Revista Magos 2020

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Lavadeiras, Ribeira de Muge (meados do sĂŠc. XX)


Foral de Muge (6 de dezembro de 1304)


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Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos n.ยบ7 | Ano 2020


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| Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos n.º 7 Ano: 2020

Propriedade Câmara Municipal de Salvaterra de Magos Coordenação Presidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, Eng.º Hélder Manuel Esménio Grafismo Soraia Magriço Colaboradores deste número Raquel Caçote Raposo Roberto Caneira Célia Gonçalves João Cascalheira Nuno Bicho Leonor A. P. de Medeiros Jorge Garcia-Fernandez Capa Lavadeiras, Ribeira de Muge (meados do séc.XX) Execução Gráfica Gráfica Central de Almeirim, Lda Depósito Legal 380652/14 ISSN 2184-7940 Tiragem 800 exemplares

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Índice 1 | A Arqueologia e grandes obras: a A13 e a ampliação do conhecimento sobre a ocupação humana do atual território de Muge | Raquel Caçote Raposo | pág. 3 à 20 2 | O Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia (1880) e a visita dos congressistas aos concheiros de Muge. | Roberto Caneira | pág. 21 à 42 3 | O concheiro do Cabeço da Amoreira, Muge, Portugal: resultados da última década de trabalhos arqueológicos (2008-2019) | Célia Gonçalves, João Cascalheira e Nuno Bicho | pág. 43 à 66 4 | Arqueologia e Levantamento Digital na Fábrica de Descasque de Arroz da Casa Cadaval | Leonor A. P. de Medeiros e Jorge Garcia-Fernandez | pág. 67 à 84 5 | As telas da igreja matriz de Muge - Telas sobre eucaristia da Capela do Santíssimo de Santa Maria de Belém. | Roberto Caneira | pág. 85 à 96

Salvaterra de Magos | n.º 7 | Ano: 2020


Magos Prefácio O Município de Salvaterra de Magos, tem enveredado por um caminho, que dignifica a pesquisa, estudo, valorização e divulgação da sua história local e do seu património cultural concelhio. A revista MAGOS, é fruto deste labor e assume-se cada vez mais como um precioso instrumento para o enaltecimento da nossa identidade cultural e da nossa memória coletiva. A 7.º edição da revista MAGOS, dedicada à secular vila de Muge, vai ao encontro do esforço do Município em descentralizar as suas atividades culturais, no ano passado, esta edição, privilegiou a história e etnografia dos festejos em honra de Nossa Senhora da Glória, este ano, depois de uma edição extra integralmente dedicada ao

Centenário da Praça de Touros de Salvaterra de Magos (1920-2020), teremos nesta publicação a arqueologia, a história e o património cultural de Muge, contribuindo desta forma para englobar as diferentes freguesias e lugares do concelho de Salvaterra de Magos. A revista MAGOS, ao longo destas últimas edições, tem vindo a criar elos que permitem a transmissão de conhecimentos em especial para as gerações mais novas, de forma a perceberem a importância do legado cultural dos seus antepassados. Esperamos que nos seja possível manter a sua periodicidade e que ela continue a desvendar o passado, a história e cultura do nosso concelho. Agradeço a todos os colaboradores/investigadores, que tornaram possível esta edição.

O Presidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos

Eng.º Hélder Manuel Esménio

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Arqueologia e grandes obras: a A13 e a ampliação do conhecimento sobre a ocupação humana do atual território de Muge Raquel Caçote Raposo1 1

raquel.dc.raposo@gmail.com


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Arqueologia e grandes obras: a A13 e a ampliação do conhecimento sobre a ocupação humana do atual território de Muge

Introdução Nos últimos vinte anos, a prática arqueológica em Portugal conheceu largo desenvolvimento no âmbito da concretização de grandes projetos e obras de consideráveis dimensões. Disciplina geradora e transmissora de conhecimento, e área fundamental no planeamento e ordenamento territorial, a arqueologia foi-se adaptando a novas práticas e desafios, ancorada num código legal mais clarificado desde a fundação do Instituto Português de Arqueologia (IPA), em 1997, no rescaldo da polémica das gravuras de Foz Côa. Em consonância com uma “atitude preservacionista (...) mais prudente”2, a que o Regulamento dos Trabalhos Arqueológicos aprovado em 1999 deu impulso em conjunto com outras medidas - numa “nova filosofia de enquadramento da política de prevenção, salvamento, investigação e apoio à gestão do património arqueológico”3 -, a atividade arqueológica foi manifestando uma tendência de crescimento, tendo por principal agente a arqueologia contratual, ou empresarial, que, acompanhando o panorama da Arqueologia Preventiva, tem vindo a assumir-se como o grande suporte da prática profissional no nosso país4. Como por todo o território nacional, também a região de Salvaterra de Magos, e de Muge em particular - objeto de investigação arqueológica desde a segunda metade do século XIX, altura em que se iniciaram as explorações científicas dos concheiros mesolíticos5 -, conheceu os impactes do investimento em infraestruturas rodoviárias na década de 2000. 2 Eurico Figueiredo (2005) - “As gravuras não sabem nadar”, População e Sociedade, nº 12, CEPESE/Ed. Afrontamento, Porto, p. 225. [Em linha] [Disponível em https://cutt.ly/joHHyel]. Sobre as novas práticas e desafios veja-se, sem prejuízo de outros, Alexandre Sarrazola (2002) - “Arqueologia e Acompanhamento de Obras. Um equilíbrio em construção”, Era Arqueologia, nº 2, Era Arqueologia, S.A./Ed. Colibri, Lisboa, pp. 52-67. [Em linha] [Disponível em https://cutt.ly/aoHttyE]; Miguel Lago e Lucy Shaw Evangelista (2012) - “Arqueologia em grandes obras: avaliar impactos e riscos, implementar soluções e concluir projetos”, 1º Congresso Brasileiro de Avaliação de Impactos/Anais da 2ª Conferência da REDE de Língua Portuguesa de Avaliação de Impactos, S. Paulo/Brasil. [Em linha] [Disponível em https://cutt.ly/loG1GkP]. 3 Decreto-Lei nº 270/99, de 15 de julho, Diário da República, nº 163, I Série A, p. 4412. [Em linha] [Disponível em https://dre.pt/application/ conteudo/358173]. Este diploma foi revogado pelo Decreto-Lei nº 164/2014, de 04 de novembro. 4 Sobre este assunto veja-se António Carlos Silva (2008) - “Arqueologia empresarial: questões legais a montante dos “Cadernos de Encargos”, Era Arqueologia, nº 8, pp. 14 -18. [Em linha] [Disponível em https://cutt.ly/8pDbgxA] e Jacinta Bugalhão (2011) - “A Arqueologia Portuguesa nas últimas décadas”, Arqueologia & História, nº 60-61, pp. 19-43. [Em linha] [Disponível em https://cutt.ly/FpDmULx]. 5 Sobre os exórdios destes estudos pode consultar-se João Luís Cardoso e José Manuel Rolão (2000) - “Prospecções e escavações nos concheiros mesolíticos de Muge e de Magos (Salvaterra de Magos): contribuição para a história dos trabalhos arqueológicos efectuados”, Estudos Arqueológicos de Oeiras, 8, Câmara Municipal de Oeiras, pp. 83-240. [Em linha] [Disponível em https://repositorioaberto.uab. pt/handle/10400.2/4627] e João Luís Cardoso (2018) - “ Primórdios dos estudos pré-históricos em Portugal: os concheiros mesolíticos de Muge (Salvaterra de Magos) e os seus exploradores”, CARDOSO, João Luís, SALES, José das Candeias (eds.), In Memoriam. Estudos de Homenagem a António Augusto Cardoso, Universidade Aberta, Lisboa, pp. 1-25. [Em linha] [Disponível em https://repositorioaberto. uab.pt/handle/10400.2/7668], entre outros. Recorde-se que a identificação dos concheiros de Muge se deu, em 1863, por mão de Carlos Ribeiro, tendo o conjunto - classificado como monumento nacional desde 2011 (Decreto nº 16/2011, de 25 de maio, Diário da República, nº 101, I Série A, p. 2936. [Em linha] [Disponível em https://dre.pt/application/conteudo/673416]) - sido alvo de variados trabalhos, de que resulta extensa literatura. Nos últimos anos os concheiros têm sido intervencionados por uma equipa do Centro Interdisciplinar de Arqueologia e Evolução do Comportamento Humano da Universidade do Algarve - cf. Célia Gonçalves (2015) - “O projeto Entre Tejo e Sado: uma contribuição para a descoberta de novos concheiros mesolíticos no centro de Portugal”, MAGOS - Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos, nº 2, pp. 3-15.

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Magos Prevista no Plano Rodoviário Nacional, a A13 - Auto-Estrada Almeirim/Marateca interligou o Sul com o Norte de Portugal, permitindo uma melhoria nas acessibilidades6. Devido às incidências significativas no ambiente, e abrangido pela moldura jurídica portuguesa, o seu licenciamento foi precedido de um processo de Avaliação do Impacte Ambiental (AIA), sustentado em estudos e consultas com uma participação pública efetiva. Em consideração dos instrumentos de política ambiental e salvaguarda patrimonial aplicados neste empreendimento procuramos, neste texto, fazer um cômputo dos efeitos que a construção da A13 teve sobre o património cultural, especificamente o arqueológico, e que medidas foram tomadas para os evitar e minimizar. O que não se conhecia, e se passou a saber, sobre a ocupação humana do atual território de Muge? Sobre isto nos debruçaremos.

Construção da A13 e medidas de minimização dos impactes Estudo prévio e sua revisão

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Concessionada à Brisa em 1997, a construção da A13 foi precedida do respetivo processo de AIA, sustentado em estudos prévios para cada sublanço, Almeirim/Salvaterra de Magos e Salvaterra de Magos/IC11, e num único Estudo de Impacte Ambiental (EIA), realizado para a Brisa pela empresa Ecossistema, Consultores em Engenharia do Ambiente, Lda7. Os trabalhos de prospeção arqueológica sistemática, levados a cabo entre os meses de abril e agosto

de 1999 sob responsabilidade de Luciana de Jesus, permitiram confirmar a localização de sítios referenciados na bibliografia, como é o de Fonte do Padre Pedro (CNS 10538) , concheiro-necrópole que se cria destruído, fruto da intensa atividade agrícola, na segunda metade do século XIX e onde, à superfície, a equipa identificou “uma bem definida camada de terra negra completamente

A A13 ligou a A2 - Auto-Estrada do Sul e a A6 - Auto-Estrada Marateca/Caia com a A1 - Auto-Estrada do Norte. Sobre a concessão, cf. Decreto-Lei nº 294/97, de 24 de outubro, Diário da República, nº 247, I Série A, p. 5736. [Em linha] [Disponível em https://dre.pt/application/file/a/672029]. ECOSSISTEMA, CONSULTORES EM ENGENHARIA DO AMBIENTE, LDA (1999) - A13 - Auto-Estrada Almeirim/Marateca. Estudo Prévio dos Sublanços Almeirim/Salvaterra de Magos e Salvaterra de Magos/IC11. Estudo do Impacte Ambiental. Resumo Não Técnico, MEPAT-SEOP/IEP/BRISA, Auto-Estradas de Portugal, S.A.. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural; ECOSSISTEMA, CONSULTORES EM ENGENHARIA DO AMBIENTE, LDA (1999) - A13 - Auto-Estrada Almeirim/ Marateca. Estudo Prévio dos Sublanços Almeirim/Salvaterra de Magos e Salvaterra de Magos/IC11. Estudo do Impacte Ambiental. Peças Escritas. Relatório Técnico, MEPAT-SEOP/IEP/BRISA, Auto-Estradas de Portugal, S.A.. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. 6 7

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repleta de conchas”8; da Quinta dos Gatos (CNS 11497), de onde recolheram, numa área de terra lavrada, abundantes fragmentos de cerâmica feita a torno atribuível à época romana; de Sobreiro do Neto (CNS 11495), onde foram identificados materiais líticos e cerâmicos atribuíveis ao paleolítico e neolítico/calcolítico; de Vila Longa (CNS 11167), onde foram identificados, em terra lavrada, líticos e cerâmica atribuíveis ao neolítico/calcolítico e à época romana. Por relocalizar, devido às condições do terreno, ficaram o concheiro do Cabeço da Arruda (CNS 693), alvo de trabalhos arqueológicos recentes pela equipa de Nuno Bicho et al.; a área onde surgem documentados vestígios atribuíveis ao paleolítico e ao mesolítico, em Vale Pacheco (CNS 11494); e Serradinho (CNS 11496), sito acima de uma plataforma que domina o Paúl de Muge, já nos atuais limites urbanos da vila, onde, em 1995, foram recolhidos vários utensílios numa diacronia de materiais que indicia ocupações no paleolítico, época romana e medieval, com maior destaque para o período muçulmano9.

Meses depois, em janeiro de 2000, colocava-se em consulta pública o estudo prévio dos sublanços Almeirim/Salvaterra de Magos, com quatro soluções alternativas para implantação da auto-estrada, e Salvaterra de Magos/IC11, com três. No primeiro sublanço, apenas uma das alternativas apresentadas, a Alternativa A, não colidia com os Concheiros de Muge ou outros sítios arqueológicos identificados na zona, o que motivou críticas acesas.

6 Fig. 1 - Público (2000) - “Ambiente “chumbou” traçados da A13 e IC3”, de 17 de março.

Luciana de Jesus (1999) - Relatório. Estudo de Impacte Ambiental. Vertente Patrimonial. A13 Auto-Estrada Almeirim/Marateca. Lanço Almeirim/A19 (IC11) (Benavente). Estudo Prévio, p. 15. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural; ECOSSISTEMA, CONSULTORES EM ENGENHARIA DO AMBIENTE, LDA (2000) - A13 - Auto-Estrada Almeirim/Marateca. Estudo Prévio dos Sublanços Almeirim/Salvaterra de Magos e Salvaterra de Magos/A10/Santo Estêvão. Estudo do Impacte Ambiental. Resumo Não Técnico. Secção B, p. 140, MES-SEOP/IEP/BRISA, Auto-Estradas de Portugal, S.A.. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. Sobre a destruição deste sítio veja-se Pedro Alvim (2010) - “Moita do Sebastião, 1952-54: o núcleo de um concheiro de Muge”, PROMONTORIA, nºs 7/ 8, Dep. História, Arqueologia e Património/Universidade do Algarve, p. 9. [Em linha] [Disponível em https://cutt.ly/zs1RfU9]. 9 Ibidem, pp. 9-28. Sobre o arqueossítio Serradinho veja-se Gonçalo Lopes (2015) - “Materiais do povoado islâmico do Serradinho (Muge, Salvaterra de Magos)”, CIRA-Arqueologia, nº 4, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira/Museu Municipal, pp. 171-186. [Em linha] [Disponível em https://www.cm-vfxira.pt/cmvfxira/uploads/document/file/998/7.pdf]. Hipólito Cabaço já tinha recolhido material paleolítico deste arqueossítio - Raquel Caçote Raposo (2015) - “Hipólito Cabaço e a arqueologia no concelho de Salvaterra de Magos: um contributo à luz do seu acervo epistolar”, MAGOS - Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos, nº 2, p. 66. 8

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Na comunicação social, parangonas alertavam para a ameaça que a A13 representava para a arqueologia, mostrando que a proteção do maior complexo mesolítico da Europa, “de importância científica mundial igual às gravuras de Foz Côa”, unia diversas entidades10. Às reações da população, duramente entoadas pela ameaça de divisão da aldeia de Foros de Salvaterra, juntava-se a comunidade científica, a junta de freguesia e a autarquia salvaterrense, que exigiam a procura de alternativas pela preservação do complexo arqueológico e da integridade da povoação, à altura com 5 mil habitantes. Seguindo de perto o EIA da A13, o então IPA elaborou, a pedido da Direção Geral do Ambiente, um parecer escolhendo a alternativa A, a única “que não colidia com a Zona Especial de Protecção dos Concheiros (...) nem com outros sítios arqueológicos conhecidos na zona”11. Atendendo à elevada sensibilidade arqueológica da área em estudo foram preconizadas medidas de minimização genéricas e específicas, como a prospeção arqueológica sistemática integral do corredor escolhido, bem como das áreas afetas à obra,

como zonas de estaleiros, de empréstimo e depósito de terras, complementada com o acompanhamento arqueológico das fases de desmatação; Atendendo à elevada sensibilidade arqueológica da área em estudo foram preconizadas medidas de minimização genéricas e específicas, como a prospeção arqueológica sistemática integral do corredor escolhido, bem como das áreas afetas à obra, como zonas de estaleiros, de empréstimo e depósito de terras, complementada com o acompanhamento arqueológico das fases de desmatação; o acompanhamento arqueológico em fase de obra, aquando de revolvimento de terras; devendo prever-se verbas para a realização de sondagens e, caso necessário, de escavação em área, em alguns sítios, dirigidos por arqueólogo com reconhecida experiência em pré-história12. Em março de 2000, o Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território acabaria por emitir pareceres desfavoráveis relativamente aos traçados propostos, mostrando a necessidade de uma reanálise articulada, que minimizasse o impacte13.

