Revista Magos 2015

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Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos n.ยบ2 | Ano 2015


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| Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos n.º2 Ano: 2015

Propriedade Câmara Municipal de Salvaterra de Magos Coordenação Presidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, Eng.º Hélder Manuel Esménio Grafismo Soraia Magriço Colaboradores deste número Célia Gonçalves Gonçalo Lopes Raquel Caçote Raposo João António Mendes Neves Roberto Caneira Nuno Prates Aline Gallasch-Hall de Beuvink Sérgio Filipe Sílvia Casimiro e Rodrigo Garnelo Merayo Rita Caetano Rodrigues Cachulo Pote Fotografia de Capa Procissão Senhor dos Passos (Cais da Vala - Década 20) Execução Gráfica Gráfica Central de Almeirim, Lda. Depósito Legal 380652/14 Tiragem 1000 exemplares

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Índice 1 | O projeto Entre Tejo e Sado: uma contribuição para a descoberta de novos concheiros mesolíticos no centro de Portugal | Célia Gonçalves | pág. 3 à 15 2 | A igreja de Muge na Idade Média. Uma proposta de reconstrução virtual | Gonçalo Lopes | pág. 16 à 50 3 | Hipólito Cabaço e a arqueologia no concelho de Salvaterra de Magos: um contributo à luz do seu acervo epistolar | Raquel Caçote Raposo | pág. 51 à 69 4 | Documentos Medievais de Muge e de Santa Maria da Glória | João António Mendes Neves | pág.70 à 92 5 | Simbologia funerária no cemitério de Salvaterra de Magos | Roberto Caneira | pág.93 à 110 6 | Imagens de Salvaterra de Magos vistas pela lente de Carlos Relvas | Nuno Prates | pág.111 à 118 7 | O Palácio de Salvaterra de Magos e a sua iconografia | Aline Gallasch-Hall de Beuvink | pág.119 à 129 8 | Marinhais - apontamentos à sua toponímia | Sérgio Filipe | pág.130 à 135 9 | Paisagens Agrárias do Vale do Sorraia. O sítio do Cabeço da Nogueira (Glória do Ribatejo) | Sílvia Casimiro e Rodrigo Garnelo Merayo | pág.136 à 145 10 | Glória - A Cultura dos Cereais e o Culto do Pão | Rita Caetano Rodrigues Cachulo Pote | pág. 146 à 154

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Magos Prefácio |

A edição de mais este número da revista MAGOS, uma publicação anual do Município dedicada ao estudo e valorização da história local e do património cultural concelhio, evidencia o quão importante é para este executivo a recolha e a divulgação da nossa identidade. O número dois desta revista volta a privilegiar a interdisciplinaridade e a variedade temática dos artigos, que foram desenvolvidos por investigadores do Município e colaboradores externos, aos quais agradeço desde já a sua disponibilidade. A revista MAGOS é um instrumento para futuros investigadores e uma referência na preservação das memórias coletivas e identidades culturais, espero também que seja um utensílio para estimular o turismo do concelho, promover o desenvolvimento local sustentado e que consciencialize as gerações futuras da necessidade de preservar a nossa história e o nosso património nas múltiplas vertentes. Ciente que o passado histórico é pertença de todos e que o mesmo não deve ficar aprisionado em arquivos, mas sim acessível ao público, volto a apostar na publicação da revista MAGOS e faço votos para que este projecto editorial possa ter continuidade no futuro.

O Presidente da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos

Eng.º Hélder Manuel Esménio

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O projeto Entre Tejo e Sado: uma contribuição para a descoberta de novos concheiros mesolíticos no centro de Portugal Célia Gonçalves ICArEHB, FCHS, Universidade do Algarve, Campus de Gambelas, 8005-139 Faro, Portugal cmgoncalves@ualg.pt


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O projeto Entre Tejo e Sado: uma contribuição para a descoberta de novos concheiros mesolíticos no centro de Portugal

1 | Introdução Os recentes trabalhos levados a cabo nos complexos mesolíticos de Muge e do Sado têm possibilitado, pelo uso de métodos, tecnologias e perspetivas teóricas modernas, traçar novos paradigmas tecnológicos, económicos e sociais para as comunidades humanas que habitaram o centro sul de Portugal entre c. 7500 e 8000 BP. Estas novas abordagens ao estudo do Mesolítico em Portugal destacam-se, particularmente no caso dos concheiros de Muge, pela ênfase dada aos diversos testemunhos de uma emergente complexificação, traduzida sobretudo nas questões do comportamento simbólico e da organização social e territorial. Nestes moldes encaixam, por exemplo, as evidências da construção de carapaças protetoras ou cairns no topo dos concheiros do Cabeço da Amoreira (Bicho et al., 2011) e possivelmente também no Cabeço da Arruda, ou os padrões espaciais regulares de localização dos sítios no vale da ribeira de Muge, especificamente frente a frente e a distâncias certas entre eles (Gonçalves, 2009). Estes exemplos em particular parecem, portanto, corroborar a ideia de que é neste momento específico no início do Holocénico que são dados os primeiros passos, por sociedades de caçadores-recolectores ditas complexas, para uma “aculturação” ou “antropização” da paisagem (Bicho e Gonçalves, no prelo). Parcialmente com base nestes argumentos e no âmbito da busca por uma melhor compreensão dos padrões de povoamento mesolítico em Muge,

foi construído num programa anterior ao presente projeto um modelo preditivo para a localização de novos concheiros ao longo das margens da ribeira de Muge (vide Gonçalves, 2009). Modelo que recorreu à utilização de um Sistema de Informação Geográfica (SIG) e que a partir de uma série de variáveis, naturais e culturais, comuns aos locais de implantação dos concheiros já conhecidos naquele vale, foram prospetadas áreas muito específicas onde essas mesmas características coexistiam, e onde o modelo criado demostrava maior potencial. Tratando-se de um teste inédito, os resultados foram surpreendentes com uma validação do modelo preditivo arqueológico em mais de 70% das áreas obtidas, permitindo a adição de dois novos concheiros ao mapa mesolítico da região de Muge. O sucesso da aplicação desta metodologia abriu a oportunidade para o projeto Entre Tejo e Sado: modelos preditivos em SIG na descoberta de novos sítios mesolíticos, cujo principal intuito foi o de continuar a construção do modelo de predição testado, ampliando a sua aplicação ao território das bacias hidrográficas do Tejo e do Sado. Pretendia-se, desta forma, desenvolver um modelo preditivo para o padrão de povoamento das comunidades mesolíticas, com o objetivo genérico de identificar as áreas de maior potencial arqueológico que possam auxiliar na localização de sítios arqueológicos inéditos, a partir de pressupostos desenvolvidos com base em novos dados e perspetivas teóricas resultantes dos

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novos projetos realizados em Muge e no Sado, e que se afastaram progressivamente dos modelos tradicionais sobre o Mesolítico português em respeitante aos grandes concheiros dos vales do Tejo e do Sado. Em termos mais concretos este projeto pretende: (1) fornecer novos dados para uma melhor compreensão do modelo de povoamento para o Mesolítico do Centro de Portugal; (2) aprofundar o conhecimento das estratégias mesolíticas de exploração do território e consequentemente dos recursos; (3) confrontar, no que diz respeito às estratégias de povoamento, a aparente independência entre as comunidades humanas dos complexos mesolíticos do Tejo e do Sado; (4) testar, numa escala geograficamente alargada, a viabilidade da utilização de modelos preditivos em SIG para sociedades de caçadores-recolectores; (5) e, de uma forma mais pragmática, contribuir com dados relevantes para a construção de futuras cartas de potencial arqueológico e trabalhos de prospeção nas regiões em causa.

2 | O projeto O projeto Entre Tejo e Sado: modelos preditivos em SIG na descoberta de novos sítios mesolíticos organiza-se teórica e metodologicamente em dois momentos distintos. Numa primeira fase, com início em 2010, e no âmbito do projeto de doutoramento da responsável principal, financiado pela Fundação para a

Ciência e Tecnologia, o foco foi a construção do modelo preditivo arqueológico, nomeadamente a escolha das variáveis, descrição e análise dos dados e resultados do modelo, bem como a integração dos resultados no contexto arqueológico mesolítico (vide Gonçalves, 2014). A segunda fase do projeto, com início em Janeiro de 2013, só possível de executar devido ao apoio concedido pela Fundação Calouste Gulbenkian, que financiou o trabalho de campo, concretamente os trabalhos de prospeção, direcionada por modelação preditiva em SIG, tendo em vista a identificação e mapeamento de novos sítios arqueológicos de cronologia mesolítica. Esta última fase do projeto para muito a mais importante aquando a criação de modelos preditivos arqueológicos, uma vez que é fulcral validar no terreno os resultados obtidos, efetivou-se em três vertentes: (1) organização e estruturação dos resultados do modelo preditivo arqueológico; (2) realização de trabalho de campo com o objetivo de localizar novos sítios arqueológicos; (3) tratamento dos dados de campo e disponibilização dos resultados na internet através da criação de um website. O resumo do projeto aqui apresentado incide, essencialmente, sobre esta fase, apresentandose detalhadamente as abordagens metodológicas e os primeiros resultados do trabalho de campo.

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O projeto Entre Tejo e Sado: uma contribuição para a descoberta de novos concheiros mesolíticos no centro de Portugal

2.1. | Plano e métodos 2.1.1. | Organização e estruturação dos 2.1.2. | Trabalho de campo: prospeção e mapeamento de novos sítios resultados do modelo preditivo O período que decorreu entre o início da segunda fase do projeto e o início do trabalho de campo foi dedicado à organização e estruturação dos resultados dos modelos preditivos arqueológicos, para posterior utilização no trabalho de prospeção arqueológica. O processamento dos dados, assim como, a implementação das áreas com probabilidade elevada de ocorrência de sítios arqueológicos de cronologia mesolítica sobre as Cartas Militares de Portugal (CMP) à escala 1:25 000, foi realizado com recurso ao software ArcGIS 10.1. Paralelamente à utilização das CMP no trabalho de campo, e tendo em conta as restrições orçamentais que o projeto sofreu e consequente abdicação da compra de um GPS de alta precisão, optou-se por importar os mapas para o Google Earth. As vantagens de integrar esta plataforma cartográfica online na metodologia de campo são múltiplas, em primeiro porque os mapas disponibilizados são muito mais atualizados que as tradicionais CMP, inclusive com a possibilidade de visualizar os mapas em vários modos (terreno, fotografia área, etc.), bem como, confirmar, em tempo real, a posição geográfica. Por outro lado, o programa referido suporta a inserção de polígonos e/ou linhas a partir do ArcGIS o que, para o presente projeto, permitiu aceder através do telemóvel às áreas definidas pelo modelo preditivo como de alta probabilidade para a ocorrência de sítios arqueológicos.

A segunda fase do projeto, ainda em curso, consiste, essencialmente, na realização de trabalhos de prospeção de campo e de levantamento da informação arqueológica disponível à superfície e pela observação de cortes estratigráficos visíveis (Figura 1).

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(Figura 1); Ribeira de Muge. Pormenor dos trabalhos de prospeção arqueológica.

Pretende-se, desta forma, proceder a um registo tão exaustivo quanto possível da presença/ausência de sítios de cronologia mesolítica nas delimitadas pelo modelo preditivo arqueológico. Metodologicamente, esta etapa está a ser levada a cabo por uma equipa cinco pessoas experientes em prospeção arqueológica e será

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efetuada em dois períodos diferentes do ano, de preferência correspondentes a estações climáticas distintas, para reduzir os problemas de visibilidade comumente associados a este tipo de trabalho. Em termos práticos, a equipa desloca-se às áreas específicas fornecidas pelo modelo e, dentro do limite das zonas de maior potencialidade arqueológica, efetua prospeção de alta intensidade através de uma observação detalhada da superfície do terreno e pela observação de cortes estratigráficos visíveis, onde se procuraram identificar materiais suscetíveis de serem classificados como indicadores culturais e/ou cronológicos. A decisão sobre o valor de representação arqueológica em trabalhos de prospeção direcionados para a localização de sítios pré-históricos é sempre difícil. De facto, a limitação imposta pela ausência de estruturas enquanto constituintes principais de um sítio, e a consequente limitação a artefactos (muitas vezes isolados) e horizontes antropogénicos, dificulta a definição do que se considerar um sítio arqueológico. No âmbito deste projeto, e tendo em conta os objetivos propostos, foram considerados sítios arqueológicos todos os locais que apresentem pelo menos um artefacto à superfície. Por outro lado, tendo em conta que o intuito principal é a localização de sítios de tipo concheiro, a tarefa será certamente facilitada pelo enorme impacto que, pela morfologia e características cromáticas, os depósitos de conchas têm no terreno e na paisagem.

A constatação de determinadas particularidades no terreno, que não apareciam descritas na cartografia utilizada como base para a construção dos modelos preditivos arqueológicos, demonstrou a necessidade de se reajustar modelos, alterando de forma decisiva a delineação das áreas com maior potencial arqueológico. A redefinição dos critérios de construção dos modelos preditivos arqueológicos e das variáveis a serem incorporadas resultou em modelos mais precisos, reduzindo as manchas de maior probabilidade de ocorrência de sítios mesolíticos em c. 3%. Analogamente, a percentagem das manchas de menor probabilidade (≤ 0.5) passou de 66% para 95% (vide Figura 2).

(Figura 2); Gráfico de comparação das áreas obtidas para cada modelo de acordo com o nível de probabilidade de ocorrência de sítios arqueológicos de cronologia mesolítica.

De igual forma, as semanas iniciais de trabalho de campo serviram, também, para testar o funcionamento da metodologia de prospeção adotada, uma vez que se optou por uma inovação tecnológica, a criação de uma aplicação Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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para sistema operativo AndroidTM totalmente As vantagens desta metodologia em comparação com o tradicional registo dos sítios em dedicada às necessidades do projetofichas de papel, onde são apontadas todas as ArcheoSurvey (Figura 3). características do local (e.g. coordenadas GPS, número das fotografias tiradas, etc.), são inúmeras em trabalho de campo, principalmente sobre condições climáticas adversas. Esta aplicação incorpora, para além dos tradicionais elementos descritivos (ID, tipo de sítio, cronologia, visibilidade, etc.), cujas opções aparecem em formato de menu, recursos como o registo automático das coordenadas geográficas, bússola, consulta de mapas com inclusão das áreas a prospetar e registo fotográfico. Neste último caso, tendo em conta que a maior parte das câmaras incorporadas nos smartphones não vai além dos 5 megapíxeis de qualidade, adicionou-se ainda à aplicação um campo de registo para a hora em que o novo sítio é listado, possibilitando isto, a posteriori, combinar a ficha de sítio com as fotografias tiradas por uma máquina fotográfica que não a do telefone. O teste inicial durante o trabalho de campo e (Figura 3); Print screen da página inicial da aplicação criada para o feedback dos elementos da equipa levou a o trabalho de prospeção. contínuos aperfeiçoamentos, desenvolvendose novas versões da aplicação. A última versão e os ficheiros de configuração estão disponíveis para download no website do projeto, sem qualquer custo associado, para que outras equipas de arqueólogos a possam utilizar e personalizar de acordo com os objetivos dos seus próprios projetos.

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Magos 2.1.3. | Interpretação e divulgação dos resultados Simultaneamente ao trabalho de campo, decorre a última fase do projeto, com a análise dos dados recolhidos e a produção de nova cartografia temática, com o intuito de auxiliar na reconstrução das estratégias de ocupação e exploração do território durante o Mesolítico no Centro Sul de Portugal. Os resultados obtidos podem ser consultados no website do projeto www.mesosig.pt, desenvolvido de maneira a disponibilizar:

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• Mapas interativos (e.g. mapa dos sítios mesolíticos identificados até ao momento no território português e informação sumária sobre cada um; mapa dos complexos mesolíticos dos concheiros dos vales do Tejo e do Sado e informação detalhada sobre cada concheiro e imagens [quando possível, respeitado os direitos de autor]); • Mapas interpretativos (e.g. mapa da probabilidade de ocorrência de sítios arqueológicos mesolíticos para a região em estudo); • Descrição pormenorizada da metodologia adotada no projeto, com particular relvo para o impacto dos Sistemas de Informação Geográfica como uma poderosa ferramenta para a investigação científica e difusão do conhecimento arqueológico.

No decurso do desenvolvimento desta tarefa a disponibilização para consulta on-line dos dados do projeto de forma indiferenciada levantou uma série de questões relacionadas com a preservação dos sítios. A proposta dos membros da equipa e do consultor científico do projeto foi a de se disponibilizar todos os dados relativos ao modelo preditivo arqueológico (i.e. mapas temáticos e mapas de potencial arqueológico) e os dados relativos aos sítios arqueológicos serão incluídos no site, no entanto, as coordenadas geográficas não estarão disponíveis ao público em geral. No entanto, toda a informação relativa aos novos sítios identificados (e.g. localização, cronologia, etc.) estará disponível a todos os investigadores e arqueólogos sempre que o solicitarem.

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3 | Resultados Os resultados obtidos dos modelos preditivos arqueológicos resultaram num número elevado de dados cartográficos, dos quais o mais relevante são os dois modelos finais de delimitação de áreas de elevado e moderado potencial. Como era expectável, as manchas de maior probabilidade de ocorrência de sítios mesolíticos localizam-se próximo dos cursos de água, ainda que, neste campo, as diferenças entre o modelo obtido para a bacia do Tejo sejam significativas relativamente ao modelo obtido para o Sado. Esse facto está relacionado com as características geomorfológicas dos dois territórios e dos padrões (também eles muito distintos) de localização dos sítios arqueológicos previamente conhecidos. A análise do mapa final do modelo preditivo arqueológico (Figura 4) evidencia um provável vazio de potencial arqueológico de cronologia mesolítica para a área que abrange os concelhos de Coruche, Montijo, Alcochete, a metade sul de Benaven- (Figura 4); Mapa final do modelo preditivo com indicação das te e a porção da região norte de Palmela, por áreas de elevado potencial arqueológico. não ter sido revelado no modelo como portadora de zonas de elevado potencial arqueoló- Os trabalhos de prospeção arqueológica reagico. Ainda que o trabalho de campo esteja a lizados até ao momento nos vales das ribeiras decorrer, alguns sítios arqueológicos foram já Fonte da Moça, Muge, Magos e rio Sorraia, nas registados. áreas com índice de probabilidade elevado, resultou na identificação de 18 sítios arqueológicos e 49 achados isolados (Figura 5).

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Magos No que diz respeito a cronologias, foi possível atribuir uma baliza cronológica a sete dos sítios. Apenas dois dos sítios identificados poderão ter ocupação mesolítica (S5 e S13) (Figura 6 e 7), dividindo-se os restantes por Paleolítico Inferior/Médio, Neolítico, Romano e Islâmico.

(Figura 6); Sobreiro do Neto. Vista geral do sítio arqueológico S5 de cronologia mesolítica.

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(Figura 5); Mapa com a localização dos sítios arqueológicos e achados isolados identificados no decorrer dos trabalhos de prospeção arqueológica.

(Figura 7); Ribeira Fonte da Moça. Pormenor do sítio arqueológico S13.

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A atribuição ao Mesolítico dos dois sítios referidos é apenas possível, por exclusão de partes, concretamente, pela combinação da sua localização em termos geológicos e ausência de elementos cerâmicos à superfície, sendo que nenhum fóssil-diretor tenha sido recuperado nas imediações. Num dos casos os achados estão localizados na ribeira Fonte da Moça, próximo dos concheiros mesolíticos Fonte da Moça I e Fonte da Moça II, já escavados, pelo que poderá estar, de alguma forma, associado a estes sítios, ainda que nenhum vestígio de

acumulação de fauna malacológica tenha sido detetado. Para além dos resultados obtidos até ao momento, com a identificação de perto de vinte novos sítios arqueológicos, os dados recolhidos durante os trabalhos de prospeção forneceram elementos relevantes para a caracterização (que não arqueológica) da região em estudo. Concretamente, são os casos das formações em cascalheira, testemunhos de deposição fluvial de sedimentos, bem como os vários cortes geológicos identificados (Figura 8).

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(Figura 8); Benavente. Exemplo de um dos cortes geológicos assinalados durante os trabalhos de prospeção arqueológica.

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Magos 4 | Notas finais

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As principais contribuições deste projeto, em particular os resultados do trabalho de campo, agrupam-se, genericamente, em dois pontos: (1) contribuição com novos dados para a caracterização dos padrões de localização dos sítios mesolíticos no Centro Sul de Portugal; (2) e, numa perspetiva mais metodológica, a corroboração da viabilidade e eficácia da aplicação deste modelo especifico de abordagem preditiva a sociedades de caçadores-recolectores mesolíticos. Relativamente ao primeiro ponto, concretamente, a relação dos sítios mesolíticos com o meio ambiente e a paisagem, era de esperar que estes se encontrassem diretamente relacionados e localizados em ambientes estuarinos, uma vez que observando-se o mapa de distribuição dos sítios mesolíticos (disponível para consulta interativa no site do projeto) é evidente que os recursos aquáticos influenciaram a escolha dos locais de fixação e/ou exploração das populações mesolíticas, ainda que a diferentes escalas. Porém, verifica-se algumas exceções com a identificação de sítios provavelmente de cronologia mesolítica em áreas que não se encontram em associação direta com ecossistemas intertidais, localizandose em pequenas ribeiras. A explicação para a sua localização, em áreas que distam mais de 2.5km em linha reta do curso de água principal, poderá estar relacionada com a sua funcionalidade, no entanto, só será possível avançar com

interpretações após a realização de trabalhos arqueológicos. A observação direta no terreno permitiu ainda um estudo mais pormenorizado das características de localização dos novos sítios identificados, assim como, dos já inventariados, inferindo-se que alguns deles estão localizados em associação direta com enseadas naturais de cascalho e/ou areia. Esta preferência poderá estar relacionada com o transporte aquático, nomeadamente de bons locais de desembarque, encontrando-se paralelos etnográficos na costa noroeste dos Estados Unidos (e.g. Barnett, 1955; Drucker, 1951; Suttles, 1951). Tendo em conta os índices de sucesso, quer estatísticos quer com a comprovação dos dados de trabalho de campo, a viabilidade e eficácia do desenvolvimento de modelos preditivos arqueológicos a sociedades de caçadores-recolectores mesolíticos fica corroborada. Como nota importante, é importante referir que os dados resultantes do modelo preditivo arqueológico e do trabalho de campo serão, certamente, explorados num futuro próximo, uma vez que no caso especifico deste projeto, o objetivo centrou-se na exploração das áreas identificadas como mais relevantes para encontrar novos sítios arqueológicos. Contudo, as áreas interpretadas como de potencial intermédio podem ter igual relevância do ponto de vista da reconstrução do sistema de ocupação e exploração do território durante o Mesolítico. Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Com efeito, o fato destas áreas serem interpretadas como de potencial intermédio implica que elas contenham características parcialmente idênticas às de maior potencial mas que se afastam de alguma forma de outros atributos relevantes a estas últimas, podendo indicar a existência de sítios de funcionalidades diferentes (dos quais até hoje pouco ou nada se conhece) à dos concheiros. No que diz respeito a perspetivas de investigação futura, destacam-se essencialmente duas vias de ação: (1) possibilidade de integração dos resultados obtidos em novos projetos arqueológicos; (2) desenvolvimento de modelos preditivos arqueológicos para o restante território português, de forma a se avançar com interpretações que quantifiquem a relação cultura – paisagem. Espera-se ainda publicar um conjunto de artigos com os resultados do projeto em revistas nacionais e/ou internacionais.

Por último, é importante salientar que os mapas de potencial arqueológico desenvolvidos e testados no terreno (etapa só possível de concretizar devido ao financiamento da Fundação Calouste Gulbenkian) poderão ser usados por outras entidades e equipas arqueológicas, como ferramenta de planeamento e gestão do território, e auxiliar na delineação de estratégias metodológicas de trabalho de campo.

5 | Agradecimentos O desenvolvimento deste projeto só foi possível graças às entidades e projetos que financiaram as várias etapas, nomeadamente, a Fundação para a Ciência e Tecnologia pela atribuição de uma bolsa de doutoramento individual e financiamento de dois projetos, e à Fundação Calouste Gulbenkian por ter acreditado neste projeto e ter financiado o trabalho de campo. À Casa do Cadaval pelo apoio logístico que permitiu, de facto, o desenrolar dos trabalhos.

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Magos Bibliografia Barnett, H., 1955. The Coast Salish of British Columbia (University of Oregon Monographs, Studies in Anthropology, 4). Eugene, Oregon: The University Press. Bicho, N., Cascalheira, J., Marreiros, J. e Pereira, T., 2011. The 2008-2011 excavations of Cabeço da Amoreira, Muge, Portugal. Mesolithic Miscellany, 21(2): 3-13. Bicho, N. e Gonçalves, C., no prelo. Back to the past: the emergence of social differentiation in the Mesolithic of Muge, Portugal. Proceedings of the Eighth International Conference on the Mesolithic in Europe. Universidad de Santander. Drucker, P., 1951. The Northern and Central Nootkan Tribes (Bureau of American Ethnology Bulletin, 144). Washington: Smithsonian Institution. Gonçalves, C., 2009. Modelos preditivos em SIG na localização de sítios arqueológicos de cronologia mesolítica no Vale do Tejo. Dissertação de mestrado, Universidade do Algarve.

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Gonçalves, C. 2014. Modelos preditivos de ocupação do território no Mesolítico entre os vales do Tejo e do Sado. Dissertação de doutoramento, Universidade do Algarve. Suttles, W., 1951. Notes on Coast Salish Sea Mammal Hunting. Anthropology in British Columbia, 3: 10-20.

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A igreja de Muge na Idade Média Uma proposta de reconstrução virtual Gonçalo Lopes1 g.simoeslopes@gmail.com 1

O autor assume a inteira responsabilidade por não seguir as normas do acordo ortográfico em vigor.


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Tem-se assistido nos últimos anos a uma crescente evolução nas técnicas de representação de Património, fruto do uso cada vez mais democrático de ferramentas informáticas que proporcionam não só uma eficiente expressão do “objecto” a duas dimensões, como a execução de modelos tridimensionais progressivamente mais realistas. Os avanços na modelação 3-D são precisamente o ponto fulcral da reconstrução/reconstituição virtual de bens patrimoniais móveis e imóveis, permitindo não só levantamentos rigorosos do existente mas, igualmente, a criação dos elementos em falta, contextos e ambientes históricos onde os objectos se inserem, até chegar a animações e modelos interactivos. Não obstante, para chegar à fase final de uma reconstrução virtual há todo um trabalho de investigação que se pretende com o máximo rigor científico possível. Há que ter também em mente que os “objectos” históricos/arqueológicos dificilmente se encontram nas condições originais em que foram produzidos encontrando-se alterados em maior ou menor grau pela passagem do

tempo, quase sempre com elementos em falta, adulterações ou perdas irremediáveis que, por mais que as fontes completem, jamais podem oferecer um vislumbre completo da realidade original. É, portanto, uma tarefa que conta em grande medida com a interpretação de quem estuda e constrói um modelo virtual. Não significa isto que haja um atropelo às questões éticas subjacentes, mas antes a assumpção de que ao fazê-lo se está a sugerir uma proposta, com diferentes graus de fiabilidade, mas uma proposta. Reconstruir a igreja de Muge na Idade Média é, portanto, uma sugestão de estudo, não uma versão acabada de registo arquitectónico que, na verdade, é impossível fazer por se tratar de um edifício que ainda existe mas perdeu todos os volumes originais nos últimos 500 anos.

Entenda-se como “objecto” todo elemento material móvel ou imóvel passível de ser enquadrado como bem patrimonial de valor histórico ou arqueológico. 2

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A igreja de Muge na Idade Média Uma proposta de reconstrução virtual

1 | A igreja de Muge: breve história institucional Por testamento de Nuno Soares de Alfange, datado de 12733, todos os seus bens em Muge são legados ao Mosteiro de Alcobaça. Estes bens constituíam um património fundiário considerável, aglutinado ao longo do século XIII por sucessivas compras, primeiro do pai, depois do irmão (Mendo Soares de Alfange) e dele próprio. A “herdade” era encabeçada por um pequeno núcleo urbano conhecido por quintã de Muja. Nuno Soares era reitor de S. Bartolomeu de Alfange (Santarém), filho de Soeiro Gonçalves de Alfange, sobrejuiz (ligado à corte de D. Sancho II) e Elvira Peres. Uma das suas irmãs, Ximena Soares era casada com Estêvão Peres de Aboim, irmão de D. João de Portel, mordomo-mor de D. Afonso III. Outra das suas irmãs, Maior Soares de Alfange, era casada com o cavaleiro Fernão de Soveral e em conjunto também detinham algumas terras em Muge. O irmão de Nuno Soares, Mendo Soares, era reitor da igreja de S. João de Alfange e após a morte do pai continuou a aumentar a sua parte da herança, com diversas aquisições depois de 1249. Estas cessam com o seu falecimento, anterior a 1273, data em que Nuno Soares já detém as suas propriedades e faz redigir a cláusula testamentária a favor do Mosteiro de Alcobaça.

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No entanto, o património de Mendo Soares não perfaz a totalidade dos bens herdados em Muge; havia ainda um quinhão de dimensões consideráveis legado pelo outro irmão, Soeiro Soares, herdado de Soeiro Gonçalves seu pai. No final do século XIII já os cistercienses estão em plena posse da quintã que começa a transformar-se num pequeno aglomerado urbano engrossado progressivamente pela chegada de colonos vindos de outras partes do termo de Santarém o que, em termos práticos, colocava um problema de controlo territorial às autoridades eclesiásticas. Um acréscimo demográfico repentino num lugar sem qualquer enquadramento religioso servia perfeitamente aos habitantes que, sem paróquia, se escusavam ao pagamento dos dízimos. Esta situação é corroborada pelas fontes que referem insistentemente os dízimos em dívida, com diversas admoestações canónicas e cartas régias a ordenar aos vizinhos de Muge que os paguem, às vezes com um acumulado de vários anos. Tendo em mente esta questão e o isolamento do povoado em relação às paróquias vizinhas o bispo de Lisboa decide mandar fundar aqui uma igreja paroquial. Assim, a 2 de abril de 1297 Afonso Pais, reitor de S. Paulo Salvaterra de Magos, cumprindo a vontade de D. João Martins, lança a primeira pedra da igreja de Santa Maria de Muge:”Auctoritate cujus Carte Ego Alfonso pelagij supradictus accessi

A.N.T.T. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 2º Incorporação, Docs. Particulares, m. 20, doc. 224.

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ad demum locum de Mugia et juxta Tenorem dictari Literatum dominj Episcopi fundaui edificauj et construxj in dicto Loco de Mugia quandam parochiale Ecclesiam sancte Marie et in ea posuj primariam lapidem Crucesignatam et ipsam Lapidem benedixi [...]”4. Na mesma altura é delimitada a área geográfica da paróquia cujos termos coincidem com os dos herdamentos alcobacenses, acrescidos das terras do cavaleiro Fernão de Soveral que à data não faziam parte do património monástico. Causa alguma estranheza o Mosteiro de Alcobaça não tomar a iniciativa de o fazer porque seria o principal beneficiado que, além de receber as prestações senhoriais inerentes ao domínio da terra, teria a haver o grosso dos direitos eclesiásticos relativos ao padroado. De qualquer modo, admitindo que nem toda a documentação relativa a este processo tenha sobrevivido haverá, certamente, pormenores negociais entre ambas as instituições anteriores à fundação da igreja que nos escapam de todo. No entanto a necessidade de a diocese de Lisboa tomar rapidamente a posse eclesiástica do lugar parece bastante evidente. Não será alheio o facto de o bispado de Évora ter

estendido a sua influência até ao baixo Vale do Tejo (Benavente e Samora Correia) e Sorraia (Coruche) podendo, a qualquer momento e usando o argumento da continuidade territorial reclamar para si o domínio das igrejas a sul do rio. Tal não seria um facto inédito, já ocorrido aliás depois da conquista de Alcácer do Sal, em 1217, em que D. Afonso II doa as igrejas da Península de Setúbal ao bispo de Évora, frustrando as pretensões de Lisboa. A 15 de maio de 1298 o Mosteiro recebe do rei o padroado da igreja de S. Tomé de Lisboa que prontamente troca com a diocese pelo da igreja de Muge e, no mesmo dia, é anexada a S. Bartolomeu de Ota que já fazia parte do património cisterciense5. Em 1301, o abade Pedro Nunes troca com o rei a sua quintã de Muge por parte do reguengo de Valada, embora reservando para si o padroado da igreja, com a advertência de que o rei deveria povoar o sítio onde o templo já estava construído ou, em alternativa, se quisesse povoar outro lugar e construir outra igreja, o padroado desta seria sempre de Alcobaça6. Em 1320 Stª. Maria surge no rol das igrejas, ordenado por D. Dinis (Almeida, 1910, p. 684), e a

“[Pela] autoridade de cuja carta, eu sobredito Afonso Pais fui ao lugar de Muge e de acordo com a carta do senhor bispo, fundei, edifiquei e construí no dito lugar de Muge a igreja paroquial de Santa Maria e nela pus a primeira pedra marcada com uma cruz e essa pedra benzi […]” A.N.T.T. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Incorporação, Docs. Particulares, m. 20, doc. 23. 4

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A.N.T.T. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Incorporação Docs. Particulares, m. 21, doc. 17. A.N.T.T., Gavetas, XI, m. 7, doc. 4.

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partir daqui aumentam as referências, fruto da produção documental da paróquia já solidamente institucionalizada. Na década de 20 do século XIV começa a receber doações dos vizinhos de Muge e merece atenção a de Maria Peres porque sobreviveu o documento original, que em 1326 lhe deixa uma vinha7. Em 1371, segundo as listas de Collectoriae vaticanas, a igreja arrecadava 15 libras em dízimos, o que não é um rendimento considerável se tivermos em conta outras paróquias vizinhas da mesma dimensão (Martín Martín, 1996, p. 147). A dependência em relação a S. Bartolomeu de Ota parece ter cessado no século XV não voltando a haver referências a tal e, pelo contrário, parece ser Alcobaça a intervir na vida paroquial directamente ou por via de agentes a quem arrenda os direitos da igreja, coisa frequente entre os finais do século XIV e todo o século XV. Com efeito, são conhecidos vários celebrados em: 1391, 1431, 1434, 1437, 1439, 1465. Este tipo de gestão gerou numerosos conflitos durante o século XV causados sobretudo pelos incumprimentos relativos aos deveres dos arrendatários que, nalguns casos se furtavam à manutenção da igreja e administração dos sacramentos aos fregueses, uma vez que a nomeação do capelão

era da sua responsabilidade. Um bom exemplo é a sentença de 1391 que põe termo a uma demanda de 3 anos que opôs o concelho de Muge a Alcobaça pela negligência de um dos rendeiros que não cumpriu as cláusulas contratuais nesse sentido8. O Mosteiro foi protelando as diligências para de fugir à obrigação de prover o necessário ao culto, com a desculpa de os rendimentos serem baixos pelo despovoamento da vila e pela destruição causada pela guerra com Castela. Como seria de esperar a sentença foi-lhe desfavorável e teve de repor aquilo que era da sua obrigação. Outras vezes ainda, era o Mosteiro o principal lesado pela negligência no pagamento das rendas como aconteceu em 1438 quando é denunciado o contrato feito com Pêro Dias, morador em Lisboa, que arrendou os direitos de Muge por nove anos dos quais só pagou quatro9. . No ano seguinte já está de novo arrendada, desta vez ao escudeiro Gonçalo Fernandes, morador em Santarém10. Em 1465, as rendas da igreja em conjunto com as de Santa Maria da Gloria, sua anexa, são emprazadas a Diogo Borges em três vidas por sete mil reais brancos: três mil seriam pagos ao Mosteiro pelo dia de S. João e quatro mil ao capelão que os enfiteutas nomeariam.

