ainda em projectos de arquitectura efémera, como foi o caso da Exposição do Mundo Português (1940), sob a direcção superior de Cotinelli Telmo.

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Isto apesar de se saber qual era o n.º do Proc.º - 851 - e da Licença camarária - n.º 131 -, de 8 de abril de 1960.

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Fig. 14 – Projecto de Instalação da Moderna Fábrica de Descasque de Arroz para a Casa Cadaval (Muge), com a capacidade horária de 2500kg/hora, para produção de arroz descascado, arroz mercantil e arroz brilhante (Glacé). Esc.: 1:100. Alçado longitudinal e alçado transversal. P. Minghetti, Construção Mecânica. Vercelli, Itália. Des. 676-R. 20-12-1958. Original colorido sobre desenho reproduzido. ACC – Proc.º Fábrica do Arroz. Note-se que apesar de ter três pisos e um outro técnico para transmissões é o projecto que mais se aproxima do modelo que foi implementado em Muge.

Neste espaço expositivo concebeu o restaurante modernista do Espelho de Água, ainda existente48. O seu falecimento precoce em 1961, impediu-o de ver concretizado o seu projecto para Muge, por ventura marcado por alterações de execução de última hora que poderia ou não subscrever.

Fig. 15 - [Fábrica de Descasque de Arroz de Muge. Alçado principal]. Sem data [1959-1960 ?]. Sem assinatura [António Lino]. Desenho original n.º 6. Papel vegetal e tinta-da-china. ACC - Gaveta de desenhos. 48

Sobre este arquitecto, ver PEDREIRINHO, 1994: 219.

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O arquitecto António Lino não se preocupou em demasiado com o aspecto do edifício. Conferiu-lhe mais um sentido utilitário adequado ao modelo dos construtores italianos, integrando-o no ambiente local e em correlação com a imagem existente dos edifícios fronteiros ou pré-existentes, que funcionariam como imóveis de acompanhamento. A sua não exposição à via pública, facilitava assim a conjugação entre austeridade arquitectónica, segurança civil e funcionalidade industrial (Fig. 15). Consta de três corpos de edifícios, em contínuo, em cujo tardoz se colocaram os edifícios destinados a força motriz, as instalações sanitárias e um outro anexo (estes últimos mais tardios). A central motora – que fugiu ao protótipo da planta italiana - encontra-se integrado num edifício de maior escala, colocado transversalmente no lugar da projectada edificação da ensilagem do arroz com casca (Fig. 13), ocupando o extremo sul do edifício principal. A sua volumetria de dois pisos, um onde se encontra o equipamento motor - piso 0 - e o outro o armazém do combustível, neste caso a casca do arroz descascado49 - piso 1 -, sugerem uma alteração na concepção, que prejudicou a imagem de conjunto proposta pela firma italiana. A alta chaminé encontra-se afastada deste edifício, isolada, denunciando essa alteração (Fig. 17). Os edifícios, no entanto, foram concebidos de acordo com a escala e o sistema tecnológico adoptada na instalação da fábrica, podendo considerar-se um contentor adaptado à natureza das diversas funções fabris, nomeadamente a ensilagem, embora com um plano mais reduzido (dois silos verticais e um silo da casca). O programa de distribuição da maquinaria que fora realizado pela firma fornecedora constitui por isso mesmo a base essencial do projecto arquitectónico. Assim no corpo central e no extremo esquerdo ficaram a parte de laboração e silos e secadores do arroz, no extremo direito o armazém do arroz branco. Do ponto de vista de engenharia concebeu-se um edifício em estrutura de betão, procurando obter uniformidade de conjunto, para garantir uma perfeita funcionalidade e segurança. O modelo arquitectónico industrial era o de uma fábrica incombustível, com uso de placas, entre os diferentes pisos e ainda na esteira de cobertura sob o madeiramento do telhado. Do ponto de vista dos materiais de construção além do cimento Portland artificial, a brita, a areia e o ferro usados no betão, foi previsto o uso de lambaz da região no enchimento dos paramentos, o massame hidráulico nos pavimentos térreos, entre outras soluções. Eventualmente esta volumetria respondeu à concepção inicial dos silos do projecto italiano, que depois foi revertida para a localização dos equipamentos motores e respectivo combustível. O espaço interior do piso 1 é grande demais para depositar o combustível (casca de arroz, expulsa por exaustão) a qual, por gravidade, caía na fornalha da caldeira do vapor. Provavelmente, este edifício foi construído para albergar os silos do projecto italiano para o cereal com casca e só mais tarde foi adaptado às novas funções motrizes, apesar da sua dimensão e escala não se encontrar em conformidade com o destino que lhe foi dado. Não se encontrou documentação sobre esta situação nos Arquivos da CC.

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Magos O arquitecto vazou a relação entre o piso 0 e o piso deixando um varandim de observação das diferentes operações que decorriam no piso 0, uma espécie de mezanino.

Fig. 16 - [Fábrica de Descasque de Arroz de Muge. Corte longitudinal]. Sem data [1959-1960 ?]. Sem assinatura [António Lino]. Desenho original n.º 8. Papel vegetal, lápis e tinta-da-china. ACC - Gaveta de desenhos. Note-se o desenho de pormenor da implantação do sistema de máquinas (ao centro) do secador artificial de quatro colunas (à esquerda).

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A unidade fabril modelo é uma fábrica de pisos (Fig. 13), seguindo a tradição oitocentista das moagens industriais, apresentando o edifício principal com quatro pisos, com fenestração de oito janelas por piso, na fachada principal, num total de 30 janelas e duas portas fenestradas. A fenestração configurava a atitude de iluminação das operações do descasque, da peneiração e selecção de produtos, num claro mimetismo com os modelos anteriores, nomeadamente das fábricas têxteis de pisos oitocentistas. O corpo do armazém organiza-se em três pisos, mas é mais curto que a fábrica e dispõe de 18 janelas ao todo, com três portas fenestradas. Na origem destinava-se ao armazenamento da farinha de arroz (um outro subproduto, no piso 3), ao ensacamento do arroz mercantil, branqueado e loteado (piso 1) e ao ensacamento das trincas (piso2). Quanto aos edifícios da ensilagem e da secagem do arroz foram previstos apenas dois pisos virados a rua privativa, com sete janelas no piso superior e três no piso inferior, onde se rasgaram duas portas de acesso directo à área de controlo da ensilagem e um espaçoso portão para a chegada do arroz das campanhas agrícolas. Na parte traseira deste edifício instalou-se a ensilagem, de diferente altimetria, com duas correntezas de silos, num total de quinze silos por correnteza, edifício que pressupunha construções subterrâneas, não desenvolvidas. Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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Do ponto de vista do sistema técnico Minghetti, a arquitectura era apenas a expressão adequada ao desenvolvimento da ordem da cadeia técnica que se processava no interior da fábrica e das relações existentes entre motor e máquinas operadoras em função das transmissões respectivas. Os documentos referem os motores eléctricos e outro tipo de transmissões mais adequadas aos sistemas integrados de ventilação com os sem fins, ou aos elevadores do cereal ou ainda para acionar os planchisters, que requeriam veios de excêntrico mecânicos. Estamos a falar de uma unidade fabril que segue um padrão de referência - o histórico da indústria de moagem - e se enquadra num novo tempo e ambiente tecnológico, que se designa desde Lewis Mumford por era neotécnica, embora ainda presa às tradições industriais oitocentistas. O projecto inicial sofreu, pois, algumas transformações termos de arquitectura e de engenharia industrial, dado que a dimensão da fábrica de descasque veio a ser uma resultante dos dois ante-projectos apresentados pela firma italiana. Foram tomadas em consideração as necessidades previstas pela empresa de Muge, os condicionalismos da sua execução operacional e as mudanças de intenções que ocorreram na sua génese50. Tudo isto reflectiu-se na própria imagem arquitectónica do edifício fabril, que chegou à actualidade (Fig. 1 e Fig. 15)51. Essas alterações afectaram sobretudo o número de pisos e a fenestração, no que respeita às fachadas exteriores, tanto na fábrica, como na secagem, silos e armazéns dos produtos. A combinação de diversos tipos de máquinas integradas na cadeia técnica, entre as quais as de inovação Minghetti, de modo a construir o diagrama fabril da fábrica mecanizada, de acordo com os objectivos industriais requeridos pela Casa do Cadaval é o que caracteriza o projecto fabril da Fábrica de Descasque de Arroz de Muge. As máquinas operadoras ligadas à ensilagem, à limpeza, à secagem, ao descasque e à ultimação correspondem ao momento tecnológico da história da indústria do arroz, ou para ser mais preciso, à conjuntura de construção mecânica da firma de Vercelli, entre 1956 e 1962. São essas máquinas associadas entre si por mecanismos simples e complexos e movidos por motores eléctricos que formam o todo do sistema Minghetti, adoptado pela Casa do Cadaval. Dada a complexidade da nova unidade industrial, a fábrica teve de receber assistência técnica especializada.

Mais tarde outras intenções irão expressar a mudança de planos, que fizeram mudar os conceitos de ensilagem e de secagem, como vimos. 51 Em 24 de Janeiro de 1959, a firma apresentou o desenho n.º 678-R com todo o plano da instalação completa da fábrica, com respectivas secções de secagem, força motriz, silos de arroz em casca e armazém para arroz branco e uma secção dos sub-produtos. 50

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Magos 2 | A electricidade como energia da fábrica de Muge Em 1962, o motor principal das fábricas modernas era já a electricidade. Todavia, a questão que se coloca era: donde provinha a electricidade? A tendência na época era substituir as centrais fabris, quer fossem térmicas ou hidráulicas, pela energia eléctrica distribuída pela Rede Eléctrica Nacional. No entanto, essa lógica não aconteceu em Muge, nem noutras fábricas de arroz, como do Cartaxo, de Vila Franca ou da Comporta, etc. Na proposta italiana, como na central construída em Muge, a decisão recaiu numa termoeléctrica, tendo como base um gerador a vapor e um motor de combustão externa (mais conhecido por máquina a vapor)52. Já vimos onde foi montada - no Piso 0, no grande edifício transversal do tardoz da fábrica. A produção de energia eléctrica na central de Muge, não esgota o tema de electricidade no seu contexto fabril. Estava em causa o accionamento da fábrica, mas também a sua distribuição por todo o conjunto agro -industrial, palácio e iluminação privada. Na fábrica requeria-se ainda uma quantidade de energia que respondesse ao consumo das máquinas adoptadas. Por isso a energia eléctrica requer ser analisada no seu aspecto geral de central de energia (onde o vapor tem intervenção), a sua distribuição interna em função do programa pré-definido e através do equipamento de motores eléctricos destinados ao processo operativo do diagrama fabril.

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a) Central de energia eléctrica Embora, só o estudo desta central constitua um ensaio à parte, importa fazer uma síntese que nos permita ver o lugar que ocupa, no contexto fabril. O gerador de electricidade era accionado por uma máquina a vapor semifixa, de fabrico alemão, pela firma R. Wolf, A. G., de Magdeburgo. A máquina foi fabricada em 1942, em pleno período da guerra mundial na frente russa53. A Rudolf Wolf era uma metalomecânica fundada em 1862 e que se especializara em caldeiras de feixe tubular amovível. A empresa alemã introduzira uma tecnologia a vapor partindo de conceitos de inovação científica (termodinâmica), envolvendo engenheiros experimentados na construção de caldeiras, motores e locomóveis. Os seus geradores de vapor apresentavam diversas vantagens entre as quais, ter grandes superfícies de aquecimento em relação às dimensões das 52 Note-se que no caderno de encargos, a central eléctrica estava excluída do valor de aquisição. Cf. Proposta n.º 31290, 24-1-1959. ACC - Prc.º da Fábrica. 53 Fabricada na firma Maschinenfabrik Buckau. Esta semifixa foi adquirida, provavelmente, em segunda mão, como vimos. Segundo informação oral (trabalhador com 88 anos de idade) teria vindo da Alemanha, depois da 2.ª guerra mundial tendo sido um motor de um equipamento militar. N.º de construção da caldeira 26921, com o timbre de 15kg/cm2.

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instalações; a supressão dos revestimentos em alvenaria da caldeira, custos que oneravam a instalação e eram demorados a construir; disporem de fornalhas adequadas a diversos tipos de combustível, como por exemplo, a casca do arroz, viabilizando o aproveitamento económico da produção de vapor e, finalmente, defenderem o uso do feixe tubular amovível de modo a garantir uma manutenção mais fácil, eficaz e rápida das caldeiras (“R. Wolf”, 1927: 279).

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Fig. 17 - Fábrica de Descasque de Arroz de Muge. Tardoz. Edifício da Central Termoeléctrica. 2008. Fotografia do autor. Repare-se na localização separada da chaminé fabril e a concepção do piso superior sem fenestração, adequado para ensilagem.