Diário de Notícias (2000) - “A-13 ameaça arqueologia”, de 29 de janeiro. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural; Ibidem - “Um escândalo exemplar na ribeira de Muge”, de 01 de fevereiro. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural; Ibidem - “Concheiros de Muge também são afectados”, de 08 de fevereiro. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural; Círculo de Estudos Arqueológicos (2000) - “Concheiros de Muge”, {ofício} 2000 fevereiro 16 {a} Instituto Português de Arqueologia {Dactilografado}. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. 11 Instituto Português de Arqueologia (2000) - Refª 99/1(287), de 16 de fevereiro (00781). Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. Dando cumprimento à legislação sobre AIA - Decreto-Lei nº 69/2000, de 03 de maio -, o IPA fez parte da Comissão de Avaliação, por nomeação da Direção-Geral do Ambiente (alínea d) do nº 1 do Artº 9º). 12 Instituto Português de Arqueologia (1999) - Informação nº 639/IPA/99, de 20 de setembro. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural ; Instituto Português de Arqueologia(2000) - Refª 99/1(287), de 20 de janeiro (00300). Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. 13 Público (2000) - “Ambiente “chumbou” traçados da A13 e IC3”, de 17 de março. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. 10

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Seria, assim, realizada a revisão do estudo prévio, na bibliografia como destruído, Pinheirocas (CNS mostrando-se inviáveis as alternativas que atraves- 15529) e Quinta da Boavista (CNS 11512), de que savam o Paúl de Muge na área em que fora propos- trataremos adiante16. ta a sua classificação legal14, e necessária a prospeção sistemática e cautelosa do corredor escolhido, complementada com outras medidas mitigadoras, Da Declaração de Impacte Ambiental à execução do projeto como o acompanhamento arqueológico15. Durante essa fase do processo de AIA foram pros- Em outubro de 2000 a Brisa dava a conhecer os petadas áreas anteriormente não contempladas, pareceres acerca do EIA. No que ao descritor pacomo se impunha pela inclusão de novas alterna- trimónio diz respeito, a comissão de avaliação protivas, de que é exemplo a área do Paúl da Casa do nunciou-se positivamente, encontrando-se tudo Cadaval, onde já anteriormente haviam sido iden- em conformidade17. tificados vestígios arqueológicos. Não obstante os Como preconizado na Declaração de Impacte trabalhos terem sido condicionados pela visibilida- Ambiental (DIA), em finais de 2001 foi realizada a de do solo em diversas áreas, seriam achados ma- prospeção sistemática do traçado do sublanço Alteriais isolados a 500 metros W da alternativa 1, ao meirim/Salvaterra de Magos/Santo Estêvão e do pk 8+000 - uma lasca macrolítica em quartzito de sublanço Benavente/A13 (IC3) da A10 - RECAPE, cronologia indeterminada -, e uma lasca rolada so- com corredor em estudo formado pelas soluções bre seixo de quartzito de cronologia indeterminada 1, 3 e A -, tendo sido relocalizados, por Alexanem Caniçais da Rainha (CNS 15530). Por relocalizar dra Simões Soares, os sítios de Caniçais da Rainha que dariam alguns sítios, entre eles o concheiro-ne- onde, ulteriormente, em fase de acompanhamento crópole da Flor da Beira (CNS 10552), referenciado arqueológico da obra, depois da desmatação para

A abertura do processo fez-se no ano 2000 por parecer de António Monge Soares, à altura subdiretor do IPA, e a Zona Especial de Proteção dos concheiros foi proposta por José Morais Arnaud, no âmbito de um trabalho apresentado em provas da Carreira Técnica Superior em finais de 1998 - Instituto Português de Arqueologia (2000) - Refª 99/1(287), de 16 de fevereiro de 2000 (00780). Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. 15 Instituto Português de Arqueologia (2000) - Informação nº 741/IPA/00, de 30 de novembro. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. 16 Luciana de Jesus (2000) - Relatório. Estudo de Impacte Ambiental. Vertente Patrimonial. A13 Auto-Estrada Almeirim/Marateca. Sublanço Almeirim/Salvaterra de Magos. Revisão do Estudo Prévio, p. 35. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural; ECOSSISTEMA, CONSULTORES EM ENGENHARIA DO AMBIENTE, LDA (2000) - A13 (...), p. 141. Sobre o estado do concheiro-necrópole da Flor da Beira, Pedro Alvim, Op. Cit., p. 9. 17 Instituto Português de Arqueologia (sd) - Parecer da vertente patrimonial do EIA da A13 - Auto-Estrada de Almeirim/Marateca, Sublanços Almeirim/Salvaterra de Magos e Salvaterra de Magos /A10/Sto Estevão. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. O processo de pós avaliação seria dado por encerrado em novembro de 2002 - Ministério das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente (2002) - Processo de Pós-Avaliação nº 34 (Refª 522.2/02-SAI/DIA, de 05 de novembro). Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. 14

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início dos trabalhos, Luisa Cabello identificou, aos pk’s 7+000 e 7+200, “uma mancha de materiais, nomeadamente um núcleo discoide, lascas em seixo e seixos afeiçoados”18 e, aos pk’s 7+075 e 7+125, “algumas lascas, um núcleo de configuração em quartzo e alguns núcleos em quartzito, material integrável no Paleolítico Antigo”19; e Pinheirocas, uma estação com ocupação atribuída ao neolítico/ calcolítico, identificada por Maria Miguel Lucas e Martino Ferrari, que viria a ser afetada nas suas camadas superficiais pelas movimentações de maquinaria durante a construção de valas de drenagem, levando à realização de sondagens arqueológicas de emergência como medida de minimização20. A intervenção arqueológica em Pinheirocas, realizada em duas fases distintas - em 2003, sob responsabilidade de Ana Jorge e Iola Filipe, depois continuados, em 2004, por Ângela Ferreira e Juan Antonio Espinosa, que a designaram posteriormente de Pinheirocas 2 -, revelaria dois momentos de ocupação num momento do paleolítico superior, no magdalense antigo e solutreo-gravetense, não

obstante terem sido recolhidos materiais de períodos anteriores, como seja do solutrense21. Numa zona limítrofe entre os depósitos de cascalheiras, grés argiloso e argilas do terraço do Siciliano II (5065 m), a norte, e os baixos terraços de areias e argilas do Tirreniano II (8-15 m), a sul, esta estação de ar livre, localizada em depósitos modernos do holoceno, “encaixados entre duas formações de depósitos de terraços fluviais plistocénicos”, indicava estar preservada in situ22. No decurso dos trabalhos foram identificadas cinco prováveis estruturas de combustão, constituídas por seixos de quartzo e de quartzito, alguns dos quais correspondentes a termoclastos passíveis de remontagem. Em níveis revolvidos foram recolhidos fragmentos de cerâmica pré-histórica; e artefactos líticos em sílex, quartzo e quartzito, correspondentes a todos os momentos de uma cadeia operatória, núcleos, restos de talhe e utensílios. Os arqueólogos responsáveis pela intervenção referem que os materiais recolhidos à superfície eram

Luisa Pineda Cabello (2003) - Relatório Preliminar dos achados realizados no acompanhamento arqueológico na A13 Auto Estrada Almeirim/Marateca. Sublanço Almeirim/Salvaterra de Magos. Lote A. Caniçais da Rainha. Herdade dos Caniçais, Archeocélis - Investigações Arqueológicas, Lda. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. Não foram detetadas evidências arqueológicas em profundidade, crendo tratar-se de um terraço desmantelado pelo plantio de um eucaliptal que ocupava a área, bem assim pela passagem de linhas de água - Direção-Geral do Património Cultural - Caniçais da Rainha. [Em linha] [Disponível em https://cutt.ly/2s5keEO]. 19 Luisa Pineda Cabello (2003) - Relatório Final das Sondagens Mecânicas realizadas em Caniçais da Rainha II (7+075/7+125). A13 - Auto Estrada Almeirim/Marateca. Sublanço Almeirim/Salvaterra de Magos. Lote A, Archeocélis - Investigações Arqueológicas, Lda. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. Não foram detetadas evidências arqueológicas em profundidade, crendo tratar-se de um terraço desmantelado pelo plantio de um eucaliptal que ocupava a área, bem assim pela passagem de linhas de água - Direção-Geral do Património Cultural - Caniçais da Rainha. [Em linha] [Disponível em https://cutt.ly/2s5keEO]. 20 As camadas superiores deste sítio já se encontravam afetadas por valas de antigas plantações de pinheiros. 21 Juan Antonio Espinosa e Ângela Ferreira (2004) - Relatório dos Trabalhos Arqueológicos. A13 - Auto-Estrada Almeirim/Marateca, Sublanço Almeirim/Salvaterra de Magos (Lote A). Sítio de Pinheirocas 2, Era - Arqueologia, p. 22. Pinheirocas e Pinheirocas 2 são o mesmo arqueossítio. 22 Ana Jorge e Iola Filipe (2003) - Relatório dos Trabalhos arqueológicos. A13 - Auto-Estrada Almeirim/Marateca, Sublanço Almeirim/Salvaterra de Magos (Lote A), Sítios PK7+907 (Vala Mecânica) e PK7+674 (Pinheirocas), Era - Arqueologia, p. 5. 18

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Fig. 2 - Pinheirocas. Materiais recolhidos à superfície na vertente do terraço, a Norte do sítio. (Fonte: http://era-arqueologia.pt/ projectos/325).

resultantes das movimentações de terra aquando de trabalhos agrícolas. Os níveis inferiores estavam preservados: durante a primeira fase da intervenção foram exumados lascas e lamelas retocadas, lamelas de dorso com retoque abrupto e marginal, denticulados, raspadores e raspadeiras, buris, furadores, bigornas e percutores, havendo grande homogeneidade nos tipos líticos e matérias-primas representadas (quartzito, quartzo, sílex, outros)23; e, no decurso da segunda fase, mais de quinze mil artefactos, sobretudo pertencentes a indústria microlítica sobre sílex, contando-se lamelas e lascas, raspadeiras tipo Vascas, núcleos e rastos de talhe sobre elevada diversidade de matérias-primas24.

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Fig. 3 - Pinheirocas 2 - sondagem 6. Marcas dos trabalhos agrícolas e da ação das retroescavadoras. (Fonte: http://era-arqueologia. pt/projectos/358). 23 24

Ibidem, pp. 18-27. Juan Antonio Espinosa e Ângela Ferreira, Op. Cit., pp. 18-21.

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Fig. 4 - Pinheirocas 2. Concentração de termoclastos. (Fonte: Juan Antonio Espinosa e Ângela Ferreira (2004) - Relatório dos Trabalhos Arqueológicos (...), Era - Arqueologia, p. 16).

Como avançaram, a ocupação deste sítio poderá estar relacionada com a presença de cascalheiras nas proximidades, que funcionariam como fontes de provimento e seleção de matérias-primas; e o estudo preliminar aponta para uma ocupação prolongada, tendo sido potencialmente usado como local de observação de manadas ou de caça25. Como bem indicam Espinosa e Ferreira, “O sítio arqueológico Pinheirocas 2 assume uma grande importância no contexto do estudo da Pré-História antiga devido ao facto de se encontrar numa região onde a investigação incidiu mais sobre sítios de cronologia mais recente, nomeadamente concheiros mesolíticos, sendo pouco conhecidos, ou mesmo totalmente desconhecidos, vestígios de ocupações anteriores ao Mesolítico”26.

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Fig. 5 - Pinheirocas. Ponta de Parpalló. (Fonte: Ana Jorge e Iola Filipe, Op. Cit., p. 28).

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Ana Jorge e Iola Filipe, Op. Cit., p. 28; Juan Antonio Espinosa e Ângela Ferreira, Op. Cit., p. 21. Juan Antonio Espinosa e Ângela Ferreira, Op. Cit., p. 22.

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Próximo de Pinheirocas, na Herdade dos Caniçais (CNS 15533), foi igualmente identificada durante a fase de acompanhamento arqueológico uma estação de ar livre, atribuída ao paleolítico inferior. Depois de ter sido identificada à superfície, entre os pk’s 6+825 e 6+850, “uma acumulação de peças líticas em seixo, lascas e núcleos em quartzito”, foram levadas a cabo sondagens arqueológicas27. Numa primeira fase, num nível de coluvião, foram recolhidas cento e vinte e seis peças de cronologias distintas, destacando-se algumas lascas de diversas morfologias e graus de complexidade, entre elas de tipo Levallois, que apontam para um enquadramento dentro do paleolítico médio, e cerâmica

manual e a torno que a equipa não descartou poderem ser provenientes de Pinheirocas. Numa das sondagens, escavada em maior profundidade, foram identificados materiais associados a um nível de cascalheira, de onde se exumaram núcleos, lascas sem retoque, corticais e semicorticais, de quartzito, de cronologia indeterminada. Para uma caracterização crono-cultural mais completa, a área de intervenção foi alargada, tendo Moral del Hoyo e Espinosa comprovado que o arqueossítio se particularizava por contextos secundários, cuja amostragem aponta para um momento do paleolítico inferior, o acheulense.

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Fig. 6 - Herdade dos Caniçais. À esquerda e ao centro, material de superfície. À direita, artefacto do nível 3. (Fonte: Sergio Moral del Hoyo e Juan Antonio Espinosa (2004) - Relatório dos Trabalhos Arqueológicos (...), Era - Arqueologia, p. 21).

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Luisa Pineda Cabello, Relatório Preliminar dos achados realizados (...).

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Magos Também durante o acompanhamento arqueológico foi relocalizado, por Telmo Pereira, o arqueossítio de Vale da Louceira (CNS 11487), já conhecido da bibliografia dos anos 40 do século XX. Numa área de elevada sensibilidade arqueológica - onde se encontravam referenciados outros sítios, como sejam o Vale Martim Afonso e o sítio de particular relevo científico da Quinta da Boavista, já na freguesia de Granho28 -, foi identificada, em Vale da Louceira, uma área onde os materiais se encontravam associados a grande quantidade de termoclastos, “o que sugere a presença de lareiras no subsolo contemporâneas da indústria lítica”29.

Notas finais

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Com os grandes projetos colocaram-se novos desafios na prática arqueológica em Portugal. Do lugar destacado na academia, a arqueologia foi ganhando corpo como um serviço fornecido por empresas especializadas na área, executado por profissionais capacitados para acompanhar as grandes obras, desde o seu processo de estudo e planeamento a uma execução adequada. A construção civil e as obras são sempre potencialmente perigosas naquilo que ao património cultural

respeita. Por esse motivo, é importante que o RECAPE cumpra a sua função, de modo a que possa ser usado como uma ferramenta de trabalho capaz por parte de todos aqueles a quem obriga o cumprimento das medidas de minimização que nele se encontram preconizadas. Enquanto agente de gestão do território, impõe-se ao arqueólogo a defesa dos valores científicos e patrimoniais, promovendo a salvaguarda, estudo, valorização e divulgação do património. Assumindo-se a arqueologia preventiva como um mecanismo de minimizar e gerir os efeitos da ação humana sobre o meio ambiente, exigem-se boas práticas que vão muito além do necessário acompanhamento das movimentações de terras em campo. A prévia pesquisa bibliográfica sobre a área a afetar; a consulta de cartas geológicas, e suas notícias explicativas; um trabalho sistemático de prospeção e referenciação dos sítios arqueológicos/manchas de ocupação são, entre outras, tarefas essenciais ao bom curso dos trabalhos, que se pretende venham auxiliar a mitigar e compensar as intervenções humanas que as obras acometem sobre o património cultural de matriz arqueológica. Com antecedentes que remontam aos anos 80 do século passado, o projeto da A13 deu, não obstante algumas lacunas e deficiências, cumprimento à

Estes dois sítios, conhecidos desde a década de 40 do século XX, foram relocalizados por Telmo Pereira, que procedeu à análise da sua tafonomia a partir das peças recolhidas dentro dos limites da obra. Refira-se que na Quinta da Boavista foram exumadas mais de seiscentas peças, que corresponderão a uma oficina de talhe potencialmente do plistocénico médio, tipo acheulense - Instituto Português de Arqueologia (2004) - Informação nº 331/IPA - Extensão de Torres Novas/2004, de 08 de setembro. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural; Sergio Moral del Hoyo e Juan Antonio Espinosa (2004) - Relatório dos Trabalhos Arqueológicos. Sondagens Arqueológicas. A13 - Sub-lanço Almeirim-Salvaterra de Magos - Lote B. Quinta da Boavista. Arquivo de Arqueologia, Direção-Geral do Património Cultural. 29 Telmo Pereira (2006) - “Novas e velhas estações em Muge”, BICHO, Nuno, VERÍSSIMO, Hugo (eds.), Do epipaleolítico ao calcolítico na Península Ibérica: actas do IV Congresso de Arqueologia Peninsular, Universidade do Algarve, Faro, p. 74. 28

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legislação sobre a avaliação de impacte ambiental e obedeceu aos critérios estabelecidos na declaração de impacte. Com um elevado número de intervenientes técnicos no processo, de material recolhido e relatórios produzidos, as medidas mitigadoras aplicadas permitiram uma melhor contextualização do ambiente em que os grupos humanos se desenvolviam na margem esquerda do rio Tejo, cuja importância arqueológica já havia sido destacada. Aos sítios já conhecidos adicionaram-se novas estações, de que é exemplo a Herdade dos Caniçais, cuja intervenção trouxe nova luz sobre os contextos geoarqueológicos da região, uma melhor compreensão acerca da formação dos depósitos intervencionados e das condições em que a sua preservação se processou. Veja-se que, neste caso concreto, se identificou um palimpsesto na parte superior, com lascas e núcleos paleolíticos, cerâmica manual e a torno, todos ulteriores à deposição dos terraços médios do Tejo (Q3). Muitas das intervenções que arrolámos neste compêndio permitem alargar conhecimento no que concerne às ocupações no quadro do estudo da pré-história antiga da região. Como bem referiram Espinosa e Ferreira, numa região onde a investigação incidiu mais sobre sítios de cronologia mais recente, nomeadamente mesolítica, sendo pouco conhecidos, ou mesmo totalmente desconhecidos, vestígios de ocupações anteriores, estes trabalhos permitiram ampliar o conhecimento acerca das ocupações antrópicas do atual território de Muge em períodos mais recuados. Os avultados dados obtidos no âmbito deste empreendimento, e a sua relevância científica, merecem o seu uso em projetos de investigação de maior envergadura, como realizou Telmo Pereira

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no âmbito do seu pós-doutoramento. É necessário que o volume de dados arqueológicos recolhidos em campo seja convertido em conhecimento e colocado ao serviço de toda a sociedade. Se o empreendimento veio trazer novos dados sobre a ocupação humana do atual território de Muge acarretou, igualmente, o merecido reconhecimento legal do valor científico do conjunto de concheiros identificado em 1863, com a abertura do processo para sua classificação, e a criação de uma zona especial de proteção, decretada como monumento nacional desde 2011. Agradecimentos: Ao Dr. Roberto Caneira, Técnico Superior da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, pelo convite à colaboração e pelas elucidações prestadas; à ERA - Arqueologia, pela disponibilização de relatórios relativos a intervenções promovidas no âmbito do empreendimento; à DGPC, pela diligência aquando da consulta do extenso arquivo respeitante ao projeto da A13.

