Revista Yacht - Tecnologia

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TECNOLOGIA POR Murilo Melo | Fotos Divulgação

desconectar? Quando é a hora de

Redes sociais e aplicativos facilitam nossas vidas, mas usados sem limite, roubam tempo, atrapalham os relacionamentos e podem até causar acidentes

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Todas as sextas-feiras, por volta das 20h, um grupo de oito soteropolitanos se reúne em um bar do Rio Vermelho, bairro nobre e boêmio da capital baiana, para colocar o papo em dia. Formado por jornalistas, publicitários, arquitetos e advogados recém-formados, na faixa dos vinte e poucos anos e amigos desde o colégio, o pequeno clube existe desde 2010. Porém, nos últimos dois anos, volta e meia vários deles ficam dispersos, com suas cabeças inclinadas para baixo, atentos apenas aos smartphones. Plugados em seus aparelhos, eles estão ali na mesa, mas se distanciam dos amigos presentes para dar conta de uma demanda infinita e particular de piadinhas, notícias, paqueras e conversas picotadas geradas por redes sociais como o Facebook, Twitter e Instagram, além de aplicativos como o WhatsApp e Tinder. “Começou a incomodar muito de uns seis meses para cá”, diz o arquiteto Igor Queiroz, 25 anos.


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Para ele, os encontros semanais perderam a graça a partir do momento em que a atenção dele e dos amigos migrou para as telinhas dos celulares. “Tive de reconhecer que, assim como alguns dos meus amigos, eu não conseguia me desconectar e aproveitar aquele momento no bar que a gente esperava e se programava a semana inteira para acontecer. Estava viciado”, diz Igor. A saída, segundo ele, foi adotar o “chá de espera”, uma espécie de jogo em que os amigos são obrigados a empilhar os celulares no canto da mesa. Quem não resistir às notificações apitando segundo a segundo e checar o aparelho tem uma punição aprovada: pagar a conta. A medida funcionou. “Colocamos no silencioso para não despertar curiosidade. Avisamos para nossos pais e namoradas que aquele é o nosso momento e fica tudo certo. Eles entendem nosso lado”, explica o arquiteto. Antes limitados à voz, com o passar dos anos, os celulares se transformaram, em computadores portáteis que podem ser levados a qualquer canto dentro do bolso. É através dele que nos conectamos com o mundo, sabemos da vida de todos e informamos o que acontece conosco. Não é exagero dizer que dentro dos aparelhos estão um grande círculo de amizade, arquivos do trabalho, lembranças e tantos outros dados, que acabam quase exigindo atenção imediata a cada sinal de novidade. Ele toca, vibra ou faz apenas aquele inconfundível som de chegada de uma nova notificação – e pronto! Lá estamos nós, digitando compulsivamente no meio da reunião, da aula, do almoço, do trabalho, do encontro amoroso, quando não em situações arriscadíssimas, como ao volante. “É uma atitude incontrolável porque a mente passa a se adaptar a essa mania de estar conectado e procura a todo o momento, como um vício, suprir a necessidade”, diz a psicóloga Mariana Andrade. O vício em redes sociais e aplicativos é uma realidade e causa impactos que não podem ser desprezados. Se a ideia de desativar o Facebook ou desinstalar

o WhatsApp lhe parece absurda, mas acordar inúmeras vezes na madrugada para conferir o aparelho é encarado como normal; ou se esquecer o celular em casa é motivo de desespero, você precisa redobrar a atenção. “Para muitos, manter o perfil atualizado e as conversas em dia é uma maneira prática e eficiente de fazer contato com os amigos, conhecer novas pessoas, marcar encontros, paquerar, jogar. Para outros, é bem mais que isso: é uma obsessão”, diz a psicóloga. “Começa a virar coisa séria quando a pessoa não consegue colocar limite nela mesma e acha o virtual mais atraente do que o real”, completa. Autocontrole e desejo Uma pesquisa realizada ano passado na Universidade de Chicago sobre autocontrole e desejo revelou que é mais difícil resistir ao Twitter e Facebook do que ao cigarro e ao álcool. Para chegar a essa conclusão, 205 voluntários ganharam smartphones para conferir as redes sociais sete vezes por dia durante sete dias. Após o período estabelecido, os candidatos responderam questionários sobre vícios e desejos.

Os pesquisadores notaram que, uma vez estimulados a manterem contato constante com a internet, os voluntários estavam entregues a um vício: o de navegar na web. A maioria dos participantes tinha dificuldade de parar de verificar suas redes sociais, mesmo quando eles não tinham tempo. Pesquisadores entenderam que se envolver com redes sociais tornou-se uma atividade tão atraente que ela pode acabar deslocando o ser humano de todas as outras atividades. “O vício é uma questão de desequilíbrio entre o desejo pessoal de se engajar no comportamento viciante e o desejo conflitante, de evitar as consequências negativas de tal comportamento. Como no uso de redes sociais os aspectos negativos não estão aparentes, o potencial de vício dessas ferramentas é muito maior do que drogas como cigarro e álcool”, explica o psiquiatra Pedro Marques. Segundo ele, o vício em redes sociais e aplicativos é tão forte quanto a dependência química. “O viciado em drogas precisa de doses cada vez maiores de determinada substância para ter o efeito entorpecente parecido com o obtido no primeiro contato, o viciado em rede social também necessita se expor e ver o que o mundo compartilha minuto a minuto para saciar a sede da curiosidade e do narcisismo”, compara. Sintomas de crise de abstinência, como ansiedade, raiva, angústia, suores, insônia e até depressão quando há afastamento da rede, também são comuns. “É o mesmo comportamento de um alcoólatra”, afirma Marques. “Se para o alcoólatra o bar é o objetivo, para o viciado em rede social estar sempre conectado é a meta”.


TECNOLOGIA Esse celular que não para Embora não pretenda buscar tratamento e não se veja como doente, a estudante de design Clarissa Brandão, 23 anos, tem certeza de que é uma viciada. Usuária assídua do Facebook, ela admite já ter evitado viagens quando descobriu que não teria acesso à rede no destino. “E quando descubro que a galera da faculdade quer acampar e no local não tem cobertura de internet móvel, fico bastante aflita e penso três vezes antes de arrumar as malas”, diz. “Se topo ir para esses lugares, quando volto a me conectar, vejo o quanto perdi. Eu estou o tempo todo sabendo de tudo”. O “sabendo de tudo” da estudante pode ser ficar por dentro dos atuais relacionamentos dos amigos, dos eventos, de festas e das discussões polêmicas. “É como se a vida fosse migrada para a tela do meu celular”, analisa. A dependência das redes sociais fez com que o vendedor Bruno Gonçalves, 26 anos, perdesse o emprego em uma loja de shopping em Salvador. Por não conseguir desgrudar do celular, ele foi chamado a atenção diversas vezes pelo gerente e avisado de que se persistisse com o aparelho nas mãos seria demitido. “Fui dispensado poucos minutos depois da conversa séria que meu gerente teve comigo. Reconheço que minha produtividade era prejudicada. Eu simplesmente não conseguia desconectar porque meu celular não parava de vibrar”, lembra Bruno, que hoje trabalha em outra

loja de shopping e diz ter mudado o comportamento. “Chego na loja e entrego meu celular a um colega. Ele tranca no armário e a partir daí só tenho acesso no intervalo ou quando termina o expediente”, conta. Já o publicitário Bernardo Amorim, 28, depois de ouvir reclamações da noiva, decidiu ficar um mês sem usar a internet do aparelho e chegou a uma conclusão: há, sim, vida sem rede social. “Fiquei mais criativo e produtivo. Li mais, escrevi e conversei mais com a minha noiva. Até compus uma música”, conta, aos risos. Em compensação, as esperas em filas se tornaram maiores. “Eu sempre checo o e-mail e jogo Candy Crush [jogo online disponibilizado pelo Facebook]. Também senti falta de tirar fotos dos lugares por onde passava e do que eu fazia no dia a dia para postar no Instagram. Mas acabei percebendo que eu exagerava ao tirar fotos demais”. Vidas editadas Entender os motivos dessa compulsão em ascensão é desafiador. Por que achamos que é indispensável e, às vezes, passamos a enxergar esses canais como a melhor e única forma de se comunicar? A psicóloga Mariana Andrade tem uma teoria: “Por trás da tela temos o total controle sobre quem nós somos. Nem tudo postado é verdade. Criamos um personagem atraente”. Nas redes sociais, segundo Mariana, as vidas são editadas por filtros de Photoshop, frases de músicos e escritores consagrados, além de lugares que não condizem com a realidade do usuário. “As pessoas postam apenas os melhores momentos, as fotos mais badaladas e as que estão bonitas, expõem idas a restaurantes caros e viagens que causam inveja. Se decidem compartilhar os defeitos, escolhem cuidadosamente a dedo”, critica. A psicóloga explica que nem tudo é ruim nas redes sociais. Pelo contrário. Grande parte do que elas oferecem facilita o dia a dia. “O problema é saber dosar o uso para que as vantagens não sejam ofuscadas pelo vício que surge com os excessos”.

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A vida acontece lá fora Reunimos ideias para você conseguir controlar o uso diário das redes sociais e aplicativos. Veja as nossas dicas, elaboradas com ajuda da psicóloga Mariana Andrade, e comece a colocá-las em prática hoje mesmo! >> Crie regras Estabeleça limites. Comece evitando o uso de aparelhos em reuniões, jantares, cinema... Há quanto tempo você não observa detalhadamente os lugares por onde passa todos os dias? >> Na fila Ande com um livro, jornal ou revista na bolsa para distrair em momentos de ócio (quando parece que só o WhatsApp salva). >> Desative as notificações Tire todos os alertas de redes sociais, aplicativos e grupos. Configure o celular para não atualizar o e-mail em certos horários (por exemplo: à noite e nos finais de semana). A medida vai diminuir seu tempo perdido na rede. >> Fique longe Deixe o celular o mais longe possível de você. Se você não se controla à noite e acorda na madrugada para dar uma espiadinha no aparelho, não durma com o celular ao lado. >> Menos, menos Desative os dados móveis e o Wi-Fi. Essa atitude pode ser boa e sensata para quem vai em restaurante, cinema, teatro... >> Desintoxicação Estabeleça e siga, à risca, um calendário que inclua pelo menos um dia por mês de desintoxicação. Na data estabelecida, abandone todos os dispositivos eletrônicos e organize atividades com amigos que não vê há algum tempo.


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