A.N.T.T. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Incorporação, Docs. Particulares, m. 28, doc. 10. A.N.T.T. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, Lº. 4, fls. 50-v, 51. 9 A.N.T.T. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, Lº. 92, fl. 140-v. 10 A.N.T.T. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, Lº. 14, fl. 170. 7 8

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Volvidos alguns anos, em 1472, volta a haver litígio embora não seja clara a razão, provavelmente por novo incumprimento das cláusulas do emprazamento ao ponto de estar iminente a execução do mesmo. Foi travada por uma bula de Sisto IV dirigida ao cabido da Sé de Lamego através de quem Diogo Borges terá feito apelação ao papa11. Em data desconhecida, mas certamente nos finais do século XV, inícios do século XVI, em consequência deste emprazamento, a igreja de Muge deixa o estatuto de capela curada, passa a priorado e os párocos são nomeados pela arquidiocese de Lisboa, com óbvio prejuízo para o Mosteiro de Alcobaça que perde os direitos de padroado e as rendas, exceptuando os quatro mil reis acordados em 1465. Este montante irá ser motivo de constantes quezílias durante os séculos XVI e XVII porque os priores de Muge faziam letra morta do costume quase caído no esquecimento e, volvidos mais de cem anos, recusavam-se a pagá-lo. É o caso do prior Baltazar de Almeida condenado por uma apelação apresentada em 1573 ao vigário geral de Lisboa, com repetição semelhante episódio em 1604 quando o pároco Francisco Coelho após contencioso, reconhece a obrigação de pagar a Alcobaça os quatro mil reis que tinha em dívida12. A situação permanecerá pouco diferente pelos

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séculos XVII e XVII, com pagamentos irregulares, uns saldados, outros deliberadamente esquecidos até 1774, quando o Mosteiro abre o processo para recuperação do padroado de Muge e toma posse da igreja, embora com um desenlace efectivo só ocorrido só em 1787. Em 1834, com a extinção das ordens religiosas, o padroado da igreja é definitivamente secularizado.

2 | História do edifício A 2 de Abril de 1297, era lançada a primeira pedra da igreja de Santa Maria de Muge, cuja construção terá sido adiantada nos meses seguintes com a delineação da planta no terreno, abertura de alicerces e, como em todas as igrejas medievais, o início da cabeceira. Não chegou até nós nenhum documento que possa explicar o ritmo da construção ou a lápide fundacional, que normalmente dá algumas indicações sobre o assunto, mas em 1301 à data do escambo com o rei D. Dinis, já estaria concluída. Se tomarmos como referência a ermida de Stª. Maria da Glória, edificada 70 anos depois, em 1362, terminada num ano e construída segundo os mesmo parâmetros arquitectónicos, não será

A.N.T.T. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, Lº. 92, fl. 142. A.N.T.T. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, Lº. 92, fl. 142-v.

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difícil aceitar que a obra de Muge possa ter sido acabada em quatro anos. A celeridade da construção, comparativamente a outros templos do mesmo período deve-se em grande medida às técnicas e materiais empregues, sobretudo a taipa e os adobes, que permitem a construção de grandes panos de parede em pouco tempo. Por aquilo que nos é dado a conhecer, a configuração geral da igreja nos seus primeiros anos não deveria ser muito diferente das outras paroquiais da época: corpo longitudinal dividido em três naves, cobertura em madeira, cabeceira poligonal coberta com abóbada e campanário adossado a um dos alçados. No século XV (1439), sabe-se pela contabilidade do Mosteiro de Alcobaça que foram gastos 730 reais na reforma do portal onde foram colocadas seis pedras novas, na correcção da pia baptismal e na pintura da imagem de Stª. Maria13. Mais adiante, não são conhecidas referências que possam complementar o que se sabe sobre o edifício até 1638 quando, a instâncias do pároco João Coelho Leite, é instituída a Confraria das Almas e se faz construir uma capela dedicada a S. Miguel (e Almas) do lado da Epístola, que ainda hoje existe. Nesta altura o edifício deve ter sofrido uma renovação porque as cantarias dos arcos de todas as capelas laterais são iguais à de S. Miguel 13

e deverão datar da mesma campanha, ocorrida em meados do século XVII. No último quartel do século XVII, é empreendida uma grande reforma que vai eliminar definitivamente o que restava da igreja medieval. Não é possível aferir o ano exacto em que tiveram início os trabalhos, apenas se sabe que foram concluídos com a montagem do grande retábulo de talha dourada na capela-mor, seguramente das décadas de 70/80 deste século. Sob pretexto de fazer este retábulo, a irmandade do Santíssimo Sacramento, principal financiadora da obra, faz demolir a cabeceira medieval com a escusa de que ficaria mais caro adaptar o alçado de talha ao espaço poligonal do que apear a cabeceira e fazê-la de novo. Constrói-se então outra, de arquitectura mais simples, com abóbada de canhão à dimensão da tribuna pretendida. Junto com a cabeceira medieval foi demolido o arco cruzeiro por se achar que era pequeno, antigo e não ficar de proporcional grandeza. Não é muito claro se o resto dos trabalhos decorreu nesta fase, porque os dados são pouco pormenorizados e provêm todos da memória da obra de 1712, citados para o apuramento da responsabilidade de quem deveria pagar o restauro. Independentemente da sincronia, também em algum momento anterior ao século XVIII, o campanário medieval foi apeado para dar lugar à torre sineira e toda a fachada

A.N.T.T. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, Lº. 14, fl. 170.

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refeita com os materiais de sobejo da torre, desaparecendo o portal trecentista, substituído por outro de feição mais actual. É de crer que a fachada tenha sido avançada alguns metros além da linha da anterior e a eliminação da divisão das naves poderá ser também desta altura, para criar um espaço interno mais amplo, posto que desproporcional, mas sem obstáculos visuais à liturgia. Em 1712, devido ao estado de ruína do edifício, é decidida nova empreitada, desta vez mais profunda e com melhores materiais. Para esse efeito foi feita inquirição sobre o apuramento das despesas e elaborada com grande detalhe a memória do projecto. A pouca durabilidade das alvenarias comprometeu a estrutura da igreja desde sempre, exigindo constantes reparações e, este restauro visava acabar definitivamente com esse problema. Projectou-se demolir a parede do lado do Evangelho até onde tinha terminado a parede refeita por ocasião da fachada seiscentista, todas as paredes laterais e empenas foram subidas, as frestas da nave substituídas por boas cantarias e colocado madeiramento novo na cobertura, com tecto tripartido dividido em caixotões para receber pintura14. Os retábulos de talha dourada dos altares laterais, de produção joanina, foram feitos seguramente para complementar a empreitada no hiato compreendido entre 1713 e a década de

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40 do século XVIII.

A julgar pela data de 1719, inscrita num dos sinos, terá sido este o ano da conclusão da reconstrução da igreja.

Fig. 1 – Planta da igreja após as obras de 1712 – 1719 (?), segundo o desenho da memória descritiva da obra de 1899.

Parece não ter sido uma reforma tão profunda quanto o pretendido e a igreja acaba por ter de receber obras durante todo o século XIX, embora pontuais. A construção de boa pedra nunca se verificou, pelo menos integralmente. Chegando ao novo plano de restauro de 1899, constatou-se que a razão da constante ruína da igreja residia, mais uma vez, na má qualidade dos materiais utilizados, tendo as paredes sido construídas, de facto, em pedra mas só até uma altura próxima dos 5m e o restante acabado com taipa.

Biblioteca da Casa Cadaval, Cod. 891 – K. VIII. IL

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Em 1899, é elaborado um audacioso projecto de reconstrução com uma recolha de fundos e venda de bens pela junta de paróquia de então, que permitiram custear os trabalhos. A duquesa de Cadaval também contribuiu com um avultado donativo. Todas as paredes foram demolidas até à altura de 5m, até ao ponto onde a construção em pedra foi interrompida no século XVIII. Todas as cantarias foram substituídas, com excepção das das capelas laterais. A talha dos altares e o retábulo da capela-mor foram restaurados e devolvidos aos seus lugares, com pequenas modificações ao nível da ornamentação. De modo a que a fachada ficasse simétrica, foi construída outra torre do lado sul. A obra acabou em 1902 e alterou para sempre o aspecto da igreja, eliminando todos os elementos anteriores ao final do século XVII, que poderiam ainda subsistir nas suas paredes.

3. Fontes escritas e arqueológicas As fontes disponíveis que possibilitem uma reconstituição da igreja de Muge na Idade Média não são muito abundantes e da sua maioria apenas se pode colher alguma informação indirecta mas, de qualquer modo, preciosa se 15

convenientemente extraída e complementada com a que existe para edifícios da mesma faixa cronológica. O documento mais antigo é um inventário dos objectos litúrgicos datado de 1344 redigido para que deles se fizesse entrega ao Mosteiro de Alcobaça por se encontrar vaga a igreja. Contém bastantes dados sobre a disposição do mobiliário no espaço interior do templo, o número de altares e as imagens neles colocadas, bem como o aparato que deveria constar de cada um. Em termos arquitectónicos refere a existência do campanário no qual só existia um sino. Em 1435 foi elaborado outro inventário do mesmo teor a pedido do concelho de Muge e do clérigo João Martins para reaver o mobiliário da igreja que tinha sido deixado à guarda de um certo Vasco Gil pintor. Àquela data, o antigo pároco, Joan’Eanes andava em sua demanda jazendo preso no Aljube por ordem dos vigários da Sé e por esse motivo pedia aos oficiais do concelho e capelão que os fossem reclamar a Lisboa15. Este documento não acrescenta novos dados ao de 1344 repetindo aliás alguns itens, no entanto, ficamos a saber que a igreja era dotada de sacristia, o que parece óbvio, mas carecia de confirmação. Quatro anos depois, surge o registo no livro da fazenda do Mosteiro de Alcobaça de quanto foi gasto a correger a igreja de Muge para

A.H.M.S.M., Tombo da Câmara de Muge, fls. 80-v – 83.

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satisfazer as determinações da visitação desse ano. Não dá grande esclarecimento acerca da igreja embora daqui se possa extrair que o portal e a pia baptismal eram de pedra e existia um armário na sacristia, feito naquela data, para guardar os paramentos16. O documento mais extenso e com maior número de referências é, sem dúvida, o termo de declaração da obra de 1712. Pela informação do que havia sido feito algumas décadas antes, percebe-se que o velho edifício medieval tinha passado mais ou menos incólume até ao último quartel do século XVII. Pela descrição do que havia sido reconstruído é possível inferir alguns dados importantes sobre a planta do templo nomeadamente a configuração da capela-mor ou o campanário, já assinalado no documento de 1344. A descrição dos trabalhos a executar a partir de 1712, inserta no mesmo documento, fornece informações preciosas sobre as dimensões da igreja e aquilo que não havia sido alterado no século XVIII, permitindo calcular por estimativa o tamanho da nave e a partir daí reconstituir proporcionalmente o resto do imóvel. O projecto do restauro de 1899, por seu turno, oferece o referencial gráfico que falta às restantes fontes, contendo os levantamentos da planta e alçados após a obra de 1712/1719. Como é natural, pouco informa sobre a igreja na Idade Média, mas mostra as proporções correctas

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do espaço e serve de base à sua retrospectiva arquitectónica. Completa-se o conjunto documental com os vestígios arqueológicos/arquitectónicos sobreviventes sem os quais seria quase impossível uma reconstituição minimamente fiável. É importante ainda ter em conta que nenhum se encontra no sítio original para onde foi criado, pese embora, pela sua tipologia é possível devolvê-los virtualmente ao lugar que ocupavam na Idade Média. Trata-se de um pequeno conjunto formado por três capitéis muito mutilados, um fragmento de coluna e um silhar moldurado reaproveitados em construções alheias e recuperados aleatoriamente durante as demolições. O material em que foram talhados – o lioz branco – é um tipo de calcário relativamente raro formado durante o Cenomaniano (Cretácico Superior) que existe a norte e noroeste do concelho de Lisboa e sobretudo na área de Sintra, onde existem diversos pontos de extracção, nomeadamente a pedreira de Pêro Pinheiro. Um dos capitéis, fragmentado a ¼ do volume original tinha sido aproveitado como placa identificativa num edifício pertencente à Misericórdia. Tem a face do ábaco polida e inscrita com as iniciais “MZA.”. Outro, mais inteiro, conserva grande parte do ábaco e a altura e o diâmetro ao nível do astrágalo estão completos. Na face do ábaco há duas cavidades para servir de apoio ao gonzo e trancar o ferrolho de uma porta.

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Do terceiro capitel, muito mutilado, apenas resta o astrágalo, ¼ do cesto e parte do bloco de inserção na parede. É, na realidade, um meio capitel para encimar uma pilastra adossada à parede, provavelmente onde se faria descarga do arco final da separação das naves laterais. Difere dos outros por ter o astrágalo muito saliente talhado em bisel. São peças desornamentadas, de cesto liso que, apesar de raras, encontram paralelos em alguns capitéis da igreja de Stº. André de Mafra e no coro baixo da igreja de Stª. Clara-a-Velha de Coimbra. Os outros dois elementos – fragmento de fuste de coluna e bloco moldurado – não oferecem dados relevantes sobre a arquitectura da igreja, embora se presuma que o bloco fosse uma imposta da cabeceira ou parte do arranque do arco cruzeiro. O fragmento de fuste não pertencia a nenhum dos capitéis referidos porque é demasiado estreito, sendo possivelmente parte de um colunelo do portal.

26 Fig. 3 - Fuste de coluna, provavelmente do portal.

Fig. 2 - Capiteis das colunas de divisão das naves

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Magos 4 | Proposta de reconstituição 4.1 | Métodos e materiais de construção:

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A geologia desta zona do Vale do Tejo é constituída por formações sedimentares terciárias/ quaternárias com o predomínio de areias, argilas e cascalho, sem afloramentos rochosos consolidados onde fosse possível extrair pedra para construção. Este facto condicionou as técnicas construtivas aos materiais e recursos disponíveis que se traduzem na fábrica de alvenarias em “terra”: a taipa e o adobe. Com efeito, o processo de obras de 1712 corrobora o facto de grande parte das paredes da igreja serem construídas com “terra”, reservando-se a pedra, toda ela importada, aos elementos estruturais importantes como os cunhais, colunas, portas e partes da cabeceira. O complexo régio de Paço dos Negros da Ribeira de Muge, no concelho de Almeirim, construído nos inícios do século XVI, espelha bem esta forma de construir. Embora muito destruído, ainda conserva um grande muro em taipa intercalada com leitos de argamassa entre as alturas de sobreposição dos taipais. A ermida de S. João Baptista, remanescente deste paço também algo alterada, parece ter sido construída com as mesmas técnicas. Acrescente-se ainda o uso de pequenos blocos de conglomerado ferroso também de origem detrítica, que o almoxarife Pedro Matela, em inícios do século

XVI, garantia obviarem a construção do paço (Evangelista, 2011, p. 60). O fabrico da taipa na região não é uniforme e vai variando à medida que a geologia dos terraços fluviais vai mudando e, em função disso aumentado os depósitos de cascalho, argilas e arenitos. Perto de Samora Correia, na atalaia medieval de Belmonte utilizou-se uma taipa diferente, de grande resistência, feita de cascalho de quartzito, argila vermelha e saibro. No Paço dos Negros, tal como nos lugares próximos ao rio Tejo até aos anos 50 do século XX, a taipa era feita com um sedimento argiloso negro ao qual eram adicionados cacos, detritos domésticos e intercalada com fiadas de tijolo, telhas e leitos de argamassa. Daqui se infere que a maior parte dos paramentos da igreja medieval de Muge terão sido construídos segundo este processo. Outro recurso importante, embora usado em menor escala são as argilas para o fabrico de materiais de construção: tijolos, telhas e ladrilhos. Tendo em atenção a dificuldade de obtenção de pedra, seriam usados tijolos com funções análogas na criação de elementos estruturais importantes que não requeressem demasiada dureza ou robustez como os arcos de suportam das divisórias das naves, o preenchimento das abóbadas da abside ou os enxalços internos de frestas e janelas. Pela mesma razão, o pavimento da igreja deveria ser de ladrilho cerâmico. A pedra, sobretudo lioz importado da região Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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de Lisboa, era aplicada de forma muito mais comedida, somente em elementos em que fosse indispensável: colunas, ombreiras de portas, cunhais, exterior das janelas e frestas e nos contrafortes da cabeceira.

4.2 | Planta, sistema métrico e dimensões: Não havendo referências em contrário, a largura interna da igreja manteve-se sempre a mesma da Idade Média até ao final do século XIX que, pela planta de 1899 media 8,80 m. É uma medida bastante regular que corresponde exactamente a 8 varas, ou 40 palmos17 do sistema métrico pré-decimal. O comprimento interno calculou-se pela subtracção da extensão de parede demolida no século XVIII que se supõe ser a secção de ampliação aquando da reconstrução da fachada no final do século XVII. Olhando para a planta de 1899 rapidamente se percebe o porquê da possibilidade do aumento do espaço interno e quanto foi aumentado. Tem a ver essencialmente com a necessidade de crescimento da área útil da nave e criação de espaço para o coro. Por esta ordem de ideias só terá sido é demolida no século XVIII a parte da parede não mexida no século XVII, que corresponderia

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grosso modo ao comprimento da igreja medieval, medindo aproximadamente 68 palmos = 14,96, segundo o documento de 1712. Calculadas as dimensões do espaço interior em 40 X 68 palmos, havia que definir a planta geral do edifício medieval e procurar paralelos em outros edifícios contemporâneos que reunissem características próximas deste pequeno templo paroquial. Além disso era de capital importância aferir um sistema métrico compatível porque apesar de a documentação moderna referir o palmo, poderia não ser consistente com as medias usadas originalmente (Jorge, 2007, p. 33). Atendendo ao facto de as cantarias provirem da região de Lisboa, por uma questão de lógica, o plano geral também tinha boas hipóteses de ter sido produzido aí. De forma a verificar o sistema métrico utilizado, foram medidos vários imóveis religiosos medievais do aro de Lisboa e, na maioria, é constante o uso de padrões de medida linear baseados no palmo – a vara e o côvado – a despeito dos edifícios até agora estudados em que predominam o pied du roi (0,324 m) nas as igrejas cistercienses de S. João de Tarouca (Jorge, 2006) e Alcobaça (Jorge, 1999), e o pé romano (0,296 m) para a Sé de Évora (Jorge, 2007, p. 33). Embora estas medidas sejam referidas principalmente com um uso comercial (Barroca 1992),

1 palmo = 22cm; 1 vara = 5 palmos = 1,1 m.

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no final da Idade Média vão passar ser o sistema predominante até à adopção do sistema decimal, em 1869, sobrepondo-se a todas as outras. Convém ainda ter em atenção que são padrões muito antigos com equivalências próximas quer aos sistemas romano (palmo romano = 0,223 m), quer ao islâmico (côvado rashashî = de 0,65 m). Os exemplos mais consistentes de entre os que foram investigados para este trabalho são Stª. Maria de Sintra e Sto. André de Mafra, onde a planta encaixa quase perfeitamente numa quadrícula construída a partir de um módulo fundamental de 1 vara (1,1 m = 5 palmos). Na igreja de Mafra há uma discrepância de 26 cm entre a cabeceira e o corpo, facilmente explicado com uma paragem da construção após a conclusão da abside, tendo recomeçado a obra com um desajuste no eixo da igreja. De qualquer das formas é um dado irrelevante que não afecta leitura da métrica do edifício. Stº. André de Mafra foi, portanto, o modelo escolhido para tentar a reconstituição da planta da igreja de Muge. Fazendo o simples exercício de reduzir a planta de Mafra à escala da medida que teria as maiores probabilidades de ser original – 8 varas de largura, verificou-se que o plano reduzido a essa proporção resultava muito próximo dos 68 palmos citados em 1712. Isto revela uma similitude quase perfeita entre Mafra e o que se propõe para Muge, com uma redução da escala à razão de 5:4. Os quadrados obtidos a partir da rotação a 45º do módulo-base de 5 palmos, na progressão

Fig. 4 – Plantas das igrejas de Stª. Maria de Sintra (A) e Stº. André de Mafra (B) inseridas numa malha com módulos quadrado de 5 palmos (1 vara) de lado. Na planta de Stº. André de Mafra, nota-se um desvio da malha entre a cabeceira e o corpo da igreja denunciando duas campanhas de obras diferentes. Imagens obtidas em www.monumentos.pt IPA 00006132 e 00002340.

geométrica de √2 (Jorge, 2006, 303), vai condicionar a disposição de boa parte dos elementos da planta, embora não o faça com as dimensões totais da igreja, ou seja, ao contrário do que se verifica para as grandes igrejas e catedrais portuguesas, não será um factor determinante na criação dos pequenos edifícios paroquiais. Tanto é, que não há uma proporção específica e divisível por um múltiplo comum, por exemplo, entre o comprimento e a largura. Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Fig. 6 – Sopreposição da planta reconstituída (a negro) à planta do edifício posterior à reforma do séc. XVIII (a cinzento). O topo da cabeceira medieval coincide exactamente com o embasamento do altar-mor.

4.3 | Abside poligonal:

Fig. 5 – Planta reconstituída da igreja de Stª. Maria de Muge com inserção em modelo de quadratura com base no módulo de 5 palmos de lado.

Curiosamente, sobrepondo a planta reconstituída da igreja medieval à planta da igreja como era no século XVIII, a testeira da abside não só coincide com o embasamento da tribuna como tem a largura exacta do altar o que parece confirmar a exactidão do modelo de reconstrução virtual e levanta a hipótese de os restos da abside terem sido aproveitados para fundar a capela-mor, no século XVII.

proposta baseada no documento de 1712 em que é mencionada como razão principal da demolição da capela-mor a necessidade de despesas em “armações” para adaptar o retábulo ao existente, ou seja, a testeira não era plana nem a abóbada seria semicircular como se pretendia. O arco cruzeiro, por onde se ingressava na capela-mor era pequeno e antigo. Por outro lado, observando atentamente as plantas das igrejas que se conservam deste período nos distritos de Lisboa, Leiria e Santarém (principais focos de irradiação arquitectónica para a área em questão), a esmagadora maioria das igrejas paroquiais tem abside poligonal, excepto três: de S. João do Mocharro em Óbidos, S. Salvador do Mundo, em Sobral de Monte Agraço e Aljubarrota.

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Magos Esta última segue em grande medida as fórmulas do Românico e as duas precedentes têm características arquitectónicas que diferem dos modelos mais usuais de finais do século XIII – inícios do XIV

4.4 | Corpo longitudinal tripartido:

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Grande parte das igrejas paroquiais deste período apresentam o corpo dividido em três naves, sendo a central mais larga que as colaterais. As raras excepções a esta “regra” têm uma arquitectura muito própria que não permite enquadrá-las naquilo que conhecemos da igreja de Muge na Idade Média. Geralmente têm um corpo estreito (inferior a 7 m) com recurso a arcos diafragma (Salvador do Mundo em Sobral de Monte Agraço e Cheleiros18, Mafra) e presbitério quadrado ou rectangular (Salvador do Mundo e S. João do Mocharro, em Óbidos). A igreja monástica de S. Francisco de Leiria (Jorge, 2011, p. 19) é uma excepção, com nave única e cabeceira poligonal. Apesar disto, é um modelo pouco expressivo que poucas marcas terá deixado a sul deste concelho e é de lembrar também que não se trata de uma igreja paroquial. Os capitéis sobreviventes da igreja medieval confirmam a hipótese da existência de três

três lados do ábaco conservados, indício de que pertenciam a colunas isoladas sem contacto horizontal com outras estruturas, próprias para o suporte de arcarias como as das naves. Os ábacos medem aproximadamente 33 cm que equivale a 2 ½ palmos gerando uma superfície demasiado estreita para suportar a parede divisória que lhe sucede. Se tivermos em conta que faltam as impostas onde descarregavam os arcos e estas, por norma, excedem a largura dos ábacos, facilmente se cria um plano mais largo onde os assentar. Admitindo que as impostas excedem o topo dos ábacos em 2 polegadas (5,5 cm), fica uma superfície adicional de meio palmo que, em termos gerais, dá uma área útil de 2 palmos (44 cm), já compatível com a estrutura que suportam. As colunas não seriam muito elevadas devido à sua pouca espessura, visto que a base dos capitéis não admite um diâmetro superior a 22 cm (1 palmo); parece pouco se comparado com outras edificações geralmente com colunas mais grossas (55 cm em Mafra, 77cm em Stª. Maria de Sintra. No entanto, tendo em conta a redução da escala da igreja de Muge, não haveria necessidade de pontos de apoio tão espessos e estes seriam o suficiente para permitir suportar arcos com 44 cm de perfil e paredes internas da mesma espessura. Não sendo a

A igreja de Cheleiros, apesar de hoje já não ter arcos diafragma, é bastante possível que os tivesse durante a Idade Média considerando a extensão e a pouca largura da nave, à semelhança da do Salvador do Mundo, em Sobral de Monte Agraço.. 18

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elevação excessiva e partindo do princípio que havia três colunas por nave como era habitual, os vãos eram mais curtos devido e, consequentemente, o peso das paredes divisórias e da cobertura eram melhor distribuídos. Fazendo a operação de forma inversa, ou seja, aplicando colunas mais espessas à planta, rapidamente se percebe que o espaço das naves ficaria demasiado preenchido não só em área mas também verticalmente, tornando o edifício opaco e com grande dificuldade visual sobre a cabeceira, onde se desenrolavam as principais cerimónias.

4.5 | Cobertura: Durante a Idade Média a forma mais comum de cobertura era o travejamento de madeira com telhado cerâmico. É certo que nas grandes igrejas monásticas e catedrais a situação era diferente motivada pela abundância de recursos, optando-se pelo abobadamento total do espaço. Nas pequenas igrejas paroquiais e ermidas, imperavam as coberturas de madeira, não só pela economia de meios, mas para aligeirar o peso exercido nas paredes muitas vezes de factura pouco robusta. As armaduras de madeira dos telhados permitiam múltiplas combinações em função da dimensão do espaço a cobrir e das tradições construtivas locais. O único exemplar que chegou até à actualidade foi o tecto da colegiada de Nª. Srª. da Oliveira, em Guimarães, que data dos inícios do século XV. Aqui foram utilizadas

asnas de linha suspensa com tirantes emparelhados ao nível do frechal, para cobrir a nave central; nas naves laterais foram usados barrotes paralelos, ditos “varas”, com o forro pregado directamente no extradorso da armadura. No caso de Muge, a cobertura do corpo da igreja não seria muito diferente com um sistema de asnas na nave principal e armadura simples nas laterais. A abside seria uma excepção, abobadada provavelmente em tijolo com nervuras de pedra pelo interior. Não é possível saber ao certo como se faria o remate do beirado do telhado para o exterior embora seja legítimo supor que assentava numa cimalha apoiada por mísulas de pedra ao longo da parede. Esta é a solução mais comum na Idade Média, embora não a possamos inferir pela documentação. O plano de obras de 1712 refere a existência de uma cimalha de tijolo a correr ao longo da parede, a ser substituída por outra do mesmo material naquela data. Isto não é indicativo da inexistência de uma cachorrada medieval em pedra porqu,e à semelhança de outros edifícios, por vezes no decurso de obras posteriores estes elementos eram ocultados, substituídos ou as pedras reaproveitadas para outros fins, nomeadamente como material de construção nas paredes. Na ermida de Nª. Srª. da Glória, hoje paroquial de Glória do Ribatejo, ainda se conserva uma mísula zoomórfica das que suportavam o beirado, embora fora do contexto original. Este edifício foi construído em 1362 por ordem régia, dentro do antigo termo de Muge e sendo a

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Magos tradição arquitectónica a mesma, não é descabido tomá-lo como exemplo.

4.6 | Fachada e alçados laterais:

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Fig. 7 – Mísula zoomórfica do séc. XIV. Igreja de Nª. Srª. da Glória.

Usando novamente os dados de Mafra, reconstitui-se a fachada à proporção das medidas da igreja de Muge que, mais uma vez cabem sem excepção na grelha modular aplicada à planta. Surgiu só um problema com as proporções da capela-mor que ficava excessivamente alta, tendo como referência a altura da empena e, consequentemente, a da cobertura geral cujo nível da cimalha é em Stº. André igual entre o corpo e a capela-mor. A solução obteve-se retirando 3,5 palmos (77cm) que se encontravam no desnível dos pavimentos da igreja de Mafra, por ter sido fundada a igreja em terreno irregular, coisa que não se verifica em Muge. Aplicando um modelo de quadratura à fachada proposta, sem os 77 cm que sobejavam no alçado de Mafra, o vértice da empena coincide perfeitamente com o vértice do quadrado maior, rodado 45º na progressão geométrica de √2. À semelhança de Mafra, incluiu-se na fachada um óculo que faria a iluminação frontal, ajustado à quadrícula com a correcção do eixo que naquela igreja se encontra algo desviado.

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Fig. 8 – Fachada da igreja de Stº. André de Mafra com sobreposição de grelha modular com 5 palmos de lado no módulo básico; imagem original obtida em www.monumentos.pt IPA 00002340. Comparação com a reconstituição da fachada da igreja de Muge.

Os contrafortes foram distribuídos de acordo com a localização das colunas das naves, respeitando a regra habitual de um contraforte por cada ponto de apoio. Obviamente, o facto de não ter uma cobertura em abóbada por si só não justifica elementos estabilizadores nas áreas de descarga do peso da cobertura. No entanto, isto faria sentido no caso de uma construção em alvenaria de pedra, que é muito mais coesa do que a de taipa, neste caso, dada a extensão e a altura das paredes, mais ainda a pressão das vigas da cobertura ao nível dos frechais, os contrafortes acabam por se tornar num elemento indispensável. Neste alçado, ao contrário do da Epístola onde permanecem três, reconstituiu-se o alçado com apenas dois porque o campanário cumpre idênticas funções. Cada alçado disporia de uma porta lateral, de dimensões mais reduzidas que a principal, como se pode ver pela maioria dos exemplos conservados, embora não exista um critério consistente para a sua localização ao longo das naves. A opção aqui foi localizá-las sensivelmente a meio do corpo da igreja no plano dos intercolúnios e entre os contrafortes.

O portal, como o documento de 1439 refere, era em pedra, tendo sido reparado e algumas cantarias substituídas nessa data. Neste caso, considerando a exiguidade de recursos, em vez do portal de Mafra com três arquivoltas, usouse o da Matriz de Cheleiros como referência por ser mais simples, com uma única arquivolta assente num par de colunelos. Dos alçados laterais importa destacar o do lado do Evangelho, porque é o que apresenta maior complexidade porque a ele encosta o campanário. Embora siga na generalidade o plano já citado, foi necessário adaptar alguns elementos em virtude do tipo de método construti- 4.7 | Organização interna e vo que se supõe ter sido empregue. Além do campanário, que não existe na igreja de Mafra, mobiliário litúrgico: foi necessário adicionar contrafortes ao corpo Pelo inventário de 1344 sabemos que havia da igreja de forma a estabilizar os panos de três altares: dois altares laterais que seguindo a parede que seriam maioritariamente em taipa. ordem normal nos templos medievais, estariam Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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nos topos das naves laterais e o altar principal, tema é a melhor fonte iconográfica para percecolocado no interior da abside. Os altares la- ber a disposição e “arquitectura” dos altares da terais eram dedicados a S. Pedro e Stº. André, Idade Média a meados do século XVI. embora não saibamos exactamente a qual correspondia cada imagem excepto no altar onde ficava a imagem da padroeira, Stª. Maria. Seguindo os vários exemplos conhecidos, os altares tinham geralmente uma forma paralelepipédica sobre um degrau ou antecedidos por um estrado de madeira, que aumentava a visibilidade dos fiéis sobre o oficiante. Por vezes havia hierarquia na disposição dos altares, estando o altar-mor acima dos restantes da igreja, também sobre uma plataforma escalonada ou antecedido de um lanço de degraus. Cada altar dispunha de uma parafernália própria de objectos litúrgicos e paramentos. No caso dos da igreja de Muge, tinham várias toalhas brancas, frontais e um tecido colorido à retaguarda para isolar da parede a imagem e criar um cenário mais dignificante às cerimónias. No inventário de 1344, todos estes tecidos são referidos como lençóis, sem qualquer tipo de descrição do material ou das cores de cada um. Nesse aspecto, o documento de 1435 é bastante mais completo, referindo tecidos de algodão, seda e as respectivas cores. Anota ainda a existência de relíquias de santos atadas num cendal (tecido de seda fina). Os altares eram resguardados por cortinas, descritas em 1344 e abundantemente Fig. 9 – Altar medieval com cortinas. Pintura representando a “Misde S. Gregório”. Francisco Henriques, inícios do séc. XVI, Murepresentados em pinturas do início do século sa seu Nacional de Arte Antiga. XVI, sobretudo as que ilustram o episódio da “Missa de S. Gregório”. É de assinalar que este Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Das imagens medievais restou a de Sto. André finais do século XIV, princípios do XV, à guarda do Museu Nacional de Arte Antiga, fruto de uma incorporação ocorrida em 1940. Nesta data, a Junta de Freguesia de Muge vendeu ao museu três imagens de calcário policromado19, duas delas mais tardias, descobertas na sacristia da Igreja da Misericórdia. Foram concebidos modelos fotogramétricos de três esculturas medievais. A imagem de Stº. André não coloca dificuldades uma vez que o original ainda existe; para as da Virgem (nº. de inventário: Esc 1087) e S. Pedro (nº. de inventário: Esc 1061) recorremos a duas imagens do século XIV provenientes da “Colecção Vilhena”, que integram o acervo do Museu Nacional de Arte Antiga20. O inventário de 1344 refere ainda um “crucifixo” que dispunha de uma série de peças têxteis à semelhança dos altares, mas sem que tivesse algum assinalado. Na verdade, este tipo de imagens de Cristo crucificado destinavamse ao vão do arco triunfal, colocadas sobre uma viga de madeira, por vezes acompanhadas pelas imagens da Virgem e S. João como alusão ao Calvário e ao triunfo sobre a morte (Pomar

Fig. 10 – Stº. André. Escultura em calcário policromado dos inícios do séc. XV, proveniente da Misericórdia de Muge, mas originária da Igreja Matriz. Museu Nacional de Arte Antiga.

Rodil, 2015). Embora a viga não seja referida, era presença comum nas igrejas medievais sendo retiradas depois do Concílio de Trento e, boa parte dos Cristos medievais proviriam de estruturas similares. Pode ver-se um bom exemplo na pintura da “investidura do primeiro mestre da ordem de Santiago”, existente no Museu Nacional de Arte Antiga (Pomar Rodil, 2015, p.152).

As imagens são: Virgem do Leite, de finais do século XV, princípios do século XVI; S. Brás, com a mesma cronologia e Sto. André. Não se sabe em que circunstâncias foram parar à Misericórdia de Muge, embora seja possível que tenham vindo da Igreja Matriz durante as obras do século XIX e, por serem demasiado antigas, já não voltaram a ser reclamadas. De qualquer modo, não faziam parte do acervo da Misericórdia nem constam de nenhum inventário da mesma, além de terem uma cronologia bastante anterior à sua fundação. 20 Deixo um agradecimento especial aos Drs. Maria João Vilhena de Carvalho e Anísio Franco, conservadores do M.N.A.A. pela facilidade concedida no levantamento fotográfico das imagens. 19

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Magos Diante do crucifixo havia um candeeiro ou lampadário em ferro com quatro lâmpadas, provavelmente de vidro, à semelhança de outros objectos similares ainda existentes. Pela descrição, assemelhava-se a uma roda de ferro e estaria suspensa do vigamento no final da nave central. O fresco de Giotto di Bondone, “reconhecimento

dos estigmas” (c. de 1300) pintado na Basílica Superior de Assis mostra claramente como eram articulados todos estes elementos: viga - crucifixo - lampadário de ferro diante do crucifixo.

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Fig. 10 – “Reconhecimento dos estigmas de S. Francisco”: viga com cruxifixo e imagens religiosas iluminadas por lampadário “de roda” – Giotto di Bondone, c. 1300, Basílica Superior de Assis. “Investidura do mestre da Ordem Santiago” – Ao fundo vê-se a viga com o crucifixo suspensa sobre as impostas do ardo triunfal – 2º quartel do séc. XVI, Museu Nacional de Arte Antiga.

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Estranhamente não é citado outro suporte de iluminação, a despeito do que revelam outras fontes, sempre pródigas a enumerar os castiçais e alfaias litúrgicas dos altares. Ainda na categoria do mobiliário havia uma estante de roda com um frontal velho, que podemos identificar como uma estante alta articulada que serviria para os livros de coro e/ou das partes da liturgia a ser cantadas: “Caderno de glorias e de crios pontados Jtem huum Caritanho Jtem huum salteiro nouo e outro uelho Jtem huum Santal mistico Jtem huum Domingal mistico Jtem huum Caderno de Vitatorios de todoo ano Pontados”. Não se percebe em que parte da igreja estaria arrumada, mas se tivermos em conta que não existia retro-coro, o seu lugar natural seria o presbitério, que também cumpria essas funções.