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O Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia (1880) e a visita dos congressistas aos concheiros de Muge Roberto Caneira* *Técnico Superior de História da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos

patrimoniocultural@cm-salvaterrademagos.pt Salvaterra de Magos | n.º 7 | Ano: 2020


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O Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia (1880) e a visita dos congressistas aos concheiros de Muge

1 | Introdução Os concheiros do Vale do Tejo, abrangem os concheiros das Ribeira de Muge e de Magos, marcam um período muito importante quer ao nível da História da arqueologia em Portugal quer da própria humanidade. Os concheiros de Muge aquando da sua descoberta, eram denominados de kjokkenmoeddings, trata-se de uma palavra dinamarquesa que significa “restos de cozinha”, que estava associada aos depósitos com vários restos onde abundavam conchas, descobertos no litoral da Dinamarca. Não havia um vocábulo em português para estes novos arqueossítios, a palavra portuguesa concheiro, vem muito depois, e o termo português acaba por se afirmar e integrar os manuais de arqueologia de outros países. Podemos designar os concheiros como “colinas artificiais”, que se destacam na paisagem, onde se estabeleceram sazonalmente comunidades de caçadores-recolectores. Montículos que serviam ao mesmo tempo de habitação e necrópole, onde se encontraram vários vestígios ao nível de estruturas de habitação, tecnologia lítica, adornos e práticas funerárias. A identificação dos concheiros nesta região do Vale do Tejo remonta a 1863, deve-se à ação de Carlos Ribeiro que desempenhava o cargo de Diretor da Comissão Geológica que identificou o primeiro concheiro localizado na ribeira de Magos, depois avançou para a ribeira de Muge e assinalou os restantes concheiros.

A descoberta dos concheiros de Muge, constitui um dos mais relevantes achados arqueológicos em Portugal do último quartel do séc. XIX marcando o percurso da arqueologia pré-histórica. A primeira monografia arqueológica dedicada à pré-história portuguesa foi precisamente um trabalho de Pereira da Costa dedicado aos concheiros de Muge, editado em 18651. Em finais do séc. XIX, os concheiros de Muge alcançaram uma reconhecida importância histórica e científica devido a realização do Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-Históricas (1880), foram mencionados numa comunicação de Carlos Ribeiro e também devido à visita dos congressistas aos concheiros do Cabeço da Arruda e da Moita do Sebastião em Muge. O Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-Históricas, contribuiu para a “internacionalização” dos concheiros de Muge. Neste Congresso participaram os nomes mais sonantes da arqueologia e antropologia europeia e nacional. A nível local, o executivo municipal apressou-se a trocar correspondência com o Governador Civil e as entidades locais, para receberem da melhor forma possível os ilustres congressistas. O presente artigo é a análise desta documentação histórica, de forma a contribuir para o enriquecimento da história local e do património cultural concelhio.

Pereira da Costa, Da existencia do Homem em ephocas remotas no Valle do Tejo - Notícias sobre os esqueletos humanos descobertos no Cabeço da Arruda , editada em 1865. 1

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Fig. 1 - Carlos Ribeiro

Fig. 2 - Francisco Pereira da Costa

Fig. 3 - Monografia sobre os concheiros

23 2 | O Congresso Internacional de Antropologia e Arquelogia Pré-Históricas O Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-históricas decorreu entre 20 e 29 de setembro de 1880, teve a sua sessão de abertura no Grande Salão-Biblioteca da Academia das Ciências, contou com a presença do rei D. Luís, Protetor do Congresso e de D. Fernando (rei consorte) como Presidente de Honra, vários elementos do Governo, Ministros, Conselheiros de Estado, elementos do Corpo Diplomático, Académicos e Altos Funcionários. 2

Foi um acontecimento único e marcou o estudo da pré-história em Portugal, apesar da presença de altos dignatários do Governo, o Congresso não teve muito eco na imprensa: «A Lisboa provinciana dos finais do século XIX não emprestou particular relevo a esta manifestação científica cujos domínios começavam já a ganhar uma certa especialização, desencorajadora para o português médio de então.» 2

Victor Gonçalves, O Congresso Internacional de 1880, In História de Portugal [Dir. João Medina], Vol. I, Amadora, Ediclube, 2004, p. 216

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O Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia (1880) e a visita dos congressistas aos concheiros de Muge

A nível da imprensa nacional, destaca-se a revista Occidente, que faz do número de 15 de outubro a capa com uma imagem do Congresso (fig. 4), e a reportagem feita por Rafael Bordalo Pinheiro, que edita no “O António Maia”3, várias reportagens de caricaturas do Congresso. Estavam inscritos 393 congressistas, apareceram 168, dos quais 83 eram portugueses, os franceses tinham 34 congressistas, a Alemanha 16, a Dinamarca 10, Itália e Grã-Bretanha 6.4 Entre os portugueses que apresentaram comunicações, estiveram presentes: Carlos Ribeiro, Vasconcelos Pereira, Nery Delgado, Paula e Oliveira, José Caldas, Possidónio da Silva, Martins Sarmento, Adolfo Coelho, Vasconcelos Abreu, Oliveira Feijão, Consiglieri Pedrosa, a elite portuguesa da arqueologia do séc. XIX, como participantes destacam-se os nomes de Santos Rocha e Leite Vasconcelos, importantes arqueólogos portugueses. O programa do Congresso foi dividido em sessões com comunicações e excursões a diferentes sítios arqueológicos, com destaque para o dia 24 de setembro com a visita aos concheiros de Muge:

Figura 4 - Revista O Occidente 15 Outubro 1880

«20 de Setembro - Abertura inaugural (por Andrade Corvo) 21 de Setembro - Sessões 22 de Setembro - Excursão à Ota e Azambuja 23 de Setembro - Discussão em torno do problema do Homem Terciário, Sessões 24 de Setembro - Excursão a Muge 25 de Setembro - Sessões 26 de Setembro - Visitas em Lisboa a Museus e Instituições 27 de Setembro - Sessões 28 de Setembro - Excursão, por mar a Cascais e visita a Sintra

Disponível na Hemeroteca Digital de Lisboa: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/OAntonioMaria/1880/1880_master/OAntonioMariaN31N83.pdf 4 Cf.Victor Gonçalves, Op. Cit, p. 217 3

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Magos 29 de Setembro - Últimas sessões e encerramento.» 5 Carlos Ribeiro foi a figura fulcral na organização do Congresso, desempenhou o cargo de Secretário Geral e executou também o papel de anfitrião. Durante a realização do Congresso, dois fatores contribuíram para o reconhecimento científico e académico dos concheiros: a comunicação de Carlos Ribeiro sobre os trabalhos realizados nos concheiros e uma visita a dois concheiros em Muge: Moita do Sebastião e Cabeço da Arruda. A comunicação de Carlos Ribeiro intitulada «Les Kjoekkenmoeddings de la Vallée du Tage» descreve-nos as escavações feitas no Cabeço da Arruda, onde se verifica a ausência de cerâmicas e de machados de pedra polida, evidencia o uso do sílex que não existia na região, e refere também a existência de lareiras e tumulações. Interroga-se sobre o período cronológico dos concheiros, não eram nem do paleolítico nem do neolítico, pelos dados apresentados os concheiros pertenciam a um período ante-neolítico, a um período cujo termo só surgiu mais tarde - o mesolítico. As afirmações de Carlos Ribeiro, hoje passados 130 anos são válidas. A visita dos congressistas aos concheiros de Muge, também foi um dos pontos altos deste Congresso, onde os participantes tiveram a oportunidade de ver in situ os concheiros e observar os vários esqueletos que foram colocados a descoberto.

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Figura 5 - Participantes do Congresso de 1880 - Carlos Ribeiro encontra-se ao centro na primeira fila. Fonte: João Luís Cardoso e José Rolão (2002/2003) 5

Idem, p. 217

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3 | Visita dos congressistas a Muge A visita dos elementos do Congresso Internacional a Muge, foi agendada para o dia 24 de setembro, partiram de Lisboa num comboio especial e chegaram a Santarém, onde os aguardavam elementos do executivo municipal de Santarém, daqui partiram em carruagens atreladas em muares, em direção a Muge, atravessaram a ponte D. Luís que estava em obras, durante o caminho foram recebidos por autoridades locais e populares, à chegada a Muge, tinha cerca de 2000 pessoas a acompanhar os congressitas: «Os congressistas tiveram a oportunidade de observar as escavações no dia 24 de setembro de 1880, numa memorável viagem em comboio especial até Santarém e dali por estrada em atrelagens de muares. É de destacar a relevante importância dada pelas autoridades locais ao acolhimento dos congressistas à chegada à estação de Santarém, e também pelos habitantes de toda a região, que se mobilizaram maciçamente, acompanhando os visitantes ao longo de todo o trajeto até Muge, passando o Tejo pela ponte de ferro ainda não completamente acabada e seguindo, depois, por Almeirim e Benfica do Ribatejo.»6 Gustave Honoré Cotteau, naturalista e paleontólogo francês esteve presente no Congresso e na visita a Muge e deixou-nos uma descrição memorável da visita dos congressistas aos concheiros de Muge: «A segunda excursão, a de Mugem, é extremamente interessante, tanto do ponto de vista científico como turístico. Um comboio especial leva-nos a Santarém em duas horas.

Quando chegamos, encontramos a cidade inteira em pé. O conselho municipal, em traje e grandes estandartes de cor cobre na mão, junto à estação são trocados discursos; depois, escoltados pelas pessoas que nos receberam e pela banda de música local toca-se a marcha Camões, no meio de uma dupla linha de faixas, estão as cores de todas as nações que se estendem por quase um quilómetro, chegamos às margens do Tejo que atravessamos numa ponte de ferro de imensa extensão. Neste momento, o espetáculo diante de nós é verdadeiramente mágico. O Tejo, na entrada da ponte, é dominado por uma colina coroada por um antigo castelo árabe com muralhas e ameias. As encostas da montanha estão por toda parte cobertas de pessoas, ondem voam foguetes voadores, pedaços de fogos de artifício que se ouvem por assim dizer sem vê-los, e cujo barulho se mistura com os acordes da música e os gritos da multidão. À direita e à esquerda, 30 ou 40 metros abaixo de nós, corre o grande rio cujas águas são baixas nesta época do ano. Acrescente a isso um céu azul claro e transparente, e uma emoção indefinível que todos sentimos. Descendo a ponte, ainda inacabada, entramos em carros de seis e oito mulas com um postilhão, e seguimos primeiro numa estrada bonita e larga, ladeada por choupos altos. Em cada lado há videiras plantadas rastejando no chão, e um monte de uvas maduras grandes, apesar de não estarmos na época da colheita. Atravessamos sucessivamente as vilas de Almeirim e Benfica. Os municípios recebem-nos em todos os

João Luís Cardoso, «Carlos Ribeiro e o reconhecimento do solo quaternário do Vale do Tejo: Enquadramento geológico dos concheiros mesolítico das Ribeiras de Magos e Muge», In Estudos Arqueológicos de Oeiras, vol. XX, Oeiras, Câmara Municipal de Oeiras, 2013, p.93 6

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lugares; são arcos triunfais e estandartes. As populações acolhem-nos com os seus trajes brilhantes e coloridos. Não é apenas a cidade de Santarém que está de pé, é toda a Província. A cada passo, o nosso cortejo cresce, e logo mais de quatrocentos cavaleiros montam, a maioria deles, em belos cavalos pretos. Carros mais ou menos elegantes, veículos de todos os tipos com burros e até bois, se misturam com os cavaleiros e, chegando a Muge, no local das escavações, certamente temos connosco 2000 pessoas pertencentes a todos as classes da sociedade. O nosso objetivo foi a visita a uma dessas colinas artificiais recentemente descobertas em Portugal, compostas por restos de cozinha, kjoekenmoeddings que diferem dos da Suécia e Dinamarca apenas pela natureza das conchas. A colina de Muge tem 100 metros de comprimento e 40 ou 50 de largura; neste monte de conchas também são visíveis sepulturas com esqueletos. Uma vala profunda foi feita no interior da colina. Os esqueletos, bastante numerosos, encontrados durante a escavação, foram deixados no lugar, na mesma posição, com a particularidade de que as pernas são dobradas da mesma maneira. Tudo está perfeitamente organizado para estudar na íntegra e em detalhes esse curioso depósito. Os membros do congresso podem descer à vala. Que quadro verdadeiramente impressionante que nunca esquecerei! Por um lado, os membros do

congresso espalharam-se pelas escavações, alguns examinando essa enorme massa de conchas acumuladas (lutraria compressa e cardium edele) e tentando extrair alguns ossos raros ou alguns ossos esculpidos, outros, prestam toda a atenção aos esqueletos, aos seus aspetos antropológicos, medindo seu crânio, observando a posição que ocupam; de pé, ao redor da trincheira, uma multidão aglomerada, silenciosa, atenta e cujos tipos e os figurinos também são muito interessantes para estudar. Qual será a origem destes kjoekenmoeddings? Levou, sem dúvida, um longo período de tempo produzir esse acumulado incalculável de conchas. A presença de numerosos esqueletos espalhados por todo o depósito indica que essas populações enterraram os seus mortos no meio dos escombros da sua cozinha. A ausência de seixos polidos e cerâmica, conclui que estes kjoekenmoeddings remontam ao início do período neolítico, talvez até ao fim da era paleolítica. Seixos rolados e leitos ondulados de conchas são a prova de que, em certos intervalos, as águas do Tejo, estavam muito mais próximas do mar. Era meio dia; chegara a hora de ir à tenda do almoço, para a qual, os nossos olhos ansiosos estavam-se voltando há algum tempo. Como uma varinha mágica, foi transportada do deserto da Ota para a colina de Mugem. Era o mesmo banquete e os mesmos vinhos deliciosos e gelados.»7

João Luis Cardoso e José Rolão, Muge. Estudos Arqueológicos, Salvaterra de Magos, Centro de Estudos de Arqueologia UAL / Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 2002/2003, pp. 9 - 11 [a tradução do francês para o português é nossa] 7

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Um outro aspeto interessante desta visita foi a impressão da ementa do almoço dos congressistas, o repasto em Muge foi o seguinte:

MENÚ - Sopa de aletria - Croquetes de aves - Carne assada com geleia - Presunto frio - Perú recheado com trufas - Salada italiana - Compota de frutas - Bolo savarin SOBREMESA - Queijo e frutas diversas VINHOS - Colares - Bordeaux - Champanhe Moêt - Porto

Figura 6 - Menu dos congressistas em Muge. Fonte: João Luís Cardoso e José Rolão (2002/2003)

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Magos 4 | As edilidades locais e a visita dos congressistas a Muge O Governador Civil de Santarém ao tomar conhecimento da vinda dos congressistas a Muge, apressou-se a desenvolver contatos com a Câmara Municipal de Salvaterra de Magos e com o Administrador do Concelho, para providenciar uma receção digna e eloquente aos participantes do Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Pré-históricas. A primeira troca de correspondência é com o Presidente da Câmara Municipal, onde solicita que reúne o seu executivo municipal, para tomarem as melhores providências na receção aos ilustres congressistas: Ofício 14 de Setembro 1880 - ofício dirigido ao Presidente da Câmara «Ill.mo Ex.mo Sr.º usando a faculdade que me concede o n.º 1 do art. 33 do Código Administrativo tenho a honra de participar a V. Exa que a Camara de sua digna Presidencia deverá reunir-se na próxima quinta feira em sessão extraordinária a fim d’accordar definitivamente sobre a forma mais solenne e enthusiastica de receber o Cogresso Anthropologico que em alta missão scientifica há de chegar a Muge, no dia 24 do corrente.» 8

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Ofício do Governador Civil - 15 Setembro 1880 - n.º 966 [Ver anexo 1] O Congresso Internacional de Archeologia e Anthropologia Pré Historica que se ha de reunir em Lisboa na próxima semana tenciona fazer diversas excursões scientificas a alguns pontos do Paiz, destinado o dia 24 do corrente para vizitar os montículos d’Arruda (Mugem) devendo partir de Lisboa em comboio expresso pelas 6 horas da manhã e chegar a esta cidade hora e meia depois partindo em seguida para o seu destino. É certamente dever indeclinável acolher condignamente os nossos hospedes ilustres e manifestar com uma recepção honrosa que esse município que se preza de foros de civilizado sobe elevar-se à compreensão do facto importante d’este convivo scientifico que vem acrescentar às recentes afirmações da nossa vitalidade mais um testemunho eloquente da nossa individualidade como nação culta e acentuar com a nossa colaboração no moderno momento scientifico a partilha que nos cabe na comunhão dos povos civilizados. Por isso tenho a honra de convidar a Camara Municipal da Presidência de V. S.ª para receber no sitio d’essa município já mencionado os membros do Congresso, além de quaisquer outras manifestações que a vereação como representante d’esse município, julgue conveniente promover. Deus guarde V. S.ª Santarém, 15 de setembro 1880 O Governador Civil»9

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AHMSM - Registo de ofícios para diferentes autoridades - 17 Março 1879 a 8 Outubro 1881, fl. 21 – 21v A.H.M.S.M. - Correspondência recebida 1880

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O Presidente da Câmara Municipal convocou a reunião de Câmara Municipal, contudo os Vereadores não compareceram, não se aperceberam da importância deste Congresso e faltam, a reunião não se realizou por falta de quórum. O Presidente da Câmara, escreve ao Governador Civil a lamentar o sucedido e critica a atitude dos seus Vereadores e que vai enveredar todos os esforços para realizar nova reunião com os Vereadores e os indivíduos “mais importantes” de Salvaterra de Magos: Oficio 17 setembro 1880 - n.º 229 Ill.mo Sr. tendo sido objecto da minha atenção a reunião próxima do Congresso Anthropológico nos montículos d’Arruda, considerando a elevada significação social e scientifica do Congresso e obedecendo como me cumpre às imperiosas exigências do meu cargo officiei à Camara Municipal nos termos que V. Exa se dignará ver pela inclusa copia do officio. Os dignos vereadores julgando talvez pouco atendível o motivo da sessão extraordinária não se apresentaram em número suficiente, segundo a lei para a Câmara poder funcionar. Sem quer usar dos meios que a lei me faculta para proibir taes abusos, limitei-me a estranhar em termos prolidos a falta de vereadores para um caso d’urgencia e protestei jamais consentir a repetição de taes faltas. No mesmo dia foram dirigidos novos ofícios para que comparecessem no dia imediato. Achava-se já sobre a mesa o off. que V.Exa tinha mandado enviar ao Presidente de Câmara. As determinações de V. Exa, respeitosamente foram acatadas. A Câmara a instruções minhas sahiu da indiferença que a assoberbava, ganhou enthusiasmo pela festa, e há de fazer quanto em si caiba para mostrar aos extremenhos que o povo de Salvaterra não está isolado do movimento progressista que arrasta a sociedade moderna e que sabe cumprir com elevação de sentimentos os preceitos que a hospitalidade cavalleirosa impõe. Participo a V. Exa que amanhã 18 do corrente há reunião a convite meu, nos Paços do Concelho, dos indivíduos mais graduados da localidade afim de que a acção municipal no tocante a este assumpto seja secundado pelos exforços individuaes. Julgo assim ter respeitosamente, respondido aos officios de V. Exa, dattado de 16 corrente.»10 (fl. 56-56v) Na nova reunião de Câmara, o Presidente regozija-se com presença de todo o executivo e demais personalidades e esboça o programa de receção aos congressistas, onde fica definido a presença em Muge do executivo municipal com um estandarte do Município, e que será enviado um convite à Filarmónica para também estar presente e tocar na receção: - Acta da sessão extraordinária 18 setembro 1880 A Camara em virtude dos officios do Excellentissimo conselheiro Governador Civil de quinze do corrente, sob número novecentos e sessenta e seis, expedido pela segunda repartição – primeira secção, e do Administrador d’este concelho sob numero cento e oitenta e dois e data de quatorze também do corrente, deliberou solennizar a recepção do Congresso Antropologico, que há de chegar a vizitar os montículos