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Fig. 18 - [Fábrica de Descasque de Arroz de Muge. Corte longitudinal]. Sem data [1959-1960 ?]. Sem assinatura [António Lino]. Desenho original n.º 9. Papel vegetal e tinta-da-china. ACC - Gaveta de desenhos.

Na fábrica de Muge, a vaporização da água, essencial para a produção de vapor, revela a introdução de um sistema de alimentação contínua da fornalha da caldeira, através de um aparelho especial fornecido pela firma lisboeta de Emydgio Lopes Valente da Silva. Este novo método tornou-se mais económico, mas determinou a construção de um cinzeiro (piso -1) destinado às cinzas da combustão, dado à produção contínua de energia durante 24 horas. O vapor alimentava a máquina a vapor de êmbolo (expansão simples), acoplada à parte superior da caldeira Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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que transformava a energia térmica em energia mecânica. Por via da rotação de um volante (210 rpm), a energia de 350 CV, era transmitida a um grupo gerador, que por sua vez produzia energia eléctrica54. Esta era distribuída à fábrica e a outros edifícios e instalações dos serviços agrícolas (Palácio, Lagar de Azeite, Armazém de Vinho, Secador de Arroz, Grupo Electro-bomba, Bombas da Ponte Nova, Bombas hidráulicas e Iluminação privada). b)Motores eléctricos O accionamento de toda a cadeia técnica da fábrica estava dependente da aplicação de motores eléctricos acoplados directamente às máquinas operadoras ou às transmissões mecânicas, que não era da responsabilidade da empresa italiana. Note-se esta dupla coexistência de técnica de transmissão de energia: a primeira referente à Revolução da Electricidade (motores reversíveis, blindados e com os respectivos tambores de gornes, dispositivos de bandeira e correias trapezoidais, que funcionavam em corrente alterna de 380 volts) e a segunda, ainda presa aos modelos de transmissão em árvore, próprios da industrialização oitocentista, embora movidos a motores elétricos. A documentação mostra a quantidade de motores que eram necessários para toda a fábrica (16), necessários para o consumo energético das máquinas operadoras e as duas transmissões, num total de mais de 187 c/v ingleses, conforme se pode ver no quadro que elaborámos.

54 O gerador eléctrico foi fabricado pela Wurterberger U. Hass de Karlsruhe, na Alemanha. Montado em 1962. Desenvolve 400 rpm e 250 kVA. Anteriormente a Casa do Cadaval dispôs de um outro equipamento de energia eléctrica, entre 1932 e 1943 (termoeléctrica de serviço particular, de 22 kW). A partir de 1944 até 1984, a informação sobre a produção de energia da Casa do Cadaval é omissa nas Estatísticas das Instalações Eléctricas em Portugal, porventura pela chegada da energia distribuída pela Hidroeléctrica do Alto Alentejo (HEAA), a partir de 1948 (Salvaterra de Magos) e 1949 (Muge e Marinhais). Sabe-se que não há registos da Central Eléctrica da Fábrica (1962-1985) na Direcção-Geral dos Serviços Eléctricos. Todavia, existia processo na Direcção-Geral dos Combustíveis (ex-DRE-LVT). Na análise desta interessante problemática colaboraram os serviços do Museu da Electricidade, por gentileza do Dr. Luís Cruz, da Dr.ª Rosa Goy e do Eng. Pires Barbosa.

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Magos MOTORES ELÉCTRICOS: Ligações e Potência

Fonte: Proposta 31287. ACC- Proc.º da Fábrica de Muge

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3 | Secadores artificiais de arroz: pequeno apontamento A secagem artificial ou mecânica foi uma inovação essencial na indústria do arroz. Veio resolver os inconvenientes da secagem natural, que acabava por fracturar o cereal e baixar-lhe o valor comercial. A sua solução mecânica representou uma enorme conquista desta indústria. A introdução da secagem artificial chega ao concelho de Salvaterra de Magos na década de 1940. Veio valorizar o cereal na perspectiva industrial e exigir a construção de edifícios apropriados, com a sua arquitectura específica em altura destinados a albergar os caldeiras e fornos de aquecimento para a elevação de temperatura (até 40º Celsius) e as máquinas verticais (de colunas) destinadas à secagem, onde o arroz passava sucessivamente até ser reduzida a sua humidade, após períodos de repouso, o que trazia vantagens pelo facto da humidade interior passar para a superfície (CERATI & MORA, 1939: 155). Estes secadores constituíam unidades individualizadas como os da Companhia das Lezírias do Tejo e do Sado, em Salvaterra de Magos (hoje pertença do Município) (activos c. 1940-1973) ou como os do Monte Condes, no mesmo concelho. Contudo, em Muge ficou integrado no conjunto edificado na automática da Minghetti, conforme se pode ver nos desenhos atrás publicados (fig. 7 e 16). Os secadores são, no entanto, máquinas colocadas a montante do descasque, que implicou a Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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ensilagem e sua mecanização, os aparelhos de limpeza, como as tararas, os separadores dos grãos, entre os quais o separador de Paddy, uma inovação datada de 1892, os separadores-calibradores, dada a diferente de granulometria do cereal ou do arroz trabalhado e os desmagnetizadores. Os separadores de Paddy, tem aliás, depois de 1945, uma série de inovações que o transformam profundamente e se aproximam à máquina usada em Muge. A concepção dos silos evoluiu em função do desenvolvimento da higiene e das condições de temperatura, limpeza e calibragem. A relação entre silos, secadores e unidades fabris mecanizadas, permitia dispor de uma fábrica completa.

4 | Equipamento operador A fábrica de Muge como entidade tecnológica concreta revela um pouco a história da indústria do descasque de arroz. As unidades fabris mecanizadas foram desde o último quartel do século XIX, uma das aspirações das construtoras mecânicas de equipamento de moagem de cereais. Procurava-se desenvolver projectos que pusessem em conjugação os cinco princípios da mecânica helenística (como a roda, o alcatruz, o plano inclinado e a cunha) -aliás assumidamente relevantes nas moagens de farinha americana e austro-húngara - com as máquinas operadoras de descasque, as máquinas e os mecanismos da mecânica moderna a montante e a jusante do descasque e os mecanismos de despoeiramento de tipo pneumático, atendendo à manobra através de motores eléctricos. A mecanização chegou mais tarde ao descasque de arroz do que à farinação, mas revela uma interessante semelhança, quanto aos processos técnicos, como se eles procurassem imitação. No entanto, a especificidade das operações a montante, entre as quais a maior exigência de secagem do cereal, como do sistema tecnológico de descasque, com limites à destruição dos grãos de arroz e ainda os processos de ultimação dos produtos introduziram dinâmicas próprias nas unidades mecanizadas do arroz que urge conhecer com maior pormenor. Acontece ainda que com a revolução da electrificação das fábricas a partir da segunda década do século XX, a mecanização sobre um aprofundamento que a fábrica de arroz de Muge ainda testemunha. Em causa estava a génese da automatização e a compreensão deste fenómeno explica aspectos particulares da mesma fábrica. Os automatismos ganham um novo elan, desde a expulsão da casca, ao doseamento do arroz trabalhado com percentagens de trincas. Para essas soluções mais avançadas, a Fábrica de Muge instalou balança automáticas e sistemas de ventilação e ciclones. Estamos na transição para o descasque de arroz contemporâneo, onde os automatismos adquirem um maior relevo. Se na Fábrica de Muge, a máquina ocupa ainda um Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos lugar essencial, no conceito de divisão de trabalho (aproximando-a ainda dos modelos fabris oitocentistas da maquinofactura), o sistema de máquinas ligadas entre si por mecanismos simples (elevadores, planos inclinados e sem fins) mostram que a era manufactureira tinha chegado ao fim com a introdução da mecanização. A electricidade por sua vez, garante maior operacionalidade a cada máquina e determina aquilo que se pretende fazer na organização industrial da época, mas abre caminho à automatização, que não estando presente ainda em Muge, mostra já um ar da sua graça. Este é um tema essencial que deixamos em aberto para um futuro estudo sobre esta unidade arrozeira de Muge, estudo onde possamos estudar a complexidade e o modo de funcionamento das unidades industriais de descasque na conjuntura fabril do pós-guerra, onde o tipo de mecanização foi modificada pela revolução dos motores eléctricos reversíveis, que introduziram uma nova energia no interior das fábricas. A conjugação entre a história de cada máquina e o sistema implementado pode ainda ajudar-nos a interpretar e exemplificar as grandes conquistas técnicas e civilizacionais que constituem a História da Indústria do Arroz.

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Que importância tem este conhecimento hoje? - pode perguntar-se. Não estará em causa o património cultural do nosso próximo futuro? Pois bem, os valores culturais do património industrial de Muge têm - a nosso ver - de ser equacionados de modo a conferirem um profundo significado à identidade agrícola e da agro-industrial de Salvaterra de Magos, marcando uma nova época - bem diferente da raiz palaciana que esteve na génese da antiga vila das coutadas reais. S. João da Talha - 08-08-2016

| Fontes/Bibliografia Fontes

Arquivo da Casa do Cadaval Processo de Instalação da Fábrica de Descasque de arroz Arquivo da Fábrica de Descasque de Arroz Gavetas Arquivo da Ex-DRE-LVT Processo 8446 (caldeira) e Proc.º 623 (Máquina a vapor) Arquivo Municipal Projecto de Recuperação dos Secadores do Celeiro da Vala. Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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A FÁBRICA DE DESCASQUE DE ARROZ DA CASA CADAVAL: Património Industrial de Muge

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Moinhos do Convento da Serra na Ribeira de Muge

Samuel TomĂŠ Salvaterra de Magos | n.Âş 3 | Ano: 2016


Moinhos do Convento da Serra na Ribeira de Muge

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| Introdução

Os moinhos “não representam apenas um dos adornos mais pitorescos da paisagem. Eles representam também (…) a forma mais evoluída de um sistema primitivo de trituração dos grãos de cereal entre duas pedras” (Oliveira et alli, 1983: 5). Esta frase com que inicia a obra “Tecnologia Tradicional Portuguesa: Sistemas de Moagem” sintetiza bem o que são os moinhos de água e vento que hoje em dia, cada vez mais em ruínas, povoam os altos dos montes e os vales das ribeiras. Além disto, existe a memória e os vestígios não só dos que ainda existem como dos que já desapareceram, que importa preservar. A existência de pujantes cursos de água na região que hoje denominamos como Lezíria do Tejo levou a que aqui se desenvolvesse a moagem por via hidráulica ao longo dos cursos de água. Um desses cursos é precisamente a Ribeira de Muge, que tendo origem do concelho de Abrantes, passa depois pelos municípios de Ponte Sôr, Chamusca, Almeirim e Salvaterra de Magos, onde se encontra com o Rio Tejo. Esta ribeira já é mencionada por Gil (1965) como tendo um dos principais núcleos moageiros do Portugal do séc. XVI, facto este a que não será alheia a presença da corte na região. Temos conhecimento da existência de 19 engenhos espalhados ao longo da Ribeira de Muge e seus afluentes nos cerca de 20 Kms que marcam a confluência desta com a Ribeira do Chouto (União de Freguesias de Parreira-Chouto) até à confluência com a Ribeira da Lamarosa (Freguesia de Muge). Destacando o núcleo de três engenhos que se situa mais jusante neste espaço, em que se encontram dois moinhos no concelho de Salvaterra de Magos e um no concelho de Almeirim, iremos abordar os dois que se encontram dentro da área administrativa de Salvaterra de Magos. Contudo, o desenvolvimento e as vivências das pessoas a que assistimos ao longo dos séculos não se coadunam com limites administrativos, pelo que frequentemente se terá de mencionar o terceiro engenho, já situado no concelho de Almeirim, assim como o Convento de Nossa Senhora da Serra da Ordem dos Pregadores, também ele situado em Almeirim, mas que se aponta como proprietário destes engenhos ao longo da sua existência. Tendo isto presente, tomaremos como objeto precisamente os moinhos do Convento da Serra na Ribeira de Muge. Todavia, importa antes de estudar os moinhos em si, perceber a realidade vivida na região, nomeadamente ao nível dos centros urbanos da época. Se o Concelho de Muge, onde se situavam os engenhos, era uma realidade vinda do séc. XIII, na verdade é impossível ignorar os territórios dos concelhos vizinhos (Almeirim, Santarém e Salvaterra de Magos), pois foram estes que tiveram um papel primordial para o desenvolvimento da região, com a constante presença da corte. Desta forma, se numa primeira fase desenvolvemos essencialmente este tema, numa segunda apresentaremos a evolução que se conhece aos engenhos do Convento da Serra. Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos 1 | A presença da corte na região do séc. XV ao XIX

Para que melhor possamos perceber a dinâmica não só dos moinhos em análise, como também do próprio Convento da Serra, seu proprietário, é necessário entender a realidade que se vivia na região, ao nível das relações de poder e da presença da Corte. Com efeito, iremos assistir a uma forte presença da corte nos centros urbanos de Santarém (no séc. XV), Almeirim (séc. XVI) e Salvaterra de Magos (séc. XVII e XVIII).

