Ecos do Fado na Arte Portuguesa XIX-XXI

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Ecos do Fado na Arte Portuguesa XIX-XXI



À distância de cinco meses da conclusão desta primeira rota que nos levará até ao veredicto da UNESCO, sobre a candidatura do Fado à Lista Representativa do Património Imaterial Universal da Humanidade, impunha-se como incontornável esta viagem que nos devolve em imagens a poderosa imanência do Fado como obra-prima de um colectivo, força primordial e sólido fundamento desta expressão artística que, ao longo da sua existência, foi integrando “ a espuma dos dias”, conservando vivas as suas raízes, sem no entanto abdicar da grande plasticidade e da desconcertante expectativa de quem perscruta o Mundo em permanência. É essa essência particular e única que nos permite chegar, hoje, a esta exposição reunindo um conjunto de obras de grande significado que para além da sua origem, contexto de produção, momento de concepção, nos provam, assim reunidas, que o Fado é, indubitavelmente uma presença progressiva, desde o seu surgimento como expressão autónoma, na criação plástica, alastrando muito para além das suas origens, assumindo-se progressivamente como topos incontornável no nosso imaginário, identificando-nos entre nós e perante o outro. Independentemente do statement assumido por cada artista, o que em nosso entender se revela neste percurso que vos propomos é a inabalável evidência de que o Fado, cedo na sua existência, foi objecto de reflexão e autocrítica; talvez seja esse também o principal segredo da sua profundidade e universalismo. Miguel Honrado Presidente do Conselho de Administração da EGEAC E.E.M.



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O Fado, património central da nossa matriz identitária, com raízes profundas e presença estruturante na tradição e história sócio cultural do País, continua a construir-se, nos alvores do século XXI. Desde a sua génese, no século XIX, foi capaz de cruzar influências poéticas, musicais, culturais e tecnológicas diversificadas, desenhando um trajecto de consagração nas mais diversas áreas, à margem dos discursos críticos que sobre o género se elaboraram, logo com a Geração de 70, e que se perpetuaram no plano memorial, ao longo de grande parte do Século XX, na exacta proporção da sua celebração popular. Internacionalizando-se na segunda metade do séc. XX, a sua notoriedade conferiu-lhe o protagonismo de imagem de marca, hoje em plena afirmação no circuito internacional da world music. Paradoxalmente, esta difusão parece tê-lo remetido também para um estatuto de menoridade artística, fruto de constrangimentos ideológicos ou das contingências de um relativismo axiológico, aos quais a academia tardiamente respondeu. De facto, e atentando no conjunto da bibliografia produzida sobre o Fado, verificamos que aproximadamente um século medeia a publicação das principais obras de carácter historiográfico, desde os primórdios do século XX1, com as obras de Pinto de Carvalho e Alberto Pimentel, aos alvores do século XXI, com a publicação de Para uma História do Fado, de Rui Vieira Nery.2 Efectivamente, só a partir de 1978 seria lançado, na academia, um importante conjunto de estudos sobre o tema que a Antropologia viria a protagonizar com Joaquim Pais de Brito. Até então, a bibliografia sobre o Fado correspondeu mais a uma sistematização de discursos essencialmente críticos ou legitimadores da canção urbana3, do que a trabalhos de fulgor científico que só a partir da década de 80 viriam lume.4 1  - CARVALHO, Pinto, História do Fado, (1903) Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984 e PIMENTEL, Alberto, A Triste Canção do Sul, Subsídios para a História do Fado, Lisboa, Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1904.

- NERY, Rui Vieira, Para Uma História do Fado, Lisboa, Publico/Corda Seca, 2004.

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- Vejam-se as obras de SOUSA, Avelino de, O Fado e os Seus Censores, Edição A Voz do Operário, Lisboa, 1912; MOITA, Luís, O Fado, Canção dos Vencidos, Lisboa, 1936; MACHADO, A. Victor, Ídolos do Fado – Biografias, Comentários, Antologia, Lisboa, Tipografia Gonçalves, 1937

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4   - Vejam-se os estudos de COSTA, António Firmino e GUERREIRO, Maria das Dores, O Trágico e o Contraste, O Fado no Bairro de Alfama, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984; BRITO, Joaquim Pais de, prefácio à reedição de História do Fado, Lisboa Publicações D. Quixote, 1984 e, do mesmo autor «O Fado: um canto na cidade», Ethnologia, ano I, nº1:149-184, 1983; Veja-se PAIS, José Machado, A Prostituição e a Lisboa Boémia, Lisboa, Estar, 1985; Veja-se ainda GUERREIRO, Maria das Dores, Mulheres do fado, fados de mulheres. Alfama: o tecido social, as práticas culturais e as suas protagonistas, Lisboa, ISCTE, 1986. Na década de 90 vejam-se, de BRITO, Joaquim Pais: «O Fado», Portugal Moderno. Tradições, Lisboa, Pomo, 1993, Fado: Vozes e Sombras, Lisboa, Lisboa94/Electa, 1994, ou ainda “O Fado: Etnografia na Cidade”, Cultura e Sociedade no Brasil e em Portugal, 1999, pp. 24-42. Nos alvores do século XX, vejam-se: MORAIS, Manuel, Modinhas, Lunduns e Cançonetas com Acompanhamento de Viola e Guitarra Inglesa (Séculos XVIII-XIX),Lisboa, Imprensa Nacional, 2000; MORAIS, Manuel e NERY, Rui Vieira (coord.) A Música no Brasil Colonial, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000; MORAIS, Manuel A Guitarra Portuguesa, Actas do Simpósio Internacional, Universidade de Évora, Évora, Estar, 2001, MELO, Daniel, Salazarismo e Cultura Popular (1933-1958) Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2001, CASTELOBRANCO, Salwa e BRANCO, Jorge Freitas, Vozes do Povo, A Folclorização em Portugal, Lisboa, Celta, 2003.

Pormenor de Pecatta Nostra, 1920 José Malhoa Pastel, 39 x 60 cm Colecção Embaixada do Brasil em Lisboa

Agradecemos ao Prof. Doutor Vítor Serrão e ao Prof. Doutor Rui Vieira Nery o inestimável apoio na orientação da dissertação de doutoramento actualmente em curso no Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Também este texto tem, para com eles, uma dívida de especial gratidão.