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AHMSM - Registo de ofícios para o Governador Civil - 23 outubro 1878 a 2 novembro 1882, fl. 56-56 v

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Magos d’Arruda em Muge no dia vinte e quatro do corrente, para o que devem partir de Lisboa às seis horas da manhã, e chegar a Santarém, hora e meia depois, partindo em seguida para o seu destino do modo seguinte: a Camara levará um estandarte com as armas reaes, dirigirá uma circular às principais pessoas convidando-os a reunirem-se à Câmara para assistir ao Congresso; convidará as Camaras limitrophes a comparecerem n’aquella festa, bem como as authoridades da Camara, convidar a Sociedade Phylarmónica d’esta vila para tocar n’aquelle sitio digo n’aquelle acto; encarregar o Vereador Menezes para tractar dos festejos públicos bem como os vereadores Joaquim Guilherme Jose Rebello e Ezequiel Augusto dos Santos Pacheco. Os vereadores encarregues de dirigir estes festejos poderão operar sobre quasquer outras circunstâncias que julgarem de propósito.» 11

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Convite endereçado à Banda Filarmónica 18 Setembro 1880 - Ofício n.º 155 - dirigido ao Presidente da Direcção da Sociedade Filarmónica de Salvaterra de Magos Ill mo e Ex.mo Snr Devendo o Congresso Internacional de Archeologia e Anthropologia Pre Histórica que se ha de reunir em Lisboa na proxima semana vizitar os montículos da Arruda em Muge, no dia 24 do corrente, para o que parte de Lisboa em comboio as 6 horas e chegar a Santarem, hora e meia depois, partindo em seguida para o seu destino, e desejando a Câmara a que tenho a honra de estar presidindo, receber do melhor modo possível tão ilustres Senhores, vou por este meio pedir à Ex.ma Direcção de que V. Exa é mui digno Prezidente se digne auctorizar a Philarmónica d’esta Villa a concorrer ao mesmo acto afim de, como já disse se poder fazer a recepção do modo mais condigno. A Camara no cazo da Exma Direcção, ceder os seus desejos, desde já se promptifica a pagar as despesas de transporte e a comida, sendo alem disso não poder renumerar Sociedade Pylarmónica pela falta de circunstância, agradecendo desde já a coadjuvação que se dignem prestar-lhe.» 12 O Administrador do Concelho, solicita ao Regedor da Junta de Paróquia de Muge, que enverede esforços para acolher dignamente os congressistas, mas tal como aconteceu com a Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, na Junta de Paróquia, as pessoas não apareceram nem mostraram interesse pela visita: Oficio 17 setembro 1880 - dirigido ao Regedor de Mugem Illmo Sr.º participo que no dia 24 do corrente se há reunir nos montículos d’Arruda em Mugem, o Congresso Anthropológico que sahe de Lisboa em comboio expresso pelas 6 horas da manhã e chega a Santarem hora e meia depois. Pondera a V. S.ª a necessidade de promover por todos os meios ao seo alcance que o Congresso tenha na freguesia a seu cargo uma recepção honrosa e brilhante. Deverá V. S.ª convidar, na qualidade de Regedor 11 12

AHMSM - Livro de Actas 13 dezembro 1875 a 17 novembro 1884, fl. 159 v A.H.M.S.M. - Livro de Registo de Correspondência expedida 5 março 1880 - 7 janeiro 1884, fl. 19v - 20

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da Freg.ª os cavalheiros mais graduados da localidade para uma reunião em que V. Sª lhes faça sentir que o Povo de Mugem, não pode nem deve sem esquecer as suas tradições cavalheirosas permanecer no indefferentismo apathico perante os ilustres sábios estrangeiros que pelos anos da sciencia veem visitar o nosso paiz e que hão de tomar para sempre nos factos da história scientifica o nome da nossa terra. abstenho me d’outras considerações certo que V. Sr.ª faça quando em si caiba por dar o maior esplendor possível à festa e que d’esta forma V. S.ª acatará as minhas ordens que são também as de chefe superior do Districto. Queira também V. S.ª informar-me com toda a brevidade se n’essa localidade há em boas condições aquartelamento para 23 praças de Policia Civil e 15 a 20 de cavalaria.»13 Regedoria de Muge [Ver anexo 2] 19 Setembro 1880 - oficio n.º 119 «Em cumprimento das determinações de V. S.ª constantes do officio n.º 184 de 17 do corrente mez, convoquei, para uma reunião as pessoas mais consideradas d’esta villa, para hoje ao meio dia, na sala das sessões da Junta. Compareceram poucas pessoas convidadas, e à hora prefixa estiveram os Rev.º Prior e o P.º Luiz Pereira da Silva, que se ausentaram por eu não estar presente, pois que não tendo ouvido as horas me demorei mais uns 20 minutos. Concordou-se somente e se ir esperar o Congresso à ponte, que fica à entrada de Muge. Deus guarde a V.S.ª. Mugem, 19 de Setembro de 1880.»14 A vinda dos congressistas foi um sucesso, e passado algum tempo chegou a altura dos agradecimentos pelo empenho na receção eloquente e calorosa. O Governador Civil e a Câmara Municipal enviam vários ofícios a agradecer a preciosa colaboração e ajuda: Administração do concelho - Correspondência recebida 1880 [Ver anexo 3] Oficio 27 setembro 1880 - n.º 433 «Nesta data agradeço à Câmara Municipal d’esse concelho, a boa vontade com que correspondeo ao um convite para que tivesse um acolhimento condigno o Congresso Internacional de Archeologia e Anthropologia em excursão scientifica a este districto. De facto a recepção preparada pelos habitantes de Salvaterra não podia ser nem mais bem organizada, nem mais cordeal e festivo, reconhecendo quanto V. S.ª contribuio para este resultado, tenho muita satisfação em o honrar pelos esforços que envidasse para que os nossos hospedes ilustres levem boas remanescencias da hospitalidade portugueza e da índole nacional. Queira V.S.ª também significar a todos cavalheiros que se associaram a esta brilhante manifestação, e

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AHMSM - Registo de ofícios para diferentes autoridades - 17 Março 1879 a 8 Outubro 1881, fl. 91v - 92 AHMSM - Correspondência recebida 1880

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Magos com o concurso dos quaes se conseguio o luzimento e o bom gosto de tão bella recepção e contentamento e o reconhecimento expansivo e enthusiasticamente manifestado por aquelles ilustres visitantes. É esta sem duvida a melhor recompensa que poderiam desejar para os esforços que se empenharam em acolher cordial e hospitaleiramente aquelles ilustres estrangeiros. Deos g.ª V. S.ª Santarém, 27 Setembro de 1880 O Gov. Civil.»15

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28 setembro - enviado para vários indivíduos e autoridades [Ver anexo 4] «Ill mo e Ex.mo Os festejos celebrados no nosso concelho por ocasião da visita dos ilustres congressistas aos montículos d’Arruda excederam muitíssimo a expectativa dos que ainda que confiados na nossa boa vontade nos julgavam demasiadamente pequenos para lhes fazer mos uma recepção brilhante, uma manifestação ruidosa. Felizmente enganaram-se, os nossos esforços foram coroados do mais feliz êxito. Trabalhamos em perseverança, mas mostramos ao extremenhos que sabemos compreender as aspirações sublimes dos povos cultos que estamos envoltos na corrente impetuosa que arrasta as modernas sociedades, e que veneramos religiosamente as tradições cavalheirosas que nossos paes nos legaram. N’esta demonstração de respeito pelos grandes mestres da sciencia V. Exa não se poupou a fadiga, nem regateou despesas. A espontaneidade com que V. S.ª acolheu o meu humilde apelo constitue me devedor d’umma grande fineza que jamais se me riscará da memória. Em meu nome, e no do Ex.mo Governador Civil d’este Districto agradeço unanimemente empenho da parte activa e importante que V. Exa tomou nos festejos concorrendo assim para o lusimento d’umma recepção que deixou gratas impressões no animo dos estrangeiros, e que nos elevou muitíssimo na consideração dos nossos compatriotas.»16 O próprio Secretário Geral do Congresso, Carlos Ribeiro endereça um oficio à Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, a agradecer a simpatia e os serviços que prestaram na chegada dos congressistas a Muge. Este é um documento histórico, que pela sua importância merece ser divulgado: Ofício de Carlos Ribeiro ao Presidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos [Ver anexo 5] «Na qualidade de Secretario Geral do Congresso de Archeolologia e de Anthropologia Pre Históricas que se reunio em Lisboa, no mez de Setembro último, para celebrar a sua 9.º Sessão, cumpre-me em obediência às determinações do mesmo Congresso, agradecer a V. Exa com todo o reconhecimento as manifestações de sympathia e serviços que V. Exa se dignou prestar-lhe por ocasião da sua chegada a Mugem.

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Deus guarde V. Exa, Lisboa 6 de Outubro de 1880 O Secretário Geral do Congresso Carlos Ribeiro.» 17 Uma outra curiosidade foi a troca de correspondência do Sargento Comandante das Forças de Cavalaria, que veio fazer o policiamento e segurança dos congressistas, em que se queixa que nem o Administrador da Casa Cadaval nem a Câmara Municipal de Salvaterra de Magos pagaram a ração dos cavalos, este foi talvez a única complicação deste Congresso: Oficio n. 236 - 29 setembro 1880 [Ver anexo 6] Illmo Ex.mo Sr. O Sargento Comandante das forças da cavalaria que veio fazer a policia dos ilustre congressistas aos montículos d’Arruda, não pagou ao Administrador da Casa Cadaval as rações dos cavalos na importância de 4.620. A Camara Municipal recusa-se a pagar este débito por isso que o não tem feito em occasiões idênticas. Peço pois, respeitosamente a V. Exa a fineza de dizer como devo resolver este pendência.»18

5 | Conclusão A visita dos congressistas a Mugem foi um marco memorável e histórico, a secular vila de Muge, recebeu em 1880, os nomes mais sonantes da arqueologia europeia e portuguesa. Esta excursão a Muge, contribuiu definitivamente para afirmar os concheiros de Muge no contexto da arqueologia pré-histórica europeia. Inicialmente as edilidades locais não se aperceberam da importância desta visita, dado que na primeira reunião de Câmara, nem sequer houve reunião porque os vereadores não apareceram, o que obrigou o Presidente da Câmara a expor ao Governador Civil, que pessoalmente iria tratar de falar com os seus vereadores e as pessoas “mais importantes” para delinear a melhor estratégia para receber a comitiva dos ilustres congressistas a Muge. A visita foi um sucesso, a Câmara Municipal fez-se representar com o seu estandarte e com um convite à filarmónica para tocar na receção. O Secretário Geral do Congresso Carlos Ribeiro, endereçou um oficio de agradecimento à Câmara agradecendo o empenho e a colaboração do Município. Os concheiros de Muge, foram reconhecidos internacionalmente como já referimos graças à ação de Carlos Ribeiro com a sua comunicação e com a visita dos congressistas. Estes arqueossítios são de uma notável importância académica e científica, desde meados do séc. XIX (1863), têm sido escavados e estudados sistematicamente pelos grandes nomes da arqueologia nacional e internacional. 17 18

AHMSM - Correspondência recebida 1880 Registo de ofícios para o Governador Civil - 23 outubro 1878 a 2 novembro 1882, fl. 57

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Magos Bibliografia - CARDOSO, João Luís, «Carlos Ribeiro e o reconhecimento do solo quaternário do Vale do Tejo: Enquadramento geológico dos concheiros mesolítico das Ribeiras de Magos e Muge», In Estudos Arqueológicos de Oeiras, vol. XX, Oeiras, Câmara Municipal de Oeiras, 2013 - CARDOSO, João Luís, e José Rolão, Muge. Estudos Arqueológicos, Salvaterra de Magos, Centro de Estudos de Arqueologia UAL / Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 2002/2003 - COSTA, F. Pereira da, Da existencia do Homem em ephocas remotas no Valle do Tejo - Notícias sobre os esqueletos humanos descobertos no Cabeço da Arruda, 1865 - GONÇALVES, Victor, «O Congresso Internacional de 1880», In História de Portugal [Dir. João Medina], Vol. I, Amadora, Ediclube, s.d. Arquivo Histórico Municipal de Salvaterra de Magos - A.H.M.S.M. - Registo de ofícios para diferentes autoridades - 17 Março 1879 a 8 Outubro 1881 - A.H.M.S.M. - Correspondência recebida 1880 - A.H.M.S.M. - Registo de ofícios para o Governador Civil - 23 outubro 1878 a 2 novembro 1882

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- A.H.M.S.M. - Livro de Actas 13 dezembro 1875 a 17 novembro 1884 - A.H.M.S.M. - Livro de Registo de Correspondência expedida 5 março 1880 - 7 janeiro 1884 Recursos da Internet Disponível na Hemeroteca Digital de Lisboa: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/OAntonioMaria/1880/1880_master/OAntonioMariaN31N83.pdf

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Anexos

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Anexo 1 - Ofício do Governador Civil - 15 Setembro 1880 - n.º 966

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Anexo 2 - Regedoria de Muge19 Setembro - 1880 - oficio n.ยบ 119

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Anexo 3 - OfĂ­cio do Governador Civil - 27 de Setembro

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O Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia (1880) e a visita dos congressistas aos concheiros de Muge

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Anexo 4 - Cópia do ofício enviado para vários indivíduos e autoridades - 28 de Setembro

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Anexo 5 - OfĂ­cio de Carlos Ribeiro

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Anexo 6 - Cópia do Ofício do Sargento Comandante das Forças de Cavalaria - 29 Setembro 1880

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O concheiro do Cabeço da Amoreira, Muge, Portugal: resultados da última década de trabalhos arqueológicos (2008-2019) Célia Gonçalves, João Cascalheira, Nuno Bicho Interdisciplinary Center for Archaeology and Evolution of Human Behaviour (ICArEHB), Universidade do Algarve Salvaterra de Magos | n.º 7 | Ano: 2020


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O concheiro do Cabeço da Amoreira, Muge, Portugal: resultados da última década de trabalhos arqueológicos (2008-2019)

Resumo As investigações sobre os últimos caçadores-recolectores do Holocénico em Portugal têm-se centrado, principalmente, no estudo dos concheiros mesolíticos do vale do Tejo, encontrando-se bem documentado o papel de relevo que os trabalhos desenvolvidos pelos investigadores portugueses nestes sítios tiveram na Pré-História europeia desde a segunda metade do século XIX. De entre as razões que poderão estar na raiz desse interesse por parte da comunidade académica nacional e internacional, conta-se a dimensão destes sítios arqueológicos e o elevado número de esqueletos humanos exumados até aos dias de hoje. Desde a sua descoberta, em 1864, o concheiro mesolítico do Cabeço da Amoreira tem sido o único concheiro intervencionado até aos dias de hoje, ainda que intermitentemente. Consequentemente, este sítio é o que mais tem contribuído com dados relevantes para o estabelecimento de inferências sobre o modo de vida das comunidades humanas que habitaram e exploraram a região do vale do Tejo entre c. 8000 e 7500 cal BP, permitindo explorar simultaneamente aspetos relevantes relacionados com a questão da neolitização do centro de Portugal. Os trabalhos arqueológicos da última década (2008-2019), têm-se focado, não só, na zona sudoeste do concheiro como, também, na zona envolvente ao concheiro com o intuito de estudar a estratigrafia, a organização espacial, a cronologia e outros traços culturais, incluindo a tecnologia lítica e a subsistência. Neste texto apresentamos um resumo da última década de trabalhos no sítio arqueológico, focando aspetos relacionados com os objetivos, metodologias, mas principalmente os mais relevantes resultados e interpretações daí provenientes. Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

Palavras-chave: Mesolítico; Concheiros; Cabeço da Amoreira; Portugal central

1 | Introdução Os concheiros do vale do Tejo, descobertos em meados do século XIX, alcançaram uma repercussão internacional ímpar, contribuindo para tal, a precocidade das escavações de alguns destes (e.g., Cabeço da Arruda e Moita do Sebastião), a dimensão e número dos sítios arqueológicos e o elevado número de enterramentos humanos descobertos, superior a 300 indivíduos (Bicho, 2009; Bicho et al., 2010, 2014). A descoberta dos primeiros concheiros nos vales das ribeiras de Magos e Muge, ambas tributárias da margem esquerda do rio Tejo, data de abril de 1863, aquando da realização de trabalhos geológicos no âmbito da Carta Geológica de Portugal por Carlos Ribeiro (Cardoso, 2015). Na ribeira de Magos, o único concheiro a ter sido identificado nesta primeira prospeção foi o Arneiro do Roque (também denominado por Quinta da Sardinha, Cova da Onça ou Monte dos Ossos) (Cardoso e Rolão, 1999/2000); na ribeira de Muge os primeiros concheiros a serem identificados foram Moita do Sebastião (também denominado por Fonte da Burra) e Cabeço da Arruda. No ano seguinte Carlos Ribeiro identificou mais dois concheiros nas margens da ribeira de Muge: Cabeço da Amoreira e Fonte do Padre Pedro. No entanto, terá sido Nery Delgado a estabelecer paralelismos entre os concheiros de Muge e os kjökkenmöddings da costa dinamarquesa, aquando as escavações de 1864 no Cabeço da Arruda (Ribeiro, 1867), o primeiro concheiro a ser intervencionado. À semelhança dos sítios do norte da Europa (vide Milner et al., 2007), os concheiros

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de Muge caracterizam-se pelo destaque que possuem na paisagem, sob a forma de colinas artificiais “construídas” com restos de conchas, em associação com restos de fauna marinha e terrestre, utensílios líticos, adornos, estruturas e enterramentos humanos. Desde a sua descoberta, um grande número de investigadores, entre os quais Mendes Corrêa, Jean Roche, Veiga Ferreira, Farinha dos Santos e Rolão, realizaram trabalhos arqueológicos no vale da ribeira de Muge e nos vales adjacentes, das ribeiras de Magos e Fonte da Moça. No entanto, apesar da espetacularidade das descobertas e das inúmeras campanhas arqueológicas, alguns destes concheiros foram completamente destruídos, maioritariamente devido a atividades agrícolas, sem nunca terem sido alvo de escavações (e.g., Fonte do Padre Pedro). Ao longo da história da investigação dos concheiros de Muge, assim como do Mesolítico, dois temas principais têm suscitado teorias divergentes e consequentes debates: a explicação para o aparecimento deste tipo de sítios; e, que funcionalidade possuiriam no âmbito das estratégias de adaptação das comunidades mesolíticas na região. O surgimento do fenómeno Mesolítico, e dos emblemáticos concheiros, encontra-se diretamente relacionado com as mudanças climáticas e ambientais ocorridas durante o início do Holocénico, que desencadearam modificações drásticas nas estratégias de povoamento e subsistência, e, consequentemente, na organização sociocultural (Clarke, 1978). Uma das alterações mais significativas durante este período foi a intensificação do uso de ambientes costeiros e estuarinos como principais fontes de aquisição de alimentos, como forma de adaptação às novas condições que se geraram no Atlântico, resultado da transgressão Flandriana (Bicho, 2009). Os estudos geoarqueológicos desenvolvidos

por van der Schriek et al. (2007a, 2007b, 2008) para a ribeira de Muge demonstraram que esta tornou-se num ambiente estuarino durante a transgressão flandriana, marcado por uma enorme produtividade dos recursos aquáticos no meio ambiente regional, o que terá favorecido a instalação das comunidades mesolíticas nesta área, que corresponderia então ao limite interior do estuário do Tejo, e permitido a consolidação dos sistemas económicos e sociais característicos destas comunidades (Bicho et al., 2010). A teoria de que os concheiros do vale do Tejo teriam servido como acampamentos base (vide Arnaud, 1986, 1987, 1993), com um elevado grau de sedentarismo, deve-se não só ao elevado número de enterramentos humanos, como também à descoberta de estruturas habitacionais (i.e., lareiras, fundos de cabana, buracos de poste, lareiras e silos) por Roche e Veiga Ferreira, nos concheiros de Moita do Sebastião, Cabeço da Arruda e Cabeço da Amoreira em meados do século XX (Roche 1964/1965, 1972a). Rolão, em alternativa, defendeu que os vários concheiros que constituem este núcleo apresentam funcionalidades diferentes, relacionadas diretamente com a sua dimensão e potência estratigráfica: os grandes concheiros (Moita do Sebastião, Cabeço da Arruda e Cabeço da Amoreira) representam sítios residenciais; e, os pequenos concheiros (Fonte da Moça I, Fonte da Moça II e Cabeço dos Morros) estão associados a funções sazonais e/ou logísticas (Rolão, 1999). Os dados adquiridos na última década revelaram que a funcionalidade de cada sítio se alterou temporalmente, e que apenas em determinados momentos corresponderam efetivamente a acampamentos base, como se pode verificar pela presença, na base, de um conjunto alargado e diversificado de estruturas de habitat (Bicho et al., 2010, 2011).

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2 | O concheiro do Cabeço da Amoreira 2.1. | Contexto geográfico

O concheiro do Cabeço da Amoreira localiza-se próximo da aldeia de Muge (Salvaterra de Magos, Portugal), c. 60 km a montante do atual estuário do Tejo. Implantado na margem esquerda da ribeira de Muge, a cerca de 4,5 km da confluência com o Tejo, sobre um terraço aluvial quaternário localizado a 20 m acima do nível médio do mar, é um dos maiores concheiros do complexo mesolítico de Muge (Figura 1). Ainda amplamente preservado, o concheiro apresenta uma forma elíptica de c. 60 x 40 m, e uma sequência estratigráfica complexa que varia verticalmente entre 2,5 a 3,5 m de espessura

(Bicho et al., 2011). O conjunto de datações absolutas obtidas nos últimos anos indica que o início da ocupação mesolítica no Cabeço da Amoreira ocorreu entre 8000 e 7800 anos atrás, e que as últimas ocupações mesolíticas ocorreram c. 7400 cal BP (vide Bicho et al., 2013). Por volta de 6600 cal BP o concheiro já tinha sido abandonado, coincidindo o fim da ocupação com o recuo do estuário devido à sedimentação aluvial holocénica (van der Schriek et al., 2008). Esse abandono coincidiu com o aumento da aridez e sedimentação do vale, bem como o início do recuo da água salgada.

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Figura 1 - Localização do complexo mesolítico de Muge (A) e dos concheiros (B).

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Magos 2.2. | As escavações do século XIX e XX

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Alvo de sondagens aquando a sua identificação por Carlos Ribeiro em 1864, um ano após a descoberta dos primeiros concheiros do vale do Tejo, os trabalhos arqueológicos no concheiro do Cabeço da Amoreira são retomados em 1882 por Francisco de Paula e Oliveira, a pedido de Nery Delgado, diretor da então designada Comissão dos Trabalhos Geológicos de Portugal (Cardoso e Rolão, 1999/2000). Os anos seguintes são marcados por uma proliferação dos estudos dos materiais provenientes deste e dos outros concheiros que constituem o núcleo mesolítico de Muge, como fica evidente pelas várias publicações da época (Pereira da Costa, 1865; Ribeiro, 1884), destacando-se os trabalhos desenvolvidos por Francisco de Paula e Oliveira (1884, 1886, 1888/1889a, 1888/1889b), o primeiro investigador a analisar em pormenor os restos humanos. No início dos anos 30 do século XX, Mendes Corrêa reinicia os trabalhos arqueológicos no Cabeço da Amoreira após uma certa estagnação. As escavações realizadas nesta década (1930, 1931 e 1933), na área oriental do concheiro sob a direção de Mendes Corrêa e com o apoio do Instituto de Antropologia da Universidade do Porto e da Junta de Educação Nacional (Cardoso e Rolão, 1999/2000; Mendes Corrêa, 1933), contaram com a colaboração de Alfredo Ataíde, Santos Júnior e Rui Serpa Pinto (Cardoso e Rolão 1999/2000). Segundo Ataíde (1940: 3) as escavações realizadas forneceram importantes dados que contribuíram “para o esclarecimento dos problemas relativos aquelas importantes jazidas pré-históricas ribatejanas e às condições geológicas e antropogeográficas da região”. Trinta anos volvidos, especificamente a partir da década de 1960, Jean Roche e Octávio da Veiga Ferreira, com o apoio dos Serviços Geológicos de

Portugal e do Instituto da Alta Cultura, retomam os trabalhos arqueológicos, durando estes mais de uma década (1963, 1964 e 1966) (Cardoso e Rolão, 1999/2000). Citando Arnaud, foi quando se realizaram “as primeiras escavações verdadeiramente científicas nestes concheiros, quer em área (…), quer em profundidade” (1987: 53), com novas metodologias relativamente ao trabalho de campo, à aplicação de novos conceitos teóricos e à realização de datações absolutas. As primeiras duas campanhas permitiram o estudo estratigráfico, onde foram identificados, segundo Jean Roche, três momentos de ocupação, separados por dois períodos de aplanamento (Roche, 1964/1965; Roche e Veiga Ferreira, 1967); a terceira fase dos trabalhos pôs a descoberto dezassete enterramentos (Roche e Veiga Ferreira, 1967). Os trabalhos de Jean Roche e Veiga Ferreira contribuíram para uma nova visão da funcionalidade dos concheiros de Muge, com a identificação de estruturas habitacionais, nomeadamente, barro de cabana, buracos de poste, lareiras e silos (Roche, 1964/1965, 1972b). José Rolão, após a conclusão da sua tese de doutoramento com a revisão dos materiais antigos (Rolão, 1999), retoma os trabalhos arqueológicos no vale de Muge. O desenvolvimento de estudos geomorfológicos e paleoambientais da região, em particular dos vales entre as ribeiras Fonte da Moça e Magos, permitiram identificar e datar a influência tidal química, isto é, o aparecimento da água salobra. E, no âmbito destes trabalhos o Cabeço da Amoreira é alvo de escavações arqueológicas numa área de 12 m2, próximo da zona intervencionada por Mendes Corrêa e Jean Roche/Veiga Ferreira.

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2.3. | Os trabalhos arqueológicos de 2008-2019 Na tentativa de preencher algumas das lacunas deixadas pelos trabalhos anteriores sobre os concheiros de Muge e o Mesolítico em Portugal, em parte relacionadas com a ausência de um controlo estratigráfico minucioso, iniciou-se em 2008 um novo ciclo de trabalhos arqueológicos. Os trabalhos de campo realizados desde então por uma equipa da Universidade do Algarve encontram-se inseridos em projetos de investigação financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (desde 2008) e pelo Earthwatch Institute (desde 2018), coordenados por Nuno Bicho, Célia Gonçalves e João Cascalheira. A base teórica do primeiro projeto - Os últimos caçadores-recolectores do vale do Tejo: os concheiros de Muge (PTDC/HAH/64185/2006) - assenta na importância do complexo mesolítico de Muge para o estudo do desenvolvimento regional tecnológico, económico e social dos últimos caçadores-recolectores do vale do Tejo, abordando adicionalmente aspetos relacionados com a neolitização e o impacto das populações exógenas, bem como a importância das condições ecológicas e a evolução da biomassa estuarina (Bicho et al., 2010). Os dados provenientes do projeto em paralelo com a reanálise dos dados antigos sugerem o aparecimento de uma complexidade social incipiente, com base na organização inter-espacial dos sítios arqueológicos e da organização inter e intra-espacial dos espaços sepulcrais conhecidos em Muge (Bicho, 2009; Gonçalves, 2009). A investigação da emergência da complexidade social no Mesolítico de Muge constituiu o objetivo principal do segundo projeto - Os últimos caçadores-recolectores de Muge (Portugal):

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as origens da complexidade social (PTDC/HIS-ARQ/112156/2009). Concretamente os pontos âncora assentam no estudo: (1) das estratégias de subsistência e de funcionalidade, e sua relação com mudanças sociais e com o desenvolvimento de desigualdades sociais; (2) da distribuição diferenciada de bens de prestígio entre a população, reconhecidos pelo estudo de organização espacial intra e inter sepultura; (3) mudanças e evolução na tecnologia, baseadas na exploração e aquisição de matérias-primas, cadeias operatórias e traceologia, e a relação direta com organização do espaço e transformações diacrónicas bem como na distribuição dos itens de prestigio social; (4) mudanças culturais e físicas na população local, com base na dieta e no ADN. Em 2018, obteve-se um duplo financiamento para os concheiros de Muge. O financiamento do Earthwatch Institute permitiu a continuação dos trabalhos de campo no vale da ribeira de Muge. O financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia e do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional através do Programa Operacional CRESC Algarve 2020, do Portugal2020, possibilitou que a equipa avançasse com o projeto MugePortal - Concheiros de Muge: Um novo portal para os últimos caçadores-recolectores do vale do Tejo, Portugal (PTDC/HAR-ARQ/29680/2017 | ALG-01-0145-FEDER-29680). Este projecto tem por objetivo a requalificação e valorização do património arqueológico e paleoantropológico do complexo mesolítico de Muge através do desenvolvimento de infraestruturas cibernéticas e iniciativas de e-ciência que permitam: (1) uma abordagem sistemática dos dados com o intuito de estabelecer a priori uma relação entre a sua obtenção e gestão tendo em consideração os

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requisitos de análise e disseminação; (2) e, conteúdos didáticos e de divulgação interativos que possibilitem visualizar o passado de uma forma reflexiva. Os trabalhos arqueológicos da última década destacam-se pelos métodos, tecnologias e perspetivas teóricas modernas adotadas. O estabelecimento de uma metodologia de escavação que privilegia o uso de tecnologias atuais de registo tridimensional tem possibilitado a recolha de um manancial de dados sem precedente, que têm permitido traçar novos paradigmas tecnológicos, económicos e sociais para as comunidades humanas mesolíticas que habitaram o vale do Tejo. As múltiplas áreas de escavação encontram-se implantadas sobre uma quadrícula de referência 3D ligadas a um datum principal com ligação à rede geodésica nacional no Sistema Hayford-Gauss Datum 73 (Melriça). A escavação é realizada por camadas naturais, subdividas em níveis artificiais de 5 cm. Às camadas e níveis artificiais é atribuída uma designação numérica crescente ou alfanumérica (e.g., 2.5, ou seja, camada 2 nível artificial 5). O registo da proveniência tridimensional dos artefactos e restos faunísticos com dimensões superiores a 2 cm é efetuado com recurso a uma Estação Total e ao software EDMWin (http://www.oldstoneage.com/software/edmwin.shtml). Os geométricos e outros artefactos líticos completos, assim como os adornos, elementos faunísticos inteiros (e.g., vertebras de peixes, pinças de caranguejos, ossos completos) são sempre coordenados, independentemente da sua dimensão. A informação registada pelo software, para além das coordenadas (latitude, longitude e altitude), inclui um conjunto alargado de outros dados contextuais e de recolha (e.g., camada, nível artificial, tipo de material, data, hora, nome do escavador).

A todos os vestígios arqueológicos é atribuído um número identificativo (ID) sequencial dentro do seu quadrado, gerado automaticamente pelo software, que é associado aos materiais através de etiquetas autocolantes pré-impressas onde estão inscritos a designação do sítio arqueológico (CAM), o ano dos trabalhos e o ID sequencial de associação à Estação Total. Todas as etiquetas possuem também um código de barras. Este método agiliza o tratamento dos materiais no laboratório, permitindo aceder a toda a informação registada no campo, acrescentar informação da análise dos materiais e imprimir novas etiquetas, com uma simples leitura do código de barras. Esta metodologia é também aplicada aos materiais de crivo, utilizando o denominado método do balde (McPherron e Dibble, 2002). No caso dos vestígios arqueológicos que não são guardados (e.g., termoclastos, seixos), o ID registado corresponde a uma sequência aleatória de letras, criada automaticamente pelo software evitando, desta forma, a existência de conflitos com a numeração sequencial dos restantes materiais. Como referido por Bicho et al. (2011), este sistema oferece inúmeras vantagens quando comparado com o método tradicional de registo arqueológico: (1) diminuição do erro humano, por exemplo, no registo de coordenadas ou atribuição do número identificativo aos elementos coordenados; (2) rapidez no registo das coordenadas e atributos (e.g., camada, nível artificial); (3) aumento da precisão das medições e possibilidade de conexão a um datum com ligação à rede nacional geodésica; (4) visualização espacial da distribuição dos artefactos em tempo real com recurso a um software de Sistemas de Informação Geográfica.

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3 | Resultados 2008-2019 3.1. | O concheiro

O início das novas campanhas de trabalhos arqueológicos no Cabeço da Amoreira centrou-se na delimitação da extensão do concheiro através da realização de sondagens geológicas. Durante esta fase detetou-se não só o limite sudoeste do sítio arqueológico, como também vários horizontes arqueológicos, que se distribuem para sul e oeste do locus principal (Bicho, 2009; Bicho et al., 2011) (Figura 2).

A área de escavação principal do concheiro centrou-se no quadrante sudoeste, desde o seu ponto de maior potência e estendendo-se até ao limite oeste, numa área com cerca de 100 m2 (Figura 3). A opção de se realizar uma escavação em área esteve na origem da estratégia de se privilegiar o registo horizontal, de forma a obter uma nova perceção da estratigrafia e uma nova visão espacial, procurando

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Figura 2 - Planta topográfica do sítio arqueológico do Cabeço da Amoreira com a localização das áreas intervencionadas desde a sua descoberta.

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Figura 3 - Vista geral da zona do concheiro no inĂ­cio dos trabalhos arqueolĂłgicos em junho de 2008.

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identificar relações entre os diversos elementos e/ ou fenómenos, e compreender a utilização do espaço pelas comunidades humanas. A escavação das camadas superiores do concheiro, com a decapagem da camada superficial de cerca de 5 cm de revolvimento moderno, revelou a existência de uma camada homogénea com materiais arqueológicos. Foi também detetada no topo, acima dos horizontes ricos em conchas, uma elevada concentração (c. 140 000 numa área de 100 m2) de pequenos seixos e rochas alteradas pelo contacto com fogo (i.e., termoclastos), depositados propositadamente c. 7450 cal BP. Bicho et al. (2010, 2014) interpretaram esta acumulação que cobria toda a área escavada do concheiro, formando uma espécie de carapaça, ou cairn, como o produto direto do abandono do concheiro do Cabeço da Amoreira pelas populações mesolíticas, que intencionalmente o selaram de forma a proteger o sítio. Com o decorrer dos trabalhos arqueológicos a estratégia de intervenção na área do concheiro foi alvo de alterações com a limitação dos trabalhos arqueológicos a áreas mais pequenas ao longo dos anos. Por um lado, estas restrições ocorreram devido ao elevado número de vestígios arqueológicos coordenados (mais de 50 000 nas primeiras duas campanhas), e por outro, em consequência direta de uma mudança de objetivos. Desde 2013 a área de escavação foi reduzida a duas áreas com 12 m2 cada, designadas por S1 e S2 (Figura 2). A escolha destas áreas está sobretudo relacionada com o objetivo de melhor compreender a estratigrafia nas respetivas secções do concheiro, com a exposição de um total de três novos perfis estratigráficos. Os trabalhos na área do concheiro revelaram, até ao momento, 22 camadas estratigráficas principais com ocupações mesolíticas. Em geral, as camadas

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têm uma espessura que varia lateralmente, e são caracterizadas por uma matriz sedimentar de sedimentos finos, seixos, termoclastos e materiais orgânicos (e.g., fauna mamalógica, malacológica e ictiológica, carvões). Estas encontram-se muitas vezes interrompidas por lentículas muito densas de conchas, formadas principalmente por restos de Cerastoderma edule (berbigão) e Scrobicularia plana (lamejinha), variáveis em termos de composição e espessura. Ao longo da estratigrafia do concheiro a tecnologia lítica é rica e diversificada, com uma abundante presença de geométricos, particularmente triângulos (Figura 4A), microburis (Figura 4B), núcleos (Figura 4C), lamelas (Figura 4D) e lascas (Cascalheira et al., 2015). As matérias-primas utilizadas são sobretudo o sílex, quartzito e quartzo. Em relação aos restos faunísticos foram recuperados milhares de ossos, muito deles em excelente estado de conservação, tanto de espécies de grande porte e médio porte (e.g., Sus scrofa, Cervus elaphus, Capreolus Capreolus) (Figura 5A), como microfauna (e.g., Oryctolagus cuniculis, Lepus gramatensis, Testudo hermanni) (Figura 5C) e ictiofauna (e.g., Liza ramada, Mugil Cephalas) (Figura 5B) (Detry, 2007; Dias et al., 2015; Pereira, 2014). É de salientar a identificação de episódios extraordinariamente bem preservados de deposição de ossos ainda em conexão anatómica (Figura 6) (vide Gonçalves et al., 2018). No que diz respeito aos elementos de adorno, na sua maioria realizados a partir de conchas de gastrópodes de origem fluvial e marinha, as espécies Theodoxus fluviatilis e Trivia sp. são as mais frequentes (Figura 7A), seguidas de Nassarius reticulatus (Figura 7B) e, ainda que pouco frequentes, alguns dentes de cervídeos perfurados (Figura 7C) (Rolão, 1999; André e Bicho, 2016).