1.1 | Os Paços e a Corte

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A Corte ao longo da Idade Média e até ao final da segunda dinastia (1580) tinha um carácter bastante itinerante. Onde o rei estava é que estava o cerne da máquina administrativa do estado, ainda que se verificasse uma sobeja importância de Lisboa com o início dos descobrimentos, no reinado de D. João I. Segundo Custódio e Rodrigues (1990) durante o séc. XVI com o rei moviam-se cerca de 2 000 pessoas, necessitando portanto os lugares de estarem devidamente preparados para as estadas do monarca e o seu séquito. Assim, há três lugares principais na zona em estudo que recebiam a corte desde o final da Idade Média, com os seus paços: Almeirim, Santarém e Salvaterra de Magos. Santarém era uma das mais notáveis vilas do país. Nunca teve a dignidade de cidade, segundo Rodrigues (2001), por não ser sede de diocese1. Aqui começou por existir um paço na zona da Alcáçova, que no séc. XV passa para uma zona mais central, na zona onde hoje se ergue a Catedral (comummente conhecida como Igreja do Seminário). Foi um dos lugares prediletos da corte até ao final do séc. XV2. Com efeito, aqui reuniram as Cortes numerosas vezes3, mas até ao final da centúria em questão. Ainda assim, aquando da Restauração da Independência (1640) a Vila de Santarém é a primeira do reino, a seguir a Lisboa, a aclamar o Duque de Bragança como Rei de Portugal, a 5 de dezembro de 1640, segundo Rodrigues (2004). A caça era um dos desportos preferidos na corte, uma vez que funcionava como treino militar. Segundo Custódio e Rodrigues (1990) a presença constante do rei em Santarém levava a que fosse comum a exploração das matas do outro lado do Rio Tejo para este efeito entre os reinados

Não esqueçamos que a atual Diocese de Santarém data de apenas 1975. Segundo o autor, foi o episódio da morte do herdeiro de D: João II (príncipe D: Afonso) junto a Santarém que afastou a corte deste local, terminado definitivamente o seu “brilho e esplendor” (Rodrigues, 2001: 49) após a perca da independência. 3 Santarém foi palco de cortes em uma vez no séc. XIII, seis no séc. XIV e nove no séc. XV. 1 2

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de D: João I e D. João II. No entanto as constantes necessidades de passagem do rio, associadas às cheias de inverno, levaram à necessidade de edificações para nobres na margem esquerda do Tejo. D. João I vai tornar Almeirim num sítio mais agradável (atendendo à insalubridade do local, devido à constante invasão das cheias), com terraplanagem de cerca de 30 hectares para edificação de um paço. Desconhece-se a data exata de construção deste, mas sabe-se que em 1423 D. João I já assinava despachos em Almeirim. Os Paços de Almeirim foram ampliados e remodelados no reinado de D. Manuel I e após o terramoto de 1531, já durante o reinado de D. João III. Sabemos ainda que o Paço de Almeirim foi palco de Cortes por duas vezes, ambas no séc. XVI, em 1544 e em 1580, sendo estas últimas decisivas para a manutenção da independência portuguesa face ao poder do Rei Filipe II de Espanha. Com o domínio espanhol, e mais tarde a entrada no período político que ficou conhecido como Antigo Regime, “a vila é afectada pelo afastamento da corte, degradando-se os paços (…). A vila resiste como póvoa, mas não se expande” (Custódio e Rodrigues, 1990: 6). Relativamente a Salvaterra de Magos, não sabemos a data de construção do seu paço, contudo, sabemos que este já existia em 1383 quando aí se dá o acordo de casamento entre D. Beatriz e D. João I de Castela, no reinado de D. Fernando, sendo este um dos mais marcantes acontecimentos que despoletaram a crise de 1383-85. Foi alvo de várias intervenções e obras ao longo dos séculos mencionadas por Beuvink (2015), que denotam a presença constante da corte. Com a entrada no Antigo Regime, sobretudo durante século XVIII, como afirma Hespana (1993), a corte afirma a sua sedentarização, passando a orbitar essencialmente em torno de Lisboa, sendo Salvaterra de Magos um dos limites da abrangência desta órbita. Com o terramoto de 1755, este paço leva obras de vulto, sendo-lhe incorporada uma Casa da Ópera e em 1775 um novo picadeiro, confirmando assim a importância que ainda detinha para a corte. Irá entrar em declínio no final do reinado de D. Maria I, quando a corte foge para o Brasil, em 1807. Há ainda um outro paço ao qual não podemos deixar de fazer referência, que apesar de não ter sido palco de nenhum evento notável, como uma reunião de Cortes, foi sem dúvida um dos eixos do desenvolvimento da Ribeira de Muge. Falamos precisamente do Paço Real da Ribeira de Muge, do qual ainda hoje é possível ver algumas ruínas no lugar de Paço dos Negros (Almeirim). Segundo Evangelista (2011), a construção deste paço estava já em curso em 1511, estando concluído em 1514. Servia essencialmente como apoio às caçadas reais, sendo inclusivamente sede de almoxarifado, criado em 1514 e que durou até 1790. Após esta data foi vendido à casa da Atalaia.

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Magos 1.2 | As populações e as relações administrativas

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Apesar da presença constante da corte até ao final do séc. XVI mais a norte da Ribeira de Muge (em Almeirim e Santarém) e até ao final do séc. XVIII em Salvaterra de Magos, aqui foram-se desenvolvendo povoados que tinham as suas dinâmicas próprias, mais ou menos dependentes da Coroa. Assim, e tomando como ponto de partida as vilas que eram concelho, e se tomarmos como objetivo para criação de um concelho a atribuição de foral4, podemos afirmar que o mais antigo concelho da região será o de Santarém. Com efeito, D. Afonso Henriques conquista definitivamente esta então vila aos mouros em 1179, e outorga-lhe Carta de Foral5 nesse mesmo ano. Ainda da época medieval, temos registos da atribuição de mais forais na região. Neves (2014) alude à Carta de Foral atribuída a Salvaterra de Magos em 1 de junho de 12956. Em 1304 será a vez de ser atribuída a Muge Carta de Foral, que é renovada apenas três anos depois. Já no reinado de D. Pedro I será dada aos moradores de Santa Maria da Glória uma Carta de Privilégios. D. João II, em 1489, outorga a Almeirim uma Carta de Privilégios. Esta, segundo Custódio e Rodrigues (1990), vem transformar um lugar que orbitava em torno da construção do paço e do serviço à corte para uma vila realenga (dando uma série de privilégios aos moradores, no qual se incluía a não obrigação de dar aposentadoria à nobreza e ao clero, com exceção da família real). Assim, passam a existir estruturas próprias dos municípios em Almeirim, como um pelourinho. Já no séc. XVI, Soares (2005) refere que D. Manuel I procede a uma reforma de fundo nas cartas de foral portugueses, emitindo novos documentos. Dentro da área em questão, o monarca concede em 1506 nova Carta de Foral a Santarém e em 1517 a Salvaterra de Magos. Podemos definir foral como “diploma concedido pelo rei, ou por um senhorio laico ou eclesiástico, a determinada terra, contendo normas que disciplinam as relações dos seus povoadores ou habitantes entre si e destes com a entidade outorgante” (Almeida apud Soares, 2005: 31). 5 Segundo Soares (2005), Santarém houvera tido outros forais antes. Contudo, os constantes avanços e recuos da reconquista cristã fizeram com que este tenha sido o primeiro efetivamente atribuído. O Foral de 1179 é confirmado, às vezes com adição de alguma adenda ou com a atribuição de alguma carta de privilégios além do foral por todos os monarcas da primeira dinastia (com exceção de D. Sancho II) e D. João I. 6 Este foi reformulado em 20 de maio de 1455 por D. Afonso V 4

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Moinhos do Convento da Serra na Ribeira de Muge

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No que diz respeito à população, Rodrigues (2001) aponta como uma fonte em termos absolutos o Numeramento de 1527. Segundo este, o Termo de Santarém (que contava com várias freguesias na margem esquerda do Rio Tejo7) tinha à época cerca 4755 vizinhos8. Os lugares mais populosos eram, do largo esquerdo do Tejo, a Golegã (421 vizinhos), Chamusca (156), Montargil (95), Ponte de Alpiarça (36), Ulme (139). Santarém assumia, sem sombra de dúvida, um papel superior aos dos outros concelhos da região. Não só pela sua dimensão, como pela própria máquina burocrática que detinha, e que os concelhos mais pequenos9 não teriam capacidade de implementar. Rodrigues (2004) aborda duas áreas sob alçada do concelho de Santarém a que se subordinavam, ao longo do séc. XVII, estes concelhos mais pequenos, nomeadamente a administração da justiça (com a Correição e o Corregedor), assim como da administração pública (com a Provedoria e o Provedor). Por fim, deve ainda mencionar-se uma receita própria da coroa, a que Hespana (1993) faz referência: os Próprios10. Estes eram recolhidos nos Almoxarifados dos Próprios, também designados como Almoxarifados de Pão. Dos mais próximos da zona em estudo mencionados pelo autor contam-se Salvaterra, Muge e Benavente. Também constituíam Próprios da Coroa as coutadas. Na zona encontramos a Coutada de Almeirim e a Coutada de Salvaterra.

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Podemos contar entre estas Alpiarça, Chamusca, Golegã, Monção (atual Benfica do Ribatejo), Montargil, Raposa, Chouto, Pinheiro, Ulme e Vale Cavalos. São desanexados e elevados a vila a Golegã (1534), Montagil (1542), Chamusca e Ulme (1531) 8 Isto significava uma população os 16600 e os 19000 habitantes. 9 O autor menciona que esses seriam os concelhos de Almeirim, Chamusca, Coruche, Erra, Lamarosa, Montargil, Muge e Salvaterra de Magos. 10 Os Próprios eram as “rendas dos bens do património real que não são bens da coroa. Ou seja, os reguengos. São reais as ilhas e margens do Tejo, periodicamente cobertas pelas cheias – as lezírias e os pauis – que se arrendavam ou cultivavam por conta da Fazenda Real” (Hespana, 1993: 213). 7

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Magos 2 | O Convento da Serra

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O Convento da Serra tem a sua génese numa pequena ermida erguida na Serra de Almeirim, com origens lendárias. Este convento pertenceu à Ordem dos Pregadores, ou Ordem dos Dominicanos, e temos registo de grande parte das suas origens até ao final do séc. XVI com base na obra de Manuel Sousa Coutinho, o frade dominicano que ficou conhecido como Frei Luís de Sousa, sobre a história de S. Domingos (Sousa, 1866). Assim, e após uma visita de D. João II à ermida (que era pequena para toda a população que ali acorria e ficava longe da estrada, depois de uma íngreme subida), que o monarca manifesta desejo da construção de uma nova, em lugar mais conveniente. Contudo morre sem sequer começar esta obra. Será o seu sucessor, D. Manuel I, que irá iniciar este empreendimento. Aquando de uma das suas visitas, o então infante D. João (futuro D. João III) manifesta interesse em que ali seja edificado um convento. Tal desejo é acolhido pelo Papa Leão X, que envia uma bula datada de 14 de maio de 1514. Todos os monarcas do séc. XVI manifestaram de alguma forma apreço por esta casa conventual. D. Manuel I mandou colocar um retábulo com a família real nos vários painéis (ele próprio, a rainha D. Maria e os infantes11). D. João III gostava de aí estanciar numa casa de campo que aí dispunha, e aumentou o valor da renda paga aos frades. O Cardeal-Rei D. Henrique doou um painel seu, em tamanho natural, juntamente com uma cruz com uma relíquia do Santo Lenho. D. Sebastião, segundo o relato de Frei Luís de Sousa, foi aqui velado quando o seu corpo regressou de Alcácer-Quibir, e era muita a dor expressa pelos frades. O próprio D. Filipe II estanciou neste convento, tendo-se referido ao mesmo, numa carta reproduzida por Vasconcellos (1924), como “un mostesterillo de Domínicos, bonito auque pequeño, que se llama Nuestra Señora da Sera”. Foi uma casa conventual bastante dinâmica, sobretudo ao longo dos séc. XVI e XVII. Com efeito, teve aqui um noviciado (que quando Frei Luís de Sousa redige a sua obra já não estava em funcionamento), e foram também estes frades responsáveis pela capela do Paço Real da Ribeira de Muge, desde 1560 (apesar de estarem anteriormente nomeados frades como capelões desta capela) até à extinção das ordens religiosas, no séc. XIX. Foi também lugar de sepultamento de algumas personalidades da época, como Estevão Peixoto (almoxarife do Paço Real da Ribeira de Muge entre 1536 e 1574), Fernão Soares (fidalgo da corte) ou D. Fernando Mascarenhas (Conde da Torre, e governador de Ceuta e de Tânger, falecido em 1651). Assim, foi esta casa objeto de algumas mercês por parte dos monarcas, nomeadamente de moinhos. Além dos moinhos na Ribeira de Muge, que falaremos a seguir, caiba ainda a nota para a posse, por parte dos frades do Convento da Serra, de dois moinhos na Ribeira de Pernes, chamados Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


Moinhos do Convento da Serra na Ribeira de Muge

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Moinhos da Sancha, tendo um dois casais de mós (um alveiro e um segundeiro12) e o outro três casais de mós (dois alveiros e um segundeiro), conforme documento de 1532.

3 | Moinhos do Convento da Serra na Ribeira de Muge

O Convento da Serra tem registos de posse de moinhos na Ribeira de Muge. Contudo, estes moinhos já se encontravam não no termo da vila de Santarém, onde estava edificado o convento, mas sim no Termo da Vila de Muge. Sabemos que, como alude Evangelista (2011) existia já a demarcação da Mata da Ribeira de Muge em 1440, que tinha como delimitação mais a jusante na ribeira o Moinho de Vasco Velho. Com a reformulação dos limites das coutadas, no início do séc. XVI, continua a manter-se como limite mais a jusante na ribeira o dito Moinho de Vasco Velho. Cremos que este engenho será o mesmo que é mencionado na Chancelaria de D. Duarte em 1434, referido como “Moinhos da Regueifeira”, quando o monarca coloca fim na contenda entre os limites dos termos dos concelhos de Santarém com Muge, na estrada que passa junto deste moinho a caminho de Coruche, sublinhando que o engenho fica dentro do Termo de Santarém13. Cruzando os estudos de Evangelista (2011) com Neves (2015), percebemos facilmente que a delimitação administrativa dos termos prende-se com uma fronteira natural aí criada. Era até ao Moinho da Regueifeira (que acreditamos que mais tarde fosse o Moinho de Vasco Velho) que chegava a área do Paul de Muge, e era aí que começava a Mata da Ribeira de Muge14. Assim, podemos afirmar que este engenho teve um papel fundamental nas delimitações administrativas entre os termos de Santarém e de Muge, que assumiam aqui também um carácter natural (com o fim da coutada - área florestal - e início do paúl). Antes de entrarmos na abordagem aos engenhos que constituem objeto de estudo, há uma outra questão que importa esclarecer: as relações contratuais. Com efeito, os moinhos eram considerados uma “empresa difícil e dispendiosa” (Gil, 1965: 162), sendo por isso instalados em grande parte nos domínios senhoriais. As mós alveiras eram feitas de uma pedra mole (normalmente calcário) e serviam para a produção de farinha branca (de trigo), e tendo um desgaste maior, a farinha que produziam era mais cara. As mós secundeiras (também chamadas negreiras) eram normalmente de granito ou arenito, uma pedra mais dura, que servia para os restantes trabalhos no moinho, com uma durabilidade superior às alveiras. 13 Apesar da orografia do terreno atualmente mostrar a lógica de ali ter existido uma estrada, a mesma desapareceu. Contudo, é precisamente aqui que passa o limite atual entre os concelhos de Almeirim e Salvaterra de Magos. 14 Atualmente esta característica geográfica está mais esbatida, devido ao estreitamento da Ribeira de Muge ao longo do séc. XIX, como menciona Evangelista (2011), para a cultura do arroz. 12

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Magos Entre outros, oneravam as construções o “transporte e colocação de mós, direito à usufruição dos cursos de água, a manutenção do mecanismo” (idem). Tendo isto presente, o aforamento15 era a tipologia contratual mais procurada pelos senhores para rentabilização dos seus engenhos situados nos seus domínios. O pagamento do foro era feito normalmente em géneros, o que protegia o senhor, uma vez que se o foro fosse pago em moeda, pela sua duração, conduziria a uma desvalorização do valor inicialmente estabelecido. Em relação à sua duração, este poderia assumir duas formas: em fatiota perpétuo (para sempre para o aforador e os seus descendentes em linha direta) ou em três vidas (aforador, herdeiro e 2.º herdeiro), podendo ser renovável neste caso.

3.1 | Os moinhos antes da fundação do Convento da Serra

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Apesar da fundação do Convento da Serra como casa conventual apenas no início do séc. XVI, os moinhos cremos que mais tarde lhe vieram a pertencer têm origem anterior a esta data. Com efeito, os mais antigos registos que conhecemos dos mesmos datam do séc. XV. Um deles será um Alvará de Aforamento a Gomes Eanes datado de 14 de junho de 1459. Na verdade, é nesta data que é aforado ao mencionado Gomes Eanes, “criado e vassalo”16 do rei, residente em Santarém, uma porção de terreno “para fazer uns moinhos, na Ribeira de Muja termo da dita vila entre os moinhos do Gonçalo e Porto de Lançarote”. O documento em questão trata-se, no fundo, de um despacho de autorização para o aforamento do terreno para a construção deste engenho, onde são estabelecidas as duas grandes condições do ato de aforamento: o pagamento e a duração. Assim, o valor do foro seria um quarto daquilo que o moinho rendesse, o que denota uma proteção a ambas as partes contratuais, nomeadamente o senhor (pelas vantagens do pagamento em géneros, como mencionamos acima) e o aforador (pelo pagamento de valor relativo, que aumentaria ou diminuiria em termos absolutos, consoante a produção do engenho). Quanto à duração, podemos considerar que o mesmo foi feito em fatiota perpétuo, uma vez que o documento menciona “para todo o sempre em sua vida para ele e para os seus filhos [e] descendentes”. Podemos definir como aforamento o processo em que o proprietário “alienava ao foreiro o domínio útil da terra e este, mediante a prestação de um cânone (foro)” (Ribeiro, 1986: 80). 16 Devido às características da documentação da Torre do Tombo, nomeadamente pela falta de autor e de página, optamos por não colocar referência quando fazemos citações diretas. Tendo em conta que também não fazemos confronto entre este género de documentos, poderá ser encontrado o mesmo facilmente na lista de documentação, onde os mesmos se encontram ordenados pelo ano. 15

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Moinhos do Convento da Serra na Ribeira de Muge

Quanto aos moinhos entre os quais se situava este Moinho de Gomes Eanes, que poderemos simplesmente designar como Moinho do Gomes, cremos que o Moinho do Gonçalo poderá ser aquele que já mencionamos como o Moinho da Regueifeira ou o Moinho de Vasco Velho. Quanto ao Moinho do Porto de Lançarote, temos conhecimento de um registo ainda de 1459, mais precisamente de 3 de novembro, que o menciona. É nessa data que o rei faz mercê a Gil Afonso, Besteiro da Câmara, do dito moinho. Com efeito, chegamos à conclusão que este Moinho do Porto de Lançarote se encontraria a jusante do Moinho do Gonçalo, uma vez que é continuamente mencionada ainda no séc. XVI esta característica de existência de “porto” ou “pontão”, que no séc. XVIII aparecerá grafado num mapa17. Assim, é a partir do Moinho do Porto de Lançarote que podemos deduzir qual a localização geográfica dos outros dois engenhos, devidamente cruzado com os dados dados pela delimitação do Paul de Muge e da Coutada da Ribeira de Muge, que mencionamos acima. Quanto ao Moinho do Porto de Lançarote, a mercê começa por mencionar que “nos disseram [ao rei] que na Ribeira de Muja a cerca do porto a que chamam de Lançarote está um assentamento que em outro tempo foi moinho e com sua levada já entopida (…) [O moinho] pertence a nós por ser moinho sem haver nenhuns herdeiros a que pertença”. É Gil Peres 17

de Resende, Contador nos almoxarifados de Santarém e Abrantes, que atesta que o moinho pertence ao rei, por não ter herdeiros nem “moengueiros”, podendo dele fazer o que bem entendesse. Ao contrário do que é costume, o engenho não foi aforado nem a coroa procurou retirar rendimento algum do mesmo. Este foi apenas objeto de mercê, ou seja, simplesmente doado. Os termos do contrato tornam-se mais simples do que o aforamento, sendo mencionado que a doação a Gil Afonso era “livre e irrevogável ante nos emos valedora [válida] deste dia para todo o sempre para ele e para todos seus herdeiros e sucessores assim os ascendentes como descendentes que depois dele viessem”. O novo proprietário não tinha obrigação alguma para com a coroa, podendo “ter e haver e possuir e vender e doar e trocar e escamboar e fazer dele [o moinho] e em ele o que lhe aprover como de sua cousa própria”.

Ver ponto 3.4.

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Magos 3.2 | Doação ao Convento da Serra

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Será em 1568 que sabemos, através de um documento da Chancelaria de D. Sebastião e de D. Henrique, que foi doado um moinho ao Convento da Serra pela coroa, à data reinando D. Sebastião. Este moinho ficava localizado “na Ribeira de Muja junto d’onde chamam o pontão”. Ora, tendo em conta o que podemos considerar como pontão18, será de todo legítimo inferir se seria este mesmo moinho aquele que em 1459 foi doado a Gil Afonso, no Porto de Lançarote. Contudo, o documento menciona ainda a forma como este foi parar à posse da coroa: houvera sido comprado a Aires de Sousa Coutinho19 e a sua mulher, D. Filipa da Cunha. No que diz respeito à doação propriamente dita, O primeiro período do documento diz- nos “Eu el rei faço saber aos que este alvará viram que eu hei por bem e me praz de fazer esmola ao Mosteiro de Nossa Senhora da Serra”. Verificamos uma certa característica de caridade ao ser considerada uma “esmola”, e temos de ter em conta os ideais extremamente religiosos da época e em que foi educado D. Sebastião, assim como 1568 ter sido o ano em que o monarca começou a governar (depois das regências da rainha D. Catarina e do Cardeal D. Henrique na sua menoridade). Talvez isto justifique a doação, completamente despojada de obrigações por parte dos frades. Na verdade, os termos do documento são bastante simples. O objetivo seria para mantimento do prior e dos padres do convento e incluía “tudo que aos tais moinhos pertença”, ou seja, além do edifício propriamente dito, incluiria também a levada (que possivelmente seria comum já nessa época aos moinhos que se encontravam a montante), e algum espaço de logradouro. Além disto, os frades podiam “ter e alugar e reger os tais moinhos e mais cousas que direitamente lhe pertencerem e as rendas deste arrendar e arrecadar por si e por quem lhes aprouver como cousa será própria sem lhes disso ser posto dúvida nem embargo”, ou seja, os frades não eram obrigados a explorar diretamente o moinho, mas poderiam obter o rendimento por outra via, através da concessão por arrendamento, como iremos verificar que acabou por acontecer. Segundo o dicionário Priberam Online, podemos considerar um pontão como uma “Construção que entra pelo mar, curso ou massa de água adentro, e que pode ter diversas funcionalidades e ser construída de diversos materiais (madeira, betão, etc).”. Assim, cremos poder afirmar que a estrutura aqui existente seria para aportamento de pequenas barcas (sabendo nós que a Ribeira de Muge foi no passado navegável até alguns quilómetros a montante deste ponto) ou então talvez simplesmente um ponto para travessia da ribeira com os ditos barcos. Assim, justificaria a anterior designação de “Porto de Lançarote”. 19 Conseguimos apurar, através do portal Geneall.net, que este Aires Sousa Coutinho terá nascido por volta de 1490 e terá casado em segundas núpcias com D. Filipa da Cunha por volta de 1510. Isto faz-nos crer que poderia o moinho ter estado alguns anos na posse da coroa, muito possivelmente sem arrendatário, aforador ou outro. 18

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3.3 | Arrendamentos pelos frades no final do séc. XVI