Conclusões

Reconstruir um edifício medieval que fisicamente já não existe não é, obviamente, uma tarefa isenta de erros. Há que assumir de que se trata sempre de uma interpretação das fontes que, na sua maioria, cotejam informação de forma muito lateral. Mais ainda quando nem sequer existem elementos arquitectónicos de vulto, mesmo que fora do contexto que possam auxiliar a uma compreensão mais profunda do imóvel. Será sempre com isto em mente que este trabalho deve ser lido, como um jogo de possibilidades

e impossibilidades formatadas àquilo que se entende da documentação histórica. Por outro lado, esta reconstituição segue modelos ideais/ teóricos do que se compreende das igrejas paroquiais do seu tempo, o que lhe confere alguma autenticidade mas não despista as contingências dos padrões nem imprevisibilidades construtivas. Como se sabe, em termos reais, quando se construía uma igreja, os ritmos não eram constantes e o facto de se começar de determinada maneira não implicava terminar desse mesmo modo e isto pode ser visto em Stº. André de Mafra, ponto de partida desta reconstituição, em que a malha com que se projectou a cabeceira, não foi a mesma que serviu para construir o corpo da igreja, apesar de o quadrado básico ter as mesmas medidas. Mesmo em termos teóricos, por vezes a informação não é redundante com a realidade e isso podemos constatar na aplicação dos modelos de quadratura, um dos mais usados durante a Idade Média, em que o módulo básico existe, mas a progressão geométrica não é possível reproduzir de forma eficaz em edifícios desta natureza. Significa isto que os pólos de construção eruditos não são os mesmos que os que se inserem em áreas mais periféricas, onde predominam formas de planeamento mais empíricas e limitadas aos recursos disponíveis, por vezes escassos. A igreja de Muge, apesar da pouca informação disponível, materializa-se nessa mesma realidade. Foi construída num sítio à data ainda pouco povoado e feita a obra com escassez de meios

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Magos materiais e humanos com um imperativo de celeridade. Assim, as hipóteses de reconstituição desta igreja, apesar da verosimilhança são essencialmente uma proposta de trabalho e não um modelo acabado.

Apêndice documental

1344 – 07 – 23 Inventário da igreja de Muge

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Sabham todos como Vynte e tres dias de Juinho Era de mill e trezentos e Oijteenta e dous anos estando dentro na Jgreia de Santa Maria de Muia Em presença de mjm Johane / steueez Tabelliom de Muia e das testemunhas que adeante som scriptas frey Pero martiz Çelareiro do que a hordem dalcobaça ha en Sanctarem achou na dita Eigreja Estas cousas / que se seguem adeante Primeiramente hũa vestimenta festiual duum manto de Baldoquim perffeyita Jtem duas vestimentas de Linho perfeyitas ia husadas Jtem / hũa Capa com que saaem sobrelos passados husada Jtem huum Caldeyrom e huum Tribulo dalatom Jtem duas galhetas nouas destanho pera o vinho e pera a agua / Jtem duas sobre pelizas nouas e hũa uelha e huum Lençol husado e Duas aluas uelhas rrotas e meya dũa ara Jtem huum Caderno doofiçio de Ramos / pontado Jtem huum caderno doofiçio de corpora terti e os prefaços de todoo ano Jtem huum Euangeliorom e santal mestico e Duas galhetas uelhas Jtem huum offi/çial e pistoleiro mistico Jtem huum Caderno de glorias e de crios pontados Jtem huum Caritanho Jtem huum salteiro nouo e outro uelho Jtem huum Santal mistico / Jtem huum Domingal mistico Jtem huum Caderno de Vitatorios de todoo ano Pontados Jtem hũa cruz pequena dalatom com huum cruciffiço dalatom pera comungar / Jtem hũa Cruz dalemoges com que soteram e uam sobrellos passados Jtem hũa ara com seus corporaaes Jtem hũa stolla de comungar Jtem hũa campehynha / pequena de comungar Jtem hũa Campehinha / pequena de sotelha e huum sino que see no Campanairo Jtem tres chumelas husadas e Dous spelhos fem / dys britados Jtem hũa stante de Roda com huum frontal uelho Roto Jtem quatro Lampadas e hũa rroda de fferro dante o crucifiço Jtem huum Calez de / prata que dizem que he de marco com seu pano e com seu veeo de Comungar Jtem hũas oBradeiras de fazer ostias Jtem hũa Cortinha de sobrelo cruçi / fiço e huum Lençol de tralo cruciffiço Jtem Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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hũa Cortinha de sobrelo altar de santa Maria e quatro Lençooes dous nouos e dous uelhos Jtem / huum Lençol nouo que see no altar de santandre e hũa Cortinha de sobrelo altar de santo andre Jtem hũa Cortinha de sobrelo altar de / sam Pedro e huum Lençol nouo que see pregado tras sam Pedro e huum frontal de santa Maria Ooutro de santo andre e outro de sam Pedro e / huum almario Jtem hũa Bozeta do corpo de deos e tres enpolas as duas do olio e da coresma e hũa do Olio Jnffermorom e hũa Cousela uelha as / quaaes Cousas o dicto Çelareiro deu e entregou a Steuam dominguez capellam da dicta Eigreia que as desse e entregasse ao Dom Abade ou a seu çerto Recado / quandolhas pedisse E o dito Steuam dominguez assij as Reçebeu pelo dicto Çelareiro e fficou pera as entregar Das quaaes cousas e entrega do dicto Çela / reiro pediu a mjm dito Tabelliom que lhy desse ende huum stromento E eu dicto Tabelliom dejlho feito foy em Muia na dicta Egreia no dia mes Era / sobre dicta testemunhas que presentes forom frey Martinho monge dalcobaça Pero dominguez preneiro Viçente Anes aluazil Steue anes Tesoureiro e Lourenço perez / clerigo que foy Capellam e outros E eu Sobre dicto Tabelliom a esto com as dictas testemunhas presentes fuy e per mandado e outorgamento dos dictos / Pero martyz Çelareiro e do dicto Steuam dominguez capelam este stromento e este meu sinal aqui ffiz que tal he :. ANTT, Mosteiro de Alcobaça, 1ª Incorporação, Docs. Particulares , Mç. 32, doc. 13.

1435 – 02 – 25 Inventário da igreja de Muge Estormento de certas couzas da Jgreja em elle conteudas E parecia ser feito e assinado pello Tabalião em elle conteudo escripto em pergaminho, do qual o theor tal he ≈ Saibão quantos este estormento virem que no anno da era do Nacimento de nosso senhor JEZUS Christo de mil quatrocentos e trinta e sinco annos seis dias do mez de Fevereiro em Muja na Jgreja da dita villa, estando hi Alvareanes Juiz na dita villa; e João Martins vereador e Vasqueanes procurador do Concelho da dita villa; e outros homees boos da dita villa perante elles pareceo João Martins /fl. 81/ João Martins Crerigo da dita Jgreja, e aprezentou perdante elles hũa escriptura feita em razo em maneira de rol, que segundo parecia a letra delle ser escripta por Joaneanes crerigo, que na dita villa foi morador, e foi Capellom da dita Jgreja da qual escriptura o trelado he este que se adiante segue ≈ Vigairo, estas som as couzas da Jgreja de Muja, que Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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leixei em goarda, e condesilho a Leonor Martins ≈ Jtem Dous corporaes, e estolas, e livros convem a saber hum Missal, e hum santal perfeito, e hum genesy, hũas horas de Santa Maria todas perfeitas do costume de Braga = Jtem hum livro de sermões, e outros livros. Jtem todas minhas ordens ≈ Jtem hũa carta de licença de Vizeu de Curadia geral com seo sello de Camafeu de dentro vermelho = Jtem huma carta emneixada com outra dasolviçom com dous sellos de penetencia do Papa = Jtem mais outra carta de licença de cura trasladada de latim em lingoajem, assinada por Pero Gonçalves Prior de obidos = Jtem hum livro de Raby Aire Jtem mais outro livro de preceitos, e orações Ecresiasticas. Jtem dous caderno<s> de livro sacramental. Jtem hum caderno que trauta das omilias do fim do livro. Jtem hum /fl. 81v/ Hum livro apontado de Santos, e danosdey, de Missas de Santa Maria. Jtem mais sinque alvaraes das pagas, que paguei ao Arcebispo das vesitações, e mais hum conhecimento da prata certa que paguei ao Abbade dalcobaça Dom Frey Fernando de Mafora Jtem hum estormento de hum marco de prata, que foi dado para hum calix dentro na Jgreja, do qual marco logo entregarom hum copete de portaes de quatro onças menos dous reis, o qual ficou em hũa arca em condisilho com outras couzas. Jtem outras escripturas que pertencem à Jgreja. Jtem hũa sobrepeliza, e humas reliquias dossos de Santos atados em hum cendal. Jtem hum pouco daljofar em que poderia haver duas onças e meia ou acerca de tres de hũa rede, que hà nome peitoral de Santa Maria. Jtem hũas contas de coraes, e daljofar com sua maçaneta e cruz, e alcocis, e anees pequenos, e dous grandes hum de prata estreito e ancho, e outro douro com huma pedra vermelha, e são do colo de Santa Maria, que lhe ponhão aas festas. Jtem hum JEZUS de prata e hum coraçom, e hũa pedra encastoada destanha sangue, Jtem hum pano daltar vermelho. Jtem huma cortina de ceda des /fl. 82/ De ceda desquaques ≈ Jtem hum emparamento verde listado. Jtem hum bancal de figuras do altar. Jtem hum aleambus que he veo de comungar dorelas azules e vermelhas. Jtem hum veo de ceda pequeno cor de melom. Jtem mais tres veos de algodão das Jmagees. Jtem dous mantes de cruzes do altar e dous mantees grandes de quatro varas cada hum, e mais dous mantees pequenos sem cruzes Jtem mais tres toalhas Lavradas daltar. Jtem mais tres chumellas Lavradas daltar, sete lençoes dos altares. Jtem Duas mantas acerca novas do altar. Jtem Dous bacios, hum grande de roda de lavar mãos na sacristia. Jtem hum agomil de latom mourisco. Jtem hum bacio pequeno doferta. Jtem hum caldeirão de carretar agoa, para a Jgreja. Jtem huma arca de Leirea bordada, em que jazem escripturas da Jgreja. Jtem Duas arcas pequenas hum matalote, em que jazem emparamentos, e panos, e estas couzas que ditas som. Jtem Trinta varas de lenço delgado em peçoo para vestimentas e alvas, e corporaes necessarios da Jgreja. Jtem hum tixilho de ceda verde. Jtem dous Cavinetes de Jenua em [...] que Leixou a mulher do Alcaide que se finou no avito de São Francisco, que leixou a Jgreja com outras couzas. Segundo /fl. 82v/ Segundo Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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que todo esto pella dita escriptura mostrava, e contava na dita escriptura que o dito Joaneanes crerigo andava sobre estas couzas em Lisboa em demanda perdante os vigairos da See da dita cidade, dizendo que as ditas couzas, que as detinha em Vasco Gil pintor, e pedindo, que as desse e entregasse a dita Jgreja; e esto mesmo dice o dito João Martins procurador da dita escriptura, que o dito Joaneanes, que andava na dita demanda; e mais dice que o vigairo que o mandara prender, e que jazia no algibe da dita cidade prezo, e que por elle dito João Martins desto certo aos officiaes, e freguezes da dita villa, lhe mostrava a dita escritura, a qual dice que delle ficara o escrivom dante os ditos vigairos, que a tem dizendo, e querendo o dito Alvareanes Juiz, e ao dito vereador, e procurador, e homees boos, que pella parte da dita Jgreja mandassem perdante os ditos vigairos hum homem bom para requerer os ditos ornamentos da dita Jgreja em tal guiza, que sejão tornados a ella. E o dito Juiz e procurador e vereador, e homees dicerom que assim o farião, e para esto requererom o auto vereador, e procurador ao dito Juiz que lhe mandasse dar o trelado da dita escriptu- /fl. 83/ Escriptura em publica forma sob sinal de mim Tabaliom e mais ainda requererom que hum alvarà que El Rey nosso senhor em sendo Jnfante deu para os vigairos para prenderem o dito Joaneanes, que se catassem para o mostrarem aos ditos vigairos para se sobre ello fazer o que direito for e o dito Juiz vendo a dita escriptura mandou a mim Tabaliom ao diante escrito, que lhe desse o dito trelado em publica forma sob meo sinal, testemunhas João Affonso Lavrador, e Alvaro Pires, e João Thomè, e outros moradores da dita villa. e eu Diego Vasques Tabaliom de meo senhor El Rey na dita villa que este estormento por mandado, e authoridade do dito Juiz com o trelado da dita escritura escrevi, e meo sinal fiz, que tal he ≈ E eu Ruy Pires Tabaliom geral, e escrivaõ de El Rey nosso senhor em esta comarca e correição dantre Tejo, e odiana, que o dito estormento treladei, e concertei com o proprio original e em testemunho de verdade fiz aqui meo sinal pubrico que tal he = Sinal publico ≈ A.H.M.S.M., Tombo da Câmara de Muge, fls. 80-v – 83.

1439 – Despesa do Mosteiro de Alcobaça na igreja de Muge Titolo da jgreia de muja Rendada O dito Anno a gonçalo fernandez / scudeiro morador em santarem por ijmbijc Reis Jtem deu. huũa despesa em que monta iiijcxxxbiijº Reis / que fez. per esta guisa sabede a huum scripuam / pera o trellado publico da uisitaçon da dita jgreia E xxx Reis / a huum procurador que foy a lixboa. Ao seruiço de steuom falcom. / E b de huũa procuraçon pera elle E lxx. a uasco amado do / tresunto do dito feito E ix reis do seello e apresentaçon / E biij de huũa cartaa çitatoria. Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Magos E xxb Ao porteiro que o foj çertar / E xxx de huum almareo em que stam as uestimentas / E xx por iij tauoas para ele E xj para pera pergadura / E ijc Reis A quem pintou santa Maria de muja. / Jtem deu a siluestre steuez Recebedor da câmara per diogo afonso / contador em ota . ixmjc R. b / a xv dias de maio 439 / Jtem deu mais outra despesa em que monta ijmlRb Reis / per ste (sic) mão ijmR reis a huum pedreiro de benauente / a comprimento de pago de ijclx reis que auja dauer por poer / bj pedras na porta princypal da jgreia do dito Logo que / mandarom na uisitaçom por que os xx Reis ouue por diogo Afonso / contador E os lb Reis por qual E area E agua/ e a quem a amassou E correjeo a pia de bautizar / que mandarom os uisitadores / Jtem a xij dias de Julho 439 disse o dito diogo afonso / contador que Reçebeo do sobre dito biijmxxxb Reis / Jtem pasou mandado que desem a frei Joham / capelam que ora he da dita igreia ijmxx Reis ANTT, Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça , Lº 14, fl. 170.

1712 – 02 – 11 Termo de declaração das obras a fazer na igreja de Muge

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/ fl. 197/ Termo de declaração que fazem os / officiais da Camera nobreza e po / uo desta Villa de Mugem Sen / do Ouuido o Reuerendo Prior da Igreja / Matris da dita Villa/ Aos onze dias do mês de Feuereiro de / mil e settecentos E doze annos nesta Villa / de Mugem nas Cazas da Camera della aon (sic) / foy o Dezembargador o Doutor Nuno / da Costa Pimentel do Dezembargo / del Rey nosso Senhor E seu Prouedor / com alsada na Villa de Santarem / e sua comarca e Ouuidor desta villa / ahi elle Prouedor Sendo chamados o Juis / E Vereadores e mais officiais da Camera / Nobreza e povo desta Villa E o Reuerendo / Prior da Igreja Matris della o Padre Fran / cisco da Sylua Ferras elle Prouedor lhe / Leo e fes Prezente a petição dos moradores / desta Villa a Respeito da Igreja estar aRui / nada e sendo ouuidos huns E outros Res / ponderão os officiais da Camera no / breza E pouo que o Reuerendo Prior da / ditta Igreja tem obr digo e o pouo disserão / que o Reuerendo Prior da ditta Igreja / fl.197-v/ hera o que tinha obrigação de Reparar / a ditta Igreja E que nessa posse estam / e se tinham Conseruado Sempre fun / dados em huma Clauzula de huma / escriptura de transacção feita na era / de mil e quatro Centos E uinte noue an / nos outorgada entre os officiais da Came / ra que naquelle tempo erão desta Villa E o Abbade gerall de Alcobassa / que no tal tempo era obrigado a lhe / mandar administrar os Sacramentos / e presentar Capellão a sua custa que os Cu / rasse por nesse tempo Comer dizimos / dos fregueses desta Villa na mesma / Forma que hoje os come o ditto Reueren / do Prior. Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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E que por essa Cauza lhe / inCumbe a elle a Reforma e Repairo / della E Pello ditto Reuerendo / Prior foj ditto que a elle lhe não imcum / be a Redificasam da ditta Igreja / Senão aos moradores desta Villa por / quanto estes fizerão a Capella mor / e hum arco e a torre e a parede Da / Porta principal o que tudo foj feito / Com esmolas do Pouo e dos Priores / Ao que Responderão a nobreza e pouo / fl. 198/ que se fizerão a cappella major / E as mais obras Refferidas porem / que a Capella fezerão por quererem / Fazer tribuna que não havia na Igreja / para o que foi necessario deRubar / a Cappella mor porem esta dispeza / se fez a Custa da Confraria do Santissimo / por intender lhe por mais conve / niente por euitarem as despezas / que farião em armasõis e […] / e que o arco da Cappella mor oficiarão / tambem com dinheiro das Confrar / ias da ditta Igreja por quanto o ar / co que havia era pequeno E antigo / e não ficar ComRespondente a obra / da Tribuna E que a Torre se fez com / esmolas pella Igreja não ter senão / hum Campanario e no mesmo tempo / se fez a porta e parede com os mate / riais que crecerão da Torre e que estas / obras se fizerão Com esmollas com o zello / de todos e do Prior que antão hera e de / tudo mandou elle Prouedor fazer / este termo de Sua declarasam / que asegnou com o dito Reueren / do Prior e officiais da Camera No / fl. 198-v/ Nobreza e pouo eu Manoel do Valle / da Sylva escriuão da Ouuidoria / desta Villa o escreui. / fl. 200/ Apontamentos da obra que determina fazerse ou Reedifi= / carse na Jgreja Parrochial da Villa de Muge / Primeiramente se lançarà abayxo a parede da parte da Porta traves= /sa, desde o Angulo do Arco Cruzeiro, em que està o vão da Tribuna de N. Sra. / do Rozario the abayxo da fresta que està da mesma parte de sorte que se lançarâ abay= / xo sesenta, e oyto palmos de comprido, em que se abrira alicesse de nouo na altu= / ra que for necessaria, e sendo muy duro o chão se fundará o menos cinco palmos / do pauimento da Jgreja para bayxo, parede de pedra e cal de quatro palmos de grosso, e / não menos, e esta espirará em Cima em tres palmos, de sorte que da parte de dentro fique / a plumo, e da parte de fora se cortará meio palmo sobre a terra, e dahi para Cima se dessimu- / lará outro meio palmo em forma de escarpa findando nos ditos três palmos sem fazer / mais corte algum e o pedaço que ficar livre a parte da Torre de parede velha se encherá, e en- /cascará da sorte que fique da mesma grossura isto e o que ficar livre da Escada que subirá / para a dita Torre; e os arcos das duas Capellas, e porta trauessa se tornarão a asen- / tar em seus proprios lugares, e paredes destas duas Capellas que oje he / de terra se fará, e fundará de nouo na mesma altura que a parede da Igreja e da mes- / ma pedra, e cal de parede ordinária de dous palmos e meio de grosso, e se fará seu cunhal / fora da parede da Igreja seis palmos, e se leuantará o que for necessario para correr com o Telhado / da Igreja, e atvirtase que a parede da Igreja para sima the o / frechal, vinte, e oyto palmos e meo. / desta mesma parte se Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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abrirá hum alicesse de tres palmos de Largo, Des de / Comprido, e seis de alto, em o qual se fundará hũa parede de pedra e cal encostada / a parede que responde ao terço do Arco Cruzeyro, que hirá em escarpa a findar / em palmo, e meo ou dous palmos de grosso na parte de cima, e acabará antes da Cornija / palmo, e meo e este Botareo, he para segurança do Arco Cruzeiro que faz sentimento / por rezão do Rompimento que se fez para a tribuna de N. Sra. do Rozario e se tomará aquela / brecha muito bem, e se tomarão as juntas do dito Arco, e dous bocados que estalarão / se Repararão Com Batume e algũas Rachas de pedra. / Todas as paredes da Igreja se levantarão na mesma altura de vinte / e oyto palmos, e meo, e se reformará a do lado da mão direita ou parte da Epistola o que for necessario / e a Empena se leuantarà proporcionalmente para emmadejrar de quinto tornando / a assentar as crus, e se meterão festas de pedra Laurada no lugar das duas de aluena / ria que oje tem, e terão esta medida, dous palmos de vão, e Cinco de alto, e serão assentadas / no meyo da parede Resgadas para hũa e outra parte e cada hũa levará dous varões de ferro / ao alto, e em todo o corpo da Igreja pella parte de fora correrá hũa Simalha de Tejolo na forma / da que oje tem, e se Batumarão os Balaústres que estão quebrados das grades da Capella de / N. Sra. da Cursa, e se asentarão outra ues; e todas as paredes uelhas Serão picadas, e toda / a Igreja por dentro, e por fora será muito bem rebocada, e guarnecida de Boa Cal na forma / costumada / A Aboboda de sobre a Pya Baptismal se fechará, e da parte de fora se lancará (sic) hũa / Escada, encostada a parede da Igreja de quatro palmos de largo, e sua parede de fora será / ordinaria de pedra, e cal e seos Degraos de Tejolo ao alto como se costuma, e sobre a Aboboda / da Pya Baptismal se abryra hũa porta de tres palmos e meo de uão que se perfeicoará (sic) de Tejolo, / em a qual fenecerá a Escada, e será telhada a dita Escada da Torre para a porta trauessa, e / em / fl. 201/ E em sua entrada se asentará hum portal de pedra Laurada de tres palmos e meo de largo / e oyto de alto de cabeça, e aduella comua, e será guarnecida esta Escada por / dentro, e por fora. / Será toda a Igreja Emmadejrada sobre frechais de Carualho de famozas / Asnas de castanho com duas Oliveis de sorte que o mais baixo seja em tal forma / pregado que reparta em trez igoais partes a Asna, isto he que o Olivel faça hũa, e os dous / pedaços que ficão a parte outro tanto como tem o Oliuel, e muito / Bem Dezempenadas e lauradas pela parte de Bayxo porque em ellas há de pregar o forro / e será muito bem Ripado todo de boa ripa de castanho, e assim mesmo a Escada, e as tri- / bonas serão em madejradas da mesma madejra de castanho, e a Igreja será toda forrada / por Bayxo das Asnas (como fica dito) de Pinho de flandres paynellado, de sorte que, / os payneis fiquem quadrados, ou quasi quadrados com forme o pedir o Comprimento Respectivo /de sua largura, e todos os quadros se diuidirão com molduras, e em roda leuará a fa- / xa, ou Aba que se acostuma nos demais forros; os Campos serão lizos para dipois se / pintarem junto a parede da Empena da Porta principal se Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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porá hũa linha de / Carualho, Cepreste, faya, ou outra madejra dura, e durauel, e as quatro de / forro se Repartirão igoalmente em todo o comprimento do corpo da Igreja. / Todos os telhados serão mouriscados, com algũns pregos de cal nas telhas de / Cubrir para que não Corrão, e o ponto das madejras será de quinto como auemos dito da / parede da Empena, e se acostuma / E aduirto que o mesmo que se leuanta a Empena do Frontespicio se leuantará a empena sobre o Arco Cru- / zejro, e se fará, e asentará hũa Porta de Pinho de flandres, ou castanho em a entrada da / Escada que subira para os signos. / aualiarão toda esta obra asim de pedrejro / como de Carpentejro em 600 mil reis Biblioteca da Casa Cadaval, Cod. 891 – K. VIII. IL

Fontes Manuscritas

Arquivo Histórico Municipal de Salvaterra de Magos, Tombo da Câmara de Muge, fls. 80-v – 83. Arquivo Nacional da Torre do Tombo Gavetas, XI, m. 7, doc. 4. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Incorporação, Docs. Particulares, m. 20, doc. 23. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Incorporação Docs. Particulares, m. 21, doc. 17. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 1ª Incorporação, Docs. Particulares, m. 28, doc. 10. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, 2º Incorporação, Docs. Particulares, m. 20, doc. 224. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, Lº. 4, fls. 50-v, 51. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, Lº. 14, fl. 170. Ordem de Cister, Santa Maria de Alcobaça, Lº. 92, fl. 140-v – 142-v. Biblioteca da Casa Cadaval, Cod. 891 – K. VIII. IL

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Magos Bibliografia ALMEIDA, Fortunato de (1910) – História da Igreja em Portugal. Coimbra: Imprensa Académica, Tomo II. BARROCA, Mário (1992) – “Medidas-padrão medievais portuguesas”, Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, história, Nº 9, p.53 – 85. EVANGELISTA, Manuel (2011) – Paço dos Negros da Ribeira de Muge: A Tacubis romana. s.l.: Ed. Marcos Garrido Evangelista. JORGE, Virgolino Ferreira (1999) – Espaço e euritmia na abadia medieval de Alcobaça, Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, Nº. 93, tomo I, p. 3 – 27. JORGE, Virgolino Ferreira (2006) – “Arquitectura, medida e número na igreja cisterciense de S. João de Tarouca” in Estudos de homenagem ao Professor Doutor José Amadeu Coelho Dias. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. 2, p. 367 – 385. JORGE, Virgolino Ferreira (2007) – “Arquitectura, medida e número na catedral de Évora” Monumentos, Nº 26, p. 26 – 37.

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JORGE, Virgolino Ferreira (2011) – “As igrejas medievais dos franciscanos em Portugal: Síntese de caracterização tipomorfológica” Boletim Cultural da Assembleia Distrital de Lisboa, Nº 96, tomo I, p. 2 – 30. MARTÍN MARTÍN, José Luís (1996) – “El poblamiento de Portugal según “collectoriae” vaticanas del siglo XIV: diócesis de Lisboa y Coimbra” Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, série História, Nº 13, p. 123 – 148. POMAR RODIL, Pablo (2015) – “Entre la liturgia medieval y la piedad contrarreformista: La imagen de Cristo Crucificado em Jerez de la Frontera” in Limes Fidei: 750 años de Cristianismo em Jerez de la Frontera. Jerez de La frontera: Diócesis de Asidonia-Jerez, p. 147 – 164.

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Reconstituições

Reconstituição bidimensional da igreja de Stª. Maria de Muge: Planta, fachada, alçado lateral esquerdo e vista axonométrica.

Reconstituições tridimensionais

Planos ortogonais sobre os alçados laterais, fachada, tardoz e cobertura. Aplicação de texturas e renderização por Carlos Carpetudo

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Vista sobre o ângulo SW. Aplicação de texturas e renderização por Carlos Carpetudo

Vista interior a partir do ângulo SW. Aplicação de texturas e renderização por Carlos Carpetudo.

Vista sobre o alçado norte. Aplicação de texturas e renderização por Carlos Carpetudo

Vista interior frontal sobre a cabeceira. Aplicação de texturas e renderização por Carlos Carpetudo.

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Aplicação da “escala de evidência histórica / arqueológica, segundo César Figueiredo e Pablo Aparício Resco.

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Hipólito Cabaço e a arqueologia no concelho de Salvaterra de Magos: um contributo à luz do seu acervo epistolar Raquel Caçote Raposo1, Arqueóloga Arqueóloga, mestranda em Arqueologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa - raquelraposo@portugalmail.pt 1


Hipólito Cabaço e a arqueologia no concelho de Salvaterra de Magos: um contributo à luz do seu acervo epistolar

Resumo

O presente trabalho dá a conhecer a actividade arqueológica de Hipólito Cabaço no concelho de Salvaterra de Magos na década de 30 do século XX, analisando o seu contributo através do seu acervo epistolar. A nossa leitura, subjectivada e limitada pela natureza dos registos existentes, é a leitura exequível de ser feita no estado actual do nosso conhecimento. Tem em linha de conta um cruzamento tão coerente quanto possível dos dados publicados acerca da investigação sobre o povoamento e ocupação humana na região de Salvaterra de Magos (Santarém, Portugal), e as informações contidas nos epistolários de H. Cabaço, e outros, que se revelam pertinentes para o assunto aqui abordado.

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Hipólito Cabaço (1885-1970) Pioneiro autodidacta, e precursor da actividade arqueológica no concelho de Alenquer - a quem se deve um notável trabalho de prospecção que permitiu a localização de largas dezenas de sítios arqueológicos - dedicou-se a outras áreas geográficas, entre as quais Salvaterra de Magos, onde fez várias descobertas notáveis, pelas quais foi congratulado por alguns dos seus pares. Mendes Corrêa nas explorações que o Instituto de Antropologia da Universidade do Porto vinha a realizar naquela região2. Não obstante desconhecermos desde quando H. Cabaço se relacionaria com aquele assistente da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, sabemos que a conexão entre ambos se encontra inscrita, no epistolário daquele arqueólogo alenquerense, desde Agosto de 1931.

O debutar da investigação arqueológica naquela área deu-se em pleno século XIX - concretizada sob influência das ciências naturais, nomeadamente a geologia -, pela mão de Carlos Ribeiro, que ali identificou, em 1863, um conjunto de concheiros - os concheiros de Muge (Moita do Sebastião, Cabeço da Amoreira e Cabeço da Arruda) -, classificados como monumento nacional desde 2011 (Decreto nº 16/2011, de 25/05/2011). Aos trabalhos ali iniciados em oitocentos, por Carlos Ribeiro e F. Pereira da Costa, somar-se-iam outros realizados no século seguinte: na década de 30, uma equipa da Universidade do Porto liderada pelo Prof. António Augusto Mendes Corrêa, efectua escavações no Cabeço da Amoreira e no Cabeço da Arruda, a que se somariam trabalhos ulteriores no Complexo realizados, na década de 40, por Henri Breuil e Georges Zbyszewski no âmbito das actividades desenvolvidas pelos Serviços Geológicos de Portugal e, nas décadas de 50 e 60, por Jean Roche e O. da Veiga Ferreira (CARDOSO; 2008, CARDOSO; 2010/2011, CARDOSO; 2013). São inúmeros os trabalhos de índole científica levados a cabo sobre os concheiros de Muge, e é vasta a bibliografia que directa, ou indirectamente, se lhes refere (vide CARDOSO & ROLÃO, 1999/2000). Mais recentemente, destacam-se os trabalhos da equipa liderada por Nuno Bicho, que permitiram novas interpretações sobre o local. 3 A este respeito, Maria Amélia Pereira (1970) alude a um inédito de H. Cabaço (1963) - Minha História do Paleolítico, Abrantes, em seu poder. 2

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Não obstante desconhecermos desde quando H. Cabaço se relacionaria com aquele assistente da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, sabemos que a conexão entre ambos se encontra inscrita, no epistolário daquele arqueólogo alenquerense, desde Agosto de 1931. R. Serpa Pinto terá mostrado a H. Cabaço dois objectos líticos de tipo asturiense - dois picos do litoral minhoto -, pedindo-lhe para apurar se existiria, por ali, algo análogo (PEREIRA, 1970: 11)3. Efectivamente, e fazendo jus à sua elevada qualidade de prospector, H. Cabaço descobre, em 1932, as duas primeiras grandes jazidas de Muge - Ponte e Pinhal do Coelheiro -, de que A. A. Mendes Corrêa dá notícia no Congresso do Mundo Português (Lisboa, 1940)4. Ignoramos, à falta de dados, como terão prosseguido as suas explorações, mas tão somente que, a dada altura, o material recolhido nas prospecções seria em número tão volumoso, que Hipólito Cabaço terá tido a necessidade de encontrar um ajudante, o Sr. José Francisco Cadete, daí em diante seu colaborador. Datará desta altura a localização das estações de Malhadinha, Vale de Semeia Cevada, Telha Formosa e Cabeço da Mina (PEREIRA, 1970: 11), contempladas, a par das anteriormente citadas, no estudo que Henry Breuil e Georges Zbyszewski

fizeram incidir na importante colecção paleolítica recolhida por H. Cabaço (BREUIL & ZBYSZEWSKI; 1943). São descritos os objectos que apresentam vestígios de arrastamento pelas águas da ribeira da Glória, sendo que grande parte se revela como sendo cascalhos. O estado físico do material lítico, e as duplas patines observadas, obrigaram os autores a uma divisão tipológica dos materiais, em três séries. Veja-se: Ponte de Coelheiro SÉRIE I - Este conjunto reporta-se aos Terraços vizinhos (Região de Muge). A datação situa-se no Acheulense Antigo e, particularmente ao Abevillense. É composto por: * 16 lascas da técnica clactoniense, apresentando o plano de percussão muito oblíquo. Apenas 1 lasca apresenta indícios de faces talhadas. Neste conjunto não existem núcleos. * 37 machados de fabrico grosseiro, 2 lanceolados e 2 cordiformes. Neste conjunto estão, também, compreendidos 1 raspador convexo, 2 entalhes e 1 ponta.

A. A. Mendes Correia (1940) - “Novas estações líticas em Muge”, Memórias e Comunicações apresentadas ao Congresso da Pré e Proto-História de Portugal (I Congresso), Actas do Congresso do Mundo Português, Lisboa: 111-127, onde o autor dá nota de importantes conjuntos líticos recolhidos por H. Cabaço, com particular destaque para a estação do Cabeço da Mina. 4

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SÉRIE II - Conjunto composto por: * 9 Lascas clactonienses, 2 da técnica taiciense, 1 com centro propulsor de faces mosteróides. 5 núcleos, com plano propulsor. 5 machados, 1 biface lanceolado, 1 uniface oval elíptico, 3 cordiformes pouco definidos. 1 lasca de raspador e 1 lasca denteada. SÉRIE III - Conjunto composto por: * 1 Pequeno machado lanceolado rudimentar, 1 disco languedociense típico, 3 instrumentos de pedra rolada, 1 em xisto no punho. Nesse estudo são, também, referidos os materiais provenientes do Vale do Tabaco (1 pequeno machado elaborado a partir de uma lasca cordiforme, com retoques alternados, à direita de cada face. Objecto moderadamente polido), Arneiro dos Moinhos (2 lascas com polimento moderado, e que se insere na série II), João Boieiro (1 machado de grandes dimensões da série III), Vale da Mina (1 machado talhado em seixo rolado, 1 biface imperfeito, bastante piriforme. Este conjunto apresenta duas séries de talhe - II e III – do Cabeço da Mina) e dos arredores do Cabeço da Arruda (10 lascas, das quais 2 se apresentam com polimento característico

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da série III, outras da série I. 5 apresentam-se talhadas sobre seixos polidos. Compõem, ainda, este conjunto 2 seixos com faces pouco definidas no plano de percursão e 2 lâminas), dali recolhidos por H. Cabaço. Com a morte precoce de R. Serpa Pinto em 1933, a sua prossecução na cátedra de Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto é assumida por Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior. O epistolário de H. Cabaço dá conta de relações havidas com esse investigador a partir da data de 14 de Maio de 19355. Conforme noticia Afonso do Paço (PAÇO, 1938), é nesse preciso ano que H. Cabaço descobre o concheiro do Cabeço dos Morros, no Paúl dos Magos6, rematando, com sucesso, as investigações que o IAUP vinha a concretizar na região de Salvaterra de Magos. Reconhecendo a descoberta do Cabeço dos Morros como valiosa, dêsse e dos restantes concheiros, e ilustrando o interesse do Instituto de Antropologia da Universidade do Porto em proceder à exploração dos novos concheiros, pela necessidade de evitar que se perca o pouco que resta, nos dão nota três documentos. O primeiro, uma carta manuscrita, remetida a H. Cabaço por Santos Júnior, datado de 21 de

Muito embora o epistolário de H. Cabaço apenas registe correspondência com Santos Júnior a partir de 14 de Maio de 1935, é certo que a relação entre ambos seja anterior (carta de 14 de Maio de 1935 apresenta-se como resposta – Desculpe só hoje responder à sua carta ultima…Oxalá que eu possa ir no verão a Muge. Se ali fôr procurarei fazer-lhe uma visita (…)). 6 Vide, também, a este propósito, a Acta nº 17, da Sessão de Pré-História da Associação dos Arqueólogos Portugueses, ocorrida em 19 de Dezembro de 1935. 5

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Magos Abril de 1936 (fig. 1 e 2); o segundo, uma carta dactilografada, remetida a H. Cabaço por Santos Júnior, datado de 6 de Maio de 1936 (fig. 3), reproduzidos na íntegra; e um terceiro, uma carta dactilografada, remetida a H. Cabaço por Santos Júnior, datado de 1 de Junho de 1936 (fig. 4), reproduzido parcialmente.