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Figura 4 - Geométricos (A), microburis (B), núcleo (C) e lamelas (D) provenientes da área do concheiro.

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Figura 5 - Restos faunísticos provenientes da área do concheiro. Legenda (da esquerda para a direita e de cima para baixo): A - metacarpo de veado, falange de corso, tíbia de javali; B – vértebra de peixe; C – mandíbula e pélvis de coelho.

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Magos Identificaram-se também várias estruturas de habitat (e.g., lareiras, buracos de poste, fossas), principalmente nas camadas inferiores do concheiro, e quatro enterramentos humanos nas camadas intermédias e inferiores (Figura 8). Paralelamente à escavação na zona sudoeste do concheiro, e no âmbito dos trabalhos de reconhecimento das intervenções realizadas na década de 1930 e 1960 por Mendes Corrêa e Jean Roche, respetivamente, procedeu-se à limpeza parcial dos antigos perfis, designados nas plantas atuais por Corte Norte, Corte Oeste e Corte Oeste 2 (Figura 2). A limpeza dos cortes permitiu verificar não só a complexa estratigrafia do concheiro, constituído

por inúmeras camadas individuais, tendencialmente lenticulares, de conchas Cerastoderma edule e Scrobicularia plana (vide Aldeias e Bicho, 2016), mas também, reconstruir cronologicamente a sequência estratigráfica e consequentemente a formação do concheiro (Bicho et al., 2013). Da limpeza do corte da zona intervencionada por Mendes Corrêa resultou a decisão de se expor a base da área de escavação, uma vez que se identificou a presença de materiais arqueológicos. A limpeza da superfície e remoção da camada moderna expôs uma série de estruturas, incluindo buracos de poste e várias fossas ou silos.

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Figura 6 - Materiais arqueológicos in situ na Área S1, camada 4 (junho de 2014). Os retângulos brancos sinalizam ossos em conexão anatómica.

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Figura 7 - Adornos sobre concha provenientes da área do concheiro. Legenda: A - Theodoxus fluviatilis; B - Trivia sp.; C - Nassarius reticulatus; D - pendentes sobre dentes.

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Magos 3.2. | Áreas envolventes ao concheiro Um dos aspetos mais notáveis da última década de trabalhos arqueológicos realizados no concheiro do Cabeço da Amoreira foi a identificação de vários loci de cronologia neolítica e mesolítica localizados fora dos limites do concheiro (Figura 2), expostos através de sondagens manuais geológicas e arqueológicas, e, nos casos em que os horizontes arqueológicos se encontravam bem preservados, através de áreas de escavação maiores. Os dois loci identificados a sul do concheiro (i.e., Área 1 e Área 2) apresentavam essencialmente a mesma estratigrafia. No entanto, os materiais associados a cada horizonte arqueológico são significativamente diferentes. Na Área 1 foram detetados dois horizontes arqueológicos que, apesar dos materiais não se encontrarem analisados na sua totalidade, podem ser atribuídos ao Neolítico (com a presença abundante de fragmentos de cerâmica, alguns decorados, e uma frequência baixa de geométricos - especificamente segmentos e triângulos) e ao Mesolítico (sem cerâmica e com uma frequência elevada de geométricos) (Bicho et al., 2010; Cascalheira et al., 2015). Na Área 2 identificou-se ainda um nível de ocupação de cronologia mesolítica, provavelmente relacionada com o concheiro (existência de lamelas muito homogéneas, possivelmente feitas por pressão, e ausência de cerâmica). Infelizmente, o reduzido número de carvões e de fauna ao longo das sequências estratigráficas de ambas as áreas não permitiu a realização de datações absolutas.

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Figura 8 - Vista geral dos enterramentos provenientes da área do concheiro.

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A localização destes dois loci próximo dos limites do concheiro levantou a questão acerca da relação estratigráfica entre estes horizontes arqueológicos e a construção do depósito de conchas, assim como a sua utilização como “cemitério”. Para responder a esta questão foi aberta uma vala de 12x1 metros entre o canto nordeste da Área 1 e o limite sudoeste do concheiro (Figuras 2 e 9). O resultado foi a identificação de três níveis de concheiro, no seguimento e limite do depósito de conchas; dois níveis mesolíticos; e, dois níveis neolíticos correspondentes aos horizontes identificados na Área 1. Nos 12 m2 foram também identificadas duas estruturas negativas atribuídas ao mesolítico e duas lareiras, formadas por conjuntos circulares ou semi-circulares de seixos de quartzito, geralmente calcinados

e alguns carvões, atribuídas ao Mesolítico e Neolítico Antigo. A oeste da área do concheiro foi identificado um terceiro loci denominado de Área 3. Em 2010 realizou-se uma sondagem de 1 m2 que permitiu identificar a presença de um nível arqueológico com materiais líticos e cerâmicas, bem preservados, com uma espessura de cerca de 10 cm. Em 2019 foi aberta uma área de escavação de 12 m2 com o objetivo de obter-se novos dados sobre a ocupação neolítica no Cabeço da Amoreira. Os artefactos recolhidos são principalmente cerâmicas, também bem preservadas, havendo alguns fragmentos de dimensão superior a 5 cm, e artefactos líticos. Ao contrário do verificado na área do concheiro e na Área 2, os termoclastos são muito raros.

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Figura 9 - Vista geral da área Vala no final dos trabalhos arqueológicos, julho de 2010.

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Figura 10 - Vista geral da área Ribeira no decorrer dos trabalhos arqueológicos, junho de 2014.

A norte do concheiro, próximo da ribeira de Muge, efetuou-se uma sondagem em 2011, posteriormente ampliada em 2014 (Figura 10). Nesta nova área de 12 m2, designada por Ribeira, foram identificados vários níveis arqueológicos atribuíveis à Pré-História recente, nomeadamente ao Calcolítico e a várias fases do Neolítico, incluindo uma ocupação

do Neolítico antigo, com a presença de fragmentos de cerâmica e alguns artefactos líticos. Milhares de materiais líticos, algumas cerâmicas e estruturas de combustão foram encontradas nestas áreas, mas, com exceção das camadas associadas ao concheiro, muitos poucos restos faunísticos foram recuperados. Salvaterra de Magos | n.º 7 | Ano: 2020


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O concheiro do Cabeço da Amoreira, Muge, Portugal: resultados da última década de trabalhos arqueológicos (2008-2019)

4 | Notas finais Os dados obtidos durante a última década de trabalhos arqueológicos no Cabeço da Amoreira permitiram um desenvolvimento ímpar nos estudos sobre os concheiros de Muge e o Mesolítico em Portugal, como fica claro pelo número de publicações internacionais e nacionais, e as teses produzidas (André, 2015; Dias, 2017; Figueiredo, 2013; Gonçalves, 2009, 2014; Monteiro, 2018; Paixão, 2014; Pereira, 2014; Silva, 2016). De entre os resultados obtidos, destacam-se: 1. O estabelecimento de uma sequência estratigráfica completa e, consequentemente, de uma cronologia absoluta para o período de formação do Cabeço da Amoreira entre c. 8000 e 7350 cal BP (Bicho et al., 2013); 2. A identificação de uma ocupação na base que, provavelmente, teve uma função residencial e funerária (Bicho e Gonçalves, in press; Bicho et al., 2013); 3. A identificação de uma camada no topo do concheiro, composta principalmente por pequenos seixos e termoclastos, interpretada como um cairn (Bicho et al., in press), datado de 7515-7350 cal BP (Bicho et al., 2013); 4. E, a localização de vários horizontes arqueológicos de cronologia mesolítica e neolítica em redor do concheiro (Bicho et al., 2011). A identificação de novos loci e a confirmação de um uso continuado do sítio arqueológico do Cabeço da Amoreira a partir do Mesolítico (confirmado pelas datas de radiocarbono e os enterramentos localizados nas camadas superiores) constitui, por si só, um grande avanço na interpretação da funcionalidade e quadro cronológico das dinâmicas de ocupação das comunidades humanas mesolíticas no vale de Muge. E, reacendeu o debate sobre as interações culturais entre os últimos caçadores-recolectores e as primeiras comunidades agrícolas no centro de Portugal. A continuação dos trabalhos arqueológicos no vale de Muge, com especial relevância para o Cabeço da Amoreira, certamente contribuirá para a consolidação das hipóteses levantadas ao longo da última década para os concheiros de Muge e permitirão uma melhor compreensão da construção dos concheiros e sua organização interna em termos de atividades humanas.

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Magos Agradecimentos Gostaríamos de agradecer à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) pelo apoio financeiro para o estudo dos concheiros de Muge através dos projetos “Os últimos caçadores-recolectores do vale do Tejo: os concheiros de Muge” (PTDC/HAH/64185/2006); “Os últimos caçadores-recolectores de Muge (Portugal): as origens da complexidade social” (PTDC/HIS-ARQ/112156/2009); MugePortal - Concheiros de Muge: Um novo portal para os últimos caçadores-recolectores do vale do Tejo, Portugal (PTDC/HAR-ARQ/29680/2017 | ALG-01-0145-FEDER-29680); e ao Earthwatch Institute. À Casa Cadaval, proprietária dos terrenos onde os concheiros da ribeira de Muge estão localizados, toda a colaboração prestada durante os trabalhos de campos e, mais importante ainda, pela proteção durante as últimas décadas dos sítios arqueológicos. Em particular, à Senhora Condessa Dona Teresa Schönborn-Wiesentheid pela hospitalidade e amabilidade. À Camara Municipal de Salvaterra de Magos pelo apoio logístico, que em muitos casos, permitiu, de facto, o desenrolar dos trabalhos de escavação no Cabeço da Amoreira. Por último, a todos os alunos e voluntários que ao longo destes anos participaram nos trabalhos de campo.

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Arqueologia e Levantamento Digital na Fรกbrica de Descasque de Arroz da Casa Cadaval Leonor A. P. de Medeiros, CHAM e Departamento de Histรณria - FCSH-UNL, APAI Jorge Garcia-Fernandez, CIAUD e Departamento de Arquitectura - FA-UL leonormedeiros@fcsh.unl.pt jorgefernandez@fa.ulisboa.pt Salvaterra de Magos | n.ยบ 7 | Ano: 2020


Arqueologia e Levantamento Digital na Fábrica de Descasque de Arroz da Casa Cadaval

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Resumo A longevidade do aproveitamento dos recursos naturais na área de Muge, Salvaterra de Magos, tem sido abundantemente estudada no âmbito dos estudos das comunidades pré-históricas que ciclicamente se instalavam no vale do rio Tejo. A fábrica de descasque de arroz da Casa Cadaval, instalada em meados do século XX e apenas recentemente encerrada, faz-nos olhar para esta continuidade entre pré-história e história recente, à luz da evolução tecnológica e da diversificação de produtos, e sempre no sentido do aproveitamento eficiente dos recursos naturais. A perspectiva arqueológica sobre esta fábrica permite-nos então vê-la no contexto do tempo longo, da interação entre território, fábrica e comunidade, e da análise sistemática e sistémica do património tangível e intangível a ela associados. Neste artigo os autores propõem um olhar sobre as metodologias utilizadas para compreender o lugar, com foco no registo, e nas leituras que podem hoje ser realizadas com recurso a novas tecnologias de documentação e de partilha de dados.

Introdução e Enquadramento dos Trabalhos A área de Muge é conhecida pelos icónicos concheiros de Muge, que representam a presença humana na área desde o Mesolítico. Há muitos milénios que comunidades humanas exploram os recursos naturais deste território, marcado pela abundância de água e pela própria morfologia e ritmos dos rios e ribeiras, especialmente aqui na ligação entre o Rio Tejo e a Ribeira de Muge. Foram exatamente arqueólogos a estudar a pré-história deste território que alertaram os arqueólogos industriais para a existência desta importante unidade de processamento do arroz, exemplarmente completa, na herdade da Casa Cadaval. A existência de uma unidade operada a partir da energia do vapor, e com a infraestrutura técnica da moagem em madeira, no sistema austro-húngaro, praticamente completa e muito bem preservada, é uma oportunidade para o arqueólogo, que busca conhecimento das sociedades do passado através das remanescências de cultura material que sobreviveram até nós.

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Esta fábrica de descasque de arroz escapou, portanto, à dimensão mais destrutiva da desindustrialização que ocorre em Portugal nos finais do século XX (especialmente nos anos 80), e que reflecte uma tendência por todo o mundo ocidental na passagem para a sociedade da informação. É comum que estas unidades fabris vejam as suas máquinas ser vendidas em leilão, ou levadas para a sucata para re-aproveitamento do metal; que a estrutura seja vandalizada para aproveitamento de outros metais, como o cobre, chumbo ou ferro; que a falta de manutenção resulte em coberturas destruídas, infiltrações de água, fogo, e degradação da estrutura e objectos; ou que os interesses imobiliários tudo reduzam a ruína, eliminando quase todos os vestígios nos quais o arqueólogo baseia o seu trabalho. Isto não aconteceu na fábrica de descasque de arroz da Casa Cadaval, que ficou assim protegida não só pela segurança dos limites da herdade onde se insere, mas principalmente pela ligação afectiva e visão da administração da Casa Cadaval.

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A presença desta unidade industrial em condições de originalidade e autenticidade notáveis, bem como a falta de estudos histórico-arqueológicos sobre esta indústria, apresentou-se como uma oportunidade de compreender e analisar in situ as evidências desta unidade, em termos de edificado, património móvel, e memória social. Este projeto apresentou-se assim como uma importante oportunidade científica, que é também uma oportunidade educativa e formativa. Desenvolveu-se assim um projecto de investigação, coordenado pelos autores, para a realização de uma campanha de trabalhos arqueológicos de levantamento e documentação da fábrica, que permitissem conhecer e salvaguardar o potencial patrimonial, científico, e tecnológico do complexo industrial associado aos seus elementos materiais e imateriais. Este projecto foi realizado numa parceria com a Casa Cadaval e o Município de Salvaterra de Magos, com o acompanhamento científico da APAI - Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial, e o apoio da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH) e da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FA-UL). Entre 9 e 14 de Julho de 2018 desenvolveu-se então a primeira campanha de trabalhos arqueológicos na Fábrica de Descasque de Arroz da Casa Cadaval (FDACC18), integrando na sua equipa de campo um grupo de alunos da licenciatura em Arqueologia da NOVA FCSH, a que se juntaram alunos de estudos graduados em Arquitetura da FA-UL (fig. 1). Ao longo desse verão e do semestre lectivo seguinte, realizaram-se diversos trabalhos de documentação e tratamento de dados, numa perspectiva de utilização da base científica (que se debruçou na análise do edificado e do património móvel

integrado de sectores selecionados da fábrica, apoiando-se na análise do arquivo da fábrica e da história oral) sem descurar as necessidades de comunicação com a comunidade local e a sociedade civil. Para além dos relatórios e artigos científicos, o conhecimento gerado por estes trabalhos surgiu também nas redes sociais (com acompanhamento ‘ao vivo’ da campanha de campo no Instagram: @ arqueologia_industrial), nas plataformas dos diversos parceiros, em visitas e dias abertos, e em apresentações públicas dos trabalhos dos alunos. Tendo já sido publicado um artigo que insere esta unidade na indústria de descasque, branqueamento e glaciagem de arroz de meados do século XX, descrevendo a cadeia operatória do seu funcionamento e os trabalhos realizados na campanha de Julho de 2018 (Medeiros 2019), bem como uma visão histórica, patrimonial e tecnológica sobre a unidade (Custódio 2016), propõe-se aqui apresentar os resultados da análise que permitem ao leitor ‘ver através dos olhos do arqueólogo’, com acesso aos dados produzidos aquando do levantamento digital da unidade. O carácter único e irrepetível de cada intervenção arqueológica torna essencial a execução cuidada de um trabalho de documentação e registo de todas as evidências e marcas encontradas, cuja análise e interpretação permite então escrever a história (e as estórias) do local.

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Figura 1 - Trabalhos de limpeza das máquinas de branqueamento de arroz, prévio à documentação por desenho e por levantamento laser, realizada por alunos das áreas de arqueologia e de arquitectura.