Temos conhecimento do registo de dois arrendamentos de moinhos efetuados por estes frades no final do séc. XVI. O primeiro, datado de 13 de fevereiro de 1591, foi feito no Tabelião de Santarém, entre o Convento da Serra (representado pelo Padre Frei Sebastião de Pavia) e dois moleiros residentes na Ribeira de Pernes (Domingos Fernandes e Pedro Dias). O moinho, localizado na Ribeira de Muge, é descrito como tendo quatro casais de mós (dois alveiros e dois segundeiros), e o objeto do arrendamento, além do moinho propriamente dito, compreendia ainda outras casas e um forno aí existentes assim como arneiros com árvores. O arrendamento teria início no dia de S. João (ou seja, 24 de junho) e teria a duração de três anos. Os frades entregavam o engenho “despejados livres e desembargados moentes e correntes”, sendo obrigados os arrendatários a devolver o mesmo ao cabo dos três anos nas mesmas condições. Além disto, os moleiros eram ainda responsáveis pela manutenção do açude do moinho, estando previsto que qualquer quebra neste inferior a dois palmos seria da sua responsabilidade e superior a isso do convento. Quanto à renda, esta consistia em 12 moios20 de pão meado anuais (metade de trigo e cevada, outra metade de mistura). Seria pago um moio por mês, com 30 alqueires de trigo e cevada e outros 30 de mistura. O segundo arrendamento foi feito em agosto de 1593, no Tabelião de Muge, entre os padres priores Frei António de Sequeira e Frei Diogo Correia (representantes do Convento da Serra) e o moleiro Domingos Fernandes. É mencionado que o moinho estava localizado na Ribeira de Muge e que tinha quatro pedras. Quanto as condições do arrendamento, este seria pelo período de um ano, a contar daquele dia, e o valor seriam 12 moios de pão meado, metade de trigo e metade de segunda, sendo mensalmente pago um moio. Foi apresentado como fiador do arrendamento Simão Dias, morador na Vila de Muge. No final do período de arrendamento era o moleiro obrigado o moleiro a entregar o moinho “sempre novo moente e corrente e com a levada cima”. Posto isto, importa refletir um pouco sobre estes dois arrendamentos. Em primeiro lugar, temos de ter em conta que o Convento da Serra, na sua “política de gestão” dos seus bens, chamemos-lhe assim, opta por efetuar concessões para a exploração do engenho por um curto período de tempo, utilizando para isso a figura do arrendamento, e não do aforamento, como se tornou comum nos moinhos da Ribeira de Muge pertencentes à coroa. Além disto, verificamos que o valor

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Um moio corresponde a 60 alqueires. Um alqueire tem entre 13 e 22 litros, aproximadamente.

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dos arrendamentos era superior ao dos foros21, chegando o arrendatário a pagar num mês o triplo do que um aforador pagava num ano, isto quando o foro não se traduzia apenas em obrigação de manter os engenho funcionais. Na verdade, a intenção do arrendamento será sempre de obter um rendimento da exploração dos bens, ou seja, dos moinhos (neste caso específico). Como refere Ribeiro (1986), o aforamento é um contrato em que o senhor cede por um largo tempo um bem que possui e que não tem condições de administrar, evitando assim o seu abandono e proporcionando àquele que o irá explorar ter de alguma forma como seu (tendo até em conta a duração do aforamento é muito grande – de três vidas para todo o sempre), sendo contudo o foro não tanto um rendimento para o senhor, mas mais um símbolo de que ele continua a ser o verdadeiro proprietário do espaço. Assim, podemos concluir que o verdadeiro objetivo dos frades era obter rendimento da exploração deste moinho. Além da figura de exploração do engenho, há mais dois aspetos que importa perceber: quem eram os arrendatários e qual era o moinho ou os moinhos em questão nestes arrendamentos. Quanto aos arrendatários, parece-nos que será o mesmo Domingos Fernandes em ambos os arrendamentos, mas, neste aspeto, ignoramos por completo o porquê do desaparecimento de Pedro Dias no segundo (terá morrido? Terão os moleiros “separado sociedade”?). Sendo mencionado no primeiro arrendamento que eram moleiros da Ribeira de Pernes, e não esquecendo que o Convento da Serra detinha aí, pelo menos em 1532, moinhos, seriam estes moleiros antigos arrendatários de outros engenhos do Convento da Serra? Quanto ao moinho, não temos elemento algum que nos permita concretizar qual a localização espacial do mesmo além de que ficava na Ribeira de Muge. Não poderemos sequer afirmar se se tratam de dois moinhos diferentes ou do mesmo, ainda que o facto de ser o mesmo, levante mais uma vez a questão do que aconteceu a Pedro Dias, uma vez que o primeiro arrendamento terminaria apenas em 1594, e o segundo é feito em 1593, mas apenas com um ano, ou seja, a terminar o prazo pouco depois do primeiro. Será este não um novo contrato, mas sim uma forma de alterar o anterior? É uma pergunta à qual não conseguimos responder. Tomé (2012), menciona na Ribeira de Muge, ao longo do séc. XVI, os seguintes aforamentos de moinhos feitos diretamente pela coroa: -1537: a Luís Mota, isento foro, com o compromisso de arranjar o moinho, uma vez que que se encontrava bastante degradado. -1545: a Diogo Lopes, em três vidas, com foro de 20 alqueires de pão meado anuais e obrigação de o reconstruir. - 1546: a Estevão Peixoto, isento de foro, com o compromisso de manter o moinho operacional e de fazer a sua manutenção. -1549: a João Pires, com o foro anual 30 alqueires de trigo limpo anuais.

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Contudo, a escolha do tabelião de Muge para o segundo contrato é de todo pertinente, uma vez que os moinhos se encontravam já dentro do Termo de Muge. A ser uma alteração do primeiro, hipótese que levantamos anteriormente, será que o facto de serem feitos em tabeliões diferentes pode justificar o facto do primeiro contrato não ser mencionado no segundo?

3.4 | As fontes alternativas do século XVIII

Se do século XVII não temos conhecimento de registo algum que mencione os engenhos do Convento da Serra (não lhes alude sequer Frei Luís de Sousa quando na primeira metade desta centúria escreve a história deste convento em três capítulos da sua obra sobre a Ordem de S. Domingues), do século XVIII temos algumas fontes diferentes daquelas que temos conhecimento do séc. XVI. São elas os registos paroquiais e alguns mapas deste século. Em relação aos mapas que conseguimos localizar cronologicamente no séc. XVIII, encontramos os mesmos reproduzidos nas figuras 1 e 2.

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Figura 1: Fragmento da “Plantas das Terras de Almeirim”.

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Magos O mapa “Plantas das Terras de Almeirim”, apesar de não datado22, dá-nos algumas informações importantes acerca do médio curso da Ribeira de Muge. No extrato apresentado pela imagem1 podemos ver que aparecem três moinhos grafados do lado direito da ribeira, entre a Raposa e os Caniçais (lugares ainda hoje existentes, e que nos permitem estabelecer com maior rigor a espacialidade do mapa). O Moinho do Policarpo ainda ficaria dentro do Termo de Santarém, Paróquia da Raposa23. Cremos que o Moinho dos Vecos24, já dentro do Termo de Muge, é aquele que foi feito de novo em 1459, por Gonçalo Eanes. Não temos conhecimento de outra menção a este engenho por esta designação além deste mapa. Por fim, o Moinho dos Frades estará indubitavelmente, pelo nome com o qual está grafado, ligado ao Convento da Serra. Sabemos que se trata do moinho que já anteriormente fomos referindo como estando junto ao Pontão, uma vez que esta estrutura aparece também grafada no mapa em questão. Podemos ver também a chegar a este moinho uma estrada que parte diretamente do Convento da Serra, grafado no meio dos montes.

231 Apesar de não datado, cremos poder afirmar que se trata de um mapa do segundo quartel do séc. XVIII. Com efeito, tem grafado um moinho mais a montante que aqueles que estamos a abordar no presente artigo - o Moinho do Desembargador - e segundo Custódio (2008) o cargo de Desembargador do Paço de Almeirim pertencia a António Teixeira Alves em 1729. Cruzando com os registos paroquias, aparece mencionado o “Casal do Desembargador” em 1735, 1737 e 1738; em 1739 surge “Casal do Desembargador António Teixeira Alves”. 23 Este moinho será aquele (ou pelo menos o herdeiro) onde no séc. XV houve a demarcação entre os Termos de Muge e Santarém, sendo conhecido à época como Moinho da Regueifeira, que falamos anteriormente. Não temos conhecimento que este engenho tenha alguma vez pertencido ao Convento da Serra, contudo, como mencionamos em Tomé (2014), este moinho foi pertença das Monjas do Convento das Donas, de Santarém (que tal como o Convento da Serra, também pertencia à Ordem de S. Domingos).Esta é a única vez que encontramos mencionado o Moinho do Policarpo. Não há mais alusões ao mesmo nem nos registos paroquias nem noutros elementos cartográficos que tenhamos conhecimento. 24 Não sabemos o que quer dizer ao certo “Vecos”, visto que tal étimo não aparece nem em dicionários nem em enciclopédias. Contudo, ao pesquisar no site do Arquivo Nacional da Torre do Tombo o étimo no singular (“veco”) surgenos um documento intitulado “Diligência de Habilitação de João Gonçalves Veco”, ou seja, um apelido. Seria assim este moinho conhecido por Moinho dos Vecos por ser esse o apelido dos proprietários ou moradores nesta época? 22

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Por outro lado, o segundo mapa apresentado vem com uma data na sua legenda (1775), pelo que conseguirmos situar cronologicamente com mais rigor a informação que o mesmo nos transmite. Assim, encontramos aqui grafados os mesmos três moinhos que tínhamos na Planta das Terras de Almeirim, apesar de diferentes designações. Com efeito, o mais a montante, ainda na Paróquia da Raposa, aparece como o Moinho do Clérigo25. Já dentro da Paróquia e Termo de Muge encontramos dois moinhos, ambos designados como “Moinho dos Frades”26, o que os ligará ao Convento da Serra. No que diz respeito aos registos paroquiais, o primeiro livro27 da Paróquia da Raposa tem quatro assentos que mencionaram o Moinho dos Frades. O primeiro deles data de 1723, e é um óbito de uma criança de seis anos, filha de António Fernandes e Maria Lopes, sendo residentes no “Casalinho de Baixo dos Moinhos dos Padres da Serra”. Menciona ainda este primeiro livro de assentos paroquias da Raposa três batismos na Igreja Paroquial da Raposa, e aludem sempre ao local como “Moinho dos Frades da Freguesia de Muge”. Em 1739, no registo de batismo de uma criança da Parreira, sabemos que os seus

Figura 2: Fragmento da “Carta Geografica das Montarias da Villa de Santarem”

padrinhos, João Coelho da Silva e a sua mulher Josefa Teresa são residentes no dito Moinho dos Frades. Será o mesmo João Coelho da Silva e uma filha (Dionísia Quitéria), que em fevereiro de 1740 serão padrinhos de batismo da filha de António Ribeiro e Maria da Silva, todos moradores no mesmo Moinho dos Frades. Em agosto de 1740 Dionísia Quitéria, que é novamente mencionada como moradora no Moinho dos Frades, é madrinha de batismo novamente, desta feita da filha de um casal do Termo da Vila de Avis.

No séc. XVIII é mencionado o “Moinho do Clérigo” nos Regis tos Paroquiais de Santo António da Raposa em 1715 e em 1796 e nos de Santa Marta de Benfica do Ribatejo em 1754 (Henriques, 2012). 26 Se o engenho que está mais a jusante não temos qualquer dúvida que se encontra grafado “M. dos Frades”, o mesmo não poderemos dizer do outro, uma vez que é de mais difícil interpretação a grafia em questão, dificultando o facto de estar por cima de um caminho que está assinalado. Contudo, caso seja efetivamente “M. dos Frades” que ali esteja grafado, a grafia da escrita (nomeadamente o “s” e o “d”) é diferente da do outro moinho, ainda que isso seja possível, tendo em conta outros locais assinalados no mesmo mapa. 27 O “Livro dos defuntos, dos baptizados e dos casados - Raposa (Sto. António )” é o primeiro livro de assentos paroquiais de que temos conhecimento da Paróquia de Santo António da Raposa, mediando o período entre 1706 e 1741. 25

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Magos No livro seguinte28, que medeia o período de 1741 a 1796, encontramos um assento de batismo que menciona que viviam em 1795 no Moinho dos Frades os pais de António, Pedro de Araújo e Vitória Maria. Posto isto, cremos poder afirmar que quando os assentos mencionam este local não se refere a pessoas que vivessem na casa de moagem em si, mas sim de eventuais fogos próprios para habitação que existissem nas imediações do moinho (mencionados nos assentos de doação e arrendamento acima mencionados), sendo provável que estas famílias trabalhassem ou no moinho ou explorassem o terreno circundante para trabalho do mesmo. Assim, sabemos que no final da década de 30, início da de 40 de setecentos viviam pelo menos duas famílias neste “Moinho dos Frades” (a de João Coelho da Silva e a de António Ribeiro). Contudo, não conseguimos traçar um retrato muito mais aprofundado das pessoas que aqui viviam, para melhor podermos perceber como seria o local, devido às informações limitadas que os registos paroquiais nos transmitem29.

