MOTOR POR MURILO MELO | FOTOS DIVULGAÇÃO
inesquecível
IGUAL AO PRIMEIRO AMOR, PERSONAGENS REVIVEM HISTÓRIAS SOBRE O PRIMEIRO CARRO E MUITOS GUARDAM ATÉ HOJE ESSAS PRECIOSAS RELÍQUIAS NA GARAGEM DE CASA
O paulista de cabelos brancos, um pouco calvo, ainda pensava se deveria vender o Corcel para aquele garoto de 18 anos. Eufórico com a possibilidade de finalmente ter seu primeiro carro e daí ter a sonhada liberdade pelas ruas da cidade, André cruzava os dedos para que a contra proposta de seu pai fosse aceita pelo senhor aparentemente irredutível. Quando outro interessado apareceu dizendo estar disposto a pagar o preço sem desconto, André tremeu. Fez-se um silêncio. “Meu pai abaixou a cabeça, como se tivéssemos perdido o carro”, lembra. O paulista, no entanto, educado, mas rispidamente, convidou o novo freguês a se retirar,
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assinou onde deveria assinar e, pronto, André tinha seu primeiro carro, um Corcel 77 com pouco mais de 10.000 quilômetros. Já se vão um pouco mais de três décadas desde que essa história aconteceu no apartamento de um prédio do Garcia, no centro de Salvador. André Luís Oliveira, hoje com 54 anos, teve outros amores de quatro rodas em sua garagem, mas o Corcel ainda está ao seu lado, como lembrança do pai, do senhor paulista de cabelos brancos e “de toda a minha juventude, rebeldia e namoricos”, diz o advogado, que criou uma relação tão fraterna com o carro a ponto de andar quilômetros
a pé para consertar um pneu furado em vez de gastar o estepe. Na época da faculdade, mesmo com um automóvel na mão, preferia ir de ônibus para o curso de Direito, na Universidade Federal da Bahia (Ufba) para poupar o motor. Mais prova de amor? Ele guarda todas as peças trocadas. Em sua garagem estão velas, platinados, filtros de óleo, buchas. A bateria velha ele jogou fora por causa do vazamento do ácido. “Deveria ter guardado. Estou arrependido”, diz. O irmão de André, o dentista Roberto Oliveira, não fica atrás. Seu primeiro carro, um Fiat 147, ano 79, ainda é seu fiel companheiro, mesmo tendo na garagem uma Mitsubishi L200. “Não vendo”.
Relação tão forte e ainda mais longeva com o primeiro carro é a do advogado José Carlos Soares, 46. No dia 22 de fevereiro de 1989, ele veio de Feira de Santana ao volante do Fusca comprado em parceria com a esposa em um consórcio de doze meses. “Como posso vender um carro que traz recordações de um período maravilhoso da minha vida?”, pergunta. “Lembro do meu casamento, dos meus filhos pequenos, da agonia de voltar do supermercado”. Quando comprou seu segundo carro, uma Variant, o Fusca foi para a garagem da casa da mãe, onde dorme protegido por uma capa cinza em uma vaga coberta. “Eu sinto que ele precisa ficar protegido”, diz. José Carlos e o Fusca passeiam uma vez por semana. “Sinto saudades. Vou até lá, tiro a capa dele e vamos passear”, afirma. Apenas uma vez o advogado pensou em romper o relacionamento com o fusquinha azul. Foi há três anos, quando perdeu um filho. “Cheguei a colocá-lo à venda, mas logo percebi que ele era uma terapia. Eu conversava com ele, me abria, sentia que tinha uma parte do meu filho ali também”. Por parte da mulher, a dona de casa Lícia Soares, 44, o ciúme é zero. “Nós dois tratamos o carro com muito carinho. Enquanto estivermos vivos, ele fica com a gente”, conta ela. Mal voltou ao Brasil, depois de um intercâmbio de línguas na Espanha, e a jornalista Mariana Souza, 26, ganhou, em janeiro deste ano, seu primeiro automóvel. Um Renault Sandero prata, hatch compacto, de cinco lugares. O carro zero, ela diz, tem todas as novidades tecnológicas que todo mundo sonha para um carro, mas o prazer dela vem em deixar pequenas coisinhas do jeito dela. Como uma lixeira personalizada de gatinhas e os ursinhos que antes decoravam seu quarto, mas que agora ocupam o banco de trás. “Gosto dessas fofurinhas. Só não encho meu carro de mais coisas porque meu namorado disse que vai ficar brega e fresco demais”, diz. Mudar de carro não passa pela cabeça dela. “Tá louco? Foi amor à primeira vista. É como um filho”, conta. O pernambucano Pedro Gusmão também não tem entre suas prioridades passar para a frente sua
QUEM AMA CUIDA
DICAS PRECIOSAS PARA QUEM QUER PRESERVAR O CARRO E A HISTÓRIA Se você ama seu primeiro carro, procure sair para passear com ele pelo menos uma vez por semana. Os pneus rodam, o óleo circula, o motor funciona e o ar se renova. Mas, se por algum motivo inexplicável, você deixá-lo de lado por muito tempo, anote as dicas do mecânico Ricardo Silva para que ele não faça charme quando você convidá-lo para dar uma volta. Para começar, não deixe o freio de mão acionado e calibre os pneus com três ou quatro libras a mais que o recomendado. A lataria merece lavagem uma vez por mês e uma encerada (sem produtos abrasivos) a cada três meses. Mesmo com o carro parado, o óleo deve ser trocado a cada seis meses. Aproveite e troque o líquido de arrefecimento. Se o carro tiver ar-condicionado, ligue-o por meia hora uma vez por semana. Tudo isso é garantia de longa vida para a sua relação.