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A actual candidatura do Fado à Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade (UNESCO) constitui o corolário de um trajecto de consagração que o Fado foi capaz de desenhar, ao longo de uma história aproximada de duzentos anos, assumindose nos nossos dias como um campo de estudos de legitimidade incontestada.5 Estruturada num exaustivo plano de salvaguarda que preconiza a cooperação estratégica das grandes instituições arquivísticas e museológicas do País, a par das diferentes gerações de criadores, intérpretes, músicos, construtores de instrumentos, das Universidades, dos espaços performativos profissionais e amadores, das editoras fonográficas e dos media – a candidatura vem reiterar a celebração colectiva do valor excepcional do fado como símbolo identificador da Cidade de Lisboa, o seu enraizamento profundo na tradição e história cultural do País, o seu papel na afirmação da identidade cultural, enfim, a sua importância como fonte de inspiração e de troca intercultural entre povos e comunidades. Transmitido de geração em geração, o património cultural imaterial do fado é, ainda hoje, permanentemente recriado pelas comunidades, promovendo um sentimento de identidade e de continuidade6, numa história em permanente devir. Entretecida no quadro de um diálogo estreito com a cidade, a história do fado é também a história de todos aqueles que o recriaram nos domínios da criação plástica. Neste sentido, um olhar atento sobre as artes plásticas que representaram o tema, atestará também o profundo enraizamento do Fado à escala regional e nacional, a transversalidade da sua representação, como objecto de inesgotável citação e recriação pictórica pelas sucessivas gerações de artistas plásticos nacionais, no quadro de distintas motivações e constrangimentos estéticos, ideológicos ou simbólicos. Partindo de um recenseamento iconográfico que se não pretende, naturalmente, exaustivo, a presente exposição visa, assim, contribuir para uma reflexão integrada da construção da identidade imagética do fado, no âmbito da sua vasta dimensão memorial. Retomando o pensamento de Richard Leppert7 a representação visual da música, enquanto actividade socializada permitirá iluminar contextos de criação e fruição, nomeadamente no que concerne à percepção, consciente ou inconsciente, que um grupo ou sociedade tem do estatuto cultural da música e dos valores intrínsecos ao seu consumo. No seu pioneiro ensaio Music and Image, Leppert afirma que “a música surge na arte visual não porque o som musical existe, mas sim 5  - NERY, Rui Vieira, Para Uma História do Fado, PUBLICO, Corda Seca, 2004, pp. 273-283; Veja-se ainda “Propaganda pela Trova: Movimento Operário e Ideal Republicano no Fado de Lisboa até à Ditadura” in Fado, 1910, Lisboa, EGEAC-Museu do Fado, 2010.

- Cfr. Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da Humanidade, UNESCO, 2003, (art.º 2, alínea 1).

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7  - LEPPERT, Richard, Music and Image: Domesticity, Ideology and Socio-cultural Formation in Eighteenth Century England, Cambridge University Press, 1989, pp. 3-4.

Pormenor de Lá vem a Nau Catrineta I, II e III, 1998 Tapeçarias de Portalegre Lá vem a Nau Catrineta que tem muito que contar, Almada Negreiros, 1945 406 x 254 cm Colecção Montepio Geral



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Garrafa em forma de figura antropomórfica “Mulher de Guitarra”, séc. XIX Atr. Oficina de Maria dos Cacos (activa entre 1820 e 1853) Barro vermelho vidrado, 21,5 x 11 x 10 cm Colecção Museu de Cerâmica / Instituto de Museus e Conservação


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porque o som musical tem um significado. Como tema central, a música em si é silenciada na arte visual, existindo apenas como recordação de coisas passadas: tudo o que resta da música na imagem é o seu carácter de actividade socializada... Mas geralmente apenas certas formas de actividade musical são representadas na arte visual, nomeadamente aquelas que constituem signos reconhecíveis de modos de comportamento e pensamento socialmente aceites (com maior significado que a própria música) indo ao encontro do que é uma função essencial da imagem: comprovar”. Neste sentido, através da obra de arte, aqui entendida como testemunho aberto e global, dotado de perene contemporaneidade e sempre capaz de suscitar inúmeras dimensões de leitura, poderemos iluminar mentalidades, construções ideológicas elaboradas em torno da Fado, programas imagéticos, contextos de produção artística, comportamentos de mercado e hábitos de consumo, constrangimentos de ordem ideológica, simbólica e estética. Neste contexto, vislumbramos a fixação e estabilização de signos e ícones, a associação às temáticas da saudade e da melancolia, a representação visual de alguns dos mitos da fundação do fado – com enfoque nas origens marítimas – em suma, retomas iconográficas e sonoras, sempre presentes no diálogo aberto que se desenhou entre a arte performativa e as artes visuais e o seu tributo específico na construção de uma identidade imagética do fado na sua dimensão trans-memorial8. Paralelamente, e à luz da representação visual do Fado, poderemos destrinçar o percurso de evolução e disseminação da canção urbana, desde a sua consagração popular, a partir dos meados do século XIX, na esfera de um primeiro enraizamento bairrista9, até aos nossos dias. Fruto da consagração popular do Fado, a representação plástica do tema sucedeu no quadro de uma vincada diversidade de disciplinas artísticas, dimensionando-se num volumoso e multifacetado corpus artístico de representações do tema, integrando obras de fulgor académico, bem como trabalhos de carácter mais periférico, tantas vezes precursores de uma gramática plástica legitimadora do próprio género performativo10.

8   - SERRÃO, Vítor, A Trans-Memória das Imagens. Estudos Iconológicos de Pintura Portuguesa (Sécs XVI-XVIII), Lisboa, Cosmos, 2007

- NERY, Rui Vieira, Para Uma História do Fado, Lisboa, PUBLICO, 2004, pp. 62-96.