3.5 | As alterações substanciais no séc. XIX

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No início do séc. XIX as ordens religiosas viviam algumas dificuldades. Primeiro com as invasões francesas, que pilharam e deixaram um rasto de destruição por onde passaram, e colocaram em estado de sítio os sítios aonde não chegaram. Depois, com o período da Guerra Civil e implantação do liberalismo que leva à extinção das ordens religiosas em 1834, em que todas as casas masculinas eram fechadas e as femininas ficariam abertas até à morte da última freira. Os seus bens reverteriam para o estado, que depois os leiloaria, com exceção dos objetos litúrgicos, que reverteriam para as dioceses distribuírem pelas igrejas necessitadas. No que diz respeito ao Convento da Serra as suas dificuldades já se deviam sentir há alguns anos, uma vez que, segundo Custódio (2008), em 1806 os frades hipotecam dois moinhos que têm na Ribeira de Muge30. Apesar de não sabermos qual o fim destes, a verdade é que até à extinção do convento ainda iremos encontrar dados relativos aos moinhos desta casa religiosa. Se temos conhecimento e sistematizamos toda a informação do primeiro livro de assentos da Paróquia de Santo António da Raposa, não fizemos o mesmo com este segundo livro do qual apenas temos conhecimento de alguns fragmentos. Será um trabalho a desenvolver no futuro, por forma a aprofundar e completar as informações aqui dispostas. 29 Com efeito, comparando com outros locais mencionados neste primeiro livro de assentos da Paróquia de Santo António da Raposa, temos uma escassez de assentos do “Moinho dos Frades”. Poderá ser razão para isso a sua localização noutra paróquia, e logo o grosso dos registos das pessoas que aqui viveram estarem nos livros da Paróquia de Muge. Por outro lado, terá tido o Convento da Serra um livro próprio de assentos? Neste caso, também não será de espantar estes assentamentos estarem feitos neste, sendo o moinho posse dos Frades do Convento da Serra. 30 Cremos ser legítimo questionar aqui se na verdade não se trata apenas de um moinho, uma vez que nos documentos mais antigos quando se fala em “dois moinhos” está a apontar-se para dois casais de mós, e não dois engenhos separados. Nestes documentos, quando se alude ao edifício no seu todo, diz-se “casa de moinhos”. 28

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Com efeito, em dezembro de 1825 iremos encontrar uma despesa do Convento da Serra de 20$000 para a compra de dois jogos de pedras (seriam casais de mós) para o moinho que se havia arrendado a Damião da Silva, uma vez que os termos do contrato deviam prever que tinha de ser o senhorio a comprar os casais de mós. Por outro lado, em 1829 há uma despesa de pagamento de 24$000 a Damião da Silva, rendeiro do moinho, por três pedras segundeiras mais 6$000 pelo carreto (transporte) das mesmas até Muge. Cremos que estas despesas seriam da incumbência do senhorio, contudo, o arrendatário deve ter avançado com as mesmas, e o Convento da Serra liquidou posteriormente a despesa, uma vez que o pagamento é feito diretamente a Damião da Silva. Para além destas despesas não dispomos de mais dados sobre este arrendamento, e apesar de crermos que o moinho que se encontrava arrendado seria na Ribeira de Muge (até pelo pagamento do carreto até Muge), não o podemos afirmar. Como mencionamos acima, em 1384 são extintas as Ordens Religiosas, e sendo o Convento da Serra uma casa masculina, é fechada logo na época, e os seus bens são leiloados. Encontramos na Lista n.º 80 do Diário do Governo de 20/05/1836 a ida à praça no dia 01/07/1986 de vários bens, sendo o primeiro mencionado um moinho do Convento da Serra situado na Ribeira de Muge. O engenho é descrito como tendo “três pedras, uma alveira e duas segundeiras”. O prédio a leilão, avaliado em 1000$000 era descrito como tendo, além do engenho “casas altas e baixas, terras de pão, mattos com alguns sobros e carvalhos, e um arneiro, parte do qual se acha semeado de pinhal”.

4 | Depois da extinção das Ordens Religiosas

Data de 1861, já depois da extinção das Ordens Religiosas, o levantamento cartográfico do Rio Tejo coordenado pelo General Júlio Guerra. No mapa que medeia o Dique de Valada aos Campos de Salvaterra encontramos igualmente cartografada a Ribeira de Muge até à Raposa. Aqui encontramos os mesmos três moinhos que temos vindo a falar. O primeiro ainda com a designação de Moinho dos Frades, apresenta ainda o mesmo nome que vinha pelo menos do início do séc. XVIII. Apesar da extinção das Ordens Religiosas já ter acontecido há três décadas, persistia esta designação, que liga este engenho ao Convento da Serra. De seguida, aparece o Moinho de Manuel Roiz, que cremos que possa também ter pertencido ao Convento da Serra. Seria este Manuel Roiz o seu novo proprietário? Por fim, aparece o moinho que fica já no Concelho de Almeirim, e que por várias vezes nos referimos ao mesmo, pelas questões de proximidade geográfica com os do Convento da Serra: O Moinho de Cima, designação que chegou aos nossos dias. Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Figura 3: Extrato da “Planta do Rio Tejo desde o Extremo do Dique de Valada até aos Campos de Salvaterra”

235 5 | Nos nossos dias

Hoje em dia esta zona “fronteiriça” entre os concelhos de Almeirim e Salvaterra de Magos é uma grande área de produção agrícola e florestal. O mencionado “Moinho dos Frades”, assim como o “Moinho dos Vecos” do séc. XVIII ou “Moinho de Manuel Roiz Pisco” do séc. XIX já desapareceram. Este último ainda aparece grafado nas cartas militares dos anos 70 com o nome de “Moinho do Meio” (ver imagem 4), designação que chegou aos nossos dias.

Imagem 4: Carta Militar dos anos 70, onde se vê ainda o Moinho do Meio, mesmo junto ao limite entre os concelhos de Almeirim e Salvaterra de Magos.

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Caiba ainda a referência ao “Moinho de Cima”, que integra a Quinta do Pinhão, já localizado no concelho de Almeirim, do qual é praticamente impossível não falar, se quisermos falar dos outros dois. Este é o único que chegou aos nossos dias, e que se encontra num estado de degradação bastante acentuado.

| Considerações Finais

Imagem 5: Local onde esteve edificado o Moinho do Meio, em abril de 2014.

À medida que fomos estudando a atividade moageira na Ribeira de Muge, fomos recolhendo os mais variados dados sobre a mesma. Tentando sempre atribuir a cada um dos engenhos os seus próprios dados, vamos montando a história dos mesmos, ainda que se formulem algumas perguntas para as quais não temos resposta, por um lado, e por outro lado se mantenham algumas lacunas mais ou menos largas, cronologicamente falando. Ao longo deste artigo fomos apresentando os vários dados que podemos atribuir aos dois moinhos que podem, eventualmente, ter tido ligações ao Convento da Serra, ainda que tenha sido pertinente por algumas vezes extrapolar esses dois engenhos. Posto tudo isto, importa ainda deixar duas breves reflexões sobre o estudo destes. 1. Ainda que o Convento da Serra tenha sido uma casa conventual importante no séc. XVI (Frei Luís de Sousa fala-nos do noviciado que teve, uma nau dos descobrimentos teve o seu nome e existiu inclusivamente em Goa uma Igreja de Nossa Senhora da Serra), a verdade é que terá perdido a sua importância na sociedade portuguesa quando a corte deixa de estanciar longos períodos em Almeirim. Assim, as grandes doações para rendimentos aconteceram até ao final desta centúria (além do moinho doado por D. Sebastião, verificamos que foram concedidas rendas e importantes obras de arte à igreja do convento, por exemplo). Depois disto, as doações que são feitas ao mosteiro são essencialmente coisas para cobrir as despesas mais correntes ou inesperadas. Daí talvez se justifique a constante exploração que os frades fizeram do engenho, por via do arrendamento em detrimento do aforamento, que certamente representaria menos encargos para estes, mas também menos rendimento. Uma vez que apenas temos conhecimento de arrendamentos no final do séc. XVI e no início do séc. XIX, parece-nos que seja possível Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos que o arrendamento tenha sido a figura de exploração dos engenhos que os frades sempre tiveram ao longo dos três séculos em que detiveram o moinho. 2. De quantos moinhos foi possuidor o Convento da Serra na Ribeira de Muge? Sem grandes margens para dúvidas, o moinho mais a jusante na ribeira dentro daqueles que fomos abordando pertenceu a esta casa conventual. Os dados são claros, pois ao cruzar a documentação com a cartografia, nomeadamente com a localização o “pontão” e o próprio moinho grafado como “dos Frades”, facilmente conseguimos perceber onde este engenho se localizava. Quanto ao segundo moinho, do qual dispomos de alguns dados que sabemos poder atribuir-lhe (Moinho do Gomes no séc. XV, Moinho dos Vecos no séc. XVIII ou Moinho de Manuel Roiz Pisco no séc. XIX), poderemos também colocar em dúvida se este realmente pertenceu aos frades do Convento da Serra ou não. Com efeito, ainda que existam algumas evidências nesse sentido (nomeadamente por existir a possibilidade de estar grafado no lugar deste “Moinho dos Frades” na Carta das Montarias de Santarém de 1775, assim como existirem dois arrendamentos cujo período cronológico tem uma parte ao mesmo tempo no final do séc. XVI feitos em moinhos da Ribeira de Muge pelos frades da Convento da Serra), cremos poder afirmar que estas não são suficientemente fortes para poder dizer que este engenho foi posse do frades da Serra, e que o dito arrendamento de 1594 não era o mesmo de 1591.

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| Documentação e Bibliografia

A) Documentação (1434). Chancelaria de D. Duarte, Livro 1, Microfilme 924, Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (1459). Leitura Nova - Estremadura, Livro 5, fol. 198, Maço 1001, Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (1459). Leitura Nova, Livro 8, fol. 159, Maço 1004, Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (1532). Conventos Diversos - Convento de Nossa Senhora da Serra de Almeirim, Livro 32, Arquivo Nacional da Torre do Tombo. (1568). Chancelaria D. Sebastião e D. Henrique, livro 21, folha 90v. (1591). Conventos Diversos, vol. 60, doc. 51. (1593). Convento de Nossa Senhora da Serra, doc. 6. (1706-1741). Livro dos defuntos, dos baptizados e dos casados - Raposa (Sto. António). (1741 a 1796). Livro de Registos Mistos (Óbitos, Baptismos e Casamentos). Paróquia de Santo António - Raposa. Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


Moinhos do Convento da Serra na Ribeira de Muge

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«A festa das sortes - Análise e estudo dos aspectos históricos e etnográficos desta cerimónia na Glória do Ribatejo» Roberto Caneira (Técnico superior de História) – patrimoniocultural@cm-salvaterrademagos.pt Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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«A festa das sortes - Análise e estudo dos aspectos históricos e etnográficos desta cerimónia na Glória do Ribatejo»

1 | Introdução

As sortes eram uma espécie de ritual de passagem feita só com elementos do sexo masculino, onde se festejava a “despedida” da idade de “rapazola” para ingressar no mundo dos Homens com responsabilidades. Trata-se de uma cerimónia festiva que os rapazes da Glória do Ribatejo, nascidos no mesmo ano, faziam quando tinham dezoito anos e iam à inspecção médica para fins militares. Ao longo de vários anos estes festejos fizeram parte da memória social da Glória do Ribatejo, eram evocados e ritualizados porque cada ano que passava, um novo grupo de rapazes celebrava as sortes. O nosso objecto de estudo para além de descrever os cerimoniais das sortes, analisa também alguns aspectos históricos e etnográficos do serviço militar, e a relação com a comunidade da Glória do Ribatejo. O espaço temporal do nosso estudo abrange da década de 60 até ao ano de 1993. As razões da escolha deste período prendem-se com a necessidade de analisar as sortes antes e depois da guerra colonial, o período depois do 25 de Abril de 1974 e o ano de 1993, por ser o ano das sortes do signatário do presente trabalho. A partir do início do séc. XXI (2004) com o fim do Serviço Militar Obrigatório, terminaram as inspecções médicas e finalizaram também as festas das sortes, interrompendo esta celebração secular na Glória do Ribatejo. 1

2 | A Glória do Ribatejo e a isenção militar

A Glória do Ribatejo desde a Idade Média possuía o privilégio de ser um local onde os Homens estavam isentos de serviço militar. Este privilégio não era inédito nas povoações medievais, esta isenção procurava fixar elementos de população em locais ermos, e proporcionar-lhes desenvolvimento humano. Segundo a tradição popular havia uma lápide com a inscrição da isenção militar aos povoadores da Glória do Ribatejo, a mesma estava afixada numa parede da igreja, e que desapareceu quando o primeiro gloriano foi convocado a prestar serviço militar ao Rei. Não havendo provas materiais desta lápide, temos que recorrer aos escritos de Alves Redol, que conseguiu deslindar que esta dispensa militar se manteve desde o séc. XIV até meados do séc. XIX e quem foi o primeiro Homem gloriano a ser mobilizado: «contam os velhos, nas suas recordações da mocidade que na igreja havia uma pedra onde tal ordem se gravava e que dali levaram não sabem para onde. Foi há sessenta anos que de lá saiu o primeiro homem para servir o Rei e envergar fardeta - Francisco António Pereira Caneira, se chamava. E desde de então, durante o tempo em que os regulamentos fixam, os moços sadios da Glória trocam o contacto produtivo do rabo da charrua, da foice e do pampilho pela coronha dura da espingarda».