É necessário evitar que se perca o pouco que res // ta do concheiro. Quanto às peças em argila com os sinais estampados // só em face dos exemplares e depois de exame cuidado // dos mesmos poderia emitir qualquer opinião. E // quem sabe se mesmo depois dêsse exame, o possível // significado das mesmas ficaria em suspenso.

Documento 1

Carta de Joaquim Santos Júnior a Hipólito Cabaço (JÚNIOR, 1936a)

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“UNIVERSIDADE DO PORTO // FACULDADE DE CIÊNCIAS // INSTITUTO DE ANTROPOLOGIA Porto, 21 de Abril de 1936 Snr. Hipólito Cabaço e // meu Exmº Amigo, Muito obrigado em nome do Museu pelas esplêndidas // remessas que teve a gentileza de nos fazer. Chegou hoje o caixote com o livro e com as peças em quar- // tzite e sílex. É uma bela colheita. Precisamente no géne // ro dos de Muge. Esta sua descoberta é sem dúvida notavel. O Snr. Prof. Mendes Corrêa tenciona dentro de 20 dias // a um mez fazer uma comunicação à nossa Socie // dade de Antropologia, dando conta da sua descoberta. O Snr. Prof. Mendes Corrêa está disposto a ir ou // mandar alguém cá do Instituto, proceder a escava // ções no concheiro do Paúl de Magos, logo que o tem // po permita esses trabalhos e o meu bom amigo dê // daí as suas ordens.

Fig. 1 – Carta de J. Santos Júnior a Hipólito Cabaço, 21 de Abril de 1936 (frente).

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Hipólito Cabaço e a arqueologia no concelho de Salvaterra de Magos: um contributo à luz do seu acervo epistolar

Isto é claro, não é razão, antes pelo contrário, para se // estudarem os sinais e procurar-lhes significação. Pelo mesmo correio lhe envio um livro “Introduction // to the study of the Maya hieroglyphs”, onde o meu // bom amigo poderá encontrar uma larga série de // sinais hieroglíficos Maias, que pela situação geográfica // e pelo simbolismo tem afinidades grandes com os azete // ques. Quando não o precisar fará o favor de no’lo enviar. Concordo inteiramente com as considerações que faz // sobre a influência que a igualdade de necessidades // exercidas sobe homens de diferentes latitudes e nas // mais diversas regiões do globo, tenha determinado a // criação de culturas senão iguais pelo menos afins. Ligo hoje para Lisboa com curta demora, pois já // devo regressar amanhã ou depois. Com os meus cumprimentos para toda a sua Exmª // Família, abraça-o o amigo muito grato que mais // uma vez o felicita pela sua notavel descoberta. {assinatura}” (Santos Júnior)

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Junto o recorte da notícia da sessão da Sociedade de An- // tropologia em que o snr.Prof. Mendes Corrêa se referiu à sua valiosa // descoberta do Cabeço dos Môrros, no Paul de Magos. Agora uma pregunta: que ha sôbre projectos de exploração // dêsse e dos restantes concheiros? O meu bom amigo tomou compromissos // com o tenente Afonso do Paço e rev.Jalhay a tal respeito? Parece que // o tenente Afonso do Paço anunciara ha tempos esse projecto, de acôr- // do com o meu prezado amigo, ao snr.Prof. Mendes Corrêa. Se realmente // teem esse propósito, o Instituto de Antropologia limitar-se-à aos // concheiros de Muge, em que tem trabalhado. Se não o teem, então pode- // riamos combinar a exploração dos novos concheiros. O essencial é // que fique bem assente que o Instituto não quere prejudicar qualquer // iniciativa do meu amigo e dos tambem nossos amigos snrs-tenente A // fonso do Paço e rev. Jalhay. Nunca fômos absorventes. Pelo contrário. // E, embora as nossas relações ciêntíficas (tanto do snr.Prof. Mendes Corrêa, e minhas, como do nosso saudoso Rui de Serpa Pinto) com o meu b // bom amigo venham de longe, não queremos prejudicar qualquer combina // ção que tenha(m) feito com os // referidos amiDocumento 2 - Carta de Joaquim Santos Júnior a Hipólito gos nossos. Com os meus cumprimentos de muita estima Cabaço (JÚNIOR, 1936b) abraça-o o “UNIVERSIDADE DO PORTO // FACULDADE DE Amº Grato, CIÊNCIAS // INSTITUTO DE ANTROPOLOGIA {assinatura}” (Santos Júnior) PORTO, 6 de Maio de 1936 Meu Exmº Amigo Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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Exmº Snr. Hipólito Cabaço e // meu Prezado Amigo Acabo de receber a sua carta amiga de 31 de Maio a que respon- // do. O meu amigo sabe que estamos em boas relações com o Tenente A- // fonso do Paço de quem até sou amigo, porque na verdade é uma pessoa // com quem logo simpatizei desde que o vi pela primeira vez. Com o // snr. Padre Jalhay embora não tenha relações tão estreitas como com o Tent. A. do Paço, tenho contudo as mais amistosas relações. Por is- // so quando o meu amigo fez o favor de me escrever manifestando o de // sejo de que eu ou alguem do Instituto de Antropologia, sob a direc- // ção do snr. Prof. Mendes Corrêa, procedesse à escavação do seu conch // cheiro do Paúl dos Magos, dei parte da sua carta ao meu Mestre e Amigo, e o Doutor Mendes Corrêa disse-me que em tempos o A. do Paço // lhe falara ou lhe escrevera dando conta da disposição em que êle e // o snr.P. Jalhay estavam de ir escavar o seu concheiro. Por isso o Fig. 2 – Carta de J. Santos Júnior a Hipólito Cabaço, 21 de Abril // Prof. M. C. achou conveniente que se escrevesse ao Tent. A.do Paço, // preguntando-lhe de 1936 (verso). se sempre estavam dispostos a proceder à escavação // referida. Em carta que recebi ha dias diz-me o Tent.A. do Paço que // já pediram auDocumento 3 torização à defunta Junta das Escavações e que - Carta de Joaquim Santos Júnior a Hipólito logo // que ela chegue certamente não deixarão de fazer, e bem, porque eles // têm toda a Cabaço (JÚNIOR, 1936c) competência para isso, as escavações que todos “UNIVERSIDADE DO PORTO // FACULDADE DE nós dese- // jamos sejam feitas para que possa CIÊNCIAS // INSTITUTO DE ANTROPOLOGIA salvar-se ao menos o pouco que resta. Porto - 1 de Junho de 1936 Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Entretanto, é claro, se nada se resolver pelo lado do pedido // feito pelo Tent.A. do Paço à J. das Escavações nesse caso creio que // o Prof. Mendes Corrêa não deixará, embora de acordo com o Tent.A. do // Paço, de mandar proceder à necessária escavação. // (…) Um abraço do amigo muito grato, {assinatura}” (Santos Júnior)

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No final de 1937, encontrando-se em Tete, J. Santos Júnior remete um postal a Hipólito Cabaço, no qual se refere à frutuosa campanha de verão de Cabaço em Muge: “Tete, 31 de ? 1937 (carimbo de Lisboa 18.12.37) Meu Prezado Amigo Imagino como terá sido frutuosa // a sua campanha arqueológica dês- // te verão. Da Universidade do Porto // ninguem me escreveu mas soube in- // directamente q a colheita em Muge // foi bôa. Abraça-o o amigo mto. Grato {assinatura}” (Santos Júnior)

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Fig. 4 – Carta de J. Santos Júnior a Hipólito Cabaço, 1 de Junho de 1936.

5 Postal remetido a H. Cabaço por J. Santos Júnior (Tete, Fig. 1937). Frente

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Magos década de 30 do século XX, muito intenso. Atestam-no as cerca de 26 estações paleo e mesolíticas, que Afonso do Paço noticia, em primeira mão, na Associação dos Arqueólogos Portugueses e, posteriormente, no XVII Congresso Internacional de Antropologia e Arqueologia Prehistóricas ocorrido em Bucareste, e num artigo publicado na Brotéria7. Ainda que carecendo de aprazamento actualizado, as estações foram, maioritariamente, atribuíveis ao paleolítico (vide tabela 1 e fig. 11).

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O contributo de Hipólito Cabaço, para o conhecimento da ocupação humana do actual território de Salvaterra de Magos, não se deteve somente aos períodos da pré-história antiga e recente estendendo-se, também, à Antiguidade Tardia. A maioria dos sítios unicamente conheceu uma abordagem superficial - recolhas de superfície das quais resultou avultado material -, enquanto que outros terão sofrido intervenção Fig.6 – Postal remetido a H. Cabaço por J. Santos Júnior (Tete, 1937). Verso. directa, através de escavação, infelizmente sem a análise cuidada que actualmente entendemos por necessária à sua leitura completa. Não obstante, e muito embora sabendo que os métodos utilizados não eram os melhores, O ritmo da actividade arqueológica de H. Caba- há que ter em consideração que eram os coço em Muge manter-se-á, até quase ao final da nhecidos e os que se praticavam na altura8. Afonso do Paço (1938) - “Novos concheiros do vale do Tejo”, Brotéria, Lisboa, vol. XXVII, fasc. 1: 66, nt. 1. Os trabalhos arqueológicos feitos desde então, assim como o presente, devem ter em conta as insuficiências metodológicas das pesquisas realizadas àquele tempo, bem como a actual dificuldade em conhecer os verdadeiros contextos em que se inseriam as estações exploradas. 7 8

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Contrariamente às indicações que lhe foram fornecidas por J. Santos Júnior (JÚNIOR, 1935) - É conveniente fazer fotografias ou desenhos dos objectos antes de os levantar e tomar indicações no seu diário das escavações da posição (…), distâncias (…), profundidade, etc. (…) - tudo indica que H. Cabaço não terá efectuado diários de campo, e/ou das escavações. Se os terá feito, não chegaram até aos nossos dias. Também não publicou por mão própria o resultado dos seus trabalhos, chegando os dados até nós por via de segundas pessoas, como sejam Afonso do Paço, Mendes Corrêa, Maria Amélia Pereira. Temos conhecimento de alguns dos sítios intervencionados por H. Cabaço através de umas notas, inéditas, datadas de 17 de Janeiro de 1937, alusivas a tudo quanto havia escavado na área compreendida pela carta 18-C (1/50.000) (?), das quais se dá, agora, conhecimento: “1. Arneiro dos Pescadores – picos 2. Concheiro da Flor da Beira – typo do da Fonte do Padre Pedro. Muito erodado e de pequena possansa. Recoberto pela erosão das encostas confinantes. 3. Vale do Cocharrinho – picos 4. Ponte de Coelheiro – picos 5. Monte dos Ossos – concheiro 6. Cova da Onça – concheiro – estes 2 concheiros são contíguos. São do typo do da Fonte do Padre Pedro, embora muito maior area e possansa. O da Cova da Onça está quase destruido por o seu material ter sido aproveitado

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para as obras de defesa do Paul de Magos. O do Monte dos Ossos muito revolvido pela cultura. Está quasi todo ocupado pela plantação de videiras. 7. Local onde suponho tivesse existido o concheiro da Quinta da Sardinha, indicado por Carlos Ribeiro. 8. Cabeço dos Môrros – concheiro – typo do Cabeço d’Arruda e não devia ter tido menor area e tamanho. Agora, por ter sido aproveitado o seu material para obras de defesa em diversas épocas, só resta a parte inferior com uma possansa de 1 m a 1,50 m. 9. Magos de Baixo – Muitas conchas, predominando as ostras e muitas toneladas de escorias de fundição; mutos restos de cerâmica com características romanas. Julgo têr sido ferraria da época romana. Mas não vejo donde poderia têr vindo o minério para a alimentar. Julgo interessante indagar a origem do minério, o que farei se Deus me der vida e saude. 10. Magos de Cima – Consta-me que ali também há conchas, restos de paredes muito antigas, e que há tempo ali apareceram esqueletos e um santo em cobre. Julgo tratar-se tambem de restos romanos. Infelizmente nunca ali pude ir, pois sempre que estive em Magos de Baixo o Paul estava inundado não me permitindo a passagem para a outra margem. 11. Local onde foi construida a barragem da albufeira para irrigação do Paul de Magos. Na margem esquerda, na encosta do cabeço que faz o estreitamento do paul, estreitamento esse que foi aproveitado para a barragem, existia

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um pequeno concheiro do typo do da Fonte do Padre Pedro, do qual hoje nada se vê, por motivo das dictas obras. Nos cortes feitos na margem direita do Paul, nas encostas onde foi retirado material para a dicta barragem aparecem camadas ou bolsadas de calhaus rolados que julgo eguais e de identica formação ao das encostas da ribeira da glória. Por falta de tempo não pude ver se por ali aparecem picos, mas acho provavel que tal facto sucêda. 12. Bicas – Benavente – Muitas lascas de sílex e quartzite, nada caracteristicos, sem restos de ceramica ou de cosinha, pela disposição em que se encontram parece-me tratar-se de fundos de cabanas, mas só uma exploração mais completa poderá fixar do que se trata e de que época são estes achados. 13. Porto de Sabugueiro – povoação romana. Cabeço da via Via Romana para Mérida. Estudo o que até à data escavei sobre arqueologia na area compreendida na carta nº 18-C – esc. 1/50.000 Alenquer, 17 de Janeiro de 1937 {assinatura}” (HCabaço) Estas notas parecem ser uma espécie de legenda, possivelmente de uma carta militar9 onde H. Cabaço teria assinalado, com numeração, os locais por si intervencionados. Seria a carta apresentada pelo Tenente Afonso do

Paço à Associação dos Arqueólogos Portugueses, durante a reunião da Secção de Pré-História decorrida em 18 de Fevereiro de 193710? H. Cabaço nunca descuidou a comunicação das suas descobertas em Salvaterra de Magos à Associação dos Arqueólogos Portugueses. Vejam-se as actas da Secção de Pré-História:

Acta nº 17 Sessão de 19 de Dezembro de 1935 “ (…) Ao entrar na ordem da noite foi apresentada, por intermédio do sr. Tenente Paço, uma comunicação do sr. Hipólito Cabaço acêrca da descoberta de vários concheiros na margem esquerda do Tejo. O sr. Hipólito Cabaço localizou, até agora, os seguintes cinco concheiros: um no Cabeço de Magos de Cima, outro no cabeço junto da barragem que se está construindo no Paul de Magos, o terceiro no Cabeço da Cova da Onça, um outro no Cabeço do Monte dos Ossos, e finalmente o quinto no Cabeço dos Mouros, próximo da Costa (?). O sr. Tenente Paço apresentou algum material trazido destes concheiros, que é dos mesmos tipos dos de Muge, e constituído por conchas, facas e trapézios, microlíticos de sílex, lascas de sílex e de quartzite, etc.

A carta nº 18-C é, certamente, referida por H. Cabaço por lapso, uma vez que essa referência diz respeito a área da Guarda. 10 Ver Acta nº. 24, da Sessão de 18 de Fevereiro de 1937. 9

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Um dos concheiros forneceu vários ossos de animais e um craneo humano incompleto mas dando suficiente ideia do tipo das populações daqueles “kjoekkenmoeddings”. A mesma comunicação refere-se também à existencia de uma povoação romana nas margens do Tejo, proximo de Muge, em um local que o público ainda hoje designa por Via Longa, o que levou o sr. Cabaço a pensar que poderia ter sido ali a cabeça de uma importante via romana, talvez a de Mérida. (…) O sr. Padre Jalhay manifestou muito apreço pelo assunto da comunicação, e estabelece o confronto com os trabalhos de campo de Carlos Ribeiro e de Mendes Correia nos concheiros de Muge, que ficam próximo. (…)”

Acta nº 22 Sessão de 17 de Dezembro de 1936 “ (…) O Tenente Paço refere a visita que fez mais uma vez às colecções de Hipólito Cabaço (…). Na visita encontrou o sr. Tenente Paço esta bela novidade: a existencia de asturiense proveniente de Muge, não dos concheiros, mas das proximidades dêles. Parece que o asturiense é mais antigo do que o restante mesolitico dos concheiros, o que leva á conclusão de tratar-se de duas indústrias do mesmo local mas de dois periodos diferentes, assim se confirmando uma vez mais a tese de Jalhay sôbre o roteiro do asturiense para o Norte. (…)”

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Acta nº 24 Sessão de 18 de Fevereiro de 1937 “ (…) Ao entrar na ordem da noite, começou o sr. Padre Jalhay por se referir aos importantes achados de industria litica do tipo asturiense das estações costeiras galaico-minhotas, realizadas por Hipólito Cabaço na região da ribeira da Glória, visinhanças de Muge. Em visita aos locais da ribeira da Glória organizou-se nas férias do Natal uma excursão de que fizeram parte Mr. H. Savory, da Universidade de Oxford, os srs. Padres Jalhay e Luisier, Tenente Paço, Hipolito Cabaço e o signatário. Esta indústria de Muge oferece a particularidade de se encontrar em conglomerados quaternarios das margens das ribeiras da glória, e na parte do seu leito em que as aguas escavaram as aluviões mais modernas. A maior parte dos instrumentos não apresenta sinais de rolamento, e entre eles há hum de quartzite fina, bastante patinado, cuja tecnica o leva a classificar no paleolítico inferior. Parece tratar-se de uma industria quaternária ou de indústria feita com elementos quaternarios, pois aparecem instrumentos de tipo asturiense misturados com outros paleolíticos, chelenses e acheulense. É ainda cêdo para decidir e para isso seria preciso proceder a algumas sondagens e cortes no terreno, que revelassem os instrumentos no seu lugar, para o que foi convocada a intervenção dos serviços geológicos. O sr. Padre Jalhay prometeu publicar em breve

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uma noticia mais circunstanciada do achado, para nessa altura discutir mais convenientemente o assunto. Ao terminar a comunicação, o sr. Padre Jalhay apresentou alguns instrumentos justificativos do assunto referido; mostrando que a diferença de patina e de formas obrigará a separar tipos (…) Seguidamente mostrou o sr. Tenente Paço numa carta da região da ribeira de Muge e da glória, onde indicou os locais dos últimos concheiros descobertos por Hipólito Cabaço, relacionando-os com a distribuição dos concheiros e estações asturienses conhecidas até ao presente na região de Muge. Ao fazer a descrição de cada hum deles, referiu-se ao facto de um dos concheiros agora encontrados, o da Cova da Onça – Monte dos Ossos, ser possivelmente aquêle a que se refere Carlos Ribeiro no seu trabalho “Les kjoekkenmoeddings de la vallée du Tage” como existente na Quinta da Sardinha. (…) Manoel Alves Costa”

de materiais de tipo asturiense, na região de Muge, um pouco ao Norte dos locais já conhecidos, no Vale da Raposa, afluente da ribeira da glória, na Boavista e em João Boieiro. Resolveu-se oficiar a Cabaço, agradecendo e felicitando. (…)”

Acta nº 30 Sessão de 22 de Abril de 1938 “ (…) Ao entrar na ordem da noite, o sr. Tenente Paço comunica as novas descobertas de asturiense feitas por Hipolito Cabaço no “Vale dos Amieiros” e “Arneiro dos Moinhos”, em Muge, e os “Ramalha”, no Paul de Magos, com o que se ampliou muito o ambito do asturiense na região. As novas descobertas levantam a questão da cronologia do asturiense do sul, relativamente á época dos concheiros, por se encontrar o material juntamente com instrumentos paleolíticos. Apareceram em Muge pequenos picos, de talhe paleolítico, que podem ser atribuídos a esta época. (…)”

Recorde-se a menção de H. Cabaço a Porto de Sabugueiro11, na elencagem dos locais por Sessão de 22 de Abril de 1937 si escavados. “ (…) Seguidamente, o sr. Tenente Paço comu- As primeiras referências a este local danica que o novo consócio Hipólito Cabaço lhe tam de 1956 quando, na sua obra acerca pediu para informar acêrca de novos achados das vias da Lusitânia, Mário de Saa refere

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Esta estação terá sido identificada pelo Prof. Mendes Corrêa nos anos 30 (PIMENTA et alii, 2014).

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a existência de importantes vestígios romanos naquele local, que viria a ser intervencionado em 1963 pelo Prof. Jorge Alarcão, que o classificou como uma villa romana. Para além da atestada ocupação romana, alguns elementos dispersos - como alguns materiais ali recolhidos por H. Cabaço, e depositados no Museu Municipal de Alenquer (um escaravelho e um escarabóide egipcizantes, diversas contas de pasta vítrea e cerâmica estampilhada) – aparentam comprovar a existência de ocupação pré-romana em Porto Sabugueiro, conforme o atesta a investigação levada a cabo por João Pimenta e Henrique Mendes (PIMENTA & HENRIQUES, 2008) e, mais recentemente, daqueles dois autores conjuntamente com outros, no âmbito do Projecto FETE – Fenícios no Estuário do Tejo (PIMENTA et alii, 2014).

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Sobre esta estação há a registar, no acervo de H. Cabaço, um postal (fig. 7 e 8, transcrito integralmente) remetido pelo Padre Eugénio Jalhay em 31 de Março de 1949, o qual versa sobre Porto Sabugueiro ser o Aritium Praetorium, e das pesquisas que Cabaço ali levava a cabo.

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Fig. 7 - Postal remetido a H. Cabaço por Eugénio Jalhay em 31 de Março de 1949 (frente).

Fig. 8 - Postal remetido a H. Cabaço por Eugénio Jalhay em 31 de Março de 1949 (verso).

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“Lisboa, 31 de Março Meu Exmo Amigo Tenho andado ocupadíssimo, e // por isso não pude ir ainda a Muge. Mas irei. As indicações do meu Amigo são // precisas. Tenho quase a certeza de que o Porto do Sa- // bugueiro é o Aritium Praetorium. Vi o seu artigo do “Diário da // Manhã”, e aplaudo-o sinceramente. Mas // quem lhe vai dar ouvidos? É pena que a arqueóloga inglesa // Hawkes não tenha podido ir aí ver as suas colec- // ções, como aqui se tinha combinado com o Instituto // Britânico. A doença da Drª Virgínia Rau que a // devia acompanhar, e outras coisas, desfizeram o plano. Votos de boa saude e cumprimentos afectuosos // do amigo mto dedicado {assinatura}” (Eugénio Jalhay)

oferecer, os objetos de que é // portadora a menina Maria Helena. São // provenientes de Vale de Coelheiro. Muge. Sempre ao inteiro dispor para o que // lhe prestar e com a maxima consideração // sou de V. Exª // creado mto. attº. e venerador {assinatura}” (Hipolito da Costa Cabaço)

Manuel Heleno, então Director da Instituição receptora dos materiais, remete um ofício a H. Cabaço (fig. 9 - Of. Nº 4.753, de 10 de Maio de 1938), agradecendo a valiosa oferta (…) de dez utensílios líticos provenientes do Vale do Coelheiro – Muge. Solicita, ainda, o envio de quaisquer duplicados que H. Cabaço possua das numerosas estações que tem descoberto, enumerando-as: Arneiros dos Pescadores, Granho, Ribeira da Glória, Vale dos Amieiros, Arneiro dos Moinhos, Cocharrinho, Benfica H. Cabaço procedeu ao depósito de material do Ribatejo, Porto Sabugueiro, Boavista, João proveniente de Salvaterra de Magos no então Boieiro, Vale das Raposas, Vale do Zebro, RaMuseu Etnológico do Dr. Leite de Vasconcellos, malha, etc (transcrição parcial). actual Museu Nacional de Arqueologia. Essa prática encontra-se assente num ma- Alguns dias volvidos, Hipólito Cabaço terá nuscrito remetido por Hipólito Cabaço ao efectuado novo depósito de material, a que Prof. Manuel Heleno em 24 de Abril de 1938 respeita o Ofício Nº 4784, datado de 31 de (APMH/5/1/113 – APMH-1/54/CO/CX2/113, Maio de 1938 (fig. 10), assinado por Manuel disponível no arquivo daquela Instituição), e Heleno. Nele M. Heleno agradece nova oferta que se transcreve na íntegra: de alguns instrumentos liticos provenientes do “Alenquer, 24 de Abril de 1938 Porto Sabugueiro, João Boieiro, Arneiro dos Exmº Senhor Professor Dr. Manuel Heleno Moinhos, etc., pedindo licença para não expor Lisboa sem exame mais demorado, uma parte deles, Sem ter a honra e o praser de conhecer // pes- que me parece não ter trabalho. (transcrição soalmente V. Exª, tomo a liberdade, de // lhe parcial). Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Fig. 9 e 10 – Em cima- Ofício Nº 4.753, de 10 de Maio de 1938. À direita – Ofício Nº. 4.764, de 31 de Maio de 1938. Remetidos a Hipólito Cabaço por Manuel Heleno.

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Tabela 1 – Estações localizadas por Hipólito Cabaço no Concelho de Salvaterra de Magos, na década de 30 do século XX, e suas cronologias (PEREIRA, 1970)

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Fig. 11 – Cronologia das estações exploradas por Hipólito Cabaço em Salvaterra de Magos (PEREIRA, 1970)

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Referências Bibliográficas

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Magos JÚNIOR, J. R. Santos (1936b) - {Carta} 1936 Maio 6 {a} Hipólito Cabaço {Dactilografado}. Arquivo Municipal de Alenquer. Alenquer, Portugal. JÚNIOR, J. R. Santos (1936c) - {Carta} 1936 Junho 1 {a} Hipólito Cabaço {Dactilografado}. Arquivo Municipal de Alenquer. Alenquer, Portugal. JÚNIOR, J. R. Santos (1937) - {Postal} 1937 ? 31 {a} Hipólito Cabaço {Manuscrito}. Arquivo Municipal de Alenquer. Alenquer, Portugal. PAÇO, Afonso do (1938) - “Novos concheiros do vale do Tejo”, Brotéria, Lisboa, vol. XXVII, fasc. 1: 66, nt. 1. PEREIRA, Maria Amélia Horta (1970) - “Hipólito Cabaço”, Arqueologia e História, Lisboa, 9ª Série, Vol. II,: 7-26. PIMENTA, J. & MENDES, H. (2008) - “Descoberta do povoado pré-romano de Porto do Sabugueiro (Muge)”, Revista Portuguesa de Arqueologia, vol. 11, 2: 171-194. PIMENTA, J., MENDES, H., ARRUDA, A. M., SOUSA, E. & SOARES, R. (2014) - “Do pré-romano ao Império: a ocupação humana do Porto de Sabugueiro (Muge, Salvaterra de Magos)”, Magos - Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos, nº 1: 39-57.

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Documentos Medievais de Muge e de Santa Maria da Glória João António Mendes Neves jbalbinoster@gmail.com Mestre em História da Idade Média (FLUC) Professor de História do 3º ciclo e secundário Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos


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O trabalho que agora se apresenta pretende ser uma continuidade daquele que, no número anterior, se publicou sobre a vila de Salvaterra de Magos e o seu termo, na Idade Média1. Para completar essa visão, sobre a história medieval do atual concelho de Salvaterra de Magos, era necessário tecer algumas considerações sobre as restantes localidades medievais existentes, concretamente sobre a vila e o concelho de Muge e o lugar de Santa Maria da Glória. As linhas metodológicas serão essencialmente as mesmas, reler alguns documentos medievais e destacar as suas principais linhas mestras, construindo uma narrativa possível. Entre os documentos analisados, têm especial destaque a carta de foral de Muge de 1304 e de 1307 e a carta de privilégio de Santa Maria da Glória datada de 1364. Recuemos quase setecentos anos, até ao século XIV. Portugal era governado pelo rei D. Dinis, este monarca e os seus sucessores mostraram uma grande predileção pela lezíria ribatejana. No espaço de setenta anos, os três povoados do concelho de Salvaterra de Magos tiveram benesses régias, como são exemplo os documentos supracitados e a carta de foral de Salvaterra de Magos de 1295. Mas antes de lermos os documentos, tenhamos em atenção as realidades espaciais e as condicionantes hidrográficas. Os concelhos

medievais de Salvaterra de Magos e de Muge localizam-se na margem esquerda do rio Tejo. Nesta região podemos encontrar diferentes paisagens naturais: as lezírias, terrenos muitos férteis e próximos do rio e frequentemente inundados pelas cheias; as adémias, zonas menos férteis acima das cotas tradicionais das cheias; a charneca, área de densa vegetação arbustiva mediterrânica de que o lugar de Santa Maria da Glória é um bom exemplo, no meio da vegetação poderiam existir clareiras. Existem ainda as paisagens lacustres dos pauis e das várzeas, terrenos muito férteis mas também quase sempre cobertos de água, sendo necessário a sua constante drenagem, como podemos ainda hoje ver nas proximidades de Muge. São estas paisagens que condicionam as atividades económicas e os modos de vida dos habitantes locais. Além destas paisagens, podemos ainda referir alguns cursos hídricos que modelaram a natureza da região. Em primeiro lugar está o rio Tejo que geralmente entre novembro e abril extravasava o seu leito tradicional, inundando as margens numa faixa que poderia atingir os dez quilómetros. No rio Tejo desagua a ribeira de Muge, que percorre quase setenta quilómetros, nascendo em Água Travessa (concelho de Abrantes) e desaguando no rio Tejo próximo do Escaroupim. No seu percurso, outros ribeiros e

Veja João Neves, “Salvaterra na Idade Média (reflexões sobre alguns documentos medievais) ”, in Magos- Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos, nº 1, 2014, págs. 83-96. 1

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regatos dão o seu contributo hídrico, de destacar a Ribeira da Lamarosa (ou das Enguias) que percorre parte do concelho medieval de Muge. A abundância de peixes nesta ribeira, nomeadamente de tainhas e fataças, também conhecidos como muge ou mugem (da família dos mugilídeos), emprestaram o seu nome à ribeira e à localidade. Aliás, a ocupação humana pré-histórica da região está perfeitamente documentada com os depósitos de detritos de pesca e da apanha de marisco, nos conhecidos Concheiros2.

A Carta de Foral de Muge (1304) No início do seculo XIV, em 1301, D. Dinis cedeu parte do reguengo de Valada ao Mosteiro de Alcobaça, em troca recebia uma quinta que o mosteiro tinha em Muge. Nessa carta de escambo assegura-se que o Mosteiro de Alcobaça continuava com o padroado da igreja local, bem como com algumas casas e hortas em redor da Igreja3. A alteração da propriedade na região não foi suficiente para se tornar atrativa para novos habitantes. E três anos depois, o rei

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dá carta de foral aos habitantes locais. A diplomática medieval, de que a carta de foral de Muge é um exemplo, divide o diploma em três partes: a parte inicial, o corpo do documento e parte final do documento. Na parte inicial, também conhecida como Protocolo Inicial existe uma invocação: “Em nome de Deus ámen”4 a abrir o documento e na qual se recruta a protecção divina para o ato celebrado. Segue-se o endereço, identificando os destinatários deste ato escrito e vinculativos para todos os vassalos régios que dele tomarem conhecimento: “sabham quantos esta carta virem”5, esta frase também serve de notificação porque informa a todos da vontade do rei . A fechar o protocolo inicial temos a intitulação e a subscrição deste ato, “dom Denis pela graça de Deos rey de Portugal e do Algarve ensembra com mha olher e com o Inffante Dom Afonso nosso filho herdeiro”6, nas quais encontramos elementos que permitem a identificação nominal do autor ou autores do ato escrito, bem como são apresentados os títulos ou qualidades do mesmo. No corpo do documento surge o texto, que abre com um dispositivo de valor jurídico que informa que no ano de 1304, o rei D. Dinis

Ana Rosa Cruz e Luiz Oosterbeek, “A Arqueologia em Salvaterra”, in O Foral, n.º1, Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 1997,pp.5-7, e Maria Miguel Lucas e Martino Ferrari, “Relatórios dos trabalhos realizados na área da Pré-História da Região”, in O Foral…, pp.8-23. 3 A.N.T.T. Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, 1.ª incorporação, Documentos régios, mç. 3, n.º 1 4 Doc. 1. 5 Doc. 1. 6 Doc. 1. 2

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“dou e outorgo afforo a vos pobradores da mha pobra de Muja todo o meu herdamento que eu ei em essa pobra de Muja”7. O rei D. Dinis dou e aforou aos povoadores de Muge o seu herdamento de Muge. Portanto, nesta região entre os termos dos concelhos de Salvaterra de Magos e de Santarém, o rei que detinha então um “herdamento” seu, isto é, uma propriedade fundiária a título privado. Nesse herdamento existia uma “pobra”, portanto um povoado, possivelmente com o significado que hoje a palavra “póvoa” tem, designando uma pequena povoação ribeirinha. Somos informados que esse “herdamento” régio era composto pelo paul e por adémias. Será sobre estes dois tipos de terrenos que incidiram os tributos e impostos a pagar. As adémias “devem seer livres e quites e eisentas pera sempre que nom façades foro a mim nem meus sucessores, salvo dardes dízimo a Deus” 8, a carta de foral reconhecia a pouca fertilidade dos solos das adémias e como tal isentava-as do pagamento de qualquer foro ao rei, apenas eram obrigadas ao pagamento da dízimas à Igreja. Dos terrenos localizados no Paul de Muge, a questão tributária já era diferente, o rei exigia um quarto da produção: “devedes dar

a mim e a todos meus sucessores em cada huum ano o quarto de todo o fruto que Deos der no dicto Paul”9. Dos terrenos de Vale de Lobos, o rei exigia que “devedes a mim a dar e a todos meus sucessores o quarto do fruto que Deos der em a vinha”10 , mas como estes terrenos estavam numa adémia ficavam isentos de quaisquer outros tributos, “e todo al averdes livremente per vos assi como de suso dito he contehudo”11. Após este elencar dos direitos reais e das obrigações tributárias do concelho, o rei aborda as suas obrigações e os direitos que os povoadores de Muge tinham. Após este dispositivo jurídico de identificação do autor e dos destinatários a que o documento se reporta, seguem-se as cláusulas. Em primeiro lugar, o rei assume que deve “fazer taaes abertas no dicto Paul que agua dele seja fora”12. Portanto o rei obrigava-se a fazer “abertas”, a manter as valas e outros escoadouros de forma a garantir a correta drenagem do paul de Muge. Claro que a construção de uma rede de valas de drenagem dos solos dificultava a deslocação, para ultrapassar esse obstáculo, a carta de foral acrescenta que o rei “en essas abertas vos devo mandar fazer pontes de madeira per que o dicto Paul posa ser servido”13. Sobre a

A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro III, fls. 34v, transcrito no anexo documental como doc. 1. Doc. 1. 9 Doc. 1. 10 Doc. 1. 11 Doc. 1. 12 Doc. 1. 13 Doc. 1. 7 8

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ribeira de Muge compromete-se a fazer “hua ponte pedra”14, possivelmente, esta ponte de pedra será a velha “ponte romana”, ainda hoje existente sobre a Ribeira de Muge, que na época medieval estava em ruínas e terá sido reconstruída no século XIV15. Também, seria construída uma ponte de madeira sobre a vala de Valada e mantido um caminho aberto para permitir a circulação dos povoadores no paul e na povoação. O rei assume que “deve dar bevebeiros sabudos em os quaes gaados vaão bever”16. Tais bebedouros eram públicos e construídos nas valas tinham como objetivo dar de beber aos animais, principal força de trabalho usada nos campos do paul. Se por acaso algum animal danificasse o bebedouro ou a vala, o seu dono seria o responsável e deveria rapidamente corrigir o dano, como se fosse “de vizinho a vizinho”17. Todos os assuntos relacionados com o rio Tejo, bem como com os outros cursos de água, estavam na dependência da coroa, refletindo o direto romano. O monarca assumia o carater público das águas fluviais, condicionando a navegação, a pesca, a exploração de terras frequentemente inundadas pelos rios e ribeiras,

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isto é as terras dos pauis, das lezírias e dos isto é as terras dos pauis, das lezírias e dos mochões, eram atividades que careciam de autorização régia prévia . É neste contexto que encontramos o monarca a ceder os terrenos do Paul de Muge ou do Paul de Magos aos povoadores desses lugares, ou ainda a autorizar as pescarias em determinada região, ou a conceder a navegação num rio a alguém, equiparando os rios a caminhos públicos19.

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Igreja de Muge

Doc. 1. Mais informação no sítio http://www.monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=20820. 16 Doc. 1. 17 Doc. 1. 18 Para mais informações consultar o artigo de Ângela Beirante, “O Tejo na construção do poder real na Idade Média portuguesa, de D. Afonso I a D. João I”, sep. da Revista da Faculdade de Letras-História, II Série, vol. XV, Porto, 1998. 19 Ver as Ordenações Afonsinas, Livro II, capítulo XXIII e as Ordenações Manuelinas, Livro II, cap. XV. 14 15

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Magos Neste contexto, D. Dinis concedia aos povoadores do concelho de Muge o direito de construírem um porto no rio Tejo e de cobrarem direitos portuários sobre metade das “barcas que passedes assi come no porto de Sanctarem”20. Além disso, o rei entregava ao concelho uma barca para fazer a travessia do rio Tejo, entre Valada e o Campo do Sacarabotão, no concelho de Salvaterra de Magos, “pera passar os lavradores… e os otros que hy quiserem passar”21

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Em 1307, um novo diploma régio22 confirma ao concelho de Muge liberdade para navegar no rio Tejo, mediante o pagamento de um tributo de anual de cem libras, pelo S. João. Este novo “foral” garantia aos povoadores de Muge a travessia entre Muge, Valada, o campo de Sacarabotão, Salvaterra de Magos, estipulando que na travessia cobrasse “de cada hua besta carregada quatro dinheiros e de cada home afforrado ou molher senhos dinheiros e nom mays assy como sempre foy husado”23. Saliente-se que o porto de Muge localizava-se na outra margem

do rio Tejo, próximo de Valada. Mas Valada não tinha direitos nenhuns sobre este porto. Novamente em 1316 a questão das travessias colocou-se, o concelho pede ao rei que o isente do pagamento das cem libras anuais24 para facilitar o povoamento da povoação. O rei isentou Muge desse pagamento e reassumiu as barcas que faziam a ligação de Valada com o Sacarabotão, bem como o domínio do porto de Muge. A estes privilégios acrescem-se outros direitos. Os povoadores “que em en pobra morardes continoadamente sejades livres d’oste e de fossado e d’ajuduria e de jugada”25. Tal como na carta de foral de Salvaterra de Magos, os habitantes locais estavam isentos de obrigações militares e de tributos régios, estas isenções são pouco frequentes e muito localizadas e quase sempre individuais26, neste caso tinham certamente o grande intuito de povoar a região. Enquanto o fossado consistia na obrigação militar que populações tinham de se apresentarem a expensas próprias em exercícios militares anuais27, a hoste corresponde ao dever dos homens livres se apresentarem

Doc. 1. Doc. 1. 22 Doc. 2, D. Dinis confirma os privilégios (o foro) ao concelho de Muge na travessia do rio Tejo, conforme o estipulado na carta de foral de 1304. 17 Doc. 1. 23 Doc. 2. 24 Doc. 3. 25 Doc. 1. 26 Veja sobre o assunto João Gouveia MONTEIRO, A Guerra em Portugal (nos finais da Idade Média), Lisboa, Editorial Notícias, 1998, pag.90 e seguintes. 27 Dicionário da História de Portugal, Joel SERRÃO (dir) Livraria Figueirinhas,1984,vol. III, art. “Fossado”, p. 62. E Joaquim de Santa Rosa de VITERBO, Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram…, vol. I, artigos “FOSSADEIRA” e “FOSSADO”,pags. 330-338. 20 21

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no campo de batalha, ao lado do rei, devidamente armados conforme a sua categoria . A estas duas obrigações militares, os povoadores do concelho juntavam a isenção de qualquer outra “ajuduria e …jugada”29. Portanto não davam a “ajuda” pecuniária e material que os vassalos deviam ao seu suserano e não pagavam o tributo régio por utilizar um jugo de boi no trabalho da terra. Apesar da situação vantajosa, se algum dos moradores quisesse se ir embora poderiam fazê-lo e deixar os seus terrenos e as suas casas a outro. Esse novo povoador “seja vingado per huum ano e dali a deante fazerdes deles como de vosso proprio”30; ou seja, ao fim de um ano, o novo morador assumia a plenitude da propriedade e usufruía dos privilégios, dos direitos e dos deveres como os demais povoadores do concelho de Muge. Neste documento, o rei procurou ainda reduzir a influência do mosteiro de Alcobaça, dando aos povoadores “os termos assi como os melhor avya Alcobaça e devia a aver”31. A influência do mosteiro de Alcobaça

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iria diminuir nos anos seguintes. Em 1305, D. Dinis e o abade de Alcobaça, D. Pedro Nunes, fazem um novo escambo32. O rei entregou outra parte do reguengo de Valada em troca de propriedades em Muge. Se os monges não conseguissem colher uma média anual de 60 moios de pão meado, pela medida de Santarém, o rei comprometia-se a entregar-lhes o que faltasse para completar essa soma. O pequeno povoado ribeirinho além de deixar de estar subordinado aos ditames da ordem cisterciense, passaria a contar com um governo autónomo local: “e devedes a aver alcaide vezinho pera todo o senpre e alvazis e os alvazis serem confirmados per mim” . O alcaide deveria ser escolhido entre os vizinhos do concelho, seria o primeiro responsável pelo concelho, também deveria representar o monarca localmente. Os alvazis eram juízes populares que seriam confirmados pelo rei e que aplicariam a pequena justiça, julgando os pequenos delitos. Numa das cláusulas finais da carta de foral verificamos que se os povoadores ou os seus

Dicionário da História de Portugal, Joel SERRÃO (dir) Livraria Figueirinhas,1984,vol. III, art. “Fossado”, p. 62. E Joaquim de Santa Rosa de VITERBO, Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram…, vol. I, artigos “FOSSADEIRA” e “FOSSADO”,pags. 330-338. 28 Dicionário da História de Portugal, Joel SERRÃO (dir), vol. III, art. “Hoste”,p. 226-227. E Joaquim de Santa Rosa de VITERBO, Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram…, vol. II, artigo “HOSTE ou OSTE”,pag. 27. 29 Doc. 1. 30 Doc. 1. 31 Doc. 1. 32 A.N.T.T. Ordem de Cister, Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, 1.ª incorporação, Documentos régios, mç. 3, n.º 8. 33 Doc. 1. 27

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sucessores deixassem Muge, poderiam fazer das suas propriedades e casas aquilo que entendem-se, sem estarem obrigados a autorização do rei. Numa das cláusulas finais da carta de foral verificamos que se os povoadores ou os seus sucessores deixassem Muge, poderiam fazer das suas propriedades e casas aquilo que entendem-se, sem estarem obrigados a autorização do rei. A última cláusula remete no demais para o Foral de Santarém, “em todo o al mando que ajades o foro e costume de Sanctarem compridamente”34. O texto encerra com uma com cláusula de consentimento: “em testemunho desto dou estromento a vos pobradores esta mha carta”35 e refere as formas de validação “seelada do meu seelo do chumbo”36. O documento termina com um protocolo final, ou escatocolo. Aí, na tradição das chancelarias régias portuguesas, a datação surge habitualmente no início do escatocolo indicando elementos tópicos (local) e cronológicos (dia, mês):

“Dante em Sanctarem , VI dias de Dezembro”37. Feita que estava a datação do documento, seguia-se as fórmulas consignatórias. Estas fórmulas indicam o impulsionador do ato, o rei, e o nome do escriba: “El rey o mandou Fançisquo Anes a fez”38. Segue-se a indicação da era, neste caso, de César “Era Mª CCCª XRª IIª anos”39 . É necessário retirar aos 1342 anos da era de César trinta e oito anos para assim se converter para os 1304 anos da era cristã40. Por fim, o documento que ainda permanecia na chancelaria passava por uma última etapa, a validação. A validação “d’un acte résulte des actions par lesquelles l’acte reçoit ses signes ou marques d’authenticité, variables selon les usages de la chancellerie considérée”41. A chancelaria garantia a validade dos diplomas aí redigidos, sobretudo, através de assinaturas ou de selos. Somos informados que este documento foi validado pela aposição de um selo régio de chumbo e por um conjunto significativo de assinaturas do conselho do rei: os membros da alta nobreza como o conde D. Martim Gil de

Doc. 1. Doc. 1. 36 Doc. 1. 37 Doc. 1. 38 Doc. 1. 39 Doc. 1. 40 Para mais informações consulte a obra de Avelino Jesus da COSTA, Normas gerais de transcrição e publicação de documentos e textos medievais e modernos, Coimbra, FLUC, 1993 41 Maria Milagros CÁRCEL ORTÍ (ed.) - Vocabulaire international de la diplomatique, Valencia : Generalitat Valenciana / Conselleria de Cultura. Univ. de Valência (Commission Internationale de Diplomatique - Collecció aberta; 28), 1994, verbete número 369. 34 35

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Riba Vizela, D. Mem Rodrigues Briteiros (senhor da Maia), D. João Rodrigues Briteiros (senhor da Maia), João Mendes Briteiros (senhor da Maia), D. Fernando Peres de Sabrosa, D. Pedro Anes de Portel; o meirinho-mor do reino João Simão. Os elementos do alto clero, o arcebispo de Braga, D. Martinho Pires de Oliveira; o bispo de Lisboa, D. João Martins Soalhães; o bispo de Coimbra e chanceler do reino, D. Estevão Anes Brochardo; o bispo da Guarda, D. Vasco Martins de Alvelos; o bispo de Viseu D. Egas Viegas; o bispo de Évora D. Fernando Martins; o bispo de Silves, D. João Soares Alão; e, o bispo de Lamego D. Afonso das Astúrias. Além do episcopado e de ricos-homens do reino, integravam o conselho régio os privados, os homens de confiança do rei como sucedia com o sobrejuiz, mestre Julião; o desembargador, Aparício Domingues João; o chantre da sé de Évora, João Martins; o deão de Braga, Rui Soares; e ainda três clérigos reais, Martim Peres, Afonso Anes e Estevam Gomes. Estes assinantes corroboravam como confirmantes e testemunhas do ato fundacional do município mugense. Certamente que este documento que se encontra agora traslado na chancelaria de Dinis e cujo original se perdeu, seria um documento com caraterísticas físicas suficientes para o tornar visualmente distinto (dimensões, os selos 42 43

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pendentes, o pergaminho, a escrita gótica escorreita) de outros tipos de documentos.

Mapa 1- Muge e Glória na Idade Média

Os limites do concelho de Muge Em 1434, D. Duarte estabeleceu os limites dos concelhos de Muge e de Santarém42. Nesse diploma somos informados que existia uma querela entre os concelho de Muge e de Santarém a propósito dos seus termos. Então o monarca da ínclita geração interveio e estabeleceu os limites concelhios de Muge. O termo de Muge43 era a noroeste limitado pelo rio Tejo, a sul confrontava na zona do paul de Magos com

Ver doc. 6. Ver mapa 1.

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o termo do concelho de Salvaterra de Magos e com Coruche, sendo que a Norte e a Este confrontava com o concelho de Santarém. Na Ribeira de Muge existiam muitos moinhos, e precisamente onde o Paul de Muge termina, existiriam moinhos e fornos usados para fazer regueifas (um pão doce muito apreciado), aquilo que hoje corresponde à zona da Raposa, no concelho de Almeirim. Essa região então conhecida por Regueifeira marca a delimitação dos concelhos de Muge e de Santarém. Estabeleceu-se “que assy como vay a estrada pollos moynhos da Rigueyfeira pera Curuche que da estrada pera fundo contra Muja fique pera seu termo”44 e “o concelho de Santarem aja por seu termo da dicta estrada pera cima em tal guisa que os moynhos que se chamam da Rigeifeira fiquem em sua terra e seu termo”45. Ficamos assim a saber que na Regueifeira passava uma estrada que ia para Coruche e dessa estrada para baixo, isto é em direção ao Tejo, ficava a pertencer ao concelho de Muge; dessa estrada para cima seria pertença do concelho de Santarém. Os moinhos aí existentes ficariam também para o concelho de Santarém. Parece que esta estrada seria uma antecessora da atual estrada nacional nº 114/IC10 que vem de Santarém, na Raposa passa sobre a Ribeira de Muge e segue para Coruche. Atualmente os limites

das freguesias de Muge, da Glória e do Granho continua a ter como referência a estrada nacional nº 114.

A Carta de Privilégios de Santa Maria da Glória

A terceira localidade do concelho de Salvaterra de Magos a que a documentação medieval faz referência é a aldeia da Glória do Ribatejo. A zona é de povoamento muito antigo, do período Paleolítico46. Na época medieval a zona era dominada por uma charneca fechada onde monarcas e nobres se aventuravam em caça de animais de grande porte, com seria a montaria. Uma forma de caçar a cavalo com batedores por terra acompanhados por cães. Teria sido numa destas montarias que o rei caiu por terra e terá sido salvo por Nossa Senhora, como nos refere Pinho Leal, nos fins do século XIX: “Segundo a lenda, a imagem desta Senhora apareceu a D. Pedro I, numa ocasião em que ele por aqui andava à caça, livrando-o de afogar-se em um grande pégo, que havia nesta charneca; em reconhecimento do que, o rei lhe mandou fazer este templo, dando à Virgem o nome de Senhora da Glória, pelas muitas luzes e resplendores

Doc. 6. Doc. 6. 46 Roberto CANEIRA (Coord.), “O Paleolítico de Glória do Ribatejo”, in Cadernos Culturais, nº1. Glória do Ribatejo: ADPEC de Glória do Ribatejo,1997. 44 45

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de que estava cercada, no acto da aparição”48. Nos nossos dias esta cena está representada num painel de azulejos, no exterior da Igreja da Glória. Lenda ou não, certo foi que no ano de 1362, D. Pedro mandou construir uma igreja na Glória do Ribatejo, conforme a lápide medieval na frontaria da atual igreja paroquial o atesta49. E dois anos depois, o mesmo monarca outorga uma carta de privilégios aos habitantes locais50. Não nos chegou o original desta carta de privilégios dos povoadores de Santa Maria da Glória, apenas temos notícia dela porque foi transcrita para o Livro de Chancelaria de D. Pedro I. Aí após um breve sumário a vermelho está o traslado do documento. No protocolo inicial, surge a subscrição com a identificação clara do autor deste ato jurídico “Dom Pedro”51, seguindo-se uma fórmula de devoção “pela graça de deus”52, encerrando com a intitulação que identifica os títulos do autor do ato “Rey de Porugal e do Algarve”53. Após a intitulação temos então o endereço, neste caso universal “a quantos esta carta virem”54.

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Figura 1- Lápide medieval (de 30 de maio de 1362) existente na fachada da Igreja de Nossa Senhora da Glória, na Glória do Ribatejo. Onde se lê: “ERA: DE: MIL: CCCC: AN|OS: FERIA: SEGUNDA: X|XX: DIAS: DE: MAIO: FO|I EDIFICADA:……|…… PER: O MUI: NOB|RE: REI: DOM: PEDRO Q|UE: EM: ELA: POSE: A PRI|MEIRA: PEDRA: A QUA|L: MANDOU: FAZER: A G|OMEZ: LOURENÇO: ALMOXARIFE| E A: VAASCO: MARTINZ: | ESCRIVAM: E FOI:ACABA|DA: EM: HUU: ANO”47

Leitura de Leonardo CHARRÉU, “Pedras que Falam: Estudo epigráfico de uma lápide medieval” in Almadan. Revista do Centro de Arqueologia de Almada, IIª série, nº3, Julho de 1994, pp.18-21. 48 Augusto Soares d’Azevedo Barbosa PINHO LEAL, Portugal Antigo e Moderno, Diccionario (...) de todas a Cidades, Villas e Freguezias de Portugal, Vol. 5, Lisboa, 1875, pag. 584. 49 Ver figura 1. 50 Ver documento 4 transcrito no anexo documental, cuja cópia do traslado se encontra na Chancelaria de D. Pedro I, fl 92v. 51 Doc. 4. 52 Doc. 4. 53 Doc. 4. 54 Doc. 4. 47

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O texto do documento surge com uma notificação que pretende dar a conhecer o conteúdo do documento, com um vinculativo “faço saber que”55, seguido do dispositivo que expressa vontade do autor “eu querendo fazer graça e merçee aos pobradores em Sancta Maria da Gloria tenho por bem e mando que os seus gados paçam comendo as hervas e bevendo as agoas em termo de sanctarem e em termos de muja e de salvaterra e de curuche e de Benavente sem cooyma nehua nom embargo as pusturas ou defessas que por esses concelhos ou per cada huum deles seiam postas em contrairo dello”56. Nesta carta de privilégios verificamos em primeiro lugar que os “gaados” podem pastar livremente nos termos dos concelhos vizinhos sem nenhuma proibição, e os concelhos ficam obrigados a cumprir essa vontade régia nos seus costumes e posturas municipais. Os concelhos apenas poderiam reclamar dos “gaados” dos povoadores de Santa Maria da Glória “comtanto que nom façam dapno com seus gaados aos donos das herdades e os lavaradores dellas en seus paães e em suas lavoyras”57, nesse caso

deveriam corrigir o erro perante os homens bons dos respetivos conselhos “e se o fizerem mando que o corregam a vista de homens boons”58. Numa segunda cláusula o monarca dá permissão aos moradores da Glória de abaterem as árvores necessárias, nomeadamente sobreiros e carvalhos, nos termos dos referidos concelhos, “toda a madeira que lhes comprir de sovereyros e de carvalho pera suas casas e pera saa lavoira e apeiro della e pera puçilgoões de seus porcos e pera curraães de seus gaados”59. Num outro privilégio, o rei dá autorização para arrotearem até uma légua60 os terrenos junto do lugar da Glória de forma torná-los agricultáveis: “e outrossy mando que eles possam lavar e fazer hortas e vinhas e pumares sem embargo nehuum no dicto logo da Santa Maria da Gloria e arredor del de cada cabo até ataa hua légua”61. Tal como podiam abater sobreiros e carvalhos para obterem a madeira necessária às suas atividades, podiam extrair cortiça nas charnecas dos concelhos vizinhos “pera cobrir suas casas e pucilgoões e per suas colmeas e cubertura delas sem embargo nehuum”62.

Doc. 4. Doc. 4. 57 Doc. 4. 58 Doc. 4. 59 Doc. 4. 60 Na Idade Média, a distância de uma légua variava entre os 4 e os 7 quilómetros, mais do que uma distância métrica fixa, era a distância que um homem adulto percorria a pé numa hora. 61 Doc. 4. 62 Doc. 4. 55 56

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Um outro privilégio concede aos moradores da Glória o direito de caçarem “nos termos da dicta villa sem embargo nehuum com seus caães e foroões e beestas e armadilhas salvo porcos monteses”63. Portanto poderiam caçar todas as espécies, excepto fazer montarias para caçar porcos monteses. A caça deste animal estaria reservada certamente ao monarca e porventura seria este o motivo da concessão de privilégios ao lugar, a existência de porcos monteses para serem caçados. E assim se compreende que os pocilgões sejam referidos nesta carta de privilégio, se os habitantes locais quisessem carne de porco consumissem dos porcos domésticos e não dos porcos monteses. Também é interessante verificar que nesta cláusula se refira “nos termos da dicta villa”, informando que nesta povoação existia um direito próprio, um foro próprio dos habitantes da Glória. Não se aplicando os foros dos concelhos vizinhos já aqui referidos. No fim do dispositivo está uma cláusula conclusiva “e estes privilégios e liberdades mando que aiam os pobradores e moradores do dicto logo da Gloria emquanto ai morarem” , reafirmando a vontade régia. No escatacolo surge a datação tópica e cronológica e outras fórmulas consignatórias, identificando o autor do ato jurídico e o redator do documento: “Dante em salvaterra de magos

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xbij dias de fevereiro el rey o mandou. Gomez Pires a fez. Era de mil iiic e dous anos”65. Os privilégios contidos nesta carta certamente pretendia povoar a localidade afastada de todos os outros centros urbanos da região, onde certamente os sobreiros e os carvalhos pautavam a densa charneca. O monarca permite o abate destas árvores pelos moradores que iriam utilizar a madeira nas suas casas, alfaias e outros objetos e ainda na construção de currais e de pocilgões. O mesmo acontecia em relação à extração de cortiça feita livremente pelos habitantes locais. Uma das outras riquezas locais seria sem dúvida a caça, a lenda da fundação da Glória diz-nos que o rei D. Pedro andava numa caçada quando caiu por terra, e também foi concedido aos habitantes locais o privilégio de puderem caçar livremente, exceto os porcos monteses, reservados ao rei. Em termos económicos. os moradores dedicavam-se à criação de gado, certamente que os rebanhos de ovelhas e de cabras pastavam pelas charnecas, “invadindo” os termos dos concelhos vizinhos, da densa charneca extraiam madeira e cortiça, haveria também alguma apicultura. Mais próximo da localidade praticavam a agricultura, cultivando hortas, pomares e vinhas. Além de também criarem porcos nos pocilgões. Nesse mesmo dia, a 17 de fevereiro de 1364,

Doc. 4. Doc. 4. 65 Doc. 4. 63 64

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Magos numa outra carta, o rei D. Pedro isentou os moradores da glória de alguns impostos reais, como a jugada, hoste e fossado66, tal como acontecia nos concelhos de Salvaterra de Magos e de Muge: “outrossy mando que seiam scusados de hir em hoste nem em fosado nem em galles nem com presos”67 Santa Maria da Glória tinha assim um estatuto jurídico próprio, na dependência do próprio rei. Pelo que podemos considerar que se tratava de um “reguengo simbólico” incrustado entre os termos de Salvaterra de Magos, Coruche, Santarém e Muge. Nos séculos seguintes a Glória passa a integrar plenamente o termo de Muge.

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1 | Documento

1304, Dezembro 6, Santarém - O rei D. Dinis dá carta de foral ao concelho de Muge ANTT: Chancelaria de D. Dinis, Livro III, fl 34 verso

Em nome de Deos amen. Sabham quantos esta carta virem que eu Dom Denis pela graça de Deos rey de Portugal e do Algarve ensenbra com mha molher e com o Inffante Dom Afonso nosso filho primeiro herdeiro, dou e outorgo afforo a vos pobradores da mha proba de Muja todo o meu herdamento que eu ei em essa pobra de Muja, assi o Paul como as ademhas. 66 67

E vos e todos vossos sucessores devedes dar a mim e a todos meus sucessores em cada huum ano o quarto de todo o fruto que Deos der no dicto Paul e as ademihas devem seer livres e quites e eisentas pera senpre que nom façades foro a mim nem meus sucesores salvo dardes dizimo a Deus. E outrossi devedes a mim a dar e a todos meus sucessores o quarto do fruto que Deos der em a vinha de Val de Lobos que vos der fica em essa ademha e todo al averdes livremente per vos assi como de suso he conteudo. E eu devo a vos fazer taaes abertas no dicto Paul que a agua dele seja fora. E en essas abertas vos devo mandar fazer pontes de madeira per que o dicto Paul seja e posa ser servido. E outrossi vos devo mandar fazer hüa ponte de pedra sobrela aberta de Muja. E hüa ponte de madeira sobre a aberta de Valada dereito da foz de Ponteual e caminho pera venhades pela dicta pobra as quaes pontes todas eu devo a manteer pera todo senpre. E en as abertas do Paul devo a dar bevedeiros sabudos em os quaes gaados vãao bever. E se os vossos gaados fezerem dano em as abertas do Paul mando que se correga como de vizinho a vizinho. E eu dou e outorgo a vos pera todo o senpre porto en Tejo em que metades barcas per que passedes assi come no porto de Sanctarem e mando hy a mha barca de Valada como yr

Ver doc. 5. Doc. 5.

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anda pera passar os lavradores do Campo de Valada pera Caçarabotom e de Caçarabotomo pera Valada e os otros que hy quiserem passar. E vos68 pobradores que en essa pobra morardes continoadamente sejades livres d’oste e de fossado e d’ajuduria e de jugada do que ouverdes na dicta pobra e de toda peita e nom seerdes constrevidos polas dictas cousas que ouverdes na dicta pobra69 e se vos ou alguuns de vos al hur quiserdes hir morar devedes leixar quem lavre os herdamentos e quem pobre as casas e os herdamentos e as casas y o al que hy ouverdes seja vingados per huum ano e dali a deante fazerdes deles como de vosso proprio leixando cada huum de vos per si quem pobre e lavre os dictos herdamentos. E outorgo vos os termhos assi como os melhor avya Alcobaça e devia a aver e os ouverom aqueles a nos que os Alcobaça ouvesse e devedes a aver alcaide vezinho pera todo senpre e alvaziis e os alvaziis seerem confirmados per mim. E mando que nom sejades vos nem vossos suçessores constrevidos per mim nem per meus suçessores se al hur fordes morar se os herdamentos e as casas forem manteudos assi como de suso he conteudo e costume de Sanctarem compridamente. En testemunho desto dou estromento a vos pobradores esta mha carta seelada

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seelo do chumbo. Dante em Sanctarem, VI dias de Dezembro. El rey o mandou. Françisquo Anes a fez. Era Mª CCCª e XRª IIª anos.70 O conde Don Martim Gil Don Meen Rodriguez de Briteyros Don Joham Rodriguez seu irmão Don Fernam Perez de Bravosa Don Pero Anes de Portel Johane Mendiz de Breteiros Jhoam Simhom meyrynho Meestre Juyaão sobrejuiz Apariço Domingues Joham Joham Martins chantre d’Evora Roy Soarez dayam de Braga Don Martim arcebispo de Bragaa Don Johane bispo de Lixbõa Don Stevam bispo de Coimbra e chanceler del rey Don Vasco bispo da Guarda Don Egas bispo de Viseu Don Fernando bispo de Evora Don Johane bispo de Silves Don Affonso bispo de Lamego Martim Perez Affonsso Anes Stevam Gomes clérigos d‘el rey. Testemunhas

Segue-se a palavra “os” que está riscada. Segue-se uma frase repetida e que está riscada: “e de toda peita e nom seerdes constrevidos polas dictas cousas que ouverdes na dicta pobra”. 70 As assinaturas transcritas estão em coluna 68 69

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Magos 2 | Documento 1307 Setembro 6, Lisboa - D. Dinis confirma os privilégios da travessia do rio Tejo ao concelho de Muge, conforme o estipulado na carta de foral de 1304. ANTT: Chancelaria de D. Dinis, Livro 3, fls 59vº-60

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Contrução da torre da igreja - década de 60 Glória do Ribatejo

Sabham quantos esta carta virem como eu Dom Denis pela graça de Deus Rey de Portugal e do Algarve en senbra com a Dona Isabel mha molher e com o Inffante Dom Affonso nosso filho primeiro herdeiro ouvesse fecta graça e merçe aos meus pobradores e vezinhos da mha pobra de Muja eu lhis dar o seu foro que eles ouvessem porto enteiro assi como anos de Sanctarem os dictos pobradores e vezinhos da dicta pobra enviarom-me pedir per merçee per Lourenço Martinz d’Aavreu meu clerigo chanceler mayor do Infante Dom Affonso meu filho per poderio d’hüa procuraçom avondosa seelada do selo do conçelho de Muja que mim mostrou da qual procuraçom o teor tal he: ¶Sabham quantos esta procuraçom virem e leer ouvirem que nos alcaide e alvaziis e conçelho de Muja fazemos e ordinhamos e estabeleçemos por nosso procurador liidimo e avondoso como milhor pode seer e mayor valor Lourenço Martinz d’Aavreu clerigo de nosso senhor el Rey e chanceler do Inffante Dom Affonso seu filho pera pedir merçee a nosso senhor el Rey per nosso e em nosso nome e pera fazer avença sobre las barcas de nosso senhor el Rey que anda en o porto do castelo Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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de Valada. E outrossi sobre las <outras> barcas que andam passando pera Caçarabotom e pera Salvaterra e pera filha-las por nos e en nosso nome e obrigar-vos conçelho de Muja a nosso senhor el Rey pela contia que se com ela ver sobre las dictas barcas pera todo senpre e toda a peritesia e aveença que el fezer avermo-lo por firme e <por quitavel> pera todo senpre esso obrigamento de todos nossos beens en testemunho desto demos en ao dicto Lourenço Martinz d’Aavreu esta carta de procuraçom seelada do nosso seelo pedente, fecta a dicta carta da procuraçom em Lixboa, XXX dias d’Agosto, era Mª CCCª XIVª anos.¶ E o dicto Lourenço Martinz em nome e em voz do dicto conçelho de Muja pedia-me por merçee porque as mhas barcas que andam en Valada e no cabo de Dom Horigo andavam com essas barcas do conçelho de Muja de suum que eu desse as dictas mhas barcas e passageens e os portos ao dicto conçelho de Muja assi como as eu senpre milhor ouvera. E que o dicto conçelho de Muja desse a mim por en cada huum ano por dia de San Johane Bautista pera senpre cen libras de portos. E eu querendo fazer graça e merçee ao dicto conçelho de Muja outorgolhis que ajam pera todo senpre seu porto enteiro assi como conteúdo en seu foro. E dou-lhis e outorgo-lhis mha barca de Valada com seu porto e com sas rendas e perteenças e dereitos e com todalas outras cousas e barcas assi como hy senpre andarom e ao mais eu melhor ouvy e devo aaver de dereito

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que o dicto conçelho aja todo esto pera senpre des aqui adeante polas dictas C libras en cada huum ano assi como dicto he salvo en mha barca de Salvaterra que anda pera Azambuja e da Azambuja pera Salvaterra que deve ficar a mim que nom vay en esto conto. E outrossi lhis dou e outorgo o pan e as outras cousas que as dictas barcas husarem senpre aaver dos lavradores de Valada e de Caçarabotom. E eu nem outrem nenhuum nom lhis devemos hy meter barca nem barcas nem batees o que/[fl. 60 vº]/ passe salvo as que hy meter o dicto conçelho de Muya ou quem esse conçelho mandar e se as hy a alguém quiser meter contra sa voontade eu e meus suçessores lhis demos alçar força e mantee -las a esta carta que lhis envio dou en esta guisa e o dicto conçelho deve levar per razom da passagem que se fezer nos dictos portos e barcas aquelo que senpre foy husado e acostumado de levar en esta guisa de cada hüa besta carregada quatro dinheiro e de cada huum homem afforrado ou molher senhos dinheiros e nom mays assi como senpre foy husado por que mando e defendo firmemente que nenhuum nom seja ousado que vaa contra esta merçee que eu faço ao dicto conçelho nem contra esta carta e aaquel que o fezer ficara por meu enmiigo e peitara a mim os meus encontas do sex mil soldos e corregera en dobro ao dicto conçelho o mal ou força que lhis fezer. En testemunho desto dou en esta carta ao dicto conçelho seelada com meu seelo do chumbo. Dante em Lixboa VI dias de Setembro el rey o mandou. Affonso Reymondo a fez. Era Mª CCCª XLª e cinquo anos.

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Magos 3 | Documento 1316 Maio 3, Lisboa- D. Dinis isenta concelho de Muge do pagamento anual de cem libras e assume as passagens e travessias que fazia no Tejo entre Valada e o Sacarabotão.

A.N.T.T., Chancelaria de D. Dinis, livro III, fls.100-100v.º

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Carta da passajem do porto de Muja Don Denis pela graça de Deus rey de Portugal e do Algarve. A quantos esta carta virem fazom saber que o alcaide e alvaziis e o concelho de Muja m’envyarom pedir merçee per Stevam Soares seu vezinho e seu procurador avondoso per razom das passageens e do porto e das barcas que andam no rio de Tejo no porto de Vala<da> polas quaes barcas e porto mi avya a dar o dicto concelho cen libras en cada huum ano como quer que no seu foro seja conteudo que traga hy barcas quem nas hy quiser trager assi como as tragem no porto de Santarem E o dicto concelho me avya a dar as dictas cem libras per razom das passagens e do porto das outras barcas que estavam a sso este porto de Valada que e no Castello de Valada que passa os do meu regaengo pera Cacarabotom que lhis eu per esta razom dey e o dicto procurador me pediu por merçee en nome do <dicto> conçelho que eu quitasse ao dicto conçelho as dictas cem libras que mi per razom das dictas passageens e porto en cada huum ano avyam 71 72

a dar e que eu filhasse as dictas passageens e porto em mim e que fezesse de todo aquelo que mha merçee fosse per poder dũa procuraçom que o dicto procurador do dicto concelho mi mostrou fecta per mãao de Lourenço Domingos tabaliom de Muja assinaada do sseu sinal e seelada do sseelo do dicto conçelho que ende eu vy da qual procuraçom o teor a tal he ¶Saibham quantos esta procuraçom virem que nos alcaide e alvasiis e conçelho de Muja fazemos e ordinhamos e estabelecemos por nosso procurador liidimo e avondoso como melhor pode e deve mais valer Stevam Soares nosso vezinho o procurador desta presente procuraçom pera pedir merçee a el rey por nos e em nosso nome sobre las portageens e das passageens das barcas de Valada que vos nosso senhor el rey deu per sa carta e pera dalas a nosso senhor el rey se sa merçee for de as en ssi quiser filhar E outorgamos nos conçelhos e damos por firme pera todo senpre so obrigaçom de todos nossos bens. En testamuynho desto mandamos ende fazer esta procuraçom per Lourenço Domingos tabaliom da dicta villa de Muja feita foy XVIIª dias d’Abril Era M.ª e III.c L.ª IIIIº anos. Testemunhas Domingos Maduro almotaçe Pero Sarrão procurador do conçelho Martim Anes Vicente Perez Giraldo Anes vogados Domingos Perez procurador Domingos Perez da Ribeira Martim Paaez Joaham Paaez Johan Martiiz e outros e eu Lourenço Domingos

Seguem-se as palavras “de Valada” que foram riscadas. Segue-se uma mancha de tinta.

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pobrico tabaliomm de Muja per mandado dos dictos alcaides e alvaziis e conçelho esta procuraçom com mha mãao scrivi e este meu sinal hy pugi en testemuyno de verdade¶. E vos alcaide e alvaziis e conçelho posemos en esta procuraçom73 como quer que mi o dicto concelho ffosse obrigado que mi desse en cada huum ano as dictas cen libras per razom das dictas passageens e porto querendoo fazer sobresto graça e merçee ao dicto conçelho por que mi disserom que sso faria e pobraria pera melhor a dicta villa quito lhis as dictas cen libras que mi em cada huum ano per esta razom avyam adan e filho pera mim as dictas passageens e porto des este primo dia dia d’Abril que ora passou desta era soescrita com todalas barcas e com o trigo que en cada huum ano han a dar os lavradores per razom das passageens dessas barcas com todolos outros dereitos que a essas passageens e porto perteençe E o dicto conçelho nem outro homem nenhuum que seja nom deve hy trager nehũa barca em essas passageens nem en esse porto E as dictas passageens e porto deve seer todo meu compridamente com todo los dereitos e pertenças que ata aqui ouverom e ouverem daqui adeante porem tenho por bem e mando que nenhum meu almoxarife nem outro meu sacador que non constrangea o dicto conçelho de lo dicto primo dia d’Abril adeante salvo se

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mando devem per esta razom algũa cousa dos tempos passados e oussi receberom algũa cousa das dictas passagens e porto de lo primo dia d’Abril ataa que mi o dicto conçelho deve a entregar. Ca eu lhis quito as ditas cen libras e recebo e filho pera mim as dictas passagens e porto com todolos seos dereitos e pertenças de lo dicto primo dia d’Abril adeante /[fl 100 vº]/ E o dicto procurador per poder da dicta procuraçom en nome do dicto conçelho outorgou todalas sobredictas cousas e pediu-mi por merçee que lhy mandasse ende dar hũa mha carta e en aa pitiçom que mi o dicto procurador fez en nome do dicto conçelho mandei-lhy por ende dar esta mha carta. Dante em Lixboa três dias do mês de Mayo, el rey o mandou. Affonso Migeez a fez. Era Mª CCCª Lª IIIIª anos. Stevam Guarda.

Igreja da Glória com torre antiga - década de 30

À margem, de mão diferente, lê-se: “o nosso sello autetiguado do concelho nas costas. E en a pitiçom que me o dito procurador fez em nome do dito conceloo per poder da dita procuraçom” 74 Repete-se a palavra:”por” 73

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Magos 4 | Documento 1364 Fevereiro 17, Salvaterra de Magos - D. Pedro I concede privilégios aos moradores de Santa Maria da Glória (no termo do concelho de Salvaterra de Magos), nomeadamente em relação à criação de gado.