Kombi 1960, comprada no final da década de 1970. O utilitário não apenas foi seu primeiro carro, mas também o primeiro automóvel a circular pelas bandas de Petrolândia, às margens do Rio São Francisco. Naquela época, nem a delegacia do bairro tinha viatura para perseguir os bandidos. “O delegado pedia a Kombi emprestada e a gente ia na captura”, conta. “Já foi muito malandro algemado aí atrás”, brinca o aposentado que veio para Salvador no início dos anos 80, com 24 anos. Comprada zero-quilômetro de um amigo que conhecia o vendedor da Sabrico (única concessionária Volkswagen da época, segundo Pedro), a Kombi serviu por anos ao boteco da família. Mesmo com a compra do segundo carro, um Fiat Prêmio 1986, a do terceiro, um Gol Atlanta 1996, e o último, um Fox Trendline 2015, a Kombi, atualmente com pouco mais de 30.000 quilômetros rodados, manteve seu lugar cativo. “Criei apego muito grande a ela, que ainda funciona perfeitamente, principalmente quando quero carregar coisas pra festas”, afirma o pernambucano.
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MOTOR O Chevette 1990 do cirurgião Fernando Dórea é outro sobrevivente - literalmente. Comprado usado em 1997 na feira do automóvel em Itabuna, com dinheiro de seus plantões e empréstimo dos pais e dos sogros, o primeiro carro de Fernando já passou dos 500.000 quilômetros rodados. E, segundo diz, viajou para todos os cantos que se possa imaginar no Brasil. O motor foi recentemente retificado e ainda não voltou ao lugar. Além disso, duas pancadas na traseira do carro entortaram as longarinas e obrigaram Fernando a aceitar a única solução dada pelo funileiro: transformar o sedã em picape. “Reformo, transformo, mas não vendo”, diz. “Ele foi comprado com muito sacrifício”, explica. Em recente assalto à sua casa, o maior “valor” levado pelos ladrões foi a caixa com fotos e toda a documentação histórica do carro. “Graças a Deus não enxergaram o carro”, comemora.
PAQUERA NA ORLA
Ao contrário do Chevette de Fernando, o primeiro carro do psicólogo Gustavo Dias parece ter saído nesta semana da concessionária. O Chevrolet 1950 pertenceu a seu pai até 1973, quando um Dodge SE veio se juntar à frota da família. “Eu tinha 18 anos. Estava no curso pré-vestibular e meu pai me deu o Chevrolet”, lembra. “Foi uma alegria incomparável”. Restaurado em 1988, o sedã é companhia certa de Gustavo nos giros de fim de semana pelas avenidas das praias soteropolitanas. “Consigo muitas namoradas, encantadas pelo carro vintage”, revela. “Quando entro nele, volto no tempo, lembro de minha mãe vindo me buscar na escola, das ceias de Natal na casa de minha avó, dos aromas e dos sons que ouvia na infância”. Ao falar do carro, o psicólogo imita o barulho nas trocas de marcha. “O tranco que ele dá hoje é exatamente igual ao que eu escutei a vida inteira”, conta ele. Se hoje o Chevrolet é puro estilo, nos anos 70 e 80 era apenas um carro velho, em desuso, preterido por Fuscas e muito utilizado por taxistas. “Eu adorava, mas meus amigos tiravam o maior sarro e ele
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GUIA DO
PRIMEIRO CARRO Com tantas opções de marcas e modelos, escolher o carro que atenda às suas necessidades não é uma tarefa das mais simples. Mas você deve começar determinando qual categoria de veículo é a mais adequada, afinal cada uma tem finalidades e características específicas que podem facilitar no dia a dia, quem diz é o especialista em automóveis Marcelo Rodrigues. Veja abaixo dicas que vão te ajudar a achar o veículo zero quilômetro ideal para você. *COMPACTOS Ponto forte: as dimensões compactas ajudam na hora de estacionar e alguns modelos são muito ágeis no trânsito urbano, mesmo com motor 1.0. A economia de combustível é outra vantagem. Ponto fraco: falta de espaço para passageiros e bagagens e pouco conforto a bordo em viagens mais longas. Indicado para: jovens motoristas ou casais sem filhos, que raramente dirigem em estradas e priorizam o baixo consumo de combustível. *SEDÃS Ponto forte: mais indicados para viagens, principalmente pelo bom espaço no portamalas. Prefira os modelos mais potentes. Ponto fraco: as versões equipadas com motor 1.0 costumam ter falta de fôlego em subidas íngremes e na hora de realizar ultrapassagens. O valor de revenda pode não compensar a diferença de preço entre um sedã e um compacto. Indicado para: quem precisa de muito espaço para bagagens e não dispensa a viagem do fim de semana. *PERUAS Ponto forte: para quem precisa de espaço para bagagens, com fácil acesso ao portamalas. Ponto fraco: atenção nas manobras e na hora de estacionar. Indicado para: famílias com crianças pequenas, que costumam carregar muita bagagem. *MINIVANS Ponto forte: combina a comodidade do espaço no porta-malas das peruas com a posição de dirigir mais elevada e a profusão de porta objetos, que só as minivans têm. Os modelos maiores levam até sete passageiros.