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Em 1863, Carlos Ribeiro, membro director da Comissão Geológica de Portugal e figura essencial da investigação da pré-história em Portugal, começou a realizar um levantamento e identificação sistemáticos nesta zona do baixo vale do Tejo, identificando vários dos locais que hoje constituem os Concheiros de Muge, área classificada como monumento nacional desde 2011. Das várias estações identificadas, destacamos quando aqui se identificou a estação mesolítica da Moita do Sebastião (Fonte da Burra), em 1864, a menos de 2 quilómetros da fábrica actual. Em 1880 iniciaram-se os trabalhos de escavação no local, a tempo de serem visitados pelos congressistas da célebre IX Sessão do Congresso Internacional de Antropologia e de Arqueologia Pré-Históricas, que decorreu em Lisboa e incluiu uma visita pitoresca aos trabalhos a decorrer em Muge (Cardoso e Rolão 2000). Novas campanhas de escavação tiveram lugar em 1884 e 1885, ao que se sucedeu um longo interregno sem quaisquer intervenções. O local volta a ser foco de interesse quando exactamente se iniciam os trabalhos para construção de uma estação de descasque de arroz, em cima da mamoa da Moita do Sebastião. A instalação desta unidade está comummente descrita pela comunidade arqueológica da época como um ‘desastre’, um evento terrível, “arrasador”. Nas palavras do arqueólogo responsável, Octávio da Veiga Ferreira: “infelizmente no ano de 1952 dava-se em Muge um desastre. Um administrador da Casa do Cadaval em Muge pensou em fazer uma montagem de

descasque de arroz e respectiva eira e não escolheu melhor sítio que o Cabeço da Moita do Sebastião uma das jazidas mais importantes de Muge. Com um “bulldozer” arrazou até à base o que restava do célebre concheiro e só parou porque encontrou uma camada duma espécie de brecha. Avisada a Senhora Marqueza do Cadaval esta ilustre Senhora vendo o que havia sucedido e tendo a noção perfeita do desastre comunicou o facto ao Prof.Mendes Corrêa para que depois fosse tentar saber o que restava da destruição. Nos finais de Maio desse ano de 1952 fomos a Muge na companhia do Professor Mendes Corrêa e Abade Roche. Ficou assente que se faria então uma campanha de escavação para tentar salvar o que ainda restava e proceder ao estudo da jazida. As escavações começam na quarta-feira 4 de Junho desse ano e duraram até 21 do mesmo mês num sábado.” (Cardoso e Rolão 2000, p.238-239) Interrompidos, portanto, os trabalhos de instalação da unidade fabril nesse local, decorrem então campanhas arqueológicas nesse mesmo ano e nos subsequentes, 1953 e 1954, com o apoio do Instituto de Antropologia da Faculdade de Ciências do Porto e dos Serviços Geológicos de Portugal, e sob coordenação de Jean Roche e Veiga Ferreira. No entanto, a exploração do arroz na herdade não abranda, e continua a afectar os trabalhos arqueológicos. De novo, em 1954, como relatado no caderno de campo por Veiga Ferreira, o local está “transformado em espaço de descasca de arroz”1 (a que acrescenta “vamos ver o que resta do concheiro a explorar”). No dia seguinte

Excerto do Caderno de Campo de Moita do Sebastião de 1954, datado de 12/5/1954: “3ª Campanha em Muge. Parti para a 3 “ Campanha de escavação no Concheiro da Moita do Sebastião (Muge) Com o Senhor Abade Roche encontramos o concheiro transformado em espaço de descasca de arroz. Vamos ver o que resta do concheiro a explorar. Deixei minha mulher doente. Começamos os preparativos para amanhã continuarmos a escavar. Ficamos alojados na Casa Cadaval por obsequio da Senhora Marqueza.” (Cardoso e Rolão 2000, p.192). 1

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este aprofunda o seu desabafo na crítica aos danos realizados, porque “o fundo de cabana que está sobre o alpendre da debulhadora está todo destruído ou quasi”, e é preciso retirar a terra da eira para encontrar as áreas de trabalho do ano anterior2. Os trabalhos de instalação da unidade de descasque terão resultado na remoção de grande parte da mamoa, um monte artificial de terra que cobria a estrutura funerária e que poderia ter um diâmetro de 60 metros. Para além desta, foram aqui identificados diversos esqueletos humanos, silos e fossas, e marcas de postes, interpretadas como indicativas de fundos de cabana, mas que autores recentes defendem indicar uma área de complexidade estrutural, com motivos eminentemente ritualistas, reflexo de uma complexidade crescente nas relações intergrupais ao longo do tempo de ocupação do local (Jackes e Alvim 1999, Alvim 2009). Um outro elemento histórico no desenvolvimento da arqueologia neste local é o facto de ter sido na Moita do Sebastião que pela primeira vez se aplicou a datação por radiocarbono a um contexto arqueológico português. Recorria-se assim a uma descoberta científica altamente inovadora (o químico norte-americano Willard Libby, receberá o por isso o prémio nobel da química em 1960) que, através da análise da degradação do isótopo carbono-14,

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podia calcular com relativa precisão a antiguidade de material orgânico. Foi Jean Roche quem enviou uma amostra de carvão da Moita do Sebastião para o laboratório de Saclay, em França, permitindo atribuir uma data de ocupação daquele sítio para cerca de 5500 anos a.C.3 (Soares 2008), contribuindo com esta referência para alimentar a revolução na datação de achados e sítios arqueológicos, que passa de utilizar métodos relativos (de comparação entre contextos) para ter métodos de datação absoluta com base nos avanços científicos da época. Mesmo nas restantes intervenções que vão decorrer na herdade do Cadaval, as dinâmicas do arroz trazem o seu impacto; veja-se novo excerto do caderno de campo, desta vez no Cabeço da Arruda, datado de 1965, em que Veiga Ferreira comenta “Hoje começamos o trabalho no concheiro com dois homens apenas pois que é muito dificil com a colheita do arroz arranjar mais.” (Cardoso e Rolão 2000, p.238). Embora não tenha sido nesse local que se acabou por instalar a fábrica de descasque de arroz da Casa Cadaval, é nessa época que a Administração da Casa Cadaval está a encomendar os planos para implantação da mesma, em resposta ao aumento da produção dos campos (Medeiros 2019, Custódio 2016). Os escassos cerca de dois quilómetros que separam estes dois locais mostram como, apesar das variações

Excerto do Caderno de Campo de Moita do Sebastião de 1954, datado de 14/5/1954: “Telefonei para minha casa. Minha mulher parece estar melhor. No concheiro continuou-se a retirar a terra da eira para encontrar os cortes do ano passado. Os crivos estão montados para começar a crivagem. O fundo de cabana do nascente começa a por-se a descoberto. Os pilares do barracão destruiram-no quási por completo. É uma verdadeira monstruosidade o que o fez o administrador da casa. Num pais civilizado seria metido na cadeia. Paciencia vivemos infelizmente bastante atrasados nestas coisas. Como português isto pesa-me!!” (Cardoso e Rolão 2000, p.194). 3 O resultado obtido foi de 7350±350 BP, sendo que BP – Before Present (antes do presente), é geralmente apontado para o ano de 1950, data em que as tabelas de calibração estavam a ser realizadas. 2

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sociais e tecnológicas dos milénios que as separam, a exploração dos recursos desta região são um traço comum no estabelecimento de comunidades humanas neste território. A água e a planura do terreno permitem fertilizar os solos e providenciam água para as colheitas, água que é meio fundamental de vida para diversas espécies consumidas pelo homem, como o demonstram os concheiros ou os arrozais. A arqueologia vem, ao analisar a fábrica de descasque de arroz da Casa Cadaval, aportar uma visão que permite olhar para o edificado e o património móvel como marcas de uma deposição feita ao longo do tempo por quem usou esse espaço. Neste caso uma deposição que não ficou destruída ou arrasada, mas que mesmo assim sofreu alterações com a passagem do tempo - partes que desaparecem ou são transformadas, a degradação gradual da passagem do tempo e a pátina que o mesmo deixa ficar. Estes espaços industriais, especificamente os edificados e ainda em grande estado de integridade física, guardam dentro pequenas pistas (escritos nas paredes, folhas com informação no fundo de uma gaveta, detalhes do indivíduo hoje ausente mas que fez a cadeia operatória funcionar, etc.). A interpretação dessas pistas (fig. 2) e sua ligação aos dados históricos é uma parte fundamental do processo, mas cada vez mais são também essenciais a criação de elementos que permitam comunicar mais efectivamente a informação recolhida, visualizando os locais e permitindo acessos remotos. A arqueologia industrial, uma disciplina arqueológica que surge aquando do processo de desindustrialização, dedica-se ao estudo da sociedade industrial, desde os inícios da Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, até aos nossos dias. É um método inerentemente interdisciplinar,

pois “estuda todos os vestígios, materiais e imateriais, os documentos, os artefactos, a estratigrafia e as estruturas, as implantações humanas e as paisagens naturais e urbanas, criadas para ou por processos industriais” (TICCIH 2003). Mas é também “um estudo arqueológico das formas como as pessoas viveram e trabalharam no passado através dos restos físicos que sobrevivem até ao presente e, ao mesmo tempo, um movimento de conservação para proteger e interpretar esses restos” (Palmer, Nevell e Sissons 2012). Tanto para o conhecimento como para a preservação, um bom registo constitui-se como a ferramenta base. A arqueologia industrial, dado estudar uma sociedade relativamente recente, beneficia de uma maior variedade de fontes das que as que estão disponíveis para outras cronologias arqueológicas; o aparecimento da fotografia, o aumento das publicações periódicas, o aumento da burocracia e do registo, e mesmo a possibilidade de (ainda) falar com os antigos proprietários, utilizadores ou trabalhadores dos espaços criados para ou por processos industriais, abrem um novo leque de informações que são essenciais para a compreensão da cultura material. No campo do registo, o recente desenvolvimento das ferramentas digitais e do ambiente remoto na web abrem também novas oportunidades na investigação e na comunicação do património histórico, arqueológico e técnico.

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Figura 2 - Um dos frascos com amostras de arroz corrente produzido na fábrica, para envio à Direcção-Geral de Fiscalização Económica, in situ, datado de finais de 1978.

Documentação e Registo O carácter único e irrepetível de cada intervenção arqueológica torna essencial a execução cuidada de um trabalho de documentação e registo de todas as evidências e marcas encontradas (fig.3). Através da criação de memórias descritivas, do preenchimento de fichas técnicas, da realização de fotografias, desenhos ou modelos tridimensionais, o princípio de preservação do sítio e do conhecimento pelo registo são assegurados, permitindo o uso dessa informação e acautelando alterações futuras (fig.4). A documentação do património cultural tem-se desenvolvido fundamentalmente a partir do ganho na precisão e fidelidade dos modelos. No seu Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

desenvolvimento evolutivo ao longo dos anos, os sistemas de medição e os métodos de recolha de dados destacam-se entre as principais contribuições. O controle da perspectiva por meio de instrumentos ópticos, atribuído ao arquiteto renascentista Filippo Brunelleschi, e o desenvolvimento de técnicas como o método do sistema cónico e o abatimento de planos, fizeram com que o Renascimento fosse visto como uma etapa fundamental na evolução da documentação do real. Uma fase fundamental neste processo foi a correlação entre a necessidade de documentação fiável com as tecnologias da revolução industrial e a criação das diferentes técnicas metrológicas. A chegada

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Magos das câmaras obscuras e, depois, das câmaras claras, significou o nascimento da fotogrametria que, aliada a novos conceitos (concepção analítica), métodos e restituição analógica, alcançou resultados na documentação do património construído até então inatingíveis. O advento da era digital e a sua entrada nas técnicas de documentação, permitiu que a fotogrametria deixasse de ser uma técnica reservada ao campo da topografia para se tornar uma ferramenta eficaz e precisa para o levantamento do edificado, estruturas e até objectos.

O aumento da velocidade de computação, e o desenvolvimento de aplicativos de computador acessíveis, continuam a permitir maior precisão e simplicidade no processo de documentação. No domínio da conservação do património cultural tangível, a fotogrametria digital encontra um lugar de grande relevância na aplicação, baseada na grande variedade de produtos resultantes, na elevada precisão, na ausência de erros de interpretação e (talvez a sua principal vantagem) a simplicidade e economia de meios.

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Figura 3 - Processo de registo e inventário dos conteúdos das diversas gavetas e armários na área do laboratório, incluindo preenchimento de fichas e fotografia (autoria: Luís Reis, NOVA FCSH).

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O desenvolvimento do Laser Scanner (3D scanner) representou um importante passo na evolução das técnicas de documentação do património. A possibilidade de obtenção de uma nuvem de pontos com precisão milimétrica, de pequenas e grandes superfícies, tornou-a uma ferramenta de grande potencial na documentação do património cultural, em especial do acervo arqueológico, arquitectónico e urbano. O seu sistema operacional aproveita a interação luz-matéria para produzir um tipo especial de luz, quase monocromática, extremamente direcional e de alta intensidade. A dimensão (diâmetro) do feixe, também conhecida como “ponto”, pode variar dependendo do desenho do instrumento, de acordo com seu uso, assim como a potência do feixe (de dezenas a vários milhares). Os comprimentos de onda usados

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estão geralmente na faixa do ultravioleta ao infravermelho distante, embora existam projetos que funcionam em micro-ondas e raios-X. O desenvolvimento dos Laser Scanners nos últimos 15 anos, em termos das suas dimensões e custo económico, tem permitido que esses dispositivos sejam usados com mais frequência no estudo do património cultural. A sua elevada rentabilidade está hoje garantida, particularmente útil naquelas obras que, devido à necessidade de elevada precisão, bem como às características geométricas ou radiométricas do objecto a ser levantado (grandes dimensões, geometrias complexas, etc.), inviabilizam a utilização de métodos tradicionais de documentação. No campo da arqueologia, esta contribuição veio permitir maior fiabilidade e rapidez no registo, bem como a possibilidade de trabalho

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Figura 4 - Vista posterior da Fábrica de Descasque da Casa Cadaval em escala de cinzentos por varrimento laser, evidenciando a escala da chaminé em relação ao corpo principal do edifício.

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Magos remoto e análises futuras em ambiente virtual, apesar de ainda haver inseguranças na boa preservação dos dados a longo prazo (Campana et al. 2012). Ressalta-se no entanto a essencial necessidade de assegurar que a aceleração no registo, permitida por estas novas tecnologias, não subtrai os contributos científicos e relacionais da presença física no local durante o trabalho de interpretação e documentação, sendo por isso necessário continuar a assegurar a boa articulação das técnicas tradicionais com as novas ferramentas de documentação do património (Medeiros e García-Fernandez 2020). Frente aos sistemas de medição e representação manuais, as técnicas de varrimento laser, tal como foram usadas na Fábrica de Descasque de Arroz da Casa Cadaval, destacam-se em seis aspetos fundamentais:

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Precisão: Os equipamentos baseados em tecnologia laser trabalham com sistemas controlados de emissão de luz e receção de ecos. A precisão dos dados é independente do factor humano e vem definida pelas especificações de cada equipamento. No caso do Laser Faro Focus, utilizado no levantamento da Fábrica, a precisão é na ordem dos 2mm. Resolução: Interpretada, no caso dos equipamentos Laser, como a quantidade de informação (pontos) por unidade de medida, a resolução tem sido ampliada exponencialmente nos últimos 5 anos, até alcançar os valores sub-milimétricos em dispositivos comerciais. No caso do levantamento aqui apresentado, foi utilizada una resolução variável, consoante a quantidade de informação necessária em cada espaço ou elemento de interesse. Os valores variaram entre 1 ponto cada 4mm e 1 ponto cada 10mm (estimado a 10 metros de distância do laser). A figura 5 representa uma secção em perspectiva da casa do motor e chaminé, onde a alta resolução dos dados permite uma leitura contínua (sem espaços entre pontos registados) dos paramentos da fábrica. Escala: Os elementos digitalizados conservam a escala real. O conceito de escala fica relegado apenas a uma operação de representação, quando esta encontra limites físicos no papel de impressão. As figuras 6 e 7 representam secções relevantes do imóvel, com escalas definidas pelo usuário, independentemente da quantidade de informação. Interpretação/Inferência: O processo de captura de informação e processamento de dados não precisa da decisão subjetiva do operador humano; apenas uma sequência de passos, baseados em critérios estadísticos, consegue transformar a realidade numa representação à escala real no ambiente digital. Tempo de recolha de dados: Segundo investigadores, os Laser Scanner Terrestres conseguem diminuir até 80% o processo de levantamento in situ. A isto temos de agregar a diminuição dos erros no processo de captura (a maior parte do processo depende principalmente da máquina), e a possibilidade de alocar recursos humanos em outras tarefas essenciais no processo de análise do ambiente material. Digitalização do processo: As novas necessidades de transformação de processos físicos no mundo digital (como concebidos no Green Deal e no Plano de Economia Circular da União Europeia), encontram respostas na implementação de sistemas de documentação digitais tais como as técnicas baseadas em sensores remotos. A figura 8 demonstra a capacidade dos modelos digitais de representar informação espacial tridimensional. Salvaterra de Magos | n.º 7 | Ano: 2020


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Figura 5 - Secção em perspectiva da casa do motor e chaminé, com escala de cores codificada em termos de profundidade, permitindo uma melhor leitura de volumes e espessuras.

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Figura 6 - Secção transversal da fábrica, para visualização da máquina a vapor, caminho de acesso ao poço de água e cinzeiro, revelando as diferentes altimetrias entre os corpos do edificado. Permite também entender a circulação de subprodutos (casca do arroz) da área de descasque para a separação no piso superior, encaminhada para o piso por cima da máquina, sendo descarregada por tegão para alimentação da máquina a vapor, que por sua vez providencia a energia motora para que todo este processo, entre outros, ocorram.

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Figura 7 - Corte longitudinal, para leitura da área da máquina a vapor e sua ligação à chaminé, com escala humana incluída.

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Figura 8 - Representação planimétrica das áreas de descasque, branqueamento e calibragem, com escala de cores codificada em termos de profundidade.

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No caso dos trabalhos desenvolvidos na Fábrica de Descasque de Arroz da Casa Cadaval destacam-se ainda os usos dos dados recolhidos, como a criação de modelos em papel como recursos para realidade aumentada, ou os jogos (actividades viradas para a comunicação com a sociedade civil realizadas pelos alunos da unidade curricular de Património Digital da FA-UL, coordenada por Jorge García-Fernandez) (fig. 9), que foram partilhadas em plataformas online e apresentadas publicamente em palestras. A capacidade dos productos Laser Scanner de representar com fidelidade e escala os elementos construídos permitiram também desenvolver análises

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espaciais relevantes, entre os quais se destacam: (i) Estudos comparativos entre os elementos projetados e elementos construídos (fig. 10) e (ii) Caracterização geométrica de elementos singulares, disponíveis em plataformas online e abertas (fig. 11). A importância destas novas tecnologias para criar produtos que permitam chegar a outras comunidades, especialmente as comunidades remotas através do acesso online (e.g. fig. 12 e 13), é um trabalho fundamental nas actuais prácticas de arqueologia pública e comunicação da ciência. Assim, os levantamentos científicos, através da sua aplicação em diferentes produtos, permite exponenciar o alcance da investigação.

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Figura 9 - Imagem retirada do videojogo produzido por alunos da unidade curricular de Património Digital da FA-UL.

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Figura 10 - Comparação entre alçados da área de descasque, branqueamento e calibragem de arroz: em cima a nuvem de pontos por varrimento laser, com representação em escala de cinzentos, correspondente ao real existente na fábrica à data do registo, e em baixo excerto do desenho técnico para instalação da fábrica, datado de 1958, no Arquivo da Casa Cadaval.

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Figura 11 - Qr-Code para acesso a modelo tridimensional interactivo online, em formato nuvem de pontos, com capacidades de medição, anotação, e geolocalização, disponível em: Para activar o código, use o seu smartphone para tirar uma fotografia e selecione o link que surge no ecrã.

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Figura 12 - QR-Code para acesso aos modelos digitais em 3D do levantamento por varrimento laser da máquina a vapor (em https://www.youtube.com/watch?v=e8gL6SrobDk). Para activar, use o seu smartphone para tirar uma fotografia do qr-code e selecione o link que surge no ecrã.

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Figura 13 - QR-Code para acesso ao modelo digital em 3D do levantamento por varrimento laser da área de descasque, calibragem e branqueamento de arroz (em: https://www.youtube. com/watch?v=CChjefDqtlo). Para activar, use o seu smartphone para tirar uma fotografia do qr-code e selecione o link que surge no ecrã.

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Conclusões

Agradecimentos

Tal como os icónicos concheiros de Muge, a Fábrica de Descasque de Arroz da Casa Cadaval demonstra essa simbiose entre a terra, a tecnologia e a comunidade, sendo um elemento central para explicar a longevidade do aproveitamento dos recursos naturais na zona. A fábrica é aqui um nó fundamental do património cultural, um ponto de conexão entre o campo produtor e as comunidades trabalhadoras e consumidoras, entre diferentes momentos tecnológicos, e também entre o passado e o futuro. Os trabalhos arqueológicos desenvolvidos neste local em 2018 não constituem uma campanha estanque, mas sim um primeiro momento de recolha de dados para serem tratados e valorizados ao longo do tempo. Tornar estes dados acessíveis, seja na comunidade científica seja na sociedade civil, é cada vez mais uma missão fundamental da arqueologia, que se apoia cada vez mais nos recursos digitais tornados disponíveis com o crescimento exponencial da tecnologia. A visibilidade do lugar fica ampliada pelas possibilidades do registo por varrimento laser e fotogrametria, que neste artigo se partilham e que fazem parte tanto da divulgação científica tradicional, quanto do uso mais informal, em plataformas online como as redes sociais (veja-se neste caso o uso do Instagram4, dinamizado pelos alunos durante a campanha, ou o Youtube5, onde estão colocados alguns dos vídeos realizados) ou repositórios de dados digitais.

Os nossos agradecimentos à Administração da Casa Cadaval, especialmente à D. Teresa Schönborn, e ao Município de Salvaterra de Magos, Sr. Presidente Helder Manuel Esménio e Roberto Caneira. Agradecemos ainda ao Dr. Jorge Custódio por nos ter alertado para este sítio e incentivado a criação desta campanha de trabalhos arqueológicos, e ao Professor Luís Mateus (FA-UL) pelo apoio ao projecto. Um agradecimento especial aos alunos da licenciatura em Arqueologia da FCSH-UNL, Ana Sofia Ribeiro Abrantes, Luiza Calixto Tarasconi, Francisco João São Pedro Oliveira, Rafael Martins Ferreira Pilar Santiago, Rui Filipe Cruz Gil, e Maria Inês Teixeira Madeira, e às alunas da FA-UL, Eva Meneses Gaivoto e Mariana Noguera: Thank You Very Muge!

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Em: www.instagram.com/arqueologia_industrial/ Em: https://www.youtube.com/channel/UCE_Oe9XyLEXrhHqvNrkmy0g/

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As telas da igreja matriz de Muge - Telas sobre eucaristia da Capela do Santíssimo de Santa Maria de Belém. *Técnico Superior de História da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos

Roberto Caneira*

patrimoniocultural@cm-salvaterrademagos.pt Salvaterra de Magos | n.º 7 | Ano: 2020


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As telas da igreja matriz de Muge - Telas sobre eucaristia da Capela do Santíssimo de Santa Maria de Belém

1 | Introdução A igreja matriz de Muge, possui um conjunto de telas de autoria de Miguel António Amaral, que foi pintor régio da corte de D. José (séc. XVIII). Estas pinturas designadas “Telas sobre a Eucaristia da Capela do Santíssimo de Santa Maria de Belém”, pertenciam a esta capela de Belém. Na década de 40 do século passado, quando se procederam a obras na capela, foram retiradas e armazenadas e posteriormente integradas na igreja matriz de Muge. São quatro telas que formam um conjunto iconográfico dedicado à exaltação do mistério da Eucaristia, e são bem representativas do 3.º quartel do séc. XVIII, integradas no estilo barroco. Em 1992 é organizada a exposição “Jerónimos quatro séculos de pintura”, o que motivou a requisição destas pinturas para a exposição, a população com receio de perder o seu património, tentou impedir a saída das telas, o que motivou a intervenção policial. No presente artigo vamos descrever a biografia do seu autor e a descrição iconográficas destas telas.

2 | Igreja Matriz de Muge A história da Igreja de Muge 1, cuja padroeira é Nª Srª da Conceição, remonta ao ano de 1297, e deve-se a Afonso Pais, que era pároco de Salvaterra, por ordem do bispo de Lisboa. A origem da construção deve-se ao facto de cada vez mais colonos afluírem à aldeia de Muge e, por não terem igreja paroquial, escusavam-se ao pagamento dos dízimos. Em 1298, por acordo com o Mosteiro de Alcobaça, o padroado da Igreja de S.ta Maria de Muge é trocado pelo de S. Tomé de Lisboa. Assim, o Mosteiro manteve-se com todos os direitos de padroado (dízimos, apresentação do pároco, etc.) até cerca de 1834.

No séc. XIV a igreja era constituída provavelmente por uma única nave, três capelas (S. Pedro, Capela-Mor, dedicada a S.ta Maria, e S. João Baptista) e um campanário. No último quartel do séc. XVII a capela-mor medieval é demolida para se poder construir o retábulo de talha que hoje possui. A partir de 1712, devido ao estado de ruína em que se encontrava, o Câmara obriga o Mosteiro de Alcobaça a proceder a reparações, das quais resultaram arranjos profundos nas capelas laterais (em particular os retábulos de talha dourada joanina) e a substituição do campanário medieval por uma torre sineira, concluída em 1719.

Acerca da história da igreja de Muge, destaca-se o artigo de Gonçalo Lopes «A igreja de Muge na Idade Média. Uma proposta de reconstrução virtual», in Revista MAGOS, n.º 2, Salvaterra de Magos, Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 2015, pp.16 - 50. Veja-se ainda do mesmo autor e de Carlos Carpetudo a reconstrução virtual da igreja de Santa Maria de Muge - 1354, no seguinte site: https://www.youtube.com/watch?v=Bpk93Xj7SUA 1

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Magos Por o restauro ter sido insuficiente, a Igreja esteve em obras durante todo o séc. XIX, até que, em 1899, a Junta de Paróquia decide proceder a um restauro de fundo, do qual resultou o aspeto que hoje tem. Foi acrescentada mais uma torre, as paredes foram reconstruídas com pedra (anteriormente eram de taipa) e todas as cantarias mudadas. Em 1902, as obras foram finalizadas como se vê no interior e fachada do edifício. (fig. 1 e 2)

Figura 2 - Inscrição na fachada da Igreja

3 | Pintor Miguel António do Amaral

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Figura 1 - Lápide no interior da Igreja

As telas que se encontram na igreja de Muge, não estão assinadas, contudo o estilo das pinturas do pintor Miguel António Amaral, nomeadamente nas telas da “Última Ceia” que está na Capela-Mor da Igreja Paroquial de Oeiras ou os Painéis da vida de S. Francisco que estiveram na Igreja de Xabregas, têm semelhanças estilísticas e por isso é ponto assento entre os historiadores de arte, atribuírem às telas que se encontram na igreja de Muge, a autoria de Miguel António do Amaral. O pintor Miguel António do Amaral nasceu em 1712 e faleceu em 1780, foi pintor régio da corte de D. José I, durante a sua vida como pintor destacou-se na criação de painéis de temática religiosa e como retratista de reis e rainhas de Portugal, o que lhe valeu o cognome de pintor retratista: «Miguel António do Amaral, multifacetado pinto de óleo, era filho de Manuel Rodrigues Goulão do Amaral e de Maria Gonçalves. Nasceu em Castelo Branco no dia vinte e três de setembro de 1712, tendo sido baptizado na igreja de São Miguel, aos vinte e nove dias do mesmo mês e ano. Fez a sua aprendizagem, em Lisboa, na oficina do pinto Francisco Pinto Pereira e foi admitido na Irmandade de São Lucas no dia vinte e oito de abril de 1754. Salvaterra de Magos | n.º 7 | Ano: 2020


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As telas da igreja matriz de Muge - Telas sobre eucaristia da Capela do Santíssimo de Santa Maria de Belém

Entre as suas obras mais notória contam-se os diversos painéis de temática religiosa referidos por Cirilo Wolkmar Machado e por Manuel Marques Ribeiro de Ferreira. Os retratos da família real portuguesa que fez por encomenda de hum agente da Imperatriz da Rússia, de quem foi liberalmente recompensado, os vinte e quatro retratos dos reis de Portugal realizados para a hospedaria do Real Mosteiro de Alcobaça, e muitos outros. (…). Conduzindo a sua carreira artística a uma especialização do género, valendo-lhe o epíteto de pinto retratista.» 2 Miguel António do Amaral, executou retratos da família real portuguesa, a pedido da imperatriz Catarina da Rússia, e por isso este pintor está representado na Rússia nas coleções do Museu Hermitage.

4 | As Telas sobre a Eucaristia da Capela do Santíssimo de Santa Maria de Belém Estas telas são datáveis do terceiro quartel do séc. XVIII, são 4 telas que formam um conjunto iconográfico dedicado à exaltação do mistério da Eucaristia. A encomenda das telas enquadra-se num vasto programa levado a cabo pela Igreja, com o fim de remodelar ou criar capelas e igrejas dedicadas ao Santíssimo Sacramento, muito em voga no séc. XVIII. Na década de 40 do século passado, a Capela de Santa Maria de Belém foi desmontada, nas vésperas da exposição do Mundo Português em pleno Estado Novo. Estas telas tapavam os túmulos do Cardeal - rei D. Henrique e de outros infantes da dinastia de Avis. Procedeu-se nesta década à remodelação capela onde se encontravam os túmulos, que ficaram a descoberto e por isso as telas, ficaram armazenadas no claustro do Mosteiro, que nessa época estava a cargo da Casa Pia de Lisboa.

Em 1945 por interesse de João Couto, historiador de arte e diretor do Museu Nacional de Arte Antiga e sugestão da Marquesa de Cadaval, estas telas foram integradas na Igreja Matriz de Muge, com o objetivo de decorar as paredes deste templo religioso. As quatro telas têm a seguinte designação: - Triunfo da Eucaristia sobre a Ignorância e a Cegueira - A última ceia - Triunfo da Eucaristia sobre a Filosofia - A Apanha de Maná No interior da Igreja, estão divididas da seguinte forma: Lado esquerdo: Triunfo da Eucaristia sobre a Ignorância e A Cegueira e A Última Ceia; Lado direito: Triunfo da Eucaristia Sobre a Filosofia e a Ciência e A Apanha de Maná.

José João Loureiro, Novos dados sobre o pinto Estanislau Luís António (1744-1804), disponível em: https://www.academia. edu/37595403/Novos_Dados_sobre_o_Pintor_Estanislau_Lu%C3%ADs_Ant%C3%B3nio_1744_1804, [consultado a 11 de agosto de 2020] 2 José João Loureiro, Novos dados sobre o pinto Estanislau Luís António (1744 – 1804), disponível em: https://www.academia. edu/37595403/Novos_Dados_sobre_o_Pintor_Estanislau_Lu%C3%ADs_Ant%C3%B3nio_1744_1804, [consultado a 11 de agosto de 2020] 2

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Magos 4.1 | Iconografia das telas 3

- Triunfo da Eucaristia sobre a Ignorância e a Cegueira: No quadro destaca-se a figura de um cavalo, que esta a ser levado pela Justiça e montado por um anjo, seguro os símbolos papais: as chaves de S. Pedro e o umbellum. No carro segue representado a Igreja - uma figura feminina, segurando um ostensório, que significa o sacramento da eucaristia. Atrás da figura da Igreja, surge um anjo que lhe coloca sobre a cabeça a coroa pontifícia, fazendo referência à Igreja romana. O carro do sol esmaga o ódio, que é representado por uma figura, cujos cabelos são serpentes, fazendo alusão ao tema mitológico da Medusa. Na parte superior do quadro eleva-se o triângulo divino, símbolo da Santísssima Trindade.

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Créditos fotográficos: Vitor Lucas Ver Nuno Saldanha, «A capela do Santíssimo de Santa Maria de Belém - O programa e a iconografia eucarística», in Jerónimos quatro séculos de Pintura, Lisboa ( Mosteiro dos Jerónimos), IPPAR, 1992 3

Salvaterra de Magos | n.º 7 | Ano: 2020


Magos

As telas da igreja matriz de Muge - Telas sobre eucaristia da Capela do Santíssimo de Santa Maria de Belém

- A última ceia: representa a última refeição de Cristo com os apóstolos. É o episódio do novo testamento mais representado em toda a iconografia religiosa. Jesus Cristo antes de morrer, reuniu os seus apóstolos, a fim de lhes anunciar a sua morte e a traição de Judas. No final da ceia, tomou o pão, benzeu-o, partiu-o e deu-o aos apóstolos. Os olhares das figuras não convergem para a figura central de Jesus, nem para o pão que está a sacralizar. Da figura de Cristo emana uma luz suave que só ilumina a figura de São João, que tem a face iluminada, ao passo que as restantes figuras estão na penumbra. Em primeiro plano apresenta-se a figura provável de Judas, que olha para o espetador. No chão vemos um cão, que evoca da fidelidade dos apóstolos em relação a Jesus Cristo. No lado superior direito encontra-se um livro aberto, possivelmente de evocação ao Antigo Testamento.

Créditos fotográficos: Vitor Lucas

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Magos - Triunfo da Eucaristia sobre a Filosofia e a Ciência: repete-se a retórica e a teatralidade da pintura Triunfo da Eucaristia sobre a Ignorância e a Cegueira. Surge-nos o carro do sol, puxado por dois arcanjos, que transporte a figura da Igreja, que exibe o cálice com a hóstia resplandecente na mão direita. Na mão esquerda segura uma cruz, e ao seu lado direito dois querubins, levando um deles uma coroa de espinhos, elementos alusivos à Paixão de Cristo. Atrás do carro, seguem figuras acorrentadas que personificam a Filosofia e a Natureza, no segundo plano em relação a estas figuras, está representado o Novo Mundo, através de um índio e um negro.

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Créditos fotográficos: Vitor Lucas

Salvaterra de Magos | n.º 7 | Ano: 2020


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As telas da igreja matriz de Muge - Telas sobre eucaristia da Capela do Santíssimo de Santa Maria de Belém

- A apanha do Maná: Trata-se de um episódio do antigo Testamento - o Êxodo, em que se apela às profecias e figuras que fazem anunciar a Eucaristia. É um tema muito representado na iconografia Eucarística. A pintura relata-nos a passagem de Moisés pelo deserto, quando os filhos de Israel que o acompanhavam se viram confrontados com sede e fome, então Deus através de Moisés enviou o Maná, que são sementes de coriandro, de cor branca com sabor a bolo de mel e espalhou estas sementes pela multidão que as recolheram e saciaram as suas necessidades. Nesta composição em primeiro plano vê-se a figura de um soldado, que por tradição deveria estar atrás de Moisés, onde neste caso está Araão. A presença do soldado evoca a participação de Araão na batalha contra os Amalecitas. O soldado recolhe o Maná, depositando num vaso, que depois será colocado na Arca da Aliança, seguindo as ordens do Profeta.

Créditos fotográficos: Vitor Lucas

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Magos 5 | Conclusão Estas telas fazem parte do património local, apesar de não serem oriundas desta igreja, foram integradas como já referimos. Em 1992, foi preparada a exposição “Jerónimos quatro séculos de pintura”, e o comissário desta exposição, solicitou a cedência das telas para a exposição. A população com receio que as telas já não voltassem a Muge, tentou impedir a saída destas pinturas, foi necessário a ação da Unidade de Intervenção da GNR, para levar as telas para Lisboa, uma das telas foi atingida com uma pedra e rasgou. A exposição terminou e em 1993, as telas regressaram a Muge, mais valorizadas dado que foram restauradas. Este episódio é interessante no que respeita à identificação do património local, a comunidade ciente do valor histórico e artístico das pinturas, teve receio de as perder e por isso lutaram pelo o seu património. Atualmente as telas encontram-se no interior da igreja de Muge, onde se podem contemplar.

Bibliografia - LOPES, Gonçalo «A igreja de Muge na Idade Média. Uma proposta de reconstrução virtual», in Revista MAGOS, n.º 2, Salvaterra de Magos, Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 2015

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- LOURENÇO, António; MALDONADO, Cristina; ANDRADE, Fernando, As telas da Capela do Santíssimo dos Jerónimos, de Miguel António. Vida e Obra do autor, Lisboa, Faculdade de Belas Artes - Disciplina de Arte Portuguesa, s.d. (documento policopiado) - Normas de inventário - Pintura - Artes Plásticas e artes decorativas, Lisboa, Instituto de Museus e Conservação, 2007 - SALDANHA, Nuno, «A capela do Santíssimo de Santa Maria de Belém - O programa e a iconografia eucarística», in Jerónimos quatro séculos de Pintura, Lisboa ( Mosteiro dos Jerónimos), IPPAR, 1992 - SEQUEIRA, Gustavo de Matos, Inventário Artístico de Portugal, vol. III (distrito de Santarém), Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes, 1949 Recursos da internet - Carlos Carpetudo e Gonçalo Lopes - “A reconstrução virtual da igreja de Santa Maria de Muge - 1354” disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Bpk93Xj7SUA [consultado a 11 de agosto de 2020] - José João Loureiro, Novos dados sobre o pinto Estanislau Luís António (1744-1804), disponível em: https://www.academia.edu/37595403/Novos_Dados_sobre_o_Pintor_Estanislau_Lu%C3%ADs_Ant%C3%B3nio_1744_1804, [consultado a 11 de agosto de 2020]

Salvaterra de Magos | n.º 7 | Ano: 2020


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As telas da igreja matriz de Muge - Telas sobre eucaristia da Capela do SantĂ­ssimo de Santa Maria de BelĂŠm

Anexos 94

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Jornal Vale do Tejo - 4 de novembro 1992

Salvaterra de Magos | n.ยบ 7 | Ano: 2020


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As telas da igreja matriz de Muge - Telas sobre eucaristia da Capela do SantĂ­ssimo de Santa Maria de BelĂŠm

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Jornal Vale do Tejo - 11 dezembro 1992

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