Alves Redol, Glória, uma aldeia do Ribatejo, 3.ª Edição, Lisboa, Caminho, 2004, pp. 44-45.

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Magos Margarida Ribeiro no seu estudo dedicado à Glória do Ribatejo conseguiu identificar a data do primeiro homem que foi à tropa: «pronuncia-se com excepcional admiração, o nome do “Tio” Francisco Pereira Caneira, o primeiro homem que em 1822 “foi sorteado” = assentou praça e deixou a Glória para servir na tropa».2 A partir desta data é provável que tenha surgido este ritual das sortes: «Durante muitos anos, os homens da Glória estiveram isentos de serviço militar. Há perto de oitenta anos deixaram de usufruir deste privilégio. Desde então o dia das sortes é motivo para festa na aldeia.»3

3 | Aspetos etnográficos e antropológicos do serviço militar na Glória do Ribatejo

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O serviço militar estava envolvido num conjunto de cerimónias, que são antropologicamente interessantes de narrar. Quando o homem era convocado para o serviço militar, a mulher fazialhe um saco onde levava os seus haveres: «E chega o momento de ele ir à tropa. Parte com o seu saco grande de ramagens, desolado e abatido - recordações aos rolheiros a tornarem mais penosa aquela ida à cidade que o subverte e onde não vive.»4 O homem quando prestava serviço militar, verificava-se uma alteração da indumentária da mulher gloriana, as mães, noivas ou namoradas usavam uma roupa mais escura, simbolizando uma espécie de pré-luto pelo facto do seu companheiro não estar próximo delas, ir a bailes ou divertimentos era algo que estava fora de questão: «Ela abandona atavios, e o casaco, o avental e o lenço de cores claras, que lhe vão tão bem ao tostado do rosto. Veste de triste, quase sempre de roxo, e traz nos modos o ar trágico daquela primeira viuvez. Festas e bailes nunca mais! (…) Margarida Ribeiro, Estudos sobre Glória do Ribatejo, s.l., Edição da Associação para a Defesa do Património Etnográfico e Cultural da Glória do Ribatejo, 2001, p. 66 3 Idalina Serrão Garcia, “O Falar da Glória do Ribatejo”, Santarém, Assembleia Distrital de Santarém, 1979, p. 149 4 Alves Redol, Op. Cit, p. 105 2

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Fica de longe a ver as outras folgarem, isolada, não vá tentar-se com os rodopios da dança; a pensar talvez que bem podiam escusá-la àquela exigência, quando o rapaz lá pela cidade, na fardeta desajeitada, dirá a qualquer outra coisas que só ela ouvirá e até sabia de cor. Se ele tem licença para vir à terra, logo ela enverga o seu casaco rosa enfeitado a vermelho e preto, o avental de azul almeirão, o lenço branco de ramagens e espera-o à porta, radiante, toda ela sorrisos, compondo-se ao espelho e revendo-se (…).»5 Esta tradição de vestirem um traje mais escuro manteve-se até à guerra colonial, conforme é visível na fotografia (ver fotos 5 e 6 em anexo). Só a partir de 1974 é que muitos destes costumes relativos ao serviço militar vão desaparecer.

4 | A festa das sortes

Os rapazes da Glória do Ribatejo nascidos no mesmo ano quando completavam dezoito anos reuniam-se uma semana antes da inspecção médica para fins militares, que se realizava em Salvaterra de Magos (sede de Concelho) para celebrar as sortes. Durante uma semana estes rapazes entregavam-se à ociosidade, não trabalhavam e alugavam uma casa para fazerem pequenos bailes. Contratavam um acordeonista que os acompanhava para todo o lado durante estes festejos. Sempre juntos os rapazes percorrem as ruas da aldeia, entrando ainda em todas as tabernas, para beber vinho, cantando o seu hino “a cantiga da idade”6: “Dá-me um beijo, moreninha, Um beijo não custa a dar. O beijo de uma morena, É custoso d’alcançar!” As sortes promoviam uma amizade institucionalizada quase sempre para toda a vida, desenvolvendo solidariedade entre o grupo. Os elementos deste grupo ficavam ligados tradicionalmente por uma forte analogia de sentimentos de pertença, cuja coesão grupal era o factor idade.

Alves Redol, Op.Cit., p. 105 A cantiga da idade era uma espécie de hino que cada grupo de rapazes das sortes elaborava. Esta cantiga foi a dos rapazes das sortes de 1967 e foi-nos cantada pelo Sr. Manuel José Caneira (entrevista a 20-06-2016)

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Chegado o dia da inspecção militar, os rapazes estreavam um fato novo e iam em grupo até Salvaterra de Magos, sempre acompanhados pelo acordeonista: «para irem a inspecção a Salvaterra de Magos, os rapazes estreiam fato completo; a camisa, gravata, meias e lenços são oferecidos pelas namoradas que ainda dão cinquenta ou cem escudos conforme as posses. Até há pouco tempo estreavam dois fatos, um de fazenda, outro de cotim, dois anéis e corrente. Vão para Salvaterra na camioneta a cantar e a tocar concertina.»7 Submetidos à inspecção médica perante a Junta Médica, os mancebos considerados aptos ou não aptos prestavam juramento de fidelidade à Pátria. Como resultado da inspecção médica surgia uma hierarquização dos membros do grupo em: apurados, livres e esperados. Como sinais visíveis de diferenciação grupal os rapazes compravam fitas que colocavam na lapela do casaco ou no braço esquerdo cujas cores eram símbolos das “classificações” que tinham sido atribuídas: «No braço trazem fita vermelha os que ficaram “apurados”; fita branca “os livres”; fita azul, “os de espera”».8 Nos desfiles pelas ruas após a inspecção os rapazes dispunham-se com as fitas vermelhas, brancas e azuis. Notava-se em alguns uma atitude menos ruidosa nos rapazes com as fitas brancas ou azuis. A comunidade valorizava muito a “classificação” dos rapazes, o facto de ser apurado era entendido como um ponto de viragem em que se deixa de ser rapaz para se tornar homem. Algumas raparigas tinham até receio de namorar rapazes que tinham ficado livres, porque se não serviam para a tropa alguma coisa tinham. A chegada à Glória do Ribatejo dos novos mancebos após a inspecção eram um grande motivo de festas para os pais e familiares: «À chegada deitam-se foguetes e em cortejo percorrem a aldeia com o “Tio Manel ceguinho” a tocar harmónico à frente.»9 Segue-se o almoço entre os rapazes e após esta refeição, verifica-se a ritualização dos festejos das sortes, na medida em que o rapaz mais velho do grupo das sortes entregava ao rapaz mais velho do próximo ano das sortes, um objecto que era um pequeno pau (verdasca).

Idalina Serrão Garcia, Op. Cit, p. 150 Idem, p. 150 9 Idem, p. 150 7 8

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A entrega deste objecto assume um papel de ritualização da memória colectiva que as sortes tinham nesta comunidade, dado que consagrava a continuidade das sortes. «Após um almoço demorado, vêm ao encontro dos rapazes do sorteio do ano próximo. O mais velho entrega uma “verdasquinha” ao mais velho do novo sorteio, que fica responsável pela festa.»10 (foto n.º 1 em anexo) Nessa noite é o grande baile «dantes só os rapazes dançavam neste baile; agora são os rapazes e as namoradas. Nesta casa permanecem enquanto durar o arrendamento.»11 As sortes representavam para os rapazes, um ritual de passagem, chegou o momento em que os jovens atingem a sua maioridade, o momento em que deixam de ser moços e começam a sua vida de responsabilidades.

5 | As sortes ao longo dos tempos

A celebração das sortes manteve-se ao longo dos tempos como a festas dos “rapazes da mesma idade”, sofreram algumas alterações, mas no essencial os festejos conservaram sempre o mesmo espírito - a celebração e o espírito festivo da entrada dos rapazes na idade adulta. No passado o grupo de rapazes antes de ir para a inspecção médica juntavam-se para irem tomar banho em conjunto num ribeiro12, este ritual estava possivelmente associado aos “banhos santos”13 que ocorriam noutras localidades do país. Estes banhos tinham a função protectora contra doenças. No período anterior à guerra colonial, todo aquele rapaz que não era apto para o serviço militar era alvo de troça por não ter as condições necessárias para ir à tropa. Contudo esta situação a partir de 1961, com o início da guerra colonial altera-se e aquele que ficasse livre era abençoado por não ter que participar numa guerra injusta e cruel que ceifou a vida a milhares de Portugueses.14 A partir desta data, era raro os jovens glorianos considerados inaptos para o serviço militar. A guerra colonial exigia um grande número de militares e quase todos mancebos eram mobilizados. Idem, p. 150 Idem, p. 150 12 O Sr, Manuel José Caneira confidenciou-nos que no seu ano das sortes esta prática já estava fora de uso, mas que no inicio da década de ’60 ainda se faziam banhos colectivos como se evidencia na fotografia n.º 3 em anexo 13 Cf Ernesto Veiga de Oliveira, A romaria de São Bartolomeu do Mar, In Festividades Cíclicas em Portugal, 2.ª Edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1995, pp-239-249 14 A propósito da guerra colonial, apenas 2 soldados glorianos perderam a vida: João Nunes e José Feijão 10 11

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A partir de 1974 assistimos a alterações significativas nos festejos das sortes, mas que não desvirtuaram o significado e a essência das sortes. O acordeonista é substituído por bailes de grupos musicais (ver foto 4 em anexo), as festas começam a ser feitas na Casa do Povo e duram apenas dois dias: sexta-feira e sábado e perdeu-se o hábito da fita que identificava a condição do mancebo. O local das inspecções médicas também mudou a partir desta data, inicialmente eram feitas em Coimbra e depois foram transferidas para Lisboa. Os rapazes eram obrigados a pernoitar uma noite nestes locais e aqui destaca-se uma outra iniciação: a sexualidade, muitos rapazes perderam a virgindade nestas inspecções militares, recorrendo ao “serviço” de prostitutas. O ciclo completa-se, agora são Homens adultos. O ano das sortes de 1993 corresponde ao ano de nascimento dos rapazes que nasceram em 1974, e como já referimos do signatário deste trabalho. A celebração das sortes destes mancebos de 1993 teve o mesmo significado e a ritualização das sortes anteriores. Depois da inspecção médica realizada em Coimbra, os mancebos reuniram-se na Casa do Povo, decoraram este espaço com ramagem de eucalipto, balões e outros adereços decorativos, contrataram dois grupos de bailes: um para a sexta-feira e outro para o sábado convidam pais e familiares para assistir e participar nestes festejos. No sábado de manhã prestaram homenagem no cemitério aos rapazes e raparigas da mesma idade que já faleceram e entregaram-se neste fim-de-semana à ociosidade: comendo, bebendo e dançando, celebrando o ritual das suas sortes. Ainda hoje os rapazes celebram a sua amizade e evocam a festividade das sortes nos convívios anuais que realizam, reclamando deste modo a memória colectiva daquilo que os uniu em 1993 - as sortes: «a memória colectiva engloba o conjunto de referências, valores e saberes, do foro intelectual ou prático, que um determinado grupo social possui em comum e de representações que partilha sobre si e sua trajectória.»15

Maria Isabel João, Memória, História e Educação, In Noroeste. Revista de História, n.º1, Universidade do Minho, 2005, p. 92