A.N.T.T., Chancelaria de D. Pedro I, fl. 92 vº. Chancelaria de D. Pedro I, coordenação de A. H. de Oliveira Marques… pp. 399 - 400

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Que os gaados de Sancta Maria da Gloria paçam em termo de Sanctarem e Muja e Curuche e Benavente e Saluaterra. [D]om Pedro pella graça de deus Rey de Portugal e do Algarue a quantos esta carta virem faço saber que eu querendo fazer graça e mercee aos pobradores em Sancta Maria da Gloria tenho por bem e mando que os seus gaados paçam comendo as heruas e beuendo as agoas em termo de sanctarem e em termos de muja e de saluaterra e de curuche e de benavente sem cooyma nehũa nom embargando as pusturas ou defessas que por esses concelhos ou per cada hũu delles seiam postas em contrairo dello Comtanto que nom façam dãpno com seus gaados aos donos das herdades e aos lauradores dellas em seus paães e em suas lauoyras E se o fizerem mando que o corregam a vista de homens boons E outrossy mando que nos termos das dictas villas e de cada hũa dellas possam talhar sem cooyma nehũa e leuar pera esse logo da gloria

toda madeira que lhes comprir de souereyros e de carualho pera suas casas e pera saa lauoira e apeiro della. E pera puçilgoões de seus pocos e pera curraães de seus gaados E elles deuem e talhar tal paao qual leuem E esto se entenda nas souereyras e carvalhos que estam nas matas dos termos das dictas villas e charnecas dellas. E outrossy mando que elles possam lavrar e fazer hortas e vinhas e pumares sem embargo nehũu no dicto logo de santa maria da gloria e arredor del de cada cabo até ataa hũa legoa. Outrossy mando que elles possam colher cortiça nas charnecas e matas dos ditos concelhos cada que lhes comprir pera cobrir suas casas e pucilgoões e pera suas colmeas e cubertura dellas sem embargo nehũu Outrossy mando que elles possam matar caças nos termos da dicta villa sem embargo nehũu com seus caães e foroões e beestas e armadilhas saluo porcos monteses E estes priujlegios e liberdades mando que aiam os pobradores e moradores do dicto logo da gloria emquanto hi morarem E em testimunho desto lhes mandey dar esta carta asignada per mjnha mãao e seelada do seu seelo pendente Dante em saluaterra de magos xvii dias de feuereiro el rrey o mandou gomez pires a fez era de mjl iiiic e dous annos.

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5 | Documento 1364 Fevereiro 17, Salvaterra de Magos - D. Pedro I isenta os moradores de Santa Maria da Glória (no termo do concelho de Salvaterra de Magos), do pagamento da jugada.

A.N.T.T., Chancelaria de D. Pedro I, fls. 92 vº93.Chancelaria de D. Pedro I, cordenação de A. H. de Oliveira Marques… p. 400

que nom paguem jugada / os de sancta maria da gloria [D]om pedro etc Aquantos esta carta virem faço saber que eu querendo fazer graça e merçee ao pobradores [sic] e moradores de sancta maria da gloria Tenho por bem e mando que elles seiam Jssentos de nom pagarem Jugada do pame do vinho e doutras cousas que ouuerem. E outrossy que nom paguem em talhas nem em fintas que seiam lançadas pera me pagarem algũus serujços que me pormeterem ou pormeteram os cuncelhos em cujos termos ouuerem esses beens ou pera outra qualquer razom pera que essas talhas seiam lançadas outrossy mando que seiam scusados de hir em hoste nem em fosado nem em galles nem com presos E este priujlegio e liberdades mando que aiam os que em este logo da gloria morarem emquanto hi morarem E em testemunho desto lhes mandey dar esta mjnha carta asignada per mjnha mãao e seelada do meu seelo pendente E os dictos moradores tenham esta carta. Dante em saluaterra de magos xvii dias de

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feuereiro el rrey o mandou gomez pires a fez era de mjl iiiic e dous annos.

6 | Documento 1434 Julho 2, Santarém - D. Duarte estabelece através de sentença os limites dos termos de Santarém e de Muge. A.N.T.T., Chancelaria de D. Duarte, fls. 91- 91v.

Das villas de Santarem e Muja carta per que foi mandado que as terras e termos das ribeira da qual da Regueifeira per homde parte hum termo nom outro sobre que he contend. Dom Eduarte etc. a quaaes quer juízes e justiças dos nossos regnos e a outras quaaes quer pessoas a que esto pertencer a que esta carta for mostrada saúde. Sabede que antre o concelho desta villa de Santarem e o concelho de Muja era desvayro e desacordo sobre parte dos termos por honde partia huum concelho com outro, polla ribeira d’agoa de Regueifeira acima sobre a qual demanda e contenda ante nos vierom . E vistas suas scripturas e partes ouvidas danbollos concelhos determinamos e mandamos daqui en diante sobre que a dicta contenda he seja partida e declarada per esta guisa que se segue .sicilet. que assy como vay a estrada pollos moynhos da Rigueyfeira pera Curuche que da estrada pera fundo contra contra Muja fique por seu termo e desce pelas outras divisões de huma e da outra parte

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segundo antre os concelhos he devisado e de marcado e o concelho de Santarem aja por seu termo da dicta estrada pera cima em tal guisa que os moynhos que se chamam da Rigeifeira fiquem em sua terra e seu termo. E dahy pera cima como vay ataa as demarcações e divisões de seu termo. Porem mandamos aos dictos concelhos que daqui en diante husem e se aproveitem dos dictos termos como aqui he divisado e ponham a longa da estrada tanta quanto duram os termos de cada huum seus marcos e divisões per o presente e ao diante serem fora de briga e desacordo sobre a dicta declaração assy mandamos aos dictos juízes e justiças que o façam comprir e guardar como em elle he conteúdo umde al nom façades. Dada em Santarem II de Julho. Afomso de Beja a fez. Era de mil IIIIC XXXIIII anos

Bibliografia

Fontes manuscritas

Lisboa: A.N.T.T (Arquivos Nacionais da Torre do Tombo) Chancelaria de D. Dinis, livros II e III

Fontes Impressas

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Estudos

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Simbologia funerária no cemitério de Salvaterra de Magos Roberto Caneira* patrimoniocultural@cm-salvaterrademagos.pt *

Técnico Superior de História da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos

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Simbologia funerária no cemitério de Salvaterra de Magos

«Ó tu mortal que me vês Repara bem como estou Eu já fui o que tu és E tu serás o que eu sou»1

1 | Origem dos cemitérios: abordagem histórica

O termo cemitério deriva do grego koimetérion e traduzido à letra significa “dormitório”. Desde a pré-história que o Homem criou espaços para a última morada dos seus entes queridos, a relação do Homem com a morte é intemporal. No período do paleolítico em várias grutas abundam vestígios de túmulos individuais e coletivos, no neolítico com a sedentarização do Homem, surgem os grandes monumentos megalíticos – as antas, que são câmaras funerárias, onde enterravam corpos e também existem rituais funerários, com a deposição de báculos e cerâmicas que estavam junto dos corpos. No Egito, a ritualização da morte e a procura da imortalidade histórica, origina os grandes túmulos que se encontram nas pirâmides e esfinges. Na civilização romana, era normal as práticas de incineração dos corpos, as cinzas eram depois recolhidas e colocadas em urnas nos sepulcros. Com o cristianismo, a inumação é prática dos cristãos, os corpos são colocados em catacumbas

1

ou em grutas. Durante a Idade Média com a afirmação da religião católica, os corpos eram enterrados no interior das igrejas ou em seu redor. Esta tradição está ligada à crença do que a proximidade do corpo junto de espaços sagrados era garantia da protecção divina. Havia nos enterramentos uma estratificação social, quem possuía poder, riqueza ou estatuto era enterrado dentro das igrejas, aqueles mais desfavorecidos socialmente eram enterrados no exterior em valas comuns. No século XVIII surgem as primeiras preocupações de saúde pública dos enterramentos, os átrios das igrejas eram abusivamente ocupados, sem qualquer ordenamento na disposição dos corpos, o que provocavam sérios danos à saúde pública, defendia-se a necessidade de encontrar novos locais para enterrar os corpos. Espaços que deveriam ficar longe do centro urbano, em terrenos arejados e longe de fontes. A cidade de Paris em 1804, aprovou uma lei para a criação de novos espaços de enterramentos. Esta legislação está na base da criação do cemitério de Pére Lachaise, e que servirá de influência à construção de muitos cemitérios modernos na Europa.

Epitáfio localizado à entrada do cemitério da Golegã

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Magos 2 | Os cemitérios em Portugal

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As primeiras tentativas para criar espaços de enterramento surgem após o terramoto de 1755, o Marquês de Pombal ordenou que por uma questão de saúde pública, os mortos fossem enterrados fora dos limites urbanos da cidade de Lisboa, para não agravar as condições higiénicas. No reinado de D. Maria I, a ação de Pina Manique também reclama a existência de espaços para cemitérios. Em Portugal, país com o catolicismo profundamente enraizado, houve algumas resistências aos enterramentos fora das igrejas, veja o exemplo da revolta da Maria da Fonte, ocorrida em 1846. Em 1835 tendo em conta o novo governo dos liberais, a 21 de Setembro é publicado o Decreto-Lei n. 44220, que proibia os enterramentos dentro e fora dos edifícios religiosos, obrigando à criação de cemitérios, com várias medidas de higienização dos corpos e de salubridade pública, como exemplo a construção de um muro para resguardar este espaço, entre outros aspetos (fig.1):

fig. 1 - decreto lei de 1835

«Artigo 1.º - Em todas as Povoações serão estabelecidos cemiterios públicos para nelles se enterrarem os mortos Art. 2.º - Os terrenos destinados para este effeito deverão ter a extensão sufficiente, a fim de que a sepultura em que for depositado um cadáver, não venha outra vez a ser aberta se

não depois de passados 5 annos Art. 3.º - Os cemiterios deverão ser situados fora dos limites das Povoações, e com a exposição mais conveniente à salubridade dellas. Nas Freguezias ruraes as distancias dos Cemitérios podem Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Simbologia funerária no cemitério de Salvaterra de Magos

variar segundo as circumstancias particulares Art. 4.º - Os cemitérios deverão ser resguardados por um muro de não menos de dez palmos de altura, construído com a precisa solidez Art. 5.º - Cada corpo deverá ser enterrado em cova separada, a qual terá menos cinco palmos de profundidade, e será separada das outras covas por um espaço de palmo e meio por todos os lados Art. 6.º - As Câmaras Municipaes designarão os terrenos nas requeridas circumstancias para nelles se estabelecerem os cemitérios, e imdicarão igualmente o numero deste que convirá estabelecer em cada Concelho. Trinta dias, depois da publicação do presente Decreto, se achará feita a designação, e os terrenos cercados de uma sebe, quando senão possa ter feito o muro, mas findos três mezes, a começar do mesmo tempo, os cemitérios estarão infallivelmente murados.»2

facto, privado de beneficio, e ficará inhabil para obter outro.»3 Esta legislação inicialmente nem sempre foi aceite, mas com o passar dos tempos terminam os enterramentos junto das igrejas e passam a ser feitos em cemitérios.

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Qualquer pároco que contrarie estas normas, e enterre os corpos sem ser no cemitério, ficará castigado: «Art. 13.º - O Parocho, ou qualquer Ecclesiastico beneficiado, que desde que o Cemitério estiver designado, e benzido, consentir que algum cadáver seja enterrado dentro dos templos, ou fora do Cemitério, será, pelo simples Jazigos na entrada do cemiterio - Salvaterra de Magos

2 3

www.net.fd.ul.pt/legis/1835 Idem

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Magos 3 | Rituais funerários e cemitérios em Salvaterra de Magos

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Ainda na região de Muge, foi encontrado e escavado um monumento megalítico, trata-se de uma anta, o que evidencia a existência de uma Os vestígios mais antigos referentes a práticas grande câmara funerária que albergava enterfunerárias na região que compreende hoje o ramentos. Atualmente não existem vestígios concelho de Salvaterra de Magos, foram endeste monumento: contrados juntos dos concheiros de Muge, localizados na ribeira de Muge, e remontam ao «Da recolha bibliográfica efectuada, teve-se conhecimento de um monumento megalítico período do mesolítico. Descobertos em 1863, os concheiros de Muge de Martim Afonso (Thólos? Anta?) na freguesia são uma das estações arqueológicas mais im- de Muge. Esta notícia vem referida no “Megaportantes a nível nacional e europeu. Desde a lithgraber…” de Vera e George Seisner, inforsua descoberta até aos nossos dias foram reti- mação que por sua vez tinha sido obtida do rados mais de 300 esqueletos dos concheiros, Prof. Manuel Heleno que teria escavado este 5 onde se verifica uma ritualização funerária, os monumento.» corpos tinham uma posição definida, estavam Nos períodos seguintes não existem referênassentes em camadas de conchas e com orna- cias arqueológicas à prática de enterramento, mentação corporal: exceptuado o aparecimento isolado de um «Na Moita do Sebastião, tal como nos outros fragmento de cerâmica, um askos, datado do concheiros de Muge, encontram-se numerosas séc. III e II a.C, no local do Porto de Sabugueiro sepulturas de homens, mulheres e crianças, fei- (Muge), que está associado a práticas funerárias: tas de acordo com um ritual bem definido, com «Por último temos que destacar uma peça recoa maior parte dos corpos colocados, deitados lhida neste contexto, que apesar do seu estado de costas, com as pernas semi-flectidas e os de conservação não permitir uma interpretação braços estendidos ou cruzados sobre o abdó- categórica, a sua morfologia permite supor esmen, cobertos de ocre vermelho e adornados tarmos perante um Askos. Estas características com numerosas contas feitas com búzios perfu- peças estão diretamente correlacionadas na rados, colocados ao pescoço ou em torno dos zona de Cádis com práticas religiosas e surgem artelhos.”4 normalmente associadas a áreas funerárias. José Morais Arnaud, Os concheiros mesolíticos do Vale do Tejo, Lisboa, Instituto Português do Património Cultural / Departamento de Arqueologia, 1987, p. 20 5 Estudos de Arqueologia no Concelho de Salvaterra de Magos, GAP – Gabinete de Apoio Técnico de Salvaterra de Magos, Coruche e Benavente, 1981, p. 13 (documento policopiado) 4

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A sua cronologia situa-se grosso modo entre mina. Curioso é que este novo cemitério não meados do século III e o II a.C.»6 obedeceu aos critérios do decreto de 1835, No decorrer da Idade Média, época em que porque ficava no interior da vila e ficava junto Salvaterra de Magos se afirma enquanto aglo- de uma igreja: merado urbano, a outorga da Carta de Foral, ocorre a 1 de Junho de 1295, e com a afirmação da religião católica, as inumações ocorreriam em “lugares sagrados” ou seja templos religiosos. Na vila de Salvaterra de Magos existiam 5 templos religiosos: igreja de S. Paulo, Capela Real, Igreja da Misericórdia, Igreja de S. Sebastião e Igreja de S. António, e era certamente no interior e em redor destas igrejas que se faziam os enterros. Atualmente as últimas duas igrejas foram destruídas, contudo ainda se encontram no interior da igreja de S. Paulo e da Misericórdia, várias lápides de enterramento, que testemunham estas práticas funerárias. A primeira referência que se conhece à construção de um cemitério, após o decreto-lei de 1835, é um documento datado de 1856, no qual a Câmara Municipal solicita a cedência do terreno designado Picadeiro do Palácio, que ficava próximo da Capela Real, para neste local se construir um novo cemitério, justificando que o aumento da população assim o deter

«Registo da Portaria do Ministério da Fazenda de 31 de Maio de 1856 em que se manda entregar à Câmara o Picadeiro Velho do Palácio Queimado para servir de cemitério. Ministério da Fazenda – Direcção Geral dos Próprios Nacionais = tendo a Câmara Municipal do Concelho de Salvaterra de Magos pedido a concessão de um terreno denominado do Picadeiro Velho do Palácio Queimado para servir de cemitério visto que o actual não é suficiente em atenção ao aumento da população do dicto município (…).»7 (fig. 2 e 3) Anos mais tarde surge uma nova referência à necessidade e urgência de se construir um novo cemitério em Salvaterra de Magos. A primeira referência data de 1873: «Nesta foi prezente a Camara um officio do Governo Civil de Santarem expedido pela 3.ª Rep. 1.ª Secção em data de sette de Agosto corrente chamando a atenção da Camara para a construção do novo cemitério de que a Camara ficou inteirada.»8

6

João Pimenta e Henrique Mendes, 1.ª Campanha de escavações arqueológicas no povoado pré-romano do Porto de Sabugueiro. Muge, In Cira Arqueologia II, ano, disponível em: http://www.cm-vfxira.pt/files/3/documentos/20130917160636439070.pdf, (consultado a 02-10-2014) 7 A.H.M.S.M. – Livro de Registos 1802 / 1856, fl. 270 8 A.H.M.S.M. - Acta da sessão ordinária da Câmara em 11 de Agosto de 1873, fl. 242

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fig. 3 - antigo cemitério da Capela Real

da planta e orçamento para a construção do novo cemitério e a Camara determinou que se lhe satisfizesse este pagamento da venda para este fim.»9 Dez anos mais tarde, em 1883 o processo de construção do cemitério ainda se arrastava, a Câmara Municipal delibera os editais de arrematação dos muros, portão e cantarias:

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«Deliberaram que se passassem editaes anunciando a arrematação da construção e factura Na reunião camarária datada de 18 de Agosto dos muros do cemitério novo, portão e cantaria do mesmo ano, encontrámos um requerimento para o mesmo para o dia primeiro d’abril próde um carpinteiro solicitando o pagamento do ximo.»10 seu trabalho no levantamento da planta e orça- As peias da burocracia atrapalham o normal mento da construção do cemitério: desenrolar da construção do cemitério, e volFig. 2 - registo da cedência do picadeiro para se fazer cemitério

«Nesta se apresentou Joaquim Guilherme ta novamente à arrematação de mais tarefas Gonçalves oficial de carpinteiro requerendo o a realizar no cemitério, nomeadamente o grapagamento que se lhe deve do levantamento deamento e o portão: 9

A.H.M.S.M. – Acta da sessão ordinária da Câmara em 18 de Agosto de 1873, fl. 243 A.H.M.S.M. - Acta da sessão ordinaria do dia 5 de Março de 1883, fl. 232

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«Designamos o dia vinte e oito de Setembro próximo pelas doze horas da manhã, para se proceder à arrematação em carta fechada das seguintes tarefas: primeiro – gradeamento em ferro e portão para o cemitério, sendo a base de licitação novecentos noventa e dois mil reis; segunda tarefa – cantarias para o mencionado cemitério, sendo a base de licitação trezentos e vinte mil reis; terceiro – acabamento das casas do cemitério, sendo a base de licitação setecentos e tres mil novecentos e vinte e sete reis.»11

segunda seiscentos quarenta e um mil e seiscentos reis, não apareceu licitante, pelo que se deliberou que as mencionadas empreitadas vão novamente à praça como o aumento de cinco por cento sobre a base de licitação primitiva, no dia vinte e dois d’Agosto próximo futuro pelas dez horas da manhã e também por proposta em carta fechada.»12

No portão do cemitério encontra-se a data de 1885 (fig. 4), contudo esta não parece ser a data da abertura do cemitério, mas sim hipoteticamente a data em que se finalizou o portão. Anos mais tarde 1889 continuam os registos da actas com abertura de nova arrematação para finalização de algumas obras no cemitério: «Conforme a deliberação anteriores e respectivos annuncios, manda-se abrir praça para a recepção de propostas em carta fechada para as empreitadas seguintes: terraplanagem do recinto do cemitério, escavação para fundações e mão de obra de alvenaria ordinaria e fundações e paredes e fornecimento d’alvenaria, tijolo d’alvenaria, areia, e cantaria de Villa Verde, para o mesmo cemitério sendo a base de licitação da primeira empreitada duzentos setenta mil trezentos noventa e cinco reis e da 11 12

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fig. 4 - entrada do cemitério

A.H.M.S.M. - Acta da sessão extraordinária do dia 31 d’Agosto de 1884, fl. 289 A.H.M.S.M. - Acta da sessão extraordinária do dia 28 de Julho de 1889, fl. 146

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A capela que se estava a construir no cemitério deve começar a receber enterramentos, obetambém contribuiu para o atraso das obras, em decendo aos regulamentos municipais: 1889, mais um registo de arrematação para os materiais a aplicar na construção da capela do «Acta da sessão ordinaria do dia 23 de Julho de 1891 cemitério. Attendendo a que o antigo cemitério d’esta «A Camara deliberou que no dia dezassete do villa se acha replecto de cadavares e sendo proximo futuro mez de Setembro, pelas doze inteiramente impossivel continuar a fazerem horas da manhã se proceda à arrematação em alli os enterramentos, deliberou que deve cocarta fechada do fornecimento de grade de meçar a funcionar o novo cemitério embora a ferro para as janellas da sacristia e óculos da respectiva capella ainda não esteja concluída e Capella mor do cemitério d’esta villa, sendo a devendo mandar-se já provisoriamente dividir base de licitação trinta e quatro mil reis – for- o terreno por um tapume em madeira afim de necimento de cantaria de lioz burmido para um ficar resguardado aquelle onde deve comepórtico em estylo gótico, uma rosácea, quatro çar-se a fazer os enterramentos, e livre aquelle fugareos e uma cruz para a dicta capella, sen- onde ainda tem de se trabalhar os operários do a base de licitação trezentos e cinco mil reis para a conclusão da capella. Mais deliberou e empreitada de alvenaria ordinaria em plati- que para os enterramentos serem feitos com bandas, alvenaria em tijolo, cimalhas, rebocos e ordem e em harmonia com os regulamencaiações, madeiramento, travejamento fasquia- tos dos cemitérios municipaes, se comprem dos, cobertura de telha de marselha e canos de as precisas cruzetas para numeração singular desaguadouro nas telhados (madeira e mão-de dos quadros e das sepulturas, quadros que se -obra), sendo a base de licitação quinhentos acham divididos entre si por meio de ruas, sensetenta e cinco mil reis centos setenta e cinco do destinadas para o enterramento de adultos reis para o que se deve passar os competentes os que ficam de lado do nascente e para o de anúncios. O projecto e orçamento do cemitério menores os que se acham do lado do poente, e capella acha-se superiormente aprovado.»13 e que o quadro destinado para enterramento Finalmente em 1891, o executivo municipal dos cadavares de indivíduos a quem deviam ter deliberou que o antigo cemitério, localizado honras de sepultura ecclesiastica que se acha junto da Capela Real, encontra-se cheio de ca- já provisoriamente separados por uma grade dáveres, e que apesar das obras da capela ain- de madeira dever ser murado em toda a volta, da não estarem concluídas, o novo cemitério encimado por um gradeamento de ferro com a 13

A.H.M.S.M. - Acta da sessão ordinária 27 de Agosto 1890, fl. 170

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competente porta sem cruz, devendo esta obra ficar prompta afim que conclua para a capella e por isso resolver que d’isto se desse conhecimento ao Reverendissimo Vigario Arcyprestado de Salvaterra e Prior d’esta freguesia, aguardando a sua resposta para se marca dia para a vistoria do dito cemitério.»14 A data de 1891 parece segundo a análise aos documentos, aquele que corresponde à inauguração oficial do cemitério de Salvaterra de Magos. (fig. 5)

4 | Simbologia tumular no cemitério de Salvaterra de Magos A ritualização da morte nos cemitérios sofre alterações, inicialmente as campas e as lápides apenas fazem referência ao nome e às datas de nascimento e da morte, no final do século XIX começam a aparecer os jazigos familiares, que estavam repletos de simbologia, que serão alvo do nosso estudo. No cemitério de Salvaterra de Magos, a exemplo do que se passava nos cemitérios das regiões do Ribatejo e do Alentejo, os jazigos datados do final do século XIX, início do séc. XX, eram para as elites locais, ou seja os grandes terratenentes da lezíria ribatejana, que pretendiam perpetuar a sua memória familiar, mas ao mesmo tempo reafirmar o seu estatuto na sociedade local. Os cemitérios possuíam a função 14

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Figura 5 - Bilhete de enterramento (1897)

A .H.M.S.M. – Acta da Sessão ordinária do dia 27 de Julho de 1891, fl. 190

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Magos de distinção na comunidade local, a integração Jazigo de Porfírio Neves da Silva num grupo de elite e a perenidade da família.15 Os lugares que escolheram para os jazigos fa- e sua família (fig. 6 e 7) miliares, estão estrategicamente localizados à Porfírio Neves da Silva, foi um proeminente entrada, quem entra no cemitério encontra a lavrador de Salvaterra de Magos, ocupou o principal artéria ladeada de jazigos familiares cargo de Presidente da Câmara Municipal de dos lavradores e comerciantes locais. Salvaterra de Magos, entre 1903 – 1910. Os jazigos familiares nos cemitérios portugueses deste período, finais do século XIX, seguem a mesma linha de inspiração artística e o mesmo movimento que influencia os cemitérios europeus - o movimento romântico. Os jazigos estão decorados com motivos vários, onde se encontram elementos de afetividade, a relação do homem com a vida e a morte e também símbolos associados à vida social e económica.

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Em Salvaterra de Magos, o nosso estudo abrange os seguintes jazigos: - Jazigo de Porfírio Neves da Silva e sua família - Jazigo de José Vicente da Costa e sua família - Jazigo de João António Fernandes e sua família - Jazigo de Joaquim Pedro da Costa Freire e sua família - Jazigo de Manoel Ferreira Estudante e sua família - Jazigo da Família Roberto - Jazigo de Pedro da Silva Lapa e sua família Fig. 6 - Jazigo de Porfirio Neves da Silva

Hélder Adegar Fonseca, As elites económicas alentejanas, 1850 – 1870: Anatomia social e empresarial, in Análise Social, Vol. XXXI, n.º 136 – 137, ano 1996, p. 729 15

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encontra-se o símbolo da casa agrícola com a letra S = Silva. Por cima dos motivos agrícolas está o bastão de caduceu, é um bastão entrelaçado com duas serpentes, e na parte superior duas pequenas asas e um elmo. Segundo os romanos, este bastão é símbolo de equilíbrio moral e boa conduta, as serpentes significam sabedoria, as asas a diligência e o elmo é emblema de pensamentos elevados. Nas laterais do jazigo uma tocha invertida, significa a interrupção da vida. Por fim na parte de cima do jazigo, um fogaréu em cada lado com chamas, significam a chama a subir ao céu, representam o impulso para a espiritualização.

Jazigo de José Vicente da Costa e sua família (fig. 8)

Fig. 7 - Jazigo de Porfirio Neves da Silva

O seu jazigo possui simbologia ligada à agricultura é possível ver na fachada, várias alfaias agrícolas, nomeadamente uma grade, um arado, uma pá, um forcado, no centro destes motivos

José Vicente da Costa foi um lavrador de Salvaterra de Magos, e no frontão do seu jazigo está uma grinalda de flores, é um entrelaçamento de flores e folhas formando um círculo como se fosse uma coroa. Na linguagem tumular significa o triunfo da vida sobre a morte, e que a pessoa atingiu um certo destaque em vida. Nas paredes laterais, em cada lado a iconografia de um anjo, que simbolicamente são os mensageiros de Deus, e protegem o defunto e acompanham a sua alma até ao céu. Por fim o jazigo termina com dois fogaréus, que representam o impulso para a espiritualização.

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Magos laterais do anjo estão dois fogaréus, que traduzem o impulso para a espiritualização, tal como acontece no jazigo de Porfírio Neves da Silva e de José Vicente da Costa.

Fig. 8 - Jazigo de José Vicente da Costa

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Jazigo de João António Fernandes e sua família (fig.9) João António Fernandes foi um proprietário agrícola de Salvaterra de Magos, e no seu jazigo é visível um conjunto de objetos que simbolizam a sua ligação à agricultura, encontrámos uma grade, um arado, uma pá, um forcado, em baixo destes objetos uma foice. No meio destas peças agrícolas encontra-se o bastão de caduceu, cuja simbologia já foi mencionado no jazigo de Porfírio Neves da Silva. Na parte de cima do jazigo é visível um anjo com uma cruz, que tem a função de proteger o defunto e o acompanhar até ao céu, e nas

Fig.9 - Jazigo de João António Fernandes

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Jazigo de Joaquim Pedro da Costa Freire e sua família (fig. 10 e 11) A família Costa Freire é de linhagem bem antiga, remonta ao século XVIII, a 1749 quando é passada carta real a José dos Santos Freire. O Jazigo tem no frontão uma grinalda de flores, cuja função já foi explicada no jazigo de José Vicente da Costa, e culmina com um fogaréu de cada lado. Fig. 11 - Jazigo da Familia Freire

106 Jazigo de Manoel Ferreira Estudante e sua família (fig. 12)

Fig. 10 - Jazigo da Familia Freire

Como figura de destaque neste jazigo surge uma ampulheta alada, ou seja com asas. A ampulheta significa que o tempo vai passando, representada com asas significa que o tempo voa. É uma advertência aos vivos que o seu tempo está a contar. A ampulheta está cruzada com uma tocha invertida, que representa a morte, e com uma gadanha, símbolo também associado à morte.

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Magos Magos a vários praças de toiros. Destaca-se as esfinges dos Irmãos Roberto e por baixo, estão objetos associados à lavoura: uma grade, uma charrua, um forcado e uma pá de eira, reafirmam o estatuto de importantes lavradores. Nas laterais do jazigo duas tochas invertidas, simbolizam a morte.

107 Fig. 12 - Jazigo de Manuel Ferreira Estudante

Jazigo da Família Roberto (fig 13 e 14) Os Irmãos Roberto: Vicente Roberto e Roberto da Fonseca foram gloriosas figuras do toureio nacional do séc. XIX. No seu jazigo familiar consta símbolos associados à tauromaquia, o jazigo tem uma montera de toureio, por baixo uma cabeça de toiro, que é cruzada com farpas, um capote e um estoque, que revelam a atividade tauromáquicas destes toureiros que levaram o nome de Salvaterra de

Fig 13 - Jazigo dos Irmãos Roberto

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Jazigo de Pedro da Silva Lapa e sua família (fig. 15) Pedro da Silva Lapa foi um lavrador de Salvaterra de Magos, no seu jazigo destaca-se a grinalda de flores, cujo simbolismo já foi explicado nos jazigos da família Freire e José Vicente da Costa.

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Fig 14 - Jazigo dos Irmãos Roberto

Fig 15 - Jazigo de Familia Pedro Lapa e Familia

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Magos 5 | Conclusão A morte desde sempre foi um foco de atração do Homem, por ser uma circunstância rodeada de mistério e incerteza, existem várias crenças em diversas culturas e tempos históricos que acreditam na vida após a morte, e há quem defenda o contrário, que não há nada depois da morte. Os jazigos no cemitério de Salvaterra de Magos, são locais de imortalidade onde se procurou perpetuar a memória dos defuntos e seus familiares, assumem um sinónimo de estatuto

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social dos grandes lavradores e comerciantes de Salvaterra de Magos, devido à sua localização no cemitério estão logo à entrada para serem vistos e estão impregnados de simbolismo que revelam aspetos associados à morte, mas também à profissão que desempenhavam enquanto seres vivos. Os cemitérios estão associados à tristeza e a uma certa morbidez, mas também são locais de memórias e de interesse histórico pelas informações que nos podem dar e contribuir desta forma para a divulgação da história local.

Bibliografia - ARNAUD, José Morais, Os concheiros mesolíticos do Vale do Tejo, Lisboa, Instituto Português do Património Cultural / Departamento de Arqueologia, 1987, p. 20 - Estudos de Arqueologia no Concelho de Salvaterra de Magos, GAP – Gabinete de Apoio Técnico de Salvaterra de Magos, Coruche e Benavente, 1981 (documento policopiado) - FONSECA, Hélder Adegar, As elites económicas alentejanas, 1850 – 1870: Anatomia social e empresarial, in Análise Social, Vol. XXXI, n.º 136 – 137, 1996 - SANTOS, Maria José Miranda, A arquitectura funerária no cemitério dos Capuchos em Santarém, In Techne, n.º 5, Tomar, Arqueojovem, 1998

Arquivo Histórico Municipal de Salvaterra de Magos - A.H.M.S.M. – Livro de Registos 1802 / 1856 - A.H.M.S.M. – Livro de Actas 1863 - 1875 - A.H.M.S.M. – Livro de Actas 1875 - 1884 - A.H.M.S.M. – Livro de Actas – 1884 - 1892 Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Recursos da internet - Universidade de Lisboa, Faculdade de Direito, Legislação on line, disponível em www.net.fd.ul. pt/legis/1835 (consultado a 22-06-2015) - PIMENTA, João, MENDES, Henrique, 1.ª Campanha de escavações arqueológicas no povoado pré-romano do Porto de Sabugueiro. Muge, In Cira Arqueologia II, ano, disponível em: http:// www.cm-vfxira.pt/files/3/documentos/20130917160636439070.pdf, (consultado a 02-06-2015)

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Imagens de Salvaterra de Magos vistas pela lente de Carlos Relvas

Nuno Prates nuno.prates@cm-alpiarca.pt nunooliveiraprates@sapo.pt

Conservador da Casa dos Patudos - Museu de Alpiarรงa

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Imagens de Salvaterra de Magos vistas pela lente de Carlos Relvas

Resumo

No Arquivo Histórico da Casa dos PatudosMuseu de Alpiarça existem cinco fotografias da autoria de Carlos de Mascarenhas Relvas, que retratam Salvaterra de Magos no século XIX, quatro delas dedicadas à Festa Brava e outra representando um aspecto do Cais da Vala. A fotografia aparece-nos assim como uma fonte importante para o estudo e compreensão da História Local. O legado fotográfico da família Relvas no Ribatejo, dá-nos a conhecer o património artístico, cultural, natural e etnográfico do território onde está inserido, assim como são importantes documentos históricos para um melhor conhecimento da nossa região, no Século XIX. Palavras - Chave: Salvaterra de Magos; Fotografia; Carlos Relvas; Património Cultural e História Local.

Introdução A Casa dos Patudos é um museu de tutela municipal que tem por finalidade, de acordo com a vontade expressa em testamento, por José Relvas (1858-1929)1, preservar e valorizar a sua colecção de arte, a sua biblioteca e o seu arquivo documental e fotográfico. Este é constituído

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por cerca de cinco mil fotografias do século XIX e inícios do século XX, que relatam importantes testemunhos históricos do período cronológico anteriormente referido, realizadas por Carlos Relvas, Margarida Relvas Navarro, José Relvas, Carlos de Loureiro Relvas e Mariana Relvas. Actualmente, o tema da preservação do nosso legado patrimonial tem vindo a ser bastante debatido, não apenas no meio académico, mas também pela sociedade em geral. No que diz respeito à colecção de fotografias de José Relvas, muitas não nos foi possível determinar o autor, no entanto foi possível identificar vinte e dois fotógrafos e ateliers de fotografia, incluindo os fotógrafos da família Relvas. Devemos destacar ainda o facto de que a sua proveniência, para além dos fotógrafos da família, outras foram adquiridas e algumas dezenas delas enviadas a José Relvas e reproduzem obras de arte, relacionando-se com a sua actividade enquanto coleccionador. Quanto à temática o mais frequente é o retrato, mas aparecem-nos também muitas fotografias de paisagem e património. Dos milhares de fotografias do Arquivo Histórico da Casa dos Patudos-Museu de Alpiarça existem cinco fotografias da autoria de Carlos de Mascarenhas Relvas, pai do proprietário da

José de Mascarenhas Relvas, nasceu na Golegã no dia 05 de Março de 1858 e faleceu em Alpiarça, em 31 de Outubro de 1929. Viveu nos Patudos desde os finais do século XIX até à sua morte. Político, diplomata, estadista, agricultor, coleccionador e amante da arte, músico amador e sobretudo um homem de gosto apurado e ecléctico. 1

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Casa dos Patudos, que retratam Salvaterra de Magos no século XIX, quatro delas dedicadas à Festa Brava, actividade que também estava ligado, pois foi um importante cavaleiro tauromáquico do seu tempo, e outra representando um aspecto do Cais da Vala. A Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça possui um importante espólio de obras de arte, destacando-se sobretudo as pinturas da autoria dos grandes mestres da pintura portuguesa dos séculos XIX e XX. A Casa dos Patudos vive essencialmente das suas colecções artísticas, com incidência na arte portuguesa e nasceu por vontade de José Relvas, que manifestou, várias vezes, a necessidade de mostrar o que se fazia de melhor ao nível das Belas Artes e Artes Decorativas. Assim, encomendou ao Arquitecto Raul Lino, um projecto que contemplasse espaços dignos para apreciar a colecção e, ao mesmo tempo, fosse residência familiar. A residência que hoje constitui a Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça resulta da transformação e ampliação do edifício original, encomendado em 1903 ao jovem arquitecto Raul Lino. Longe da zona de intervenção do arquitecto, que sempre esteve mais ligado às proximidades de Lisboa, ao Estoril ou a Sintra, esta residência construída em Alpiarça, segue um padrão que tem, desde logo que ver com uma paisagem de características diferentes, rodeada pela lezíria que a envolve, com toda aquela força e imensidão.

Carlos Relvas e o seu Legado fotográfico. Carlos Augusto de Mascarenhas Relvas de Campos nasceu na Golegã, na Quinta do Outeiro, em 13 Novembro de 1838, além de fotógrafo, foi ainda político e lavrador, criador de cavalos e cavaleiro tauromáquico, inventor, e músico. Foi um abastado proprietário agrícola, exímio cavaleiro e toureiro amador, atirador de pistola e de carabina e jogador de pau, de florete e de sabre, ficou especialmente conhecido, no país e no estrangeiro, pela sua actividade como fotógrafo amador. Ainda muito jovem, Carlos Relvas casa em 1853 com Margarida Mendes de Azevedo, filha dos Condes de Podentes, da região de Condeixa-a-Nova. Do casamento de Carlos Relvas com D. Margarida Amália nasceram cinco filhos: Francisco que foi encontrado morto, tinha à época vinte anos, Clementina, José, Liberata que morre com menos de um ano e Margarida, que também se destaca enquanto fotógrafa amadora. Desempenhou Carlos Relvas um papel de relevo na fotografia em Portugal pois como fotógrafo amador, muitos foram os trabalhos por ele realizados, chegando mesmo a ser fotógrafo da Casa Real. Ao assistir a um naufrágio na Barra do Douro, decide inventar um barco salva-vidas e como cavaleiro tauromáquico inventa uma sela que ainda hoje é conhecida e que tem o seu nome,

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Imagens de Salvaterra de Magos vistas pela lente de Carlos Relvas

é conhecida por Sela à Relvas. Homem influente na vida política é por sua influência que a Comarca que tinha sede na Chamusca passa para a Golegã. Carlos Relvas recebe a Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e devido à sua influência junto da Casa Real consegue dar à Golegã um grande destaque para a época. Com a morte da sua esposa em 1887, volta a casar um ano mais tarde com Mariana Pinto Correia, decisão que não foi bem aceite pelos filhos. A sua Casa - Estúdio, situada no jardim da Quinta do Outeiro, foi um projecto ousado e meticulosamente concebido, pioneiro de uma arquitectura de mudança que numa harmonia perfeita conjugava a arte e a tecnologia em pedra, estuque, ferro e vidro. O projecto da autoria do arquitecto Henrique Carlos Afonso, demora cerca de quatro anos a ser construída, sendo acompanhado de perto sempre por Carlos Relvas. O edifício com uma estrutura em ferro é composto por dois pisos, encontrase hoje como seria à época, o que lhe confere uma certa monumentalidade. O Estúdio é adaptado para casa depois do segundo casamento. É aqui, na sua habitação adaptada que Carlos Relvas vai viver até à data de sua morte, 23 de Janeiro de 1894, vítima de uma septicemia contraída após um acidente a cavalo, nas ruas da Golegã. Carlos Relvas deixou um singular património de imagens que o consagram como um artista de excelência, mas também a peculiar obra da Casa – Estúdio da Golegã.

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A Casa – Estúdio, na Golegã, foi residência de Carlos de Mascarenhas Relvas, uma das figuras fulcrais da fotografia em Portugal, com uma obra distinguida e premiada internacionalmente. Em 1978, foi doada à Câmara Municipal da Golegã por Maria Pimenta Amália Pinto Correia da Câmara Pina, filha de Mariana Pino Correia, segunda esposa de Carlos Relvas. A Casa – Estúdio Carlos Relvas é tutelada pela Câmara Municipal da Golegã, em 2003 foi alvo de um projecto de reabilitação e restauro, mas continua com a sua traça original. Assume-se como um monumento ímpar de um período heróico da História da Fotografia, aberto ao público desde 2006.

A paixão pela Fotografia A arte fotográfica foi a sua grande paixão, a par com a que nutria pela arte tauromáquica. É no início dos anos sessenta do século XIX, que Carlos Relvas começa a despertar interesse para a área da fotografia. Encantado com a nova arte, começa a adquirir livros e revistas sobre a temática, mantendo-se assim ao corrente da sua evolução. Começa então a adquirir as suas primeiras máquinas e monta um atelier de fotografia no seu jardim. Carlos Relvas destacou-se no mundo da fotografia, tendo sido um grande retratista, fotografou no seu estúdio toda a sociedade portuguesa, desde camponesas e mendigos até à aristocracia. Fotografou também paisagens e monumentos por todo o país e no estrangeiro,

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Magos onde o seu contributo é espantoso. O artista fotografa no país e no estrangeiro, principalmente depois do seu segundo casamento com Mariana Pinto Correia, sua colaboradora. São frequentes os temas de paisagens, principalmente da região ribatejana, Golegã, Santarém, Vale de Santarém e Salvaterra de Magos são locais que fotografa. O que o seduzia na região ribatejana era a grande diversidade geográfica, a beleza que está nas paisagens, desde as extensas planuras dos campos verdes da Lezíria, onde se encontravam os touros e os cavalos a pastarem nos férteis vales, mas também os terrenos acidentados e as serras, e as características terrenas, em parte incultas, onde predominavam os sobreiros.

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Fig.1 - Salvaterra de Magos - Cais da Vala

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Visita Salvaterra de Magos com alguma assiduidade, onde tinha amigos, principalmente os toureiros irmãos Robertos, é numa dessas idas a Salvaterra que fotografa o Cais da Vala. Encontra uma localidade que perdera a importância doutros tempos, em que o Paço e o Palácio da Falcoaria Real entram em decadência. Destaca-se mesmo o facto de, a rainha D. Maria II, a 10 de Setembro de 1849 autorizar a cedência ao Estado de todos prédios dependentes do Almoxarifado de Salvaterra de Magos. Assiste-se à venda em hasta pública do Paço, à excepção da Capela Real que foi conservada pelo Estado. Carlos Relvas continua a viajar pela região centro do país e fotografa os principais monumentos portugueses. Começa a enviar as suas fotografias para os mais conceituados peritos franceses e vê-se admitido em 1869 como membro da prestigiada2 Sociedade Francesa da Fotografia. A partir de 1875 com o importante contributo do seu assistente e técnico Augusto dos Santos Fonseca Xavier (1839-1930), com ele partilhava o gosto e a aventura da fotografia. Com uma vida repleta de diversas actividades, o fotógrafo amador, como se intitulava (amador porque amava a arte de fotografar), vê na fotografia a sua grande paixão. Impulsiona novas tecnologias, como a invenção de um aparelho para facilitar as focagens, aplica a fotografia

LOURENÇO, Elsa (Cord.), 2006, Carlos Relvas e a sua Casa – Estúdio,Golegã, Câmara Municipal da Golegã.

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Imagens de Salvaterra de Magos vistas pela lente de Carlos Relvas

estereoscópica, e introduz e divulga em Portugal o método da fototipia. O reconhecimento do seu trabalho é cada vez maior, a sociedade do seu tempo reconhece-o como um grande artista. O êxito obtido é tanto que o leva a projectar um novo e ambicioso empreendimento: um estúdio especificamente destinado ao desenvolvimento da arte fotográfica, concluída em 1876 e transformado mais tarde em Casa -Estúdio. No ano de 1882 organiza-se uma exposição retrospectiva da Arte Ornamental produzida em Portugal até ao final do século XVIII, reunindo no Palácio do Marquês de Pombal cerca de 4.000 peças oriundas de colecções públicas e privadas tanto de Portugal como do estrangeiro. A comissão organizadora quer reunir em álbum as imagens dos vários objectos que no final teriam de ser novamente dispersos. Carlos Relvas entusiasma-se com a ideia e constrói nos jardins um atelier para a realização da tarefa e durante vinte dias realiza os quinhentos e doze clichés de que foi composta a obra. Como forma de desligar a ideia de qualquer interesse pessoal no trabalho doou todo o lucro do trabalho à Misericórdia e Montepio Popular da Golegã. No entanto, Carlos Relvas também tinha um grande apreço em fotografar animais, sendo o seu trabalho essencial para o estudo da tourada. Destaca-se pela sua arte como cavaleiro e toureiro amador, obtendo vários êxitos na área tauromáquica, chegando mesmo a ter uma praça de touros privada na Golegã. Carlos Relvas

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Fig. 2 – Carlos Relvas montando o Salero numa praça de touros, José Malhoa, óleo sobre tela, 1887, Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça

era um homem sempre à descoberta de novas invenções, com uma curiosidade interminável, coloca todas as suas facetas sobretudo ao serviço da fotografia. Em 1892, em Salvaterra de Magos fotografa uma tourada na Praça de Touros da vila, pelo menos faz quatro fotografias destacando as cortesias e os touros, os touros do Seabra. Aliava aqui o seu papel de fotógrafo e de toureiro, pois ao fotografar os animais e os vários aspectos da lide poderia aperfeiçoar a sua arte, enquanto cavaleiro tauromáquico. As notícias da época dão-nos informações sobre grandes

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Magos triunfos, com o seu cavalo Salero. Para homenagear o cavalo com o qual triunfou na tourada oferecida aos reis de Espanha, encomenda dois retratos do seu cavalo preferido ao pintor José Malhoa.

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Fig. 3 - Cortesias – Praça de Touros de Salvaterra de Magos, 1892

Fig. 4 – Cortesias - Praça de Touros de Salvaterra de Magos, 1892

Fig. 5 - Praça de Touros de Salvaterra de Magos, 1892

Fig. 4 – Cortesias - Praça de Touros de Salvaterra de Magos, 1892

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Notas Finais Como considerações finais, salientamos a importância e autenticidade deste legado. Carlos Relvas deixou-nos uma obra de grande valor, não só pelo acervo legado mas sobretudo pela memória do que representa para a História de Portugal, para a História da Fotografia e principalmente pelo registo de imagens de várias regiões do país e estrangeiro. O retratista saía com frequência do seu estúdio e através da sua lente viu um Portugal intimamente ligado à ruralidade, aos seus usos e costumes. Será para sempre lembrado como o pioneiro da fotografia em Portugal, um homem culto, grande fidalgo da época. Destacou-se também

nas artes de tourear e nas tecnologias, com a inovação do bote salvas vidas, o Sempre em pé, em 1883. Certamente fez outros registos de Salvaterra de Magos, mas baseamos o nosso estudo nas cinco fotografias existentes no Arquivo Histórico da Casa dos Patudos-Museu de Alpiarça, que para além de fotografias tem também um conjunto importante de documentação sobre a família Relvas e o tempo em que viveram. O legado fotográfico da família Relvas no Ribatejo, dá-nos assim a conhecer o património artístico, cultural, natural e etnográfico de toda a região ribatejana.

Bibliografia BARTHOLO, Maria de Lurdes, 1982, Casa dos Patudos (Solar de José Relvas). Roteiro, (3ª ed.), Alpiarça, s.n. FALCÃO, José António (dir.), 2006, Filhos do Sol, Filhos da Lua – Aspectos da Criação de Gado Bovino e da Tauromaquia na Casa dos Patudos, Alpiarça, Casa dos Patudos – Museu de Alpiarça. NORAS, José Raimundo, 2009, José Relvas (1858-1929). Fotobiografia, Leiria, Imagens& Letras. LOURENÇO, Elsa (Cord.), 2006, Carlos Relvas e a sua Casa – Estúdio, Golegã, Câmara Municipal da Golegã. QUEIROZ, José, 1916, Casas de Portugal. A casa dos Patudos, Terra Portuguesa. PRATES, Nuno, 1997, Informação Histórica sobre José Relvas, in Voz de Alpiarça. PRATES, Nuno, 2013, Representações de campinos na colecção de arte da Casa dos PatudosMuseu de Alpiarça, O Campino imaginários de uma identidade, representações nas Artes Visuais portuguesas (Catálogo da exposição), pp. 51-59. Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos

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O Palรกcio de Salvaterra de Magos e a sua iconografia. Aline Gallasch-Hall de Beuvink* hall.aline@gmail.com Professora Auxiliar da Universidade Autรณnoma de Lisboa *A autora nรฃo segue o Acordo Ortogrรกfico de 1990. Salvaterra de Magos | n.ยบ2 | Ano: 2015


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O Palácio de Salvaterra de Magos e a sua iconografia.

Introdução Embora o conceito de cripto-história da arte1 tenha surgido, no contexto historiográfico português, apenas a partir do final dos anos 902 do século XX, na prática já se efectuavam estudos de recuperação de memória de edifícios e de outras obras de arte, entretanto desaparecidos. Em relação ao palácio de Salvaterra de Magos, o principal trabalho que projecta este conceito e recupera a sua memória, de suma importância e incontornável, é a publicação de Natália Correia Guedes e Joaquim Manuel da Silva Correia3. Esta obra tornou-se um marco na historiografia deste conjunto ribatejano formado pelo paço, o seu teatro de ópera e a falcoaria, sendo sempre referenciado por todos os estudos parcelares que têm sido efectuados desde então. Muitos outros trabalhos, alguns anteriores mas também importantes, irão sendo mencionados ao longo deste artigo.

O presente trabalho foi baseado numa pequena parte da nossa dissertação de Doutoramento, que teve o apoio de uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnlogia (FCT) e fruto de uma investigação de cerca de 8 anos4.

A cripto-história da arte reflecte sobre o património artístico material que não sobreviveu ao tempo ou à incúria, tendo desaparecido mas que, no seu tempo de existência, tenha sido um importante testemunho em termos artísticos, históricos, políticos, ideológicos e, obviamente, estéticos. É uma vertente da História da Arte que tenta, assim, recuperar e estudar esses testemunhos, de forma quase detectivesca, mas importante para uma maior compreensão dos processos evolutivos histórico-estéticos. 2 SERRÃO, Vítor, A Cripto-História de Arte. Análise de Obras de Arte inexistentes, 1ª edição, Lisboa, Livros Horizonte, 2001. Esta edição, bem como as aulas e as apresentações em diversas conferências que o autor realizou sobre esta matéria desde o final do século XX, permitiram a introdução deste conceito e o seu desenvolvimento no vocabulário e na investigação académica. 3 GUEDES, Natália Correia e CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, O Paço Real de Salvaterra de Magos: a corte, a ópera, a falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989. 4 BEUVINK, Aline Gallasch-Hall de, A cenografia e a ópera em Portugal no século XVIII. Os teatros régios, 1750-1793, dissertação de Doutoramento em História apresentada na Universidade de Évora, 2012, orientação de Fátim a Nunes e Rui Vieira Nery. 1

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Magos 1 | Pequena resenha histórica

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O palácio de Salvaterra de Magos já existia, pelo menos, desde 1383, como indica a referência sobejamente conhecida do casamento da infanta D. Beatriz (1373-1412?) com o rei D. João I de Castela (1358-1390)5. Teria dignidade suficiente para albergar figuras ilustres que normalmente presenciam um casamento real: não só os reis de Portugal à época (D. Fernando I e D. Leonor Telles), como embaixadores, eclesiásticos e nobres. Não se sabe, ainda, qual a data de início de construção do Paço, conhecendo-se, apenas, a data em que D. Dinis autorgou o foral à vila de Salvaterra: 1295. A vila de Salvaterra ficou sob a posse de vários beneficiários ao longo da Baixa Idade Média e alvores do Renascimento. Em 1429, o infante D. Fernando (1402-1443) recebeu “graça e mercê da vila”; no ano de 1507, o rei D. Manuel I (1469-1521) concede a um neto do rei D. Duarte (1391-1438), D. Nuno, os direitos e rendas de Salvaterra, que passaram para o seu filho, D. Fradique Manuel, em 1534. Em 1542, este último acabou por ceder os seus direitos ao Duque de Beja, filho de D. Manuel I, o infante D. Luís (1506-1555), a pedido de D. João III6.

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Fig. 1 - Planta do palácio de Salvaterra de Magos em 1788, s.a. Apud, GUEDES, Natália Correia e CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, O Paço Real de Salvaterra de Magos: a Corte, a Ópera, a Falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989, p. 33, Arquivo Histórico do Ministério das Finanças. De salientar as novas cavalariças que foram construídas ainda mais a nascente da Fachada Este, representada pelo desenho da fig. 3, e que ainda não existiam, o que poderá justificar a eliminação das antigas cavalariças que existiam adstritas ao palácio e que foram eliminadas para a construção do teatro, em 1752.

GUEDES, Natália Correia e CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, op.cit., p. 11. Resenha baseada nas informações de GUEDES, Natália Correia e CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, op.cit., p. 11-12.

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O Palácio de Salvaterra de Magos e a sua iconografia.

Foi durante o período que esteve sob o domínio deste infante que o paço terá começado a prosperar arquitectonicamente. Atribui-se-lhe a construção do mesmo (terá sido, tão somente, obras de ampliação do paço medieval), sob a orientação do arquitecto e mestre de obras dos paços reais, Miguel de Arruda (?-1563)7. Deverá ser deste período a traça classicista vitruviana que podemos descortinar nos desenhos originais representativos das fachadas do paço e que terão sido mantidas até ao século XVIII no seu essencial. D. António Prior do Crato (1531-1595), filho do infante, foi o herdeiro natural deste paço, que acabou por reverter para a Casa Real, tendo nele ainda trabalhado o arquitecto António Mendes (de 1565 em diante), a mando de D. Sebastião (1554-1578). Pela importância que, nesta altura, o paço de Salvaterra adquirira, Filipe I (1527-1598) não deixa de lhe dar continuidade nas obras, chamando

para isso Baltazar Álvares (1560-1630)8, logo nos primeiros anos de domínio em Portugal, em 1581. Manteve-se o interesse por este paço, como as obras que prosseguiram, em 1631, com Mateus do Couto (1630?1696) e Atanásio Barroso, poderão atestar9. O período de ouro do palácio de Salvaterra terá sido, no entanto, o século XVIII. Entre 1734 e 1747, foi responsável o arquitecto régio e mestre de obras nos paços reais, Custódio Vieira (1690?-1747), sendo substituído por Carlos Mardel (1696-1763) nesse mesmo ano, até à data de sua morte10.

GUEDES, Natália Correia e CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, op.cit., p. 15. GUEDES, Natália Correia e CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, op.cit., p. 16; VITERBO, Sousa, Dicionário Histórico e Documental dos arquitectos engenheiros e construtores portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, vol. I, pp. 15-17. 9 GUEDES, Natália Correia e CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, op .cit., p. 25; VITERBO, Sousa, op. cit, vol. I, p. 521 e 546. 10 VITERBO, Sousa, op. cit, vol. II, p. 133. 7 8

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O Terramoto de 1755 fez consideráveis estragos, consertados por João Pedro Ludovice (1701-1760) e Carlos Mardel, mas desconhecese a extensão dessas obras de reparação. Apenas sabe-se que o paço antigo fora ampliado, ainda antes do cataclismo, conforme indicação das plantas (fig. 2), chamado de “Paço Novo”, que incluíam a casa da Ópera, de Sicinio Bibiena (1752-53), novas cozinhas e cavalariças. Ainda no final do reinado de D. José, mais precisamente em 1775, um novo picadeiro é construído, sob o risco de Petronio Mazzoni, maquinista dos teatros régios, bolonhês, radicado em Portugal desde o início do reinado josefino. O declíno do paço começa a sentir-se no final do reinado de D. Maria I, tendo sido praticamente abandonado quando a Família Real e a corte se deslocam para o Brasil, em 1807. Sucessivos incêndios, incúria e desleixo – culpando-se, no início do século XIX, a má acção do almoxarife José dos Santos Freire da Costa Carneiro11 serviram para esse destino fatal. Ainda houve uma tentativa, em 1827, de se evitar o seu

desaparecimento através de “concertos indispensáveis para a conservação do edifício”12. O desmembramento do palácio ocorreu em 1849, após a autorização da rainha D. Maria II (1819-1853) para ser vendido, em hasta pública, o que sobrara do antigo formoso palácio e suas dependências, tendo ficado na posse do Estado, somente, a capela real e a falcoaria13.

Fig. 2 - Carlos Mardel (1696-1763), [Paço Real]. - 200 palmos. [S.l. : s.n.]. - 1 Desenho: ms., a tinta da china, aguarelado, color., em papel ; 1050 X 570 mm. Biblioteca do Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas - Ministério da Economia, D 120-1 C BAHOP

Para uma descrição completa do que sucedeu nos incêndios de 1815 e 1817, cf. CANEIRA, Roberto, “Incúria, degradação e demolição no património histórico e cultural de Salvaterra de Magos – do século XIX a 1912” in MAGOS, Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos, nº1, Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 2014, pp. 137151; BEUVINK, Aline Gallasch-Hall de, op.cit, pp. 63-68. Cf., também, ESTEVAM, José, Anais de Salvaterra de Magos: dados históricos desde o século XIV, Couto Martins, 1959, pp. 103-110. 12 Apud. GUEDES, Natália Correia e , op.cit., p. 28. 13 GUEDES, Natália Correia e , op.cit., p. 28; CANEIRA, Roberto, op.cit, pp. 143-144. Contudo, José Rodrigues GAMEIRO, na obra Salvaterra de Magos, uma vila histórica no coração do Ribatejo (3ª edição, Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 2014, p. 32) afirma que, em entrevista durante os anos 60 a algumas pessoas idosas de Salvaterra, estas afirmaram terem presenciado, no início do século XX, à destruição das últimas paredes do teatro que estavam de pé, através de fogo, para se reutilizarem as pedras na construção de uma adega. 11

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O Palácio de Salvaterra de Magos e a sua iconografia.

2 | A iconografia conhecida. Desconhece-se, assim, como terá sido a construção original do palácio de Salvaterra de Magos, a sua aparência medieval ou o seu inaugural arquitecto. Os únicos testemunhos visuais que chegaram até nós são datados da primeira metade do século XVIII, o que torna este estudo extremamente circunscrito temporalmente. Mas, na realidade, nenhum outro vestígio foi encontrado ou dado a conhecer e, com a infelicidade do desaparecimento do próprio edifício, a sua fiel reconstrução não é possível com os parcos dados que temos. Segundo o estudo de Natália Correia Guedes, pela planta desenhada por Carlos Mardel do palácio, foi possível lançar luz nas suas diferentes fases de construção14, mas apenas de forma conjectural. Contudo, a iconografia setecentista subsistente parece comprovar o estudo de Correia Guedes e Silva Correia, pois demonstra-nos uma linguagem estética da estrutura palaciana plenamente renascentista e que deverá datar do período de obras do infante D. Luís (1506-1555), considerado o primeiro período de verdadeira importância deste paço15.

grupo das verdadeiras fontes – e as recriações feitas a partir do último.

2.1 | Elementos iconográficos coevos subsistentes.

A única imagem que se conhecia do período em que o palácio ainda existia era a de um exvoto, realizado em 1746 e que estava pendurado numa parede da Capela Real16. Pela legenda que consta da pintura, esse ex-voto celebra a recuperação miraculosa de uma criança, Júlia, filha de Francisco Xavier Pinto, que caíu junto à fonte da horta real (de livre acesso, situada anexa ao palácio). Um trabalhador do paço, de seu nome António Ferreira, acudiu ao ouvir os gritos da mãe que segurava a criança, aparentemente falecida. Desesperados, colocaram-na no altar da Senhora da Piedade, na Capela Real e, miraculosamente, a criança começou a chorar17. Ora, é este acontecimento retratado no ex-voto, ilustrado e legendado, único registo da época que se julgara ter chegado até nós e que, fortunadamente, representava uma fachaPara abordarmos esta parte do tema, resolve- da do palácio. Este foi, então, o modelo para mos dividir o tópico em dois blocos: a icono- o outro grupo de representações deste paço, desaparecido, como vimos, no século XIX. grafia da época – que constituirá, no fundo, o GUEDES, Natália Correia e CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, op.cit, p. 32. Idem, pp. 14-16. 16 ESTEVAM, José, op.cit, p. 110. 17 Idem. 14 15

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Outros dados fundamentais para o conhecimento mais alargado deste palácio são, sem dúvida, as plantas que se encontram no Arquivo Histórico do Ministério das Finanças (AHMF18 e no Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas (AHMOP) , apresentados neste artigo como figuras 1 e 2, respectivamente. No decorrer das nossas investigações para a dissertação de Doutoramento, encontramos um desenho inédito da fachada nascente do palácio, realizado sob o traço de Carlos Mardel (fig. 3), onde é visível a sua assinatura, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ). Supomos que este desenho deverá datar do seu período de actividade nas remodelações do palácio (1747-1763)19. Este desenho ainda mostra a indicação preciosa para a futura construção do teatro de Salvaterra, o que ajudará a reforçar a data de 1752 para a sua realização20.

Este testemunho ajuda ainda a confirmar a ideia de que alguns palácios régios teriam a coloração azul-acinzentada no seu exterior, pelo menos no período setecentista português, como o recente caso do palácio de Queluz poderá confirmar21. Em ambas representações setecentistas, o edifício do palácio apresenta a mesma estrutura: um corpo central de três pisos com torreões a ladearem-no. No primeiro piso, térreo, abre-se uma arcaria de três arcos de volta-inteira, assentes em quatro pilastras quadrangulares de capitel simples, aparentemente de ordem toscana. No segundo piso, assentando-lhe uma loggia sobre o primeiro, erguem-se quatro colunas de capitel jónico, com portadas rectangulares ritmadas por entre os espaços dados pelas colunas, num estilo depurado de tradição nacional, com um programa arquitectónico simples.

O primeiro, presentemente, integrado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e o segundo sob a tutela do Ministério da Economia. 19 Cf. GUEDES, Natália Correia e CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, op.cit., pp. 26-28. Sobre este desenho e a sua datação mais precisa, bem como o seu papel na relocalização do teatro de ópera realizado por Giovanni Carlo Sicinio Bibiena (1717-1760), ver BEUVINK, Aline Gallasch-Hall de, op.cit, pp 77-90. 20 Sobre a importância deste desenho e sobre a história do teatro de Salvaterra de Magos, ver BEUVINK, Aline Gallasch-Hall de, O teatro de Salvaterra de Magos e a sua importância no panorama da ópera e da arquitectura setecentistas portuguesas, no prelo. 21 Devido a investigações sobre a pintura e as paredes exteriores do palácio nos últimos anos, foi possível recuperar o tom original da pintura das fachadas do palácio de Queluz, que está a ser reutilizado numa das fachadas que dá para o jardim. Se dúvidas houvesse, bastaria consultar o desenho de toda a fachada interior do palácio, datada de 1836, que se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Casa Real, Plantas, Almoxarifado de Queluz, desenho número 310, com a legenda “Fachado do Real Paço de Queluz do lado do Jardim”. De notar o pormenor de alguns medalhões em amarelo no primeiro piso, entre os janelões, e rosa velho no piso térreo, do lado correspondente ao que é hoje chamado pavilhão D. Maria I. 18

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O Palácio de Salvaterra de Magos e a sua iconografia.

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piso. No torreão do mesmo lado, tapado pelo mais saliente, destaca-se uma chaminé – acrescento posterior, provavelmente – que corta uma das duas portadas sensivelmente a meio. Destaque para a mestria do desenho de Carlos Mardel, com a projecção das sombras (p.e., a chaminé, o torreão saliente) a coloração rosada dos telhados ou a tonalidade mais clara dos edifícios mais iluminados; a delimitação do terreno, com um declive a Norte bastante pronunciado, e que deixa perceber um forte e sólido basamento que o equilibra. E, claro, a indicação “Theatro”, na zona que foi escolhida para Sicinio Bibiena construir a “Caza da ÓpeFig. 3 - Carlos Mardel (1696-1763), “Frontaria da Parte da Nascente”, 200 palmos, s.l., s.d., desenho, lápis, tinta ferrogálica, ra” de Salvaterra. Para uma noção mais precisa, aguarelado em tons de cinza e rosa, indicação de corte de facha- uma escala em palmos é introduzida na parte da [A-A] e legenda “Theatro”. Século XVIII (1752?), em papel. inferior do desenho. Cota ARC. 35.1.12, Iconografia, Biblioteca Nacional do Rio de No desenho do ex-voto, tanto as janelas com Janeiro. As pilastras rectangulares que delimitam as as portadas e a loggia apresentam gradeamentorres que rematam o corpo principal, no piso to, o que já não se verifica no desenho de Carcentral têm capitéis jónicos, no desenho da los Mardel, salvo no torreão mencionado. BNRJ; no caso do ex-voto, apresentam-se com capitel toscano. Quanto ao terceiro piso, é apenas anunciado pela presença de janelas quadrangulares, que correm todo o corpo central, 2.2 | Recriações contemporâneas mas que não têm continuidade nos torreões Foi em 1989, com a publicação do estudo quadrangulares que ladeiam e rematam corpo mais completo até hoje feito sobre este paço22, formado pela loggia. Ainda no desenho da que apareceu a recriação mais divulgada da BNRJ poderemos ver um varandim no torreão reconstrução da fachada principal do palácio. Sul mais saliente, que corre em frente às duas Este trabalho, realizado por Manuel Arriaga portadas rectangulares ao nível do segundo (fig. 4), baseou-se no já mencionado ex-voto,

22

GUEDES, Natália Correia, op.cit

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Magos único testemunho gráfico conhecido até então. No entanto, em 1957, Alfredo Betâmio de Almeida fizera um desenho (fig. 5) da mesma fachada, publicado pelo Museu Municipal de Benavente e destribuído, em 1990, em forma de postal23. Ambos desenhos seguem a estrutura do que é apresentado no ex-voto e aplicado à fachada principal, onde a capela estava integrada. A partir destes estudos, a Câmara Municipal de Salvaterra apresentou, em modelo 3D, uma reconstituição da fachada principal do palácio, que apresenta no seu site (www.cmsm-paco -real-salvaterrademagos.blogspot.pt, consultado a 12 de Junho de 2015).

Fig. 4 - Reconstituição feita por Manuel Arriaga da fachada Poente do palácio de Salvaterra de Magos, que engloba a entrada exterior da Capela Real. Apud. GUEDES, Natália Correia e CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, O Paço Real de Salvaterra de Magos: a Corte, a Ópera, a Falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989, p. 35.

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Fig. 5 - Reconstituição da fachada Poente do palácio de Salvaterra de Magos por Alfredo Betâmio de Almeida, desenho a tinta-dachina, 1957. Museu Municipal de Benavente, 1990, postal ilustrado.

Consultado na Biblioteca Nacional de Portugal, sessão de iconografia, “Palácio de Salvaterra de Magos, cota P.I. 26645 P. 23

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O Palácio de Salvaterra de Magos e a sua iconografia.

3 | Notas Conclusivas Apesar dos estudos, bastante completos, sobre o palácio e a sua importância que vão aparecendo, a descoberta do desenho de Carlos Mardel na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro vem reforçar a ideia de que é necessário fazer uma investigação sistemática em arquivos internacionais relacionados, de alguma forma, com a História de Portugal. São vários os fundos que deverão ser trabalhados e que, com toda a certeza, encerram surpresas que poderão trazer luz e ajudar a reconstituir a vida de alguns edifícios que, apesar de hoje inexistentes. É o caso do paço real de Salvaterra de Magos, que ocupou um lugar fundamental na História

da Arte, bem como na política e nas decisões realizadas no país, entre os séculos XVI e XVIII. Seria ainda por demais importante tentar fazerse, igualmente, um levantamento dos vestígios do palácio que foram reutilizados em estruturas e construções da vila. Não numa perspectiva romântica do gosto pela ruína ou da procura pelos vestígios do passado, mas para compreender melhor o crescimento e desenvolvimento urbanísticos de Salvaterra de Magos, para além do óbvio cotejamento de uma das principais estrituras palacianas renascentistas que Portugal possuiu.

Bibliografia

Fontes

MARDEL, Carlos, [Paço Real], Desenho ms., a tinta da china, aguarelado, color., em papel ; 1050 X 570 mm. Biblioteca do Arquivo Histórico do Ministério das Obras Públicas - Ministério da Economia, D 120-1 C BAHOP. IDEM, “Frontaria da Parte da Nascente”, 200 palmos, s.l., s.d., desenho, lápis, tinta ferrogálica, aguarelado em tons de cinza e rosa, indicação de corte de fachada [A-A] e legenda “Theatro”. Século XVIII (1752?), em papel. Cota ARC. 35.1.12, Iconografia, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Digital www.cmsm-paco-real-salvaterrademagos.blogspot.pt (consultado a 12 de Junho de 2015)

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Magos Estudos BEUVINK, Aline Gallasch-Hall de, A cenografia e a ópera em Portugal no século XVIII. Os teatros régios, 1750-1793, dissertação de Doutoramento em História apresentada na Universidade de Évora, 2012, orientação de Fátima Nunes e Rui Vieira Nery. CANEIRA, Roberto, “Incúria, degradação e demolição no património histórico e cultural de Salvaterra de Magos – do século XIX a 1912” in MAGOS, Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos, nº1, Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 2014, pp. 137-151. ESTEVAM, José, Anais de Salvaterra de Magos: dados históricos desde o século XIV, Couto Martins, 1959. GAMEIRO, José Rodrigues, Salvaterra de Magos, uma vila histórica no coração do Ribatejo, 3ª edição, Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 2014.

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GUEDES, Natália Correia e CORREIA, Joaquim Manuel da Silva, O Paço Real de Salvaterra de Magos: a corte, a ópera, a falcoaria, Lisboa, Livros Horizonte, 1989. SERRÃO, Vítor, A Cripto-História de Arte. Análise de Obras de Arte inexistentes, Lisboa, Livros Horizonte, 1ª edição, 2001. VITERBO, Francisco Marques de Sousa, Dicionário Histórico e Documental dos arquitectos, engenheiros e construtores portugueses, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988, vols. I e II.

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Marinhais - apontamentos à sua toponímia Sérgio Filipe, M.B.A. sergio.filipe@netcabo.pt Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos


Magos 1 | Introdução

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Conhecemos vários documentos que se têm debruçado sobre a toponímia de Marinhais, aliás a própria indicação na estação de caminho-de-ferro de Marinhaes com pouco mais de cem anos é um prova viva do processo evolutivo da designação da vila até ao dia de hoje. Por indicação de terceiros fomos chamados à atenção do livro de D. Afonso V (Livro do Snr. Rey D. Aff.º V) na Torre do Tombo em Lisboa (livro das possessões de D. Afonso V). O livro não se encontra datado, sabemos no entanto que D. Afonso V viveu entre 1438 e 1481, sendo este um documento coevo onde várias vezes é mencionado o nome de marmellaaes e a fonte da Sardinha. Procuramos desta forma dar a conhecer uma abordagem diferente baseada em descrições documentais daquilo que na altura deveria ser um sítio de passagem na encruzilhada de caminhos entre Salvaterra e Muge, assim como do Escaroupim para a Glória.

2 | O livro de possessões de D. Afonso V

A primeira referência a marmellaaes é feita no referido livro no verso do fólio 165, sendo este um livro das possessões do Rei D. Afonso V, podemos aqui encontrar uma descrição pormenorizada dos bens, assim como o seu enquadramento em termos geográficos a partir da vila de Muge (Muja).

Primeira página do Livro de possessões de D. Afonso V

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Marinhais - apontamentos à sua toponímia

@ De Muja./ @ El rrey ha outra vinha em Muja A qual parte contra o leuante com vinha/ d’Afonso Pirez E com vinha de Lopo Diaz E contra Muja com vinha dos herdey-/ ros d’Aluar’Eannes beesteiro de Benauente E contra a aberta rreal entesta com ca-/ minho pubriquo que vay de Muja pera os marmellaaes E contra o abrigo/ entesta em estrada pubriqua que vay de Muja pera Coruche teem de largo/ quatro estijs e meo./ a) A segunda referência a marmellaaes é feita a partir da descrição do Paúl de Muge (Muja) no verso do fólio 166

Verso do fólio 165

1

@ Em Muja./ @ Paul de Muja./ @ El rrey ha o paul de Muja asy como parte contra Santarem des a ponte da/ figueyra pola aberta das somas atee o casal de Uicente Fernandez escpriuam/1 das mal feitorias E dhy como vay pollo carril do concelho a caram do/ paul atee o pontam do grou que he no cabo da corte da cebola E dhy como/ atrauessa a rrybeira de Muja contra Saluaterra atee o arneiro de Joham/ Boyeiro E pola foz d’Alamarosa a fundo pollos peeguos a caram dos matos/ atee o arneyro da adua E dhy atee o porto da adua partindo com os montes/ de huum cabo E do outro E dhy asy como torna partindo com as

À margem esquerda: “Este Paul he/ hoje do Duque/ do Cadaval D./ Jayme/ 1745”.

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ademas e com/ a uarzea dos couaaes ficando a uarzea dentro no paul partindo com as/ ademas do concelho de huum cabo da uarzea E do outro E dhy como vay par-/ tindo com os marmellaaes pola aberta E dhy como vay partindo pollos/ vallos das somas a caram da corte da vinha com a quintaa de Muja/ que he d’el rrey E dentro destas confrontacooes E deuisooes todallas terras/ do paul E cortes e varzeas sam propeas d’el rrey./b)

as cortes d’el rrey que andam com o paul atee o caminho que/ vay de Muja pera os marmelaaes E contra o leuante parte com esse camj-/ nho dos marmelaaes E contra Montaluo parte com caminho pubrico/ E com vinha e chaão de Dioguo Gonçaluez tecellam E com vinha e chaão/ de Joham Pinto E com vinha3 da confraria de Sam Giaão de Santa-/ rem E com vinha de Rrodrigu’Eanes rrequeredor da portagem de Santarem/c)

A terceira e última referência a marmelaaes é feita no fólio 167, não deixa de ser interessante que para além do enquadramento geográfico das possessões é também feita ao longo do documento a descrição da possessão como por exemplo a existência de vinhas ou olivais. Neste folio existem ainda anotações feitas a posteriori, que mapeiam os terrenos descritos como sendo possessões do Duque de Cadaval D. Jaime, anotações essas feitas numa época mais tardia no mesmo folio.

Por fim não deixa de ser curiosa a referência no folio 167 à fonte da Sardinha, sabemos que ainda hoje existe a designação do sítio da Sardinha assim como a Quinta da Sardinha na vila de Marinhais.

@ Quintaa de Muja./ @ El rrey ha A quintaa de Muja que foy d’Alcobaça com seu asentamento/ de casas E vinha grande E oliual E terra de pam asy como parte comtra/ Santarem honde staa a vinha com a aberta rreal E des a vynha parte de/ longuo com 2

@ Terras de pam./ @ El rrey ha em Saluaterra o paul de Maagoos Asy como parte contra o/ rryo do Tejo com herdades do campo de Çacarabocam E dhy como vay da parte4 / d’Albofeira direito aa fonte da sardinha E dhy aa mouta do frade E dhy ao/ porto da Gloria E dhy torna da outra parte asy como vay o caminho dos moy-/ nhos pera Saluaterra atee monte de trijgoo E dhy como se vay honde cha-/ mam as couas direito ao ponto E çarra na aberta.//[fl.168v]d)

À margem esquerda: “He hoje do Duque/ D. Jayme/ 1745”. Riscado: “e chaãos”. 4 À margem direita, em letra do séc. XVIII: “Infantado”. 2 3

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Marinhais - apontamentos à sua toponímia

3 | Conclusão Conhecida a designação com o aforamento como Marinhaes em 1844, quisemos agora revisitar o processo evolutivo utilizando uma fonte documental ainda pouco explorada, nomeadamente o Livro das Possessões do Rei D. Afonso V. Este documento claramente faz referência à toponímia existente na altura, assim como a descrição das possessões, localidades e sítios circundantes, sendo para o leitor fácil de perceber o enquadramento que é descrito. Por fim não deixa de ser interessante o mesmo documento ter a indicação “aa fonte da sardinha”, que certamente nos permite fazer a ponte com aquilo que hoje conhecemos como sendo o sítio da Sardinha em Marinhais.

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Verso do fólio 166

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Verso do fólio 167

Verso do fólio 167

Bibliografia a) IAN-TT, Núcleo Antigo, 335 (MF: 6189), fls. 165v b) IAN-TT, Núcleo Antigo, 335 (MF: 6189), fls. 166v c) IAN-TT, Núcleo Antigo, 335 (MF: 6189), fls. 167 d) IAN-TT, Núcleo Antigo, 335 (MF: 6189), fls. 168 Tombo do foral da junta de parochia da Villa de Muge nos Marinhaes 1844, Sérgio Filipe e Luís Rosa, Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, 2004 Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Paisagens Agrárias do Vale do Sorraia. O sítio do Cabeço da Nogueira (Glória do Ribatejo)

Sílvia Casimiro scasimiro@fcsh.unl.pt Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial (APAI) Instituto de Estudos Medievais (IEM/FCSH-UNL)

Rodrigo Garnelo Merayo Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial (APAI) Arantigua, Arqueologia y Patrimonio Historico (León-Espanha) Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos


Magos 1 | Introdução

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Este texto pretende dar a conhecer o projecto Paisagens Agrárias do Vale do Sorraia (PAVS) e apresentar os resultados preliminares dos trabalhos arqueológicos desenvolvidos no Cabeço da Nogueira, em Glória do Ribatejo (Salvaterra de Magos), trabalhos que se integram no PAVS como subprojecto piloto. O PAVS é um projecto inter/multidisciplinar, orientado com base em metodologias essencialmente arqueológicas, que visa compreender a transformação e a evolução da paisagem agrária medieval e pré-industrial do Vale do Sorraia, na paisagem ainda agrária mas já, claramente, industrializada que hoje se pode observar. Para o efeito foi delimitada como área de estudo, o espaço que compreende os concelhos de Salvaterra de Magos, Benavente e Coruche, não desassociando o vale da paisagem que o envolve. Por forma a cumprir o seu objectivo principal, este projecto visa estudar determinadas questões que irão permitir a reconstrução de uma imagem mais realista. Nessas questões encontram-se as relacionadas com as modalidades e técnicas de exploração agrária, os sistemas de cultivo e irrigação e a exploração vegetal e animal, ou seja, procurar-se-á saber mais sobre que espécies têm vindo a ser exploradas, de que forma e com que finalidade. Outra questão a explorar é a que respeita à construção de estruturas, nomeadamente as estruturas de habitação, de laboração, de armazenamento,

aquelas que se destinavam a albergar os animais, os fornos (comunitários e particulares), etc. Importa, depois, averiguar como se relacionam essas transformações com as dinâmicas socioeconómicas locais e regionais, com a evolução dos meios técnicos e, eventualmente comparar com outras áreas territoriais. As paisagens do Vale do Sorraia são paisagens vivas, associadas a formas de vida tradicional, que conservam restos materiais da sua evolução ao longo do tempo e da sua transformação de paisagem natural, em paisagem cultural. Para o desenvolvimento de um estudo desta natureza, numa paisagem carregada de um cariz agrário, é necessário incidir nas suas componentes económicas primordiais. Por um lado, surgem a agricultura, a pecuária e a pastorícia e, nesse sentido, há que recorrer aos estudos arqueobotânicos, paleoecológicos e zooarqueológicos. Por outro lado, surge também a industria como uma componente económica primordial, cujo estudo nos permitirá compreender a evolução dos meios técnicos e das modalidades de exploração. Nesse sentido, há que proceder ao registo e inventariação dos meios técnicos, através dos métodos da arqueologia pré-industrial e industrial. Este registo será compilado numa base de dados e irá constituir o Inventário do Património Pré-Industrial e industrial do Vale do Sorraia. Estes estudos são, sem dúvida, ferramentas básicas para o desenvolvimento deste projecto e não devem ser entendidos como complementares, mas sim como integrantes dos trabalhos ar Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Paisagens Agrárias do Vale do Sorraia. O sítio do Cabeço da Nogueira (Glória do Ribatejo)

queológicos, já que os dados que nos fornecem permitem uma maior compreensão dos sítios e de quem os habitou (Tereso, 2008). A leitura e interpretação do espólio osteológico de origem animal, promove o conhecimento das relações do Homem com o mundo animal e dos sucessivos ambientes que partilharam (Moreno-Garcia et al, 2003). Este espólio, identificado em sítios arqueológicos, pode representar quantidades e características variáveis, dependendo das condições particulares do sítio e forma como é recuperado. As características da amostra determinam o tipo de estudos que se podem realizar (Moreno-Garcia et al, 2003). Estes estudos permitem conhecer estratégias de exploração dos animais e evidenciam as condições paleoecológicas do território dentro dos quais se processou a sua evolução e o seu desenvolvimento (Moreno-Garcia et al, 2003). O estudo da paisagem, na vertente ambiental (vegetação, recursos hídricos e geológicos e a fauna) e na vertente social (antropização do espaço) vai permitir alargar o conhecimento sobre as transformações ocorridas e relacionar os elementos constituintes da paisagem. Por outro lado, poderá também permitir identificar representações, tanto dos factores humanos que condicionaram a evolução da paisagem (recurso a meios técnicos ou a manipulação de plantas e animais), como dos factores sociais e demográficos. O PAVS conta com uma forte componente de retorno social com a divulgação dos resulta

dos obtidos em modelos de informação acessíveis ao público geral e procurando envolver as comunidades locais através de iniciativas e actividades dirigidas e adaptadas a diferentes interesses e faixas etárias. A produção de conhecimento sobre este território e a difusão da memória cultural, para além das repercussões científicas e a nível da sustentabilidade e desenvolvimento local, promove também o turismo cultural. A intervenção desenvolvida no sítio do Cabeço da Nogueira integra-se no PAVS, como subprojecto piloto.

2 | O sítio do Cabeço da Nogueira A paisagem do Cabeço da Nogueira (Fig.1), actualmente marcada com a presença de um aeromotor de grandes dimensões, apresentase como uma paisagem onde, sem dificuldade, se observam algumas das transformações de que foi alvo, pelo menos durante o século passado. A paisagem conta a história recente do sítio. Sem espaço para entrar nos pormenores da história de Glória do Ribatejo (sobre o assunto, veja-se o artigo de Rita Cachulo Pote, neste mesmo numero), do Cabeço da Nogueira ou das suas personagens, importa saber que em 1941, Joaquim Cachulo, conhecido por Cortelhas, compra um moinho rotativo em madeira e transporta-o para o Cabeço da Nogueira, terreno que foi adquirido exclusivamente com a finalidade

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de para ali rebocar esse moinho, com o auxílio de um tractor e de uma junta de bois que, na ausência de estradas, seguia na frente para abrir o caminho. Viviam-se os anos 40, uma época de expansão da cultura cerealífera, nomeadamente no Vale do Sorraia e época áurea da cultura dos cereais na Glória. Nessa altura em que foi necessário o arroteamento das terras, implicando um esforço inimaginável por parte de gente de todas as idades (Pote, 2011). Em 1953, um tornado deixa o moinho de tal forma destruído que nada ficou para restaurar. Joaquim Cachulo, resistindo e insistindo na sua arte, constrói um edifício no centro da povoação, com vista à montagem de uma moagem, onde laborou várias décadas aumentando, gradualmente, a capacidade para corresponder às necessidades de uma comunidade que, ainda hoje, se dedica ao fazer do pão (veja-se, mais uma vez, o artigo de Rita Cachulo Pote). Importa aqui apontar que a partir da década de 60, se desenha uma nova conjuntura, provocada por factores que determinam grandes mudanças, principalmente o progressivo abandono da agricultura de grande extensão. Desaparecem, gradualmente, as grandes searas e certas espécies arbóreas que eram abundantes na charneca, como o sobreiro, o pinheiro, a figueira e a oliveira. As fontes e ribeiros, que abundavam nesta zona, começam também a escassear (Pote, 2011). Inevitavelmente a paisagem sofre uma grande transformação. Nos finais da década de 70, a nível nacional, os grandes produtores inundam o mercado com

farinhas espoadas de grande qualidade, a preços muito acessíveis (Casimiro et al, 2015). No sentido de se adaptar a esta nova realidade, o moleiro deixa de produzir farinha e dedica-se apenas à sua comercialização. No entanto, quase uma década depois, essa mesma moagem é gradualmente transferida para o Cabeço do Nogueira e montada num edifício, ali construído para o efeito, no local onde outrora teria laborado o velho moinho giratório, em madeira. Com a força de um aeromotor de grandes dimensões associada à moagem, volta a fabricar farinha de milho para pão e farinha de centeio, essencialmente para a alimentação de animais. Este aeromotor laborou até ao fim da vida de Joaquim Cachulo, em 1993.

Figura 1. - Cabeço da Nogueira

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Paisagens Agrárias do Vale do Sorraia. O sítio do Cabeço da Nogueira (Glória do Ribatejo)

Em Março deste mesmo ano, uma equipa dirigida pela APAI, desenvolveu no Cabeço da Nogueira, uma intervenção de caracter não intrusivo, com o objectivo de avaliar o potencial de estudo do sítio e identificar alguns engenhos e vestígios associados ao extinto moinho e moagem. Como foi referido anteriormente, o grande marcador da paisagem actual do Cabeço, é o aeromotor de grandes dimensões que ali foi instalado na década de 80. Esta tipologia de aeromotores, com pás helicoidais, é aplicada para os mais variados fins fabris e também para a transformação em energia eléctrica. Chegaram a Portugal, vindos dos E.U.A., por via de alguns concessionários portugueses, sendo que pouco depois surgem fabricantes portugueses. Estes aeromotores apresentam maior capacidade de produção e eficácia, em comparação com os pequenos moinhos americanos. O edifício de moagem, com uma função de natureza rural, apresenta dois pisos separados por grandes vigas de madeira. A moagem foi adaptada ao edifício e compreende o depósito das mós de pedra sobre bancadas metálicas, com acabamentos em madeira, feitas à medida (Fig.2). Este trabalho, provavelmente, foi efectuado pelo próprio moleiro, já que é sabido que este detinha o saber e os meios que lhe permitiam construir e consertar uma grande parte dos engenhos. Em traços gerais, foi efectuada uma limpeza à moagem e foram registadas todas as peças que a compõem, tendo sido possível colocar,

Figura 2 - Moagem

ainda, um dos tegões que se encontrava derrubado, no seu lugar original, apesar da viga que o sustenta se encontrar bastante danificada. A instabilidade das vigas que suportam o 2º piso, por questões de segurança, não permitiram que ali se desenvolvesse muito mais trabalho. Esta questão foi entretanto resolvida de forma temporária, com a instalação de dois extensores que suportam agora as mesmas vigas e, a tarara que se encontra no piso de cima, até ao momento, inacessível (Fig.3). Ainda no edifício de moagem foram identificados alguns objectos moveis, directa e indirectamente associados à actividade da moagem, que estão a ser alvo de estudo e inventariação. Entre outros, foi identificado um compasso (Fig.4), uma pinça, peneiras, sendo que uma é totalmente artesanal e construída com madeira e pele de cabra (Fig.5), picões para mós, pesos, balanças, etc.

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Figura 3 - Tarára identificada no 2ºpiso do edifício da moagem.

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Figura 4 - Compasso

Figura 5 - Peneiras

No espaço exterior a Norte, nas traseiras do edifício de moagem, foram identificados vários núcleos do que aparentava tratar-se de “sucata”. No entanto, foram ali identificados vários fragmentos metálicos que aparentam compor um outro engenho que, no entanto, ainda não foi possível identificar. No espaço exterior a Sul, na frente do edifício de moagem, que se constitui como o espaço de acesso ao Cabeço, foi possível identificar o pião (pedra do eixo central que fazia girar o moinho de madeira), que estava parcialmente à vista, ainda que deslocada em cerca de 20 metros do seu lugar original (Fig.6). Foram também identificados fragmentos da estrutura em alvenaria que compunha a carreira, ou seja, o circulo por onde giravam as rodas do moinho, estas também fora do lugar original (Fig.7).Dos cerca de 30 metros da estrutura que compunha a carreira foram identificados Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Paisagens Agrárias do Vale do Sorraia. O sítio do Cabeço da Nogueira (Glória do Ribatejo)

apenas 19. Mais tarde, em conversa com um residente de Glória, que auxiliou na montagem do aeromotor na década de 80, fomos informados que parte daquela estrutura foi reaproveitada como enchimento dos fiches (pilares em cimento que fixam o aeromotor ao solo).

Em toda a área envolvente ao edifício de moagem foram identificadas mós de vários tipos, sendo que uma delas pertenceria ao antigo moinho giratório destruído nos anos 50 (fig.8). Estas mós estão a ser alvo de estudo. Após uma semana de avaliação, verificou-se que o Cabeço da Nogueira era um sítio com potencial científico e de interesse local, avançando-se, neste sentido, para uma intervenção arqueológica de carácter intrusivo.

142 Figura 6 - Fragmentos de alvenaria que compunha a carreira do moinho giratório

Figura 7 - Pião - Pedra do eixo do moinho giratório.

Figura 8 - Mó do moinho giratório

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Magos 3 | Intervenção arqueológica de caracter intrusivo

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Importa desde já referir que a informação relativa a esta intervenção é ainda escassa, uma vez que este artigo começou por ser elaborado quando ainda decorriam os trabalhos de campo (Julho, 2015) e desta forma, todos os dados aqui facultados são preliminares. O objectivo principal da intervenção arqueológica de carácter intrusivo, desenvolvida entre os dias 6 e 20 de Julho, era a identificação da vala onde estaria implantada a carreira do moinho giratório. Previamente foi recolhida informação oral. No entanto, entre entrevistados, a informação não era coincidente, tanto no que se refere à área de implantação do moinho, como a relativa á sua dimensão. Foram abertas 2 sondagens a sul do edifício de moagem, área onde era possível observar um negativo de uma circunferência cuja dimensão coincidia com os cálculos efectuados, a partir dos fragmentos de alvenaria identificados na encosta do Cabeço, para o diâmetro da carreira do moinho giratório. A sondagem 1 (S.1), com 3x2 m/ quadrados A/B.10/11/12, teve de ser ampliada para C.11/12. Nos quadrados A/B/C.12, foi identificada a vala da carreira de alvenaria, a cerca de 45/50 cm. A sondagem 2 (S.2), com 1x3 m/ quadrados B/C/D.2 e posteriormente ampliada para norte (C.1/-1/-2/-3), revelou o que, provavelmente, será o extremo norte da vala. Estes dados, ainda em análise, parecem revelar que o edifício de moagem

está implantado sobre parte da vala da carreira, a norte (Fig. 9 e 10). Posteriormente, no sentido de se identificar mais vestígios da vala, uma vez que os dados da S.2 não eram conclusivos, foram ainda abertos os quadrados A-G.5 (6x1m) e A.6-9 (4x1m). No entanto, para além de fragmentos de mós, não foi identificado qualquer outro vestígio associado ao moinho giratório (Fig.11). Para terminar e, apesar dos dados preliminares, podemos adiantar que se verificou que o relevo do Cabeço da Nogueira, nomeadamente o seu topo, foi bastante alterado, pelo menos desde a implantação do moinho giratório.

Figura 9 - Sondagem 1 - Extremo sul da vala

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Paisagens Agrárias do Vale do Sorraia. O sítio do Cabeço da Nogueira (Glória do Ribatejo)

Durante os trabalhos de campo, foram desenvolvidas algumas actividades e promovidos eventos, com vista ao envolvimento da comunidade. Em Março, desenvolveu-se uma Jornada de Portas Abertas, uma palestra à comunidade

Figura 10 - Sondagem 2 - Extremo norte da vala (?)

onde foi apresentada a equipa que se encontrava a desenvolver os trabalhos de registo e, ainda, uma actividade pedagógica relacionada com o ciclo do pão. Em Julho, durante as duas semanas de escavação, houve oportunidade para o desenvolvimento de outras actividades, desta feita em articulação e com o apoio da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos. Durante duas manhãs as crianças do O.T.L. de Glória e Marinhais participaram numa simulação de escavação arqueológica onde tiveram a oportunidade de assistir a parte dos trabalhos de escavação e a visitar o edifício de moagem. Houve ainda lugar a duas manhãs de Portas Abertas e ao primeiro de uma série de colóquios que se pretendem desenvolver no decorrer deste projecto: I Colóquio Paisagens Agrárias do Vale do Sorraia. Este primeiro colóquio cumpriu o seu objectivo principal: aproximar

Figura 11 - Área total escavada

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Magos os três concelhos envolvidos no projecto e observá-los como “unidade territorial do Vale do Sorraia”. A intervenção arqueológica do Cabeço da Nogueira, foi dirigida pelo Grupo de Investigação em Arqueologia Pré-Industrial da Associação Portuguesa de Arqueologia Industrial (APAI), contou com o apoio financeiro da Câmara Municipal de Salvaterra de Magos, com o apoio logístico do Centro de Documentação e Estudos

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Etnográficos de Glória do Ribatejo e, ao abrigo do protocolo estabelecido entre a APAI e a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa contou-se, ainda, com o apoio nos trabalhos de campo de alunos da Licenciatura em Arqueologia no âmbito de Estágio Curricular, conferindo ao projecto uma componente que consideramos muito importante: a pedagógica.

Referências Bibliográficas CASIMIRO, Sílvia; MARQUES, Sandra (2015), Os Moinhos da Boa Sentença (Oeiras): arqueologia e salvaguarda. AlMadan, IIª Série, n.º 19, p.106-111 MORENO-GARCÍA, Marta; DAVIS, Simon; PIMENTA, Carlos (2013), Arqueozoologia: estudo da fauna no passado. In Mateus e Moreno-Garcia (eds). Paleoecologia Humana e Arqueociências. Um Programa Multidisciplinar para a Arqueologia sob a Tutela da Cultura. Lisboa: Instituto Português de Arqueologia (Trabalhos de Arqueologia, 29). POTE, Rita Cachulo (2011), Glória - Cem Anos a Preto e Branco. Associação Rancho Folclórico da Casa do Povo de Gloria do Ribatejo. Glória do Ribatejo. TERESO, João (2008), Introdução ao estudo de macro-restos vegetais em sítios arqueológicos. 1ª Edição, Maio. Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos. Universidade do Porto Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Glória - A Cultura dos Cereais e o Culto do Pão Rita Caetano Rodrigues Cachulo Pote ritapote@gmail.com

Professora de Português - Escola Secundária de Benavente Revista Cultural do Concelho de Salvaterra de Magos


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Sensíveis às especificidades desta terra e destas gentes, há muito que falamos da mística do lugar, o que o torna único e indefinível, objetivamente. Sabemos que, ao longo dos tempos, a terra tem moldado as pessoas e vice versa. Por isso, se tentássemos descortinar as caraterísticas regionais daqueles que vieram habitar este espaço, em tempos idos, estaríamos perante uma tarefa inglória. Não o conseguiríamos. A força do lugar impôs-se de tal forma, que os indivíduos atraídos pela conquista da terra, pelos privilégios, etc. rapidamente se deixaram imbuir na sua matriz, consequência de uma vivência partilhada em todas as dimensões da vida. O resultado foi uma amálgama una, regida pelo mesmo sentir, pelos mesmos valores e gostos. É isto que define uma identidade e origina da parte dos seus elementos um sentimento de pertença. No caso concreto da Glória, o espírito do lugar encontra-se no seu património imaterial, observável nas suas vivências sociais e espirituais, artísticas e artesanais, que têm evoluído consoante o contexto epocal, mas se mantêm na sua essência. Desde o nascimento à morte, embora com nuances diferentes, continuamos a encontrar costumes coletivos, modas que alastram rapidamente a toda a comunidade, o que é um sinal de que são aceites por todos e legitimadas por essa razão. Na prática, isto significa que a força do coletivo é maior do que a do indivíduo, qualquer que seja a circunstância – facto que nos permite afirmar que o espírito do lugar continua a impor-se e a revelar-se, embora

com outros contornos. Propomo-nos, nesta pequena reflexão, observar as razões por que, em determinado período da história, a cultura dos cereais foi, na Glória, uma atividade tão intensa e, por outro lado, o pão, enquanto elemento básico da alimentação, foi encarado como algo precioso (como se de uma peça de artesanato se tratasse) e até associado ao sagrado, continuando a ser, nos nossos dias, alvo de muita atenção, por parte da comunidade. Para contextualizar o tema, precisamos de relembrar que a Glória ocupa uma vasta extensão de 535,85 hectares, situada em plena charneca, o que nos leva a compreender facilmente que as condições naturais favoreceram a atividade cerealífera. No entanto, essa atividade só atinge proporções verdadeiramente assinaláveis, a partir dos anos 30/ 40 do século XX. Esta marca temporal deve inserir-se num contexto mais alargado, diretamente ligado aos cingeleiros e às suas funções nesta região, conforme concluímos em trabalho realizado por nós, anteriormente, Glória – Os Cingeleiros, publicado em 2014: “desde tempos mais remotos até meados do século XX, a atividade de cingeleiro do homem da Glória assumiu grande importância na região, pois constituiu um elemento essencial no abastecimento da capital, no que respeita a produtos, como lenha, carvão, carqueja, vinho, mel e cortiça, oriundos do interior para os portos fluviais (e mais tarde para a estação de caminho de ferro), bem como na transação de produtos no sentido inverso. Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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A função de carreiro para o cingeleiro gloriano começa (…) a desvanecer-se a partir do momento em que a pouco e pouco as camionetas começam a desempenhar esse papel com mais eficácia e menos custos, tantos humanos, como económicos. É assim que estes homens, habituados a ser independentes, se viram para outras atividades, donde podem colher o sustento da sua família, (…) Referimo-nos a uma época posterior aos anos 40 do século passado, em que os

Foto 1 - José Miguel / Década de 80 - séc. XX (Fonte: Família)

arroteamentos e a cultura dos cereais atingem proporções significativas. Foram muitos os testemunhos daqueles que nos disseram que a partir daquela época acompanharam os pais e respetivos bois “a arrancar mato”, no Valão, Fajarda, Agolada, Areeiro e Cascavel (concelho de Coruche), sítios onde se localizam grandes herdades, cuja terra inculta daria lugar, mais tarde, a grandes searas cultivadas por estes cingeleiros, que as arrendavam para esse fim. (…) Aí, trabalhavam “ao quinto” – sistema de arrendamento das terras que consistia no pagamento de um molho ou saco de cereal por cada cinco que conseguiam. Todos os nossos entrevistados trabalharam segundo este sistema de arrendamento. As suas (terras), por muitos hectares que contassem, seriam insuficientes para todos. Daí que os últimos cingeleiros se queixem, de um modo geral, do facto de os pais não lhes facultarem as suas terras para o cultivo dos cereais (que só rendiam o suficiente quando cultivados em extensão razoavelmente grande e não seriam então suficientes para partilhar). Por aí, permaneciam “semanas a fio”, sozinhos, sem vir a casa. Outras vezes, quando o trabalho era demasiado para marido e mulher, havia necessidade de “falar a outros” para cumprir a tarefa. A título de curiosidade, devemos referir que são muitos os que ainda afirmam que chegaram a conhecer sete máquinas de debulha nas eiras da Glória, o que atesta a grande expansão da cultura cerealífera. Um dos irmãos “Inoques” dizia-nos que “houve um ano em que semeei oito sacos de trigo”. (…)

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149 Foto 2 - Eira - Concelho de Coruche / 1946 (Fonte: Espólio Fotográfico Português)

Das longas conversas mantidas com os cingeleiros, percebemos claramente que, a partir dos anos 70 do século passado, aquela que era a sua atividade principal até aí, começa a esvairse progressivamente. Todos relataram que “as terras já não davam nada”, pois os solos precisam de períodos de poisio, após largos períodos de utilização do mesmo tipo de cultura. Para sanar este problema, seriam necessárias grandes quantidades de estrume e adubos, o que seria impensável, dada a escassez dos rendimentos. Acrescentaram ainda que “pagavam

grandes maquias”, o que no nosso entender corresponde a alterações do padrão de rendimento, ou seja, aquilo que no passado correspondia a um rendimento minimamente satisfatório, a partir desta altura, deixa de o ser. Por outro lado, a tomada de consciência da exploração a que estavam sujeitos, desincentiva a produção (desde a sementeira à colheita, passavam por quatro sistemas de impostos: ao proprietário das terras, pagavam o quinto; à máquina debulhadora, pagavam outro tanto; no ato da troca do cereal pela farinha, era descontada Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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a maquia, e o excedente que vendiam ao grémio, era sujeito a um novo imposto. Feitas as contas, o lucro era praticamente inexistente). Desse modo, as longas extensões de paisagem aberta e iluminada que outrora se prestavam a grandes searas de cereais, passam a ter uma fisionomia mais densa, pois a cultura do eucalipto (que começara já na década anterior) apresenta-se como uma boa fonte de rendimento, sem necessidade de um esforço muito grande. Há que contar também que deixa de ser imperioso cultivar o trigo e o milho para trocar por farinha de pão, pois este produto, que antes escasseara bastante, (…) abunda agora com grande qualidade. Anteriormente à década de 40 do século XX, já existiam na Glória moinhos de vento que correspondiam minimamente às necessidades de farinha desta população. Contudo, a partir dessa época, começam a aumentar os engenhos de produção de farinha. Joaquim Rodrigues Cachulo instala-se na Glória em 1936, com a intenção de aí desenvolver a sua atividade de moleiro. Oriundo de Benavente, de uma família de moleiros, faz-se à vida nesta localidade, precisamente por compreender que a sua atividade poderia vir a ter sucesso, dada a abundância de matéria prima. Tanto assim era que, do moinho de vento que o vendaval derrubou em 1953, passou à construção de um edifício maior e mais moderno, semelhante a outros três que existiram na Glória, o que confirma facilmente a centralidade da Glória, relativamente às atividades ligadas ao pão.

Vinham à Glória, em busca de boa farinha, muitas pessoas das localidades próximas que aí se deslocavam de carroça para esse fim. Em contrapartida, Joaquim Rodrigues Cachulo recolhia o cereal, de porta em porta, nessas mesmas localidades, facilitando os consumidores, ao mesmo tempo que ia desenvolvendo o seu negócio.

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Foto 3 - Joaquim Rodrigues Cachulo, década de 60 - séc. XX (Fonte: Família)

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Facilmente entendeu as exigências das mulheres da Glória que, à semelhança das outras atividades artesanais, não se deixavam ficar por mãos alheias, procurando em cada semana, uma qualidade de pão, cada vez mais apurada. Nesse sentido, o moleiro criou e adaptou técnicas, procurou o melhor produto para moer, aplicou a maior dedicação possível, ainda que isso lhe custasse vinte horas de trabalho, por dia. Ter pão em casa para o ano inteiro (entendase cereal) era sinónimo de desafogo e de uma certa riqueza, pois falamos de uma época em que os bens alimentares escasseavam por todo o lado, situação mais agravada, ainda, em lugares isolados, quer pelo espaço físico, quer por outra ordem de razões que se prendia com questões históricas, como é o caso da Glória. Não desapareceram há muitos anos os caixões que havia em praticamente todas as casas – grandes arcas de madeira aonde se guardava religiosamente o trigo, durante todo o ano. Outras vezes, quando a quantidade era grande, as sacas de trigo amontoavam-se ao centro da casa, junto à trave de madeira que suportava o telhado. O pão era assim entendido como um bem precioso, sagrado até. Não se podia desperdiçar, maltratar ou comer em demasia. Só a mãe mexia no tabuleiro do pão e o distribuía, sob regras muito apertadas. Ainda hoje, permanece na mente dos mais velhos uma cantilena muito caraterística, ligada precisamente ao pão e que prova facilmente o que acabamos de descrever: quando as crianças pediam pão à

mãe e esta tinha de o guardar para mais tarde, respondia com um gracejo – “Ó mãe, quero pão! Arre burro, cala-te, João!”. O pão era cozido no forno de lenha tradicional, semanalmente. O “dia de cozer” era um dia especial, tanto para os adultos, como para as crianças. A mãe, nesse dia, não se podia comprometer com outras tarefas demoradas, sob pena de “estragar a amassadura”, o que não podia acontecer, pois poria em causa a base do sustento da semana e ninguém lhe desculparia tal desvario. Assim, na noite anterior, fazia o “crescento” com o fermento natural, que tinha ficado guardado da semana anterior, numa tigelinha. No dia seguinte, amassava o pão (a braços), durante um tempo considerável, até levantar bolhas, sinal de que estaria pronto a deixar levedar, durante algumas horas. Antes, porém, borrifava a massa com farinha e vincava uma cruz com a mão cerrada, ao alto, dizendo: “Deus te acrescente, que és para muita gente,

Foto 4 – Margarida Fortunata / 2013 (Fonte: Rita Cachulo Pote)

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benzendo-se, de seguida. Este ato, além de possuir, só por si, um caráter simbólico associado ao sagrado, tinha também uma finalidade prática – quando a cruz estivesse desfeita, a massa estaria em condições de tender e ir para o forno. Da massa, nada se desperdiçava. Os restos que ficavam agarrados ao alguidar eram aproveitados para fazer uns mimos para as crianças e usando da sua criatividade e da capacidade de fazer muito com pouco, a mãe rapava essa massa, juntava-lhe um ou dois ovos, canela, erva-doce, açúcar, azeite ou banha de porco, até a massa ficar ralinha. Estendia-a numa folha de couve, levava ao forno e daí saía uma espécie de bolacha torradinha que fazia as delícias das crianças. A este doce improvisado chamava-se esturreca. Para as raparigas e rapazes mais velhos, ao sábado, dia de cozer e de regressar da semanada de trabalho, estava guardado um tabuleiro de chicharro no forno, temperado com cebola às rodelas, azeite, sal e pimentão, o que constituiria uma bela refeição, a acompanhar com o pão quentinho. Esse sentimento de apreço e de respeito pelo pão verificava-se ainda noutros pormenores. Da cozedura da semana, tirava-se um pão mais pequeno, a que se chamava brindeira. Esta palavra provém de uma outra – “brinde” – significando, portanto, que aquele pãozinho seria para brindar ou agradecer a alguém. Poderia ser a vizinha (que tinha feito algum favor ou até emprestado pão em falta) ou a própria família. Comia-se esse pãozinho primeiro que os restantes, pois esse não entrava nas contas. Já

duro, o pão comia-se até à última côdea. Muitas vezes, rangia ao cortar, mas isso não significava que estivesse fora de prazo. A qualidade com que era feito era garantia de que o produto estava em boas condições até ao fim. Por vezes, para se comer melhor, faziam-se papas, migas, sarrabulho, torricado, ao mesmo tempo que se saboreavam outros paladares, tendo como base o mesmo pão. Era hábito ainda dar às crianças pão com água mel, pão com açúcar, pão com manteiga de porco, como forma de as mimar, ou mesmo, de lhes fornecer uma refeição calórica. Os adultos acompanhavam a fruta ou as azeitonas, sempre com pão, pois, de outro modo, essa forma de alimento seria considerada gulodice. O culto do pão pode ainda inferir-se de certas atitudes que toda a gente partilhava, pois não as seguir seria sinónimo de pecado. Por exemplo, quando caía o pão ao chão, este tinha de se apanhar num gesto rápido, com paixão, soprando-se e dando-se um beijo, de seguida, como quem pede perdão. Por outro lado, o pão nunca podia ser posto sobre a mesa, virado ao contrário, pois tal gesto revelava falta de respeito e blasfémia. Por fim, na altura dos dias santos, o pão, tal como a carne, não se podia cortar, pois representava o corpo de Deus e por isso tinha de se manter íntegro. Nos dias de hoje, na Glória, assiste-se a um revigorar do apreço pelo pão caseiro. Além de ser considerado de melhor qualidade e mais económico, continua a proporcionar um dia diferente em família, pois permite a elaboração

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Magos de cozinhados ou doces (como forma de “aproveitar o forno”) e nessa medida leva à reunião familiar e ao reforço dos laços familiares ou de boa vizinhança.

Bibliografia

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CASTRO, A. (1983), A Consolidação do Novo Sistema Económico in Saraiva H. (dir.) História de Portugal, vol. IV, Lisboa, Publicações Alfa. DA SILVA, N. (2013), Os Debates Parlamentares da Nação Portuguesa 1839-1899, Lisboa, Euronatura. GARCIA, I. S. (1979), O Falar da Glória, Lisboa, Assembleia Distrital de Santarém. SAMPAIO, J. S. (s.d.), Textos de Economia Corticeira 1951-1988, Bragança, Instituto Politécnico de Bragança. REDOL, A. (s.d.), Glória – Uma Aldeia do Ribatejo, 2ª ed., Lisboa, Publicações Europa-América. RIBEIRO, M. (2001), Estudos Sobre a Aldeia da Glória, Associação para a Defesa do Património Etnográfico e Cultural da Glória do Ribatejo. RIBEIRO, O. e LAUTENSACH, H. (1991), Geografia de Portugal I, A Posição Geográfica e o Território, Comentários e Atualização de Suzanne Daveau, 2ª ed., Lisboa, Edições Sá da Costa. RIBEIRO, O. e LAUTENSACH, H. (1988), Geografia de Portugal II, O Ritmo Climático e a Paisagem, Comentários e Atualização de Suzanne Daveau, Lisboa, Edições Sá da Costa. RIBEIRO, O. e LAUTENSACH, H. (1989), Geografia de Portugal III, O Povo Português, Comentários e Atualização de Suzanne Daveau, Lisboa, Edições Sá da Costa. RIBEIRO, O. e LAUTENSACH, H. (1989), Geografia de Portugal IV, A Vida Económica e Social, Comentários e Atualização de Suzanne Daveau, Lisboa, Edições Sá da Costa. RIBEIRO, O. e LAUTENSACH, H. (1992), Geografia e Civilização, Temas Portugueses, 3ª ed., Lisboa, Livros Horizonte Salvaterra de Magos | n.º2 | Ano: 2015


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Referências Bibliográficas POTE, A.J.A. e POTE, R. C. (2014), Glória – Os Cingeleiros, Associação Rancho Folclórico da Casa do Povo de Glória do Ribatejo.

Informantes Este trabalho baseou-se também em informação recolhida por via oral. Num total de 27, o grupo de informantes é constituído por cingeleiros e suas esposas, todos naturais e residentes em Glória do Ribatejo.

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