Comportamento
Por Murilo Melo Fotos Divulgação
O poder do
silêncio
Em meio ao excesso de ruídos urbanos e ao estresse que eles causam, cada vez mais pessoas anseiam por resgatar momentos perdidos de paz e quietude
O
som das buzinas começa ao nascer do dia e só cessa no finalzinho da noite. Sirenes apitam, máquinas rangem, motores roncam, construções batucam, motocicletas rugem, alto-falantes gritam e as pessoas, que já não conseguem mais se ouvir no meio da balbúrdia, berram umas com as outras. Essa orquestra sem nenhuma harmonia toca a estridente trilha sonora do cotidiano nas metrópoles brasileiras. E para completar, ainda acontecem as festas – religiosas ou profanas –, com uma estridência que facilmente ultrapassa os 110 decibéis. Muito acima do limite suportado pelo organismo humano sem consequências físicas, que é de 60 decibéis, segundo a OMS - Organização Mundial da Saúde.
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Até recentemente, a poluição sonora era vista como mero incômodo. Mas, conforme a OMS, é o terceiro problema ambiental que mais afeta populações no mundo
Não é difícil perceber que essa permanente agressão aos ouvidos torna as pessoas mais surdas e doentes. Está provado que, nessas condições, o barulho em excesso traz uma série de consequências perturbadoras para a saúde: “A musculatura fica tensa, o coração dispara, a pressão arterial sobe, o estômago encharca de suco gástrico e o intestino trabalha devagar”, enumera o médico clínico e fonoaudiólogo Fernando de Assis Silveira. “Daí, mais adiante, além da surdez, vem estresse, insônia, úlcera, hiperatividade e até infartos e derrames”, acrescenta. Quem mora nos centros urbanos sabe que não é preciso chegar o Carnaval para sentir as consequências da poluição sonora. Transitar nas ruas dos bairros de Itapuã e Ribeira, na capital baiana, por exemplo, significa estar exposto a um nível de ruído de até 99.9 decibéis, conforme relatório produzido nos últimos cinco anos pelo fonoaudiólogo. “O barulho está em qualquer beco e esquina, independente da época”, afirma Silveira. “Quando surge a insônia, nenhum paciente sequer arrisca um palpite que possa ser por causa da exposição prolongada ao som alto da vizinha ao longo do dia”. Até recentemente, a poluição sonora era vista como mero incômodo. Mas, conforme a OMS, é o terceiro problema ambiental que mais afeta populações no mundo. Só perde para a poluição do ar e da água. A surdez está no topo da lista dos problemas desencadeados pelo volume alto. De acordo com dados divulgados no ano passado pela entidade, 360 milhões de pessoas no mundo têm perda de audição de leve a profunda. Destas, uma população de 165 milhões é formada por pessoas acima de 65 anos e 32 milhões por crianças e adolescentes com idade igual ou inferior a 15 anos. Todos, inicialmente, sofrem com o zumbido, um chiado constante nos ouvidos que pode ser o primeiro indicativo de perda auditiva. Vários municípios, no entanto, estão tomando medidas para coibir o barulho que incomoda a coletividade e cada vez mais pessoas buscam soluções individuais para poder desfrutar do silêncio.
Cidade do barulho
Salvador é extremamente ruidosa durante os eventos de seu extenso calendário festivo e fora dele também. Segundo a Secretaria Municipal de Urbanismo (Sucom), os sons nos carros lideram o número de queixas. Em 2014, 2.850 equipamentos sonoros de carros particulares foram apreendidos, o que corresponde a cerca de 43% das reclamações de um total de 59.337 denúncias atendidas pelos fiscais do órgão.
É muito comum condutores estacionarem seus veículos em locais públicos, abrirem o porta-malas e ligarem o som em altíssimo volume. A prática vem irritando moradores, que cada vez mais denunciam, e donos de bares e conveniências em postos de gasolina, revoltados com a confusão que a mistura explosiva de som elevado e álcool costuma provocar. “É gente ameaçando processar o estabelecimento, é vizinho saindo de suas casas e invadindo o bar querendo uma explicação, é confusão no próprio local porque vários clientes abrem o porta-malas dos seus carros querendo comandar suas próprias músicas”, relata Valmir Dantas, gerente de um bar na orla da Ribeira.No estabelecimento e em volta do local há várias placas informando sobre a proibição de som em automóveis. Mas, segundo Valmir, poucos condutores obedecem e a confusão só aumenta. “Em plena segunda-feira, depois de dez horas da noite, quando todo mundo chega em casa cansado do trabalho e precisa descansar ou acordar cedo para ir à aula no dia seguinte, isso já se transforma em falta de educação e de respeito”, reclama o taxista José Lacerda Damasceno, 49, morador do bairro. O som em Salvador é regido pela Lei nº 5.354/98, que determina o índice máximo de 70 decibéis de dia, e 60, à noite. Nos circuitos do Carnaval, um decreto municipal estabelece 110 decibéis para os trios e 85 para os camarotes. Em 2014, conforme o órgão, foram 1.317 notificações, 1.754 autos de infração, 18 embargos de fonte sonora e 116 ações educativas (em igrejas). Os dados da folia momesca deste ano ainda não haviam sido divulgados até o fechamento desta reportagem. O bairro do Rio Vermelho, com sua vida noturna agitada, grande número de carros e ônibus em circulação, bares, pontos de acarajé nos largos, pizzarias e boates, também está na lista dos lugares mais barulhentos da capital baiana. Por lá, a boemia não tem dia certo e muito menos hora para acabar. “O problema todo é que eu preciso dormir, né?”, enfatiza a dona de casa Lúcia Sanches, 32. Ela reclama, sobretudo, do barulho que as pessoas fazem nas ruas e nos bares próximos à sua casa. “O barulho de duas horas da manhã é maior do que o de duas horas da tarde. Tenho um bebê recém-nascido, uma mãe com problemas de saúde e meus avós são idosos. Não se tem paz aqui e ninguém dá jeito nisso”, desabafa. O incômodo levou Lúcia a prestar denúncia contra os estabelecimentos em 2012. Mas, segundo ela, três anos depois, nada mudou. “Vou entrar com uma ação
na justiça e, provavelmente, me mudar até o final do ano. O barulho chega a ser uma coisa insuportável que chega a gente perde as forças”, diz. O dono de um dos bares próximo à casa de Lúcia, Emanoel Filho, afirma que o lugar funciona há mais de trinta anos e que obedece a lei. “O que eu não posso fazer é mandar o cliente calar a boca na madrugada. Aqui é um bairro de encontro, de balada, que ganha vida à noite”, justifica. Conforme levantamento da Sucom, Pituba, Uruguai, Brotas, Cajazeiras, Fazenda Grande do Retiro, Boca do Rio, Pernambués e Federação também figuram na lista dos bairros mais barulhentos de Salvador.
“Desintoxicação acústica”
Abaixar a TV de casa, acabar com o som da festa quando o relógio marca 22h e até evitar buzina no trânsito ajudam, mas são soluções que estão longe de tornar a vida das pessoas 100% confortável. O soteropolitano Breno Pinheiro, 22 anos, costuma fugir da cidade de vez em quando. “Como músico, estou muito mais ligado nos sons. Por isso, para mim, morar em
Salvador é sufocante”, diz Breno, que desistiu de encontrar o silêncio em sua casa, na Barra. “Quando acho que vou conseguir me desligar do estresse, o cachorro do vizinho late”. Por isso, duas vezes por ano, Breno pega a mochila e segue para Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Vai para uma região deserta e sem energia elétrica, para o que chama de ‘desintoxicação acústica’. “É um momento meu, em que cultivo meu silêncio mental”, diz ele. Mas não é preciso ir muito longe para encontrar sossego, acredita a organizadora de eventos Lide Queiroz, 30. Ela, que tem os finais de semana tomados porque organiza eventos musicais na capital baiana, diz usar segundas e terças-feiras para buscar o equilíbrio nas praias do Litoral Norte. “Saio de Salvador e acampo na praia de Arembepe ou de Aratuba. Procuro lugares mais desertos, em que o único barulho que eu possa ouvir é o das ondas do mar. Reflito sobre a minha vida e volto leve para casa”, conta. Escapar para lugares ermos é uma alternativa para quem vive em meio ao caos urbano e quer paz. Experiências ainda
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Comportamento mais profundas constituem a proposta dos ‘retiros de silêncio’, locais onde as pessoas ficam dias sem falar. “Cada vez mais gente está em busca do encontro com o silêncio. Um momento de paz, de introspecção e de reflexão. Isso é uma grande sabedoria. Momentos de calma são importantes para planejar a vida. De tempos em tempos, é bom fazer uma faxina interna”, diz a psicóloga Marta Lins. Para ela, as pessoas enchem o espaço de barulho porque o silêncio as assusta. “No barulho, dispersam-se para não pensar nos assuntos sérios. Ou seja, elas acham mais cômodo adiar os problemas”, analisa.
Retiros de silêncio
O cineasta Mateus Santana, 29, seguirá para seu terceiro retiro, nas férias de junho próximo e nem precisará se afastar muito de Salvador. Irá para Vilas do Atlântico, na região metropolitana, onde acredita ser um local de retiros privilegiado devido a proximidade com o mar, favorecendo experiências de paz e quietude. Durante os dias de retiro, é possível participar de atividades como palestras e vivências de meditação; além de cursos extensivos de meditação Raja Yoga, qualidade de vida e culinária vegetariana. Nos finais de semana, há programações onde se pode desfrutar da natureza, da riqueza do silêncio, além da companhia de pessoas voltadas ao equilíbrio interno e crescimento espiritual. “Foi uma descoberta na minha vida, me ajudou a lidar com a ansiedade”, diz. Além do silêncio exterior, o interior também contribui para uma vida feliz e saudável. A tradição mística de todas as religiões convida à calma e ao recolhimento. “O silêncio pode ajudar para que as emoções se acalmem, além de ajudar a encontrar respostas e caminhos”, diz o místico Carlos Lobo. Muita gente no Brasil procura seguir o exemplo dos japoneses, transformando suas moradias em templos silenciosos,
O silêncio pode ajudar para que as emoções se acalmem, além de ajudar a encontrar respostas e caminhos
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com tatames ou tapetes forrando o chão, muitos livros, poucos eletrodomésticos e sapatos do lado de fora da porta. Foi o que fez a fisioterapeuta Clara Machado, 41. Há dois anos, ela trocou a casa pequena onde morava, com vários móveis, por uma maior e com poucos objetos. “Eu tinha três tevês em casa, mesinhas laterais espalhadas e outros móveis que mais ocupavam espaço do que tinham utilidade. Doei tudo”, lembra Clara. Hoje, a fisioterapeuta tem uma sala mais aberta, que permite a circulação do vento, e diz ser seu lugar preferido para a busca do silêncio quando chega do trabalho. “É prazeroso chegar e deitar no tapete, no chão, e pensar no dia a dia, onde a gente está errando, o que a gente pode mudar”.
Ouça mais e fale menos
Enquanto o modo de vida da sociedade contemporânea nos impulsiona a agir e a fazer, a escuta está envolvida justamente com o movimento contrário, que é permanecer calmo e em silêncio, em uma não ação, explica a psicóloga Marta Lins. “Não precisamos ser ativos o tempo inteiro. Por um momento vamos nos tornar conscientemente passivos. Em vez de nos colocarmos para fora, nos colocarmos para dentro. Em vez de forçar a necessidade de nos expressarmos, vamos ouvir o que o outro diz. E nesse processo ficamos muitas vezes sem responder, sem retrucar imediatamente. Nos tornamos menos mecânicos e reativos e encontramos algumas respostas”, ensina. Foi com esta paz que a madre Maria José, 62, viveu anos em clausura. Das qua-
tro décadas de vida religiosa, ela passou mais de vinte em conventos de Salvador e em Portugal. Só tinha a permissão de falar em horários predeterminados e de deixar o local para consultas médicas. Durante o resto de seu tempo, rezava. “O estado no qual minha alma se encontrava me agradava demais. Estar em silêncio tem um motivo divino especial. Ao calar, ouvimos Jesus”, explica ela. O primeiro órgão dos sentidos a se formar no bebê é o ouvido. Por isso, segundo o místico Carlos Lobo, escutar é uma de nossas primeiras experiências no mundo. “Ouvimos a corrente sanguínea da mãe, sua voz, o batimento cardíaco. E tudo isso nos acalma profundamente”, observa. De acordo com a psicóloga Marta Lins, o silêncio é bem-vindo justamente porque estamos continuamente imersos no barulho e necessitamos dele como uma outra qualidade de impressão. Para o homem atual, que é cada vez mais egocêntrico, agitado e ansioso, desacelerar pode ser uma bênção. “O mundo de hoje faz com que as pessoas falem cada vez mais e ouçam cada vez menos, contribuindo para o caos acústico em que vivemos”. Mas, não são todos que têm estrutura emocional para passar dias – muito menos anos – sem falar. “Pessoas de personalidade frágil podem reagir mal quando ficam muito tempo em silêncio e se encontram consigo mesmas”, diz a psicóloga Marta Lins. A recomendação também vale para quem é depressivo ou sofre de síndrome do pânico. Nesses casos, a completa ausência de barulho pode surtir um efeito contrário e causar agitação. l