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6 | Conclusão

A cerimónia festiva das sortes na Glória do Ribatejo possuía a função de um ritual de passagem, reunia um grupo de rapazes que tinham nascido no mesmo ano para celebrar a inspecção médica para fins militares. Esta festividade envolvia também a comunidade local que acompanhava e participava nos festejos dos rapazes, onde se destaca a continuidade deste rito aquando da entrega de um símbolo (uma verdasca) do rapaz mais velho da inspecção a um outro rapaz do ano seguinte das sortes. A partir de 2004 com o fim da obrigatoriedade do serviço militar obrigatório terminou a celebração das sortes nesta comunidade. Esta festividade é relembrada nos inúmeros convívios/ almoços que os vários mancebos dos diferentes anos continuam a realizar anualmente. Nestes convívios assegura-se a memória colectiva das sortes no tempo e no espaço, recordando os tempos passados: «A função primordial da memória, enquanto imagem partilhada do passado, é a de promover um laço de filiação entre os membros de um grupo com base no seu passado colectivo, conferindo-lhe uma ilusão de imutabilidade, ao mesmo tempo que cristaliza os valores e as acepções predominantes do grupo ao qual as memórias se referem. Considera-se, então, que a memória colectiva é o ponto de ancoragem da identidade do grupo, assegurando a sua continuidade no tempo e no espaço.»16 Estes relatos do passado também contribuem para a afirmação da identidade do grupo dos rapazes que nasceu no mesmo ano «a afirmação da identidade precisa de narrativas sobre o passado para estabelecer a continuidade dos grupos e o sentido do dever colectivo.»17 Em 2007 a Associação para a Defesa do Património Etnográfico e Cultural da Glória do Ribatejo, organizou no Museu Etnográfico a exposição “Quando “eles” estavam lá fora. Memórias da Ultramar na Glória do Ribatejo”, conseguiu reunir e expor ao público um conjunto de fotografias, trajes e objectos que evocam as particularidades das sortes e do serviço militar na Glória do Ribatejo. Este material recolhido é um excelente repositório para compreender e sobretudo legar às camadas mais jovens o que era a celebração das sortes na Glória do Ribatejo. O Museu também aqui desempenha a função da evocação da memória colectiva deste ritual das sortes. Elsa Peralta, Abordagens teóricas aos estudos da memória social: uma resenha crítica, In Arquivos da Memória: Antropologia, Escala e Memória. Lisboa, Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa, 2007 17 Idem, p. 31 16

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Magos | Bibliografia

- GARCIA, Idalina Serrão, “O Falar da Glória do Ribatejo”, Santarém, Assembleia Distrital de Santarém, 1979 - JOÃO, Maria Isabel, Memória, História e Educação, In Noroeste. Revista de História, n.º1, Universidade do Minho, 2005 - JOÃO, Maria Isabel, Memória e Império, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2002 - OLIVEIRA, Ernesto Veiga de, A romaria de São Bartolomeu do Mar, In Festividades Cíclicas em Portugal, 2.ª Edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1995 - PERALTA, Elsa, Abordagens teóricas aos estudos da memória social: uma resenha crítica, In Arquivos da Memória: Antropologia, Escala e Memória. Lisboa, Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa, 2007 - REDOL, Alves, Glória, uma aldeia do Ribatejo, 3.ª Edição, Lisboa, Caminho, 2004 - RIBEIRO, Margarida, Estudos sobre Glória do Ribatejo, s.l., Edição da Associação para a Defesa do Património Etnográfico e Cultural da Glória do Ribatejo, 2001

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Entrevistas: - Sr. Manuel José Caneira (entrevista a 20-06-2016) Fotografias: Créditos Fotográficos da Associação para a Defesa do Património Etnográfico e Cultural da Glória do Ribatejo (ADPEC)

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Foto 1 - grupo das sortes do ano 1960, no primeiro rapaz no lado esquerdo em baixo é visível a verdasca que vai ser legada ao rapaz mais velho das sortes do próximo, sendo ainda visível as fitas nos braços. Crédito fotográfico: ADPEC

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Foto 2 - Grupo das sortes do ano 1964, nesta fotografia destaca-se ao acordeonista “Ti Manel Ceguinho” que durante décadas acompanhou as sortes dos rapazes da Glória do Ribatejo. Crédito fotográfico: ADPEC

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Foto 3 - Grupo das sortes do ano 1964. Banho colectivo na Barragem de Magos. Crédito fotográfico: ADPEC

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Foto 4 - Baile dos mancebos de 1976, Crédito fotográfico: ADPEC

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Foto 5 e 6 - Traje da mulher gloriana quando os namorados/ maridos estavam na Ultramar, repare-se nos vestidos que tem uma cor mais escura: Crédito fotográfico: ADPEC

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Constantino Fernandes e o seu legado artístico e cultural Nuno Prates Conservador da Casa dos Patudos - Museu de Alpiarça nuno.prates@cm-alpiarca.pt / nunooliveiraprates@sapo.pt Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


Constantino Fernandes e o seu legado artístico e cultural

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| Resumo

O pintor Constantino Álvaro Sobral Fernandes (1878-1920) foi nos finais do século XIX, início de século XX um homem que não se limitou unicamente à criação artística. Foi também Matemático, Astrónomo, Columbófilo, Atirador à pistola e Inventor. É associado à Falcoaria e à Associação Portuguesa de Falcoaria, fundada no século XX. O legado que nos foi deixado por Constantino Fernandes dá-nos a conhecer um Portugal rural, mas que ao mesmo tempo começa a descobrir a industrialização. Na Casa dos Patudos - Museu de Alpiarça existe uma obra que nos retrata isso mesmo Abandonadas, datada de 1909. Palavras - Chave: Salvaterra de Magos; Falcoaria; Constantino Fernandes; Pintor; Património Cultural e História Local.

| Introdução

Na Casa dos Patudos - Museu de Alpiarça existem duas obras do pintor Constantino Fernandes, Abandonadas (1909) e o Anúncio Publicitário Adega Regional do Ribatejo (1910). Esta pintura a óleo sobre tela, que serviu de cartaz publicitário à Adega Regional do Ribatejo, representa Sileno amparado por dois semideuses, adornados com motivos associados ao vinho e à vinha. A Casa dos Patudos, em Alpiarça, projecto do arquitecto Raul Lino, é um museu de tutela municipal que tem por finalidade, de acordo com a vontade expressa em testamento, por José Relvas (1858-1929),1 para preservar e valorizar a sua colecção de arte, a sua biblioteca e o seu arquivo documental e fotográfico. Aqui está um importante espólio de obras de arte, destacando-se sobretudo as pinturas da autoria dos grandes mestres da pintura portuguesa dos séculos XIX e XX. Na outra obra aqui exposta Abandonadas (1909), está marcado com importantes características do realismo. É um documento importantíssimo para o estudo da Revolução Industrial em Portugal, retrata-nos o Areal da Junqueira, Zona Industrial de Alcântara - Lisboa. Uma família abandonada é retratada, pelo pintor, junto às fábricas de Alcântara. Uma mãe é abandonada com os seus três filhos.

José de Mascarenhas Relvas, nasceu na Golegã no dia 05 de Março de 1858 e faleceu em Alpiarça, em 31 de Outubro de 1929. Viveu nos Patudos desde os finais do século XIX até à sua morte. Político, diplomata, estadista, agricultor, coleccionador e amante da arte, músico amador e sobretudo um homem de gosto apurado e ecléctico.

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Fig. 1 - Adega Regional do Ribatejo (Cartaz Publicitรกrio), รณleo sobre tela, 1910, Casa dos Patudos - Museu de Alpiarรงa.

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Fig. 2 – Abandonadas, óleo sobre tela, 1909, Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça.

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Constantino Álvaro Sobral Fernandes, nasceu a 29 de Setembro de 1878, em Lisboa, na Rua das Trinas, nº 94 à freguesia da Lapa. Era filho de Eduardo José Fernandes (1830-1914) e de Emília das Dominações Sobral Fernandes. Com catorze anos de idade inicia o Curso Geral de Desenho, o qual frequenta até 1895 e no qual é premiado, aprende os traços do desenho com Simões de Almeida. Mais tarde, entre 1895-1899 é aluno da Escola de Belas Artes de Lisboa (Curso de Pintura Histórica), onde tem com mestre Veloso Salgado. Uma vez concluída a sua formação académica inicial, candidatou-se ao lugar de pensionista do Estado. Contudo, a candidatura não pôde ser aceite por falta de vagas. Já enquanto aluno da Escola de Belas artes do Porto concorre mais uma vez ao pensionato estatal, na classe de Pintura Histórica (1901-1902) e é aceite, ficando mesmo à frente de pintores como Acácio Lino ou Raul Maria Pereira. Inicia os seus estudos na École des Beaux Arts, de Paris, ficando a viver no 14º Bairro, no n.º 2 da Rua d’Odessa. Em França tem a oportunidade de frequentar a Academie Julien, sob orientação de Jean-Paul Laurens (1838-1921) e Fernand Cormon (18451924) e foi admitido no Salon de la Société des Artistes Français, em 1903. Entre os anos de 1902 e 1906 enviou correspondência a partir de Paris: cartas, relatórios, desenhos e pinturas. Já no final dos seus estudos

Fig. 3 - Constantino Fernandes (1878-1920).

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Constantino Fernandes e o seu legado artístico e cultural

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em Paris, fez uma viagem de estudo a Itália, Holanda e Madrid, executando cópias dos grandes mestres da pintura europeia. De regresso a Lisboa, em Maio de 1906, vai dedicar a sua carreira como retratista e pintor de cenas históricas, mas dedica-se também à técnica da água-forte, à escultura e ainda como cenógrafo e figurinista para o Ballet Gulbenkian e para o Teatro Nacional de S. Carlos. Com a participação na exposição do Grémio Artístico (1899), ganha uma 2.ª medalha, e participa ainda na exposição portuguesa do Rio do Janeiro (1908). Expôs na Sociedade Nacional de Belas Artes (1901, 1902, 1913, 1915-1918 e 1920). A sua obra está presente em vários museus em Portugal e no estrangeiro e ainda em várias colecções particulares. Homem apaixonado pelo mundo que o rodeava, pela natureza e com uma enorme vontade de a conhecer melhor torna-se inventor e astrónomo, mas também matemático. Era notável na arte da caça e columbófilo de reconhecido valor. Gostava de falcões e da arte da Falcoaria, onde é reconhecido todo o seu trabalho. Da sua produção pictórica podemos destacar-se o retrato de D. Pedro V (1908), que se encontra no Paço Ducal de Vila Viçosa e o tríptico O Marinheiro (1913), cedido pelo Museu de Arte Contemporânea ao Museu do Fado (Lisboa). Pinta várias cenas ligadas à columbofilia e O Falcoeiro onde retrata o gosto que tinha pela arte da caça, O Falcoeiro tal como em todas as obras é estudado ao pormenor e sempre com uma técnica irrepreensível. A obra foi vendida para França, aquando da sua realização (1909).

| Notas Finais

Como considerações finais, destacamos a importância e autenticidade deste legado. O pintor Constantino Fernandes deixou-nos uma obra de grande valor, não só pelo acervo legado mas sobretudo pela memória do que representa para a História de Portugal, para a pintura de cariz histórico. O pintor saía com frequência do seu estúdio e através da sua paleta viva e variada retrata um Portugal dos inícios de século XX intimamente ligado à ruralidade, aos seus usos e costumes, mas que a passos largos se quer tornar contemporâneo. Será para sempre lembrado como um dos pioneiros da arte da falcoaria e das suas técnicas. Certamente importante para o estudo da História local de Salvaterra de Magos, e da sua Falcoaria. O nosso estudo tem como principal objectivo dar a conhecer um pouco do legado artístico e cultural deste pintor que faleceu em Lisboa a 21 de Junho de 1920, mas do qual a obra permanece viva. Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Fig. 4 - Estudo - Pomba, óleo sobre tela cartonada, 1920, Colecção Particular

Salvaterra de Magos | n.º 3 | Ano: 2016


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| Bibliografia

- BARTHOLO, Maria de Lurdes, 1982, Casa dos Patudos (Solar de José Relvas). Roteiro, (3ª ed.), Alpiarça, s.n. - Constantino Fernandes: In Memoriam 1878-1920. Lisboa: 1925. - NORAS, José Raimundo, 2009, José Relvas (1858-1929). Fotobiografia, Leiria, Imagens& Letras. - QUEIROZ, José, 1916, Casas de Portugal. A casa dos Patudos, Terra Portuguesa. - PAMPLONA, Fernando de - Dicionário de pintores e escultores portugueses ou que trabalharam em Portugal. (2ª edição actualizada). Vol. 2. Porto: Livraria Civilização Editora, 1987, pág. 259 - PRATES, Nuno, 1997, Informação Histórica sobre José Relvas, in Voz de Alpiarça. - PRATES, Nuno, 2013, Representações de campinos na colecção de arte da Casa dos Patudos-Museu de Alpiarça, O Campino imaginários de uma identidade, representações nas Artes Visuais portuguesas (Catálogo da exposição), pp. 51-59.

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Salvaterra de Magos | n.ยบ 3 | Ano: 2016


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