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- Cfr. PEREIRA, Sara, “Ecos do Silêncio: Para um Estudo Iconológico do Fado”, in Aprendizes de Feiticeiro, Investigações de Doutoramento dos cursos do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 8 e 9 de Maio de 2008, Lisboa, Edições Colibri, 2009, pp. 223-238. Sobre a representação do fado nas artes visuais veja-se o pioneiro levantamento de Ruben de Carvalho em Um Século de Fado, Alfragide, Ediclube, 1999; as publicações Humores ao Fado e à Guitarra (Direcção Osvaldo Sousa), Lisboa, Museu do Fado, 2001; O Fado por Stuart Carvalhais Museu do Fado, Lisboa, 2005; Fado, 1910, Museu do Fado, Lisboa, 2010;

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No silêncio das imagens que compõem o presente recenseamento iconográfico – que não se pretende exaustivo - ecoam os testemunhos do património intangível e imaterial do fado, essencialmente efémero, fugaz, incorpóreo e irrepetível e, neste sentido, dificilmente se materializando noutro testemunho que não o da nossa memória individual. Como bem sublinhou Luís Marques,11 também no estudo integrado do património imaterial a história da arte adquire pertinência maior, nomeadamente através de conceitos operativos como a cripto-história da arte12 - conceito fundamental ao entendimento de testemunhos artísticos desaparecidos, a uma reconstituição de unidades perdidas mas também à leitura do efémero, à recriação de ambientes performativos, de cenografias ou códigos cinéticos mais emblemáticos da representação dos protagonistas do fado - ou a micro-história da arte13, atendendo às existências artísticas de dimensão periférica ou regional que, ilegitimamente relegadas para o plano de uma menoridade artística, indiciam porém, relevância iconográfica e simbólica, atestando a vitalidade desta arte performativa e o seu enraizamento à escala local. Tais serão, nomeadamente, os casos de representações como as garrafas de licor e de caixas de fósforos com a figuração do fadista, objectos de fabrico artesanal como A Casa da Mariquinhas, de Alfredo Marceneiro, de miniaturas de guitarras de cariz decorativo ou utilitário, das citações anónimas recorrentes de Malhoa ou Stuart na composição de objectos do quotidiano, entre tantos outros testemunhos. Nesta viagem das formas que representaram o fado o enfoque iconológico atentará especificamente nos programas culturais e artísticos que presidiram à criação das obras e sua fruição por sucessivas gerações, contextualizando motivações e constrangimentos de ordem social, ideológica, simbólica e estética, desvendando os itinerários de resistência, a fixação e estabilização de símbolos omnipresentes e omnicompreensíveis14 e o seu tributo na construção simbólica de uma identidade imagética do Fado na sua mais lata dimensão trans-memorial. Desde a Geração de 7015, fixavam-se, na nossa literatura, alguns dos posicionamentos

- MARQUES, Luís, “Antropologia do Património e da Arte” in ARTIS, Revista do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, nº 6, 2007, pp. 443-465.

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- SERRÃO, Vítor, A Cripto-História da Arte. Análise de Obras de Arte Inexistentes, Livros Horizonte, Lisboa, 2001.

13   - GINZBURG, Carlo, A Micro-História e outros Ensaios, Difel, Lisboa, 1991 e Mitos, Emblemas, Sinais, Morfologia e História, Companhia das Letras, S. Paulo, 1991.

- WARBURG, Aby Essais Florentins, org. de Eveline Pinto, Klincksieck, 1990.

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- Veja-se o minucioso levantamento de Rui Vieira Nery, em Para Uma História do Fado, Lisboa, Publico, Corda Seca, 2004, pp. 140-145.

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Guitarra em faiança, séc. XIX Atelier Cerâmico Visconde de Sacavém Faiança polícroma, 12 x 57 x 15 cm Colecção Museu de Cerâmica / Instituto de Museus e Conservação

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Caixas de Fósforos Marca “Severa”, s/d. Sociedade Nacional de Phosphoros, Lisboa, Colecção Particular


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críticos do fado que haveriam de consolidar-se, ao longo da primeira metade do séc. XX, num denominador comum de hostilidade à canção urbana de Lisboa, transversal aos diferentes sectores ideológicos e que a literatura e as artes plásticas tantas vezes partilharam. Dimensionando-se em diferentes momentos da história do fado, estes discursos críticos estruturaram-se a partir de motivações diversas, quer, formulando, num primeiro momento, um distanciamento crítico da marginalidade associada aos contextos de performação fadista – posicionamento profusamente ilustrado, entre outros, por Eça de Queiroz, Fialho de Almeida ou Ramalho Ortigão16 – quer por força de constrangimentos de ordem ideológica que se prolongam durante todo o séc. XX – dos quais constituem bons exemplos o repto de António Arroio17, em 1909, as célebres palestras de Luiz Moita difundidas em 1936 na Emissora Nacional e logo compiladas no livro “O Fado, Canção de Vencidos” ou os posicionamentos críticos de António Osório em 197418. Atentando nas diferentes narrativas plásticas que compõem o portfolio da representação visual do fado, vislumbramos o reflexo destes posicionamentos nos discursos intrínsecos de cada obra, no quadro de uma diversidade plástica que, ora representa figurativamente19, ora se inquieta, a partir do modernismo português20 para resistir21, já durante o Estado Novo, à estetização da política cultural, à qual responderá com a politização do discurso plástico.22 E se, na década de 80 do século XX, assistimos a uma reconciliação da intelectualidade portuguesa com o Fado, nomeadamente através da inauguração de estudos académicos consagrados ao tema, também nas artes plásticas, nomeadamente nas obras de Júlio Pomar ou Leonel Moura, vislumbramos como que uma celebração e um reconhecimento do lugar do Fado na nossa matriz identitária. Observando especificamente os programas culturais e artísticos que presidiram à criação   - “Porque se não prendem os fadistas todos?” indagava Ramalho Ortigão em 1878; Veja-se “O fadista”, As Farpas. O País e a Sociedade Portuguesa, Tomo VII; Lisboa, Livraria Clássica, 1948, p. 173.

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- Referimo-nos ao apelo, sobejamente conhecido, “Rapazes, não cantem o fado!” de António Arroio, em 1909; Veja-se O Canto Coral e sua Função Social, Coimbra, França Amado, 1909, pp. 58.

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- OSÓRIO, António, A Mitologia Fadista, Livros Horizonte, Lisboa, 1974.

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- Nomeadamente pela mão de Bordalo Pinheiro, Columbano, José Malhoa, Constantino Fernandes, Roque Gameiro, E.J. Maia, Leonel Marques Pereira, Eduardo Moura, Alberto de Sousa

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- Referimo-nos, aos trabalhos de Almada Negreiros, Amadeu, Eduardo Viana ou mesmo, à fina ironia de Bernardo Marques ou Stuart Carvalhais;

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- Veja-se o volumoso conjunto de trabalhos de Cândido da Costa Pinto dos quais a tela Anti-fadismo (1963) consolida a mais crítica visão do tema nas artes plásticas ou a ironia de João Abel Manta nas Caricaturas Portuguesas do Tempo de Salazar já em 1974.

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- Retomando a conceptualização de Walter Benjamin, presente na tradução portuguesa Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d´Água, 1992.

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das obras e sua fruição por sucessivas gerações - num processo ao longo do qual a literatura e as artes plásticas tantas vezes espelharam posicionamentos similares - atestamos, necessariamente, uma representação do tema de perfil académico, convivendo com uma gramática plástica essencialmente legitimadora do fado, numa proliferação de discursos eminentemente críticos ou apologéticos do género.

Costumes do Século XVIII, s/d Alfredo Roque Gameiro Aguarela s/ papel, 14,7 x 21,5 cm Colecção Museu de Aguarela Roque Gameiro / Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro


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No último quartel do século XIX, época em que surge pela primeira vez nas artes visuais, o Fado ocupava ainda uma condição marginal, assumindo-se gradualmente como um importante veículo de memória e cidadania fundamental à consolidação do movimento operário - pela consciencialização social intrínseca aos repertórios cantados – ou mesmo pela propagação do ideário republicano emergente num processo que Rui Vieira Nery classificou de Propaganda pela Trova23. Manipulado pela caricatura e pelo humor gráfico, o Fado será neste contexto, eficazmente politizado, correspondendo a este período as utilizações recorrentes da figura da mítica cantadeira Maria Severa Onofriana (1820-1846), do mendigo cego tocador, ou da manipulação desajeitada da guitarra portuguesa pelo Zé Povinho que Rafael Bordallo Pinheiro trazia à estampa em 1875. Se atentarmos no recenseamento imagético do Fado nas artes visuais do século XIX, percebemos a preponderância da representação do tema no universo editorial, particularmente através da sua utilização pela caricatura e pelo humor gráfico, para além do corpus imagético de pendor naturalista e documental, onde podemos rastrear os antecedentes musicais e coreográficos do fado – com incidência na ilustração dos relatos de viajantes dos séculos XVIII e XIX ou nas referências iconográficas documentando a execução da guitarra portuguesa. Aqui se incluem, designadamente, as telas dos alvores oitocentistas da autoria de José António Benedito Soares de Faria e Barros (1752-1809), o célebre Morgado de Setúbal – trabalhos cuja fortuna crítica está ainda por cumprir - os desenhos aguarelados de E. J. Maia, as representações de Kinsey, Taylor, Robert Batty e Joubert24, ou mesmo a célebre imagem representando Negros a Dançar, aqui citada na aguarela de Alfredo Roque Gameiro, Costumes do Século XVIII, pertencente ao Museu Aguarela Roque Gameiro.25 Ainda do mesmo período, a sugestiva Festa na Aldeia de Leonel Marques Pereira documenta a utilização da guitarra em ambiente festivo, de exterior, acompanhando um bailarico popular. Também nos dois desenhos da autoria de Columbano Bordalo Pinheiro26 que aqui se apresentam, a citação da execução instrumental assume o protagonismo, seja no rigor da figuração do Guitarrista, seja na representação de O Gaspar da Viola, o último dos cantadores afamados da Lisboa oitocentista, segundo Tinop.   - NERY, Rui Vieira, “Propaganda pela Trova”, in Fado, 1910, Lisboa, EGEAC/Museu do Fado, 2010.

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- W. M. Kinsey, Peasant playing a guitar, vinheta, 1827; J. Taylor, The Litanies at Coimbra, estampa, ca.1827; Robert Batty, Lisbon from the Chapel Hill of Nossa Senhora do Monte, gravura, 1830; Jorge Bekerster Joubert, Marinheiro e Rapariga, 1825

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APDG, Sketches of Portuguese Life, Manners, Costume and Character, Londres, Geoffrey B. Whittaker,1826;

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- Ambas as obras pertencentes às colecções do Museu Nacional de Arte Contemporânea, Museu do Chiado. Veja-se a respeito da obra do autor o exaustivo catálogo coordenado por SILVEIRA, Maria de Aires, Columbano, Lisboa, MNAC, 2010.

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Com génese no início do século XIX, será, sobretudo a partir de 1847, através do “Suplemento Burlesco” do jornal O Patriota que o humor gráfico se desenvolverá, de modo mais sistemático, entre nós, testemunhando e parodiando o quotidiano político, social, cultural e artístico. A primeira incursão da figura do fadista nas artes visuais ficou a dever-se a Raphael Bordallo Pinheiro em 1872, numa litografia27 representando dois fadistas, logo reproduzida no jornal El Mundo Cómico28 e publicada no álbum A Gravura de Madeira em Portugal, de J. Pedrozo. Na gravura a buril de 1872 Bordallo Pinheiro registou documentalmente a pose e os trejeitos das figuras do tocador e do cantador como aliás o atesta a descrição de Pinto de Carvalho da farpela do fadista a partir de 1860. Ali reencontramos a jaqueta de alamares, a gravata com as pontas caídas, a cinta, para além de outros pormenores corroborando a pose e o traje das figuras de Bordallo: “Alguns traziam a jaqueta ao ombro esquerdo, a fim de terem livre o braço direito e poderem defender-se e aparar os golpes com ela. A moda era o chapéu redondo ou o barrete. Uns estilavam o cabelo cortado até ao meio da cabeça e crescido adiante para fazer belezas; outros estilavam-no apertado à banda, rapado no pescoço e com belezas na testa”. 29 Acompanhando um período de gradual consagração do fado, em círculos sociais cada vez mais diversificados, o legado de Bordallo Pinheiro integraria um assinalável conjunto de representações alusivas ao tema – quer através de retrato naturalista dos fadistas do seu tempo, quer manipulando o género para parodiar diferentes episódios da conturbada vida política nacional. Na impossibilidade de rastrearmos a totalidade destes testemunhos nestas páginas atentaremos, ainda que sumariamente, em alguns destes trabalhos. Em 1876, no seu Album de Caricaturas, Bordallo consagrava ao fadista uma página própria intitulada “Phrases e Anexins da Língua Portugueza” exemplificando diferentes anexins da língua: Largar uma piada; Dois pobres a uma porta; Dá Deus nozes a quem não tem dentes; A mulher de bom recato, enche a casa até ao telhado; Também aqui a verosimilhança do traje do fadista é corroborada pela versão fidedigna de Tinop quando revela: o último Petrónio do fadistismo trajava jaqueta de alamares, calças de quadradinhos brancos e pretos estranguladas no joelho.30

- Typos de Lisboa – Os Fadistas, colecção do Museu Rafael Bordalo Pinheiro, com o Invº Nº. MRBP GRA 0230, actualmente em exposição no Museu do Fado.

27

- El Mundo Cómico, 2ª série, nº 48 de 1872.

28

- CARVALHO, Pinto de (Tinop) História do Fado, Publicações D. Quixote, Col. Portugal de Perto, Lisboa, 2004, pp. 58-59.

29

- CARVALHO, Pinto de (Tinop) História do Fado, Publicações D. Quixote, Col. Portugal de Perto, Lisboa, 2004, p. 58.

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Marujo, 1857 E. J. Maia Desenho aguarelado, 32 x 22,7 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa


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Em 1880, Bordallo retomaria o tema, numa magnífica caricatura intitulada “No Bairro Alto da Política - Scena de sedução,”31 recorrendo ao fado para parodiar o contexto político e social, designadamente através de um diálogo ficcionado entre os progressistas de Mariano de Carvalho e o rei D. Luís: “Torradas e mais torradas, Por cima café limão, Nós vimos aqui senhor, Orar sim, pedir perdão. -Ora viva lá, seu gajo Você tem lérias em barda, Se eu aceito os seus conselhos, Inda hoje usava albarda - De tantas descomposturas Nossas desculpas aceite Torradas e mais torradas, Por cima, café com leite. - Por cima café limão, Com você vae tudo raso Enquanto assim me defendem Eu vou amolando o caso” De novo em 1882, Bordallo recorrerá ao fado para fazer sátira em “A Attitude do Dono da Casa,”32 numa alusão às diferentes facções liberais e ao contributo destas para a agonia gradual do regime monárquico. Pela primeira vez, o Zé Povinho figurava executando a guitarra portuguesa - a partitura do Hymno da Restauração - na sua natural passividade. A um canto, muitas outras partituras disponíveis - Pescarias do Algarve, Patuleia, Pinos Puentes, O Fandango, Campanha da Península - reiteravam a sátira à instrumentalização popular pelo poder político. Em 1883, porém, a voz crítica de Bordallo assumia maior contundência numa composição em que os dignatários da política nacional se vestiam como fadistas. No

- António Maria de 7 de Janeiro de 1880

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- António Maria de 17 de Dezembro de 1882

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Fadistas, 1873 Rafael Bordallo Pinheiro Gravura, 26 x 21 cm Colecção Museu Rafael Bordallo Pinheiro / Câmara Municipal de Lisboa


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trabalho intitulado “O Fado da Política”33 vemos Mariano de Carvalho, Fontes Pereira de Melo e Anselmo José Braancamp batendo o corridinho ou o rigoroso com o Zé enquanto a inscrição vem ampliar, o tom satírico: “Toda a gente bate o fado, Todos fazem escovinhas, Mas é sempre o Zé, coitado, Quem apanha as pancadinhas”… Num outro trabalho34 Bordallo manifestava a sua preferência pelas guitarradas, parodiando a carestia dos ingressos para assistir à apresentação de uma cantora lírica: “Toma lá dez libras para ires ouvir a Patti e eu cá fico com dez réis para ouvir o Gaspar da Viola”. Como vimos, também Columbano Bordallo Pinheiro e Tinop imortalizaram a figura do popular músico amador, o primeiro no desenho que aqui se expõe e, o segundo, referenciando-o nos anais da história do fado: Os guitarristas trovadores, vagueando à la buena de Dios pelas ruas de Lisboa, são antigos (…) o último desses cantadores afamados das ruas lisboetas foi o Gaspar da Viola, um virtuose da mendicidade.35 Em 1894 - atestando a consagração popular do género à medida que se aproximava o dealbar do século - Raphael retomaria o tema do fado no programa artístico dos azulejos da Tabacaria Mónaco, integrando na composição um conjunto de rãs, de feição antropomórfica, em pose de grande expressividade fadista. Numa alusão à apropriação do fado pela comunidade estudantil de Coimbra também Leal da Câmara, numa obra intitulada A rua36, parodiava: Capa, guitarra, tuna, pândega … E a lógica que vá para o Diabo que a carregue… A pretexto da publicação do romance A Severa de Júlio Dantas, em 1901 – obra que condicionaria decisivamente a mitologia elaborada em torno da figura da cantadeira meretriz Maria Severa Onofriana - Raphael Bordallo Pinheiro opera um pastiche da figura da cantadeira que aqui representa a Constituição, num curioso trabalho onde pode ler-se: Chorae fadistas chorae que a Severa já morreu!37 Diz-nos Saavedra Machado no jornal A Guitarra de Portugal38: o fadista podia, como tantos maus políticos, viver de meros expedientes, embora não tivesse onde cair morto; podia carpir os

- António Maria de 5 de Abril de 1883

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- “Zé Povinho ao Capitalista Machucho”, Pontos nos ii de 1 de Abril de 1886

34

- CARVALHO, Pinto de (Tinop) História do Fado, Publicações D. Quixote, Colecção Portugal de Perto, Lisboa, 2004, p.251. 35

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- D. Quixote, a 4 de Agosto de 1896

37

- A Paródia de 8 de Fevereiro de 1901

38

- A Guitarra de Portugal, Ano V, nº 109, 12 de Março de 1927


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No Bairro Alto da Política Rafael Bordallo Pinheiro António Maria, 1 de Julho de 1880

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O Fado da Política Rafael Bordallo Pinheiro António Maria, 5 de Abril de 1883


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A Atitude do Dono da Casa Rafael Bordallo Pinheiro Antรณnio Maria, 17 de Dezembro de 1882

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desalentos dum vegetar desgraçado; expandir as suas dores em cantos dolentes e apaixonados; mas o seu trajo, o seu tipo, toda a sua bamboleante exterioridade, enfim, amedrontavam e afastavam os burgueses cheios de preconceitos (…) Bordalo, porém, não viu apenas no fadista – como poderá julgar-se por alguns croquis em que o apresenta munido de uma navalha - um desordeiro, um criminoso vulgar, um madraço, ou um furioso desalentado. Mais frequentemente, e até nos melhores trabalhos que sobre o fado publicou, desenhava-o de preferência a tocar, a cantar, a dançar. Viu nele, assim, também o homem do povo que a fatalidade marcou talvez impiedosamente, mas que sabia suavizar as suas mágoas, cantando ao som das cordas duma guitarra; viu nele uma alma algo sensível de poeta e scismador. Se a Geração de 70, como vimos, desde logo manifestou uma certa iconoclastia em relação ao fado, o contexto artístico das décadas seguintes assistiria à emergência do naturalismo pictórico, que romperia definitivamente com a simbólica convencional de inspiração grecolatina à medida que promovia uma arte para a classe média, facultando, no contexto da sua recepção crítica, uma identificação imediata do significado intrínseco de cada obra. Estendendo-se também ao campo literário, o naturalismo potenciava o efeito de realismo pictórico, consagrando a pintura de género e a composição paisagística de Norte a Sul do País, à semelhança do que sucedia em Inglaterra, França ou Alemanha, num processo que Eric Hobsbawm caracterizou como o da Invenção da Tradição39. De facto, para a Geração de 1890 - de onde sairiam os líderes da República - as “ideias modernas” faziam-se acompanhar do pressuposto da existência de uma “realidade portuguesa” uma forma de vida que correspondia exactamente ao modo de ser dos portugueses e que se perdera quando estes começaram a imitar os outros burgueses europeus.40 Espelho deste posicionamento é o repto lançado aos artistas por Alberto Oliveira em 1894, aterrado pela possibilidade, mais ou menos remota, de uma eventual perda da identidade nacional: ”Amanhã, de aqui a dez ou cinquenta anos, talvez já as serranias da Beira estejam povoadas de hotéis ingleses e as altivas florestas portuguesas cheias de árvores veneradas como velhos frades, se achem terraplanados e penteados bosques de chaminés e fábricas” 41 Paralelamente, e desde a década de 1880 desdobrava-se a atenção consagrada aos Museus Nacionais: o Museu de Belas-Artes e Arqueologia, actual Museu de Arte Antiga, abria portas em 1884 - depois de alterações estruturais profundas - o Museu Etnográfico em 1893, o Museu Militar em 1895, o Museu de Arte Sacra de S. Roque e

- Veja-se o capítulo “Inventing Tradition” em HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence, The Invention of Tradition, Cambridge University Press, 1992, pp. 1-14.

39

-Cfr. RAMOS, Rui, “A Segunda Fundação (1890-1926)”, História de Portugal (Direcção de José Mattoso), Volume VI, Círculo de Leitores, 1994, Lisboa, pp. 574 e seguintes.

40

- OLIVEIRA, Alberto, “Palavras Loucas”, França Amado Editor, 1894, p.214.

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A Severa Rafael Bordallo Pinheiro Parรณdia, 8 de Fevereiro de 1901

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o Museu dos Coches Reais em 1905. Anos mais tarde, seria a República a multiplicar os Museus pelo País, ciente do papel central da arte na educação dos meios populares. Nas artes plásticas, por influência de Silva Porto, o líder do “Grupo do Leão”, que se deixara contaminar em Paris pela pintura naturalista, crescia o gosto pela pintura paisagística de Norte a Sul do País, que constituía motivo de procura crescente entre a Família Real e a burguesia de Lisboa e do Porto: Em 1893 Silva Porto vende uma grande tela por 700 mil reis. Para o público com menos posses trabalhava formatos médios (35 a 70 mil réis) e pequenos (15 a 30 mil reis) Era uma pequena indústria. Porto repetia as telas mais procuradas, consagradas e celebrizadas pelas reproduções em jornais e revistas.42 A partir da figura tutelar de Silva Porto, impunha-se, então, uma nova ortodoxia pictórica através de instituições como o Grémio Artístico (1891) ou a Sociedade Nacional de Belas Artes (1901). O entendimento imediato das obras, ao nível da sua recepção crítica, proporcionado pelos novos programas artísticos – despojados das referências eruditas da pintura clássica – ditou o seu consumo alargado por toda uma classe média e também pelo universo de amadores que a podiam praticar sobretudo através da aguarela, um meio técnica e financeiramente mais acessível do que o óleo. Esta nova gramática plástica seria ainda largamente propagada, nas décadas seguintes, pelos discípulos de Porto, Reis e Malhoa, agrupados em 1911 no Grupo Ar Livre e em 1927 no Grupo Silva Porto. É neste contexto que o fado irrompe na pintura portuguesa pela mão de José Malhoa, em 1909, fixando um modelo iconográfico popular, urbano e marialva que, consolidando a via mais naturalista de tratamento do tema, desde logo assumiu um lugar de absoluta centralidade na iconografia do género. A extensa fortuna crítica de José Malhoa tornou sobejamente conhecidas as peripécias que pontuaram a produção da obra O Fado, que envolveu a colaboração de modelos reais - o fadista Amâncio e a Adelaide da Facada – com quem Malhoa terá discutido particularidades iconográficas e consentimentos de poses43e que acabariam, ainda que fortuitamente, por participar, com mestre Malhoa, pintor fino e consagrado, na fundação de uma identidade imagética do fado. De facto, no decurso desta viagem das formas e atentando especificamente nas retomas iconográficas e sonoras presentes no diálogo aberto que se desenhou entre a arte performativa e as artes visuais ao longo do Século XX, a obra de José Malhoa ocupa   - Cfr. RAMOS, Rui, “A Segunda Fundação (1890-1926)”, História de Portugal (Direcção de José Mattoso), Volume VI, Círculo de Leitores, 1994, Lisboa, pp. 574 e seguintes.

42

- SILVA, Raquel Henriques, “O Fado em Pintura”, Lion, Maurice, Pallu, Franceses tipicamente Portugueses, Lisboa, Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, 2003, pp. 145-162.

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indiscutivelmente um lugar central na construção de uma identidade imagética do fado na sua dimensão trans-memorial44. Quiseram os fados que o mais português dos pintores fundasse, nos alvores do século XX, uma identidade imagética até hoje indissociável da canção urbana de Lisboa. A partir da representação de modelos reais encontrados na Mouraria, a que correspondem um fadista de nome Amâncio e a sua companheira Adelaide “da Facada” se fundaria um modelo iconográfico ao qual a canção lisboeta se associaria definitivamente. Efectivamente, e como veremos, esta obra seria manipulada, até aos nossos dias, por artistas diversos, sobretudo pela caricatura e humor gráfico, numa primeira fase, que a utilizariam de forma recorrente em obras de vincado pendor satírico.   - SERRÃO, Vítor, A Trans-Memória das Imagens. Estudos Iconológicos de Pintura Portuguesa (Sécs XVI-XVIII), Lisboa, Cosmos, 2007

Amâncio, c. 1910 José Malhoa Estudo para O Fado Carvão s/ papel, 43 x 37 cm Colecção MNAC Museu do Chiado / Instituto de Museus e Conservação



Pecatta Nostra, 1920 José Malhoa Pastel, 39 x 60 cm Colecção Embaixada do Brasil em Lisboa


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José Vital Branco Malhoa45 nasce a 28 de Abril de 1855 na Travessa de S. Sebastião, nas Caldas da Rainha, segundo filho de Ana Clemência e de Joaquim Malhoa. Entre 1870 e 1873 frequenta a Real Academia de Belas Artes, aprendendo designadamente, Desenho Antigo com Victor Bastos, Pintura de Paisagem com Tomás de Anunciação e Desenho de Modelo ao Vivo com Miguel Ângelo Lupi. Recusada a sua candidatura a uma bolsa no estrangeiro para Pintura de Paisagem por dois anos consecutivos (1874 e 1875) acabaria por empregar-se como caixeiro na loja de confecções do irmão Joaquim, na Rua Nova do Almada, em Lisboa. Daquele estabelecimento só sairia em 1881, mediante a crítica da clientela que alegava o desperdício do talento do pintor na actividade de caixeiro. José Malhoa passaria desde então, a dedicar-se exclusivamente à criação artística, obtendo amplo reconhecimento com a exposição da obra Seara Invadida, em Madrid. Já em 1879 porém, um dos seus primeiros quadros de costumes - Quer a Sorte? Vendedeira de Cautelas - era premiado com a Medalha de Prata na Exposição Portuguesa no Rio de Janeiro, cedo anunciando um trajecto de consagração. Em 1881 realizava para a revista O Ocidente uma série de dez desenhos sobre a inundação da Ribeira de Santarém - encomenda consensualmente reconhecida pelos seus biógrafos como o primeiro dos trabalhos remunerados de José Malhoa46. Registando documentalmente o ocorrido, cumpria-se a credibilidade do relato junto do público, na linha das práticas mais correntes da imprensa do século XIX, onde artistas e gravadores procuravam registar com a maior verosimilhança os factos que constituíam a notícia. Sobre este talento peculiar de Malhoa para captar um instantâneo do quotidiano haveria de reconhecer um crítico, anos passados sobre a publicação em Portugal, pela casa Emílio Biel, dos álbuns de fotografias de monumentos, costumes e paisagens: Com todos os segredos da paleta e uma importante prática do difícil desenho, elle fixa o typo observado com a naturalidade surpreendida. É como se kodackizasse…47 Membro fundador do Grupo do Leão, Malhoa participaria no mesmo ano com Cristino da Silva, Moura Girão, Cipriano Martins, Henrique Pinto, António Ramalho, Silva Porto, João Vaz e Rodrigues Vieira na Iª Exposição de Quadros Modernos, realizada na Sociedade de Geografia de Lisboa. Inaugurava-se então um percurso de consagração e reconhecimento consensual da arte de Malhoa, constante ao longo dos diferentes ciclos políticos nacionais, desde o final agonizante do Regime Monárquico, passando pelo eclodir da República, até à afirmação do Estado Novo, como bem salientou Paulo Henriques. Iniciando-se na pintura   - Da extensa fortuna crítica do pintor, salientamos o abrangente levantamento de Paulo Henriques, “José Malhoa”, Colecção Pintura Portuguesa do Séc. XIX, Direcção de Raquel Henriques da Silva, Edições INAPA, Lisboa, 2002.

45

- Idem, p. 9.

46

47

- Idem, pp. 18-19


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Adelaide, s/d. José Malhoa Estudo para O Fado Óleo s/ tela, 49 x 65 cm Colecção Particular

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Estudo para O Fado, 1908 José Malhoa Tinta s/ papel, 10,5 x 13,9 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa


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decorativa de espaços públicos como o Real Conservatório de Lisboa ou o Museu Militar, passando pela arte do retrato - em encomendas sucessivas não só da Casa Real e da nobreza mas também as decorrentes da afirmação de novas classes sociais que emergiram durante a República - fixando os costumes populares numa iconografia do quotidiano, Malhoa consolidaria uma imagética popular numa urgência sentida em Portugal nas últimas décadas do século XIX de definir uma pintura nacional e de criar necessárias e sólidas referências à nossa cultura artística. 48 A obra O Fado é, seguramente, a mais recorrente peça do imaginário iconográfico fadista e também aquela que maior número de apropriações sofreu ao longo da história da arte portuguesa, desde a caricatura de imprensa do primeiro quartel do séc. XX, aos nossos dias. Símbolo da vigência em Portugal de um gosto oitocentista – facto bem presente na homenagem que em 1928 é feita ao seu autor, José Malhoa, bem como no comportamento do grande público, que tranquilamente consome os restos de um programa naturalista, de fácil digestão – esta obra foi à época coroada de êxito e rapidamente suscitou reacção do meio artístico, quer na caricatura de imprensa da época, quer nos artistas do Modernismo. O historiador Rui Ramos49 desvendou as peripécias que envolveram a génese do quadro, nas palavras de José Malhoa: por uma tarde parada, como esta, de olhos semicerrados, pensava eu no meu atelier, em planos vagos a realizar. Uma guitarra sobre uma banca, fez-me meditar nisto: quem teria feito o primeiro fado? Embevecido nesse sonho, fazendo passar ante meus olhos todas as Severas, de cigarro na boca e perna traçada, cantando a melancólica canção das perdidas. Feitos os primeiros esboços, Malhoa andou durante quatro meses pelos bairros populares de Alfama, Bairro Alto e Mouraria vendo aquela vida que tão necessária era para o meu trabalho e depois atirei-me ao quadro. Trabalhou ainda com modelos profissionais, porém, como o próprio confessaria: esses modelos não me davam nada do que eu sentia e via no natural. O amigo e fotógrafo Júlio Novais prontificou-se a introduzi-lo na boémia fadista e, na Tendinha do Rossio, entre os cocheiros da Praça, Malhoa viria a conhecer um fadista a valer: o Amâncio. Ao fadista Amâncio, confessava Malhoa, em 1915, devo eu o ter pintado o meu quadro. Criticando as primeiras versões trabalhadas com modelos profissionais Amâncio ter-lhe-ia explicado: isso não é um fadista. Nós cá usamos o cabelo cortado à meia-laranja; o atacador é até à bica e quando cantamos, sem olhar para quem, é preciso que disfarçadamente se veja, no bolso da calça da perna esquerda, o cabo da navalha. Depois, arranjou-lhe outro modelo: a Adelaide da Facada quinté parece uma Severa.   - Idem, p. 167.

48

- Idem, pp. 574 e seguintes; Tomamos as citações do autor de uma entrevista de José Malhoa ao jornal A Luta, de 20 de Março de 1915.

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Terá sido assim na companhia de Amâncio, a quem se atribuía o cognome de O Pintor que Malhoa fez as primeiras incursões na Rua do Capelão, rua tão notória que Malhoa, completamente deslocado na paisagem, foi imediatamente interceptado pelo polícia de ronda, a quem teve de explicar que não era o deboche, mas a arte que lá o levava. No albergue de Adelaide uma bela mulher, de seio rijo, braços esculturais, rosto interessante, desfeado apenas na face esquerda pelo traço de uma grande facada, da orelha à boca Malhoa trabalhou durante trinta e cinco dias examinando detidamente esse interior: a meia cómoda com a sua toalha de ramagem vermelha, e por cima o clássico croché; os santinhos na parede; o vaso de manjerico com o seu cravo de papel; a bola suja de pó de arroz, o pequeno toucador do espelho com a gaveta aberta e sobre ele o pente de alisar, os cigarros, a garrafa de vinho50. Era então apelidado pelas gentes do bairro como o pintor fino em oposição ao fadistão Amâncio, cuja actividade marginal lhe valera o epíteto de o pintor. Amâncio recebia 6 vinténs por sessão, garantindo assim a presença de Adelaide. Porém, logo que se encontravam a sós as agressões culminavam numa detenção no Governo Civil onde Malhoa se deslocava frequentemente para libertar os seus modelos. Findos os primeiros estudos, Amâncio levou a Adelaide às Avenidas Novas para ver o primeiro carvão do quadro: Amâncio, aquilo já parece quando a gente estava lá em casa na paródia. Malhoa passou ainda cerca de onze meses a trabalhar no quadro, mas ficou satisfeito como confessaria em entrevista: Não há nessa tela apenas um fadista e uma rameira. Há ali uma mulher encantada ao ouvir o seu melhor afecto, que lhe canta ao coração51. Está ainda por cumprir um recenseamento exaustivo dos estudos prévios que presidiram à criação da obra O Fado. Para além dos estudos em exposição, há notícia no catálogo das leiloeiras Palácio do Correio Velho e Leiria e Nascimento da licitação de vários estudos das figuras de Amâncio e Adelaide52 que não foi possível localizar para a presente exposição. A génese da obra pode rastrear-se até 1908, data de um pioneiro estudo a óleo sobre

50

- Idem, pp. 574 e seguintes;

- Idem, pp. 574 e seguintes;

51

- Vejam-se os catálogos das leiloeiras Palácio do Correio Velho e Leiria e Nascimento: Amâncio, óleo sobre tela, 59 x 48 cm, pela Leiloeira Palácio do Correio Velho, a 14 de Dezembro de 2000; Adelaide, óleo sobre tela, 50, 5 x 65, 5 cm, pela Leiloeira Leiria e Nascimento, a 15 de Maio de 2001; Amâncio, óleo sobre tela colada sobre madeira, 42 x 32, 5 cm pela Leiloeira Leiria e Nascimento a 13 de Dezembro de 2005; No verso deste último estudo consta a seguinte inscrição: “Exmo Senhor envio a cabeça de estudo para “O Fado” que tem a curiosidade de o adquirir. Indicando a guitarra tapei a tecla que ainda se via e parece-me que a cabeça ganhou. Manifestando-lhe mais uma vez os meus agradecimentos (….) com a mais alta consideração, José Malhoa, Lisboa, 9 de Fevereiro de 1916.”A datação deste estudo foi provavelmente inscrita aquando da venda do mesmo. Veja-se ainda o fundamental catálogo José Malhoa, (Direcção de Lourenço Pereira Coutinho) Bolonha, Itália, Arting Editores, FMR, 2008.

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madeira53, onde pode verificar-se a introdução de uma terceira figura na composição, porventura uma alcoviteira. Sandra Leandro avança com a probabilidade intencional de criação de um fado mais longo: um tríptico passando pelas fases de sedução, alcouce e desenlace.54 Esta hipótese, já avançada por Matilde Tomaