Urbanismo
Por Murilo Melo Fotos Divulgação
A boa
vida
fora da
metrópole Com o inchaço dos grandes centros urbanos, há quem procure morar mais afastado para garantir a tão sonhada qualidade de vida
N
o século XX, poucos países sofreram um processo de urbanização tão acelerado e caótico como o Brasil. Em 1940, o país era uma sociedade rural. Éramos 40 milhões. Sete em cada dez brasileiros moravam no campo. Bastaram duas gerações para a relação se inverter e as pessoas verem na cidade grande várias alternativas para melhorar de vida. Ano passado, a população brasileira já ultrapassava a casa dos 200 milhões. Desses, cerca de 50 milhões vivem em capitais, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os motivos para abandonar o campo, de acordo com a socióloga Eduarda Paranhos, envolvem as facilidades com a
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educação, emprego e saúde. “Existe a crença de quem mora no campo de que mudar para a capital vai melhorar a vida completamente. Porque as capitais abrigam as universidades reputadas, empregos bem remunerados, hospitais equipados, redes de supermercados e shopping centers privilegiados”, diz Eduarda. Mas o problema é que, com a migração, os centros urbanos passaram a ser um verdadeiro caos com todas as consequências negativas que essa pressão demográfica acarreta: falta de moradia, acesso precário aos serviços de saúde, milhares de crianças fora da escola nas periferias, mensalidades caríssimas em colégios particula-
res, saneamento básico quase inexistente, engarrafamentos, poluição, desemprego e violência. Junte-se a esse caldo de insatisfação o advento das novas tecnologias e um mercado de trabalho mais competitivo e se obtêm os ingredientes para explicar um comportamento que, segundo a socióloga, virou tendência desde o início da década de 2000: parte da população tem abandonado as grandes cidades para morar em cidades do interior próximas ou mais próximas ao litoral. Esses novos migrantes fazem o caminho inverso porque querem tudo aquilo que o crescimento desordenado usurpou dos centros das metrópoles, mas com emprego e infraestrutura urbana ao alcance da mão. Não se trata, por isso, de um frugal sonho campestre. Não é de retorno à vida rural que se está falando. “É, antes, o retorno a uma vida que as grandes cidades brasileiras ofereciam antes de serem abarrotadas de indigentes, mendigos, criminalidade, tráfico de drogas, congestionamentos, loucura e concorrência”, acrescenta a socióloga Eduarda Paranhos. O destino dessa turma são as cidades de até 500 mil habitantes capazes de aliar bons empregos, com qualidade de vida. “Quem não abre mão da capital é automaticamente obrigado a conviver com a impaciência no trânsito, alto custo de vida e maior probabilidade de assalto”, afirma a socióloga. “A maioria das pessoas busca
no interior as vantagens da vida urbana que acabaram se tornando inacessíveis nas grandes cidades”, completa o professor de antropologia Gustavo de Azevedo Cruz. Essas vantagens, conforme ele explica, também podem ser encontradas em municípios menores. Hoje, não é mais privilégio das capitais terem shoppings centers, lojas de grife, internet e TV a cabo de qualidade; além de acesso à cultura, como poder ver peças de teatro, festivais de música e acompanhar estreias de filmes simultaneamente ao cronograma das metrópoles.
Cidade gentil
No depoimento de Thiago Dias, 43 anos, está a síntese dessa nova onda migratória: “Eu queria voltar a viver numa cidade gentil como a Salvador que conheci na infância, quando podia brincar na rua com os amigos e passear à tarde na pracinha com meus pais, sem medo de ser assaltado. Aquela minha Salvador gentil oferecia à nossa família todas as coisas bacanas de uma cidade grande”. Hoje, morando em Ilhéus, no sul da Bahia, Thiago encontrou o que procurava. Em Salvador, sua vida era um pesadelo. Ganhava seis mil reais como analista de sistema e a família tinha um bom padrão. Mas o preço era alto demais. Thiago perdia várias horas do dia em congestionamentos e foi assaltado quatro vezes com a mulher, a publicitária Magali Costa. A tensão era tanta que ele, diabético, passou a ter crises frequentes, motivadas pelo estresse. “Estava ficando doente, então resolvi dar um basta antes que fosse tarde demais”, diz. No ano passado, ele deixou o emprego e decidiu abrir seu próprio negócio em Ilhéus. Com a ajuda da esposa e das filhas adolescentes, comanda uma lanchonete incrementada, que vende até 150 sanduíches por dia. A renda da família, ele não
esconde, caiu pela metade. Mas o rombo na conta bancária não foi tão grande assim. Seus gastos com educação foram cortados, porque a escola particular das meninas, com nível e equipamentos análogos aos da capital, tem mensalidades bem menores. Por fim, a família pode até abrir mão do automóvel, roubado em uma recente viagem para Salvador. “Aqui tudo é pertinho e podemos andar na rua a qualquer hora sem ser molestados por ninguém”, diz. Thiago trabalha em média doze horas por dia, quase o dobro do tempo do trabalho anterior. Parece ter sido um mau negócio? Não é o que ele pensa: “O tempo passa tão rápido que nem percebo. É mais leve, não chego estressado em casa”, compara. Ele também não reclama da falta de tempo para curtir a vida com a família. “Em um
Por que eles querem distância da capital aA vida no interior é mais tranquila aA violência é menor aAr mais puro aMelhor qualidade de vida aAs pessoas são mais amigáveis, generosas e educadas aPouco ou nenhum congestionamento aCusto de vida, em média, bem mais baixo, principalmente no quesito alimentação, educação e saúde
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Urbanismo ano fomos mais juntos ao cinema do que em toda a última década vivida em Salvador”, comemora. O inchaço urbano fez surgir na professora de educação infantil Lucinda Silva, 49 anos, a vontade de sair de Salvador e morar em Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Em Salvador, ela diz não ter qualidade de vida. Com os filhos casados e formados, agora, segundo ela, não há mais necessidade de viver na capital. “É como se eu tivesse fugido do inferno e encontrado o paraíso”, diz. A comparação, segundo Lucinda, é porque ela ficava presa por cerca de duas horas, todos os dias, nos congestionamentos que ligam às avenidas Bonocô e ACM, do trabalho para casa. Saía sete da manhã e voltava para casa somente às nove da noite. “Eu chegava estressada”, lembra. Cansada, dormia cedo. Não tinha disposição para ir ao cinema ou encontrar as amigas, hobby predileto. “Agora eu tenho um emprego perto de casa, que me permite ir caminhando, ganho um salário maior e tenho paz”. Para o artesão Roberto Vieira, 36 anos, o que pesa no bolso é o aluguel de um imóvel em Salvador. Com uma renda mensal que ultrapassa pouco mais de dois mil reais, ele pagava, até dezembro do ano passado, oitocentos reais em uma casa pequena, no bairro de Brotas. “Foi uma das mais baratas que encontrei. Mas ainda pagava água, energia e tinha gastos com as compras do mês. Acabava gastando mais do que ganhava”, lembra. A saída, segundo ele, veio no começo de janeiro, quando resolveu abandonar a capital e ir morar em Serra Grande, litoral sul da Bahia. No município, Roberto mora numa casa maior e diz pagar metade do valor do aluguel anterior. “Com a economia, passei a guardar o dinheiro para alguma urgência”, diz. “O ar em Serra Grande é diferente. Parece não existir poluição. Não saio daqui nunca mais”, enfatiza.
Planejamento é essencial
O professor de economia José César Linhares pede cautela quando o assunto é abandonar a capital. “Pode ser vantajoso para se ter um custo de vida mais baixo, mas se torna um problema caso a pessoa se mude e a vida dela continue sendo baseada toda na metrópole, como o emprego, o plano de saúde, a escola dos filhos ou até mesmo o costume de frequentar o shopping center”, diz. É o problema que a cabeleireira Sandra da Silva, 41 anos, enfrenta há um ano. Com a morte de sua mãe, ela herdou a casa da família em Praia do Forte (a 55 km de Salvador), um lugar com belas praias, coqueirais, trilhas, reservas ecológicas, boa estrutura urbana, poucas ocorrências policiais, com saneamento básico de qualidade, coleta seletiva de lixo, empregos diretos para a população e muitos projetos de responsabilidade social. Vendeu a casa em Salvador e não hesitou em sair da capital baiana. Mas o sonho da vida tropical idealizada por Sandra em Praia do Forte, no entanto, não demorou para se tornar pesadelo. A cabeleireira diz que não tirou o filho de 16
anos da escola em que estudava, no bairro de Nazaré, em Salvador, porque não queria separar ele dos amigos. “Achei que tirando meu filho da casa em que morava desde que nasceu, tirando da cidade em que estava acostumado e ainda tirando do colégio seria uma mudança enorme para a cabeça dele”, explica. Para completar, Sandra ainda mantém seu salão de beleza na capital e não planeja passar o ponto porque, segundo ela, a clientela é grande. “Acho Salvador um caos, por isso quis tanto sair desse sufoco. Mas minha vida se concentra toda na capital, é dela que sai minha renda para pagar minhas contas”, diz. Até as compras do supermercado, a cabeleireira revela ainda fazer em Salvador. O motivo, ela explica: os preços em Praia do Forte são mais altos porque se trata de um local que atrai muitos turistas. Enquanto uma lata de refrigerante na capital custa em média R$ 2,50, em Praia do Forte pode chegar a R$ 6. Outro problema é que, fora da capital, os prazos das empresas que oferecem serviços como telefonia e TV por assinatura também são diferenciados. Se a energia elétrica for cortada fora da capital, segundo a Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (Coelba) leva em média 48 horas após o pagamento da dívida e solicitação do cliente, para ela ser religada. Se for em Salvador, esse prazo cai para até 24 horas. Arrependida, Sandra diz que já faz planos para voltar para a capital. O erro dela, segundo o professor de economia José César Linhares foi a falta de planejamento. “Mudar por mudar, sem planejamento, é caminho certo para o arrependimento. É preciso avaliar na ponta do lápis todos os pontos em questão. Caso contrário, ao invés de fugir da dor de cabeça, a pessoa acaba aumentando o problema”. l *Fonte: Eduarda Paranhos, socióloga
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