Ponto fraco: como as peruas, demanda atenção na hora de manobrar e estacionar. Indicado para: famílias com filhos mais velhos. *UTILITÁRIOS ESPORTIVOS Ponto forte: quem gosta de se sentir mais alto do que os outros vai adorar um SUV. Os modelos mais luxuosos oferecem nível de conforto digno dos melhores sedãs, com a vantagem de poder encarar uma trilha no fim de semana. Ponto fraco: as dimensões avantajadas trazem imponência, mas incomodam na hora de passar por lugares apertados, como estacionamentos de shopping centeres. Indicado para: quem precisa (ou gosta) de bastante espaço interno. *PICAPES Ponto forte: oferece a possibilidade de levar cargas maiores (e mais pesadas) na caçamba, entregando de brinde um visual esportivo. Os modelos menores são voltados mais para o lazer. Ponto negativo: em alguns modelos, a suspensão é mais dura, calibrada justamente para o transporte de cargas, pode causar desconforto ao rodar com a caçamba vazia. As picapes com cabine simples também limitam o número de passageiros para apenas dois. Indicado para: motoristas que precisam de mais espaço para acomodar cargas. *AVENTUREIROS Ponto forte: os apliques em plástico preto e adornos estéticos dão um ar de esportividade e imponência. Ponto negativo: não são jipes, ou seja, não foram feitos para encarar uma trilha pesada. Uma estrada de terra batida já está de bom tamanho. Indicado para: quem procura um carro com visual diferenciado.
MOTOR não fazia sucesso nas paqueras da faculdade”, afirma o psicólogo. “Mesmo assim, sempre fui fiel a ele. Nunca pensei em vendê-lo. Nunca o traí. Sempre dei a ele muito carinho. Hoje, me sinto recompensado toda vez que sento em seu banco, sinto seu cheiro, ponho as mãos no volante, dou a partida, acelero e saio por aí. Eu e ele”.
FREUD EXPLICA
Para o psicanalista Fabiano Menezes Junior e para a psicóloga Simone Coutinho, casos de apego como os narrados nesta reportagem são explicados com naturalidade. “É uma maneira de lembrar do passado, de alguma época boa da vida”, afirma Fabiano. “Há casos semelhantes de pessoas que guardam brinquedos da infância até hoje”, compara. Simone, que ano passado defendeu uma tese de doutorado sobre a teoria da posse, acredita que esse tipo de relação é mais normal entre pessoas, mas não é incomum alguém se apegar a um objeto que diga algo mais, que tenha um valor subjetivo, como o relógio herdado do pai ou do avô. “Para muitos, o significado é emocional”, conta. Os psicólogos pedem atenção, no entanto, quando o objeto (o carro, no caso) escraviza seu dono. “Saber dar valor a objetos é fundamental, mas o apego em excesso pode levar a uma inversão dos papéis”, afirma Simone. “Nesse caso, o objeto passa a ser dono da pessoa, atrapalhando que ela siga em frente”. Não parece ser o caso dos personagens desta matéria.
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CUIDADOS NA HORA DA ESCOLHA - Evite carros com cores chamativas. Se você realmente gostar de uma, fique ciente que a desvalorização tende a ser maior do que o normal. - Séries especiais também não são recomendadas. Se você estiver de olho nos acessórios que normalmente elas trazem a mais (por preço menor do que o praticado), esteja preparado para, depois, revender um carro que é menos procurado. - Os importados podem trazer status e exclusividade, mas se você estiver de olho em um, coloque o preço das peças e da mão de obra de manutenção, mais elevado do que os carros fabricados no Brasil, na conta antes de assinar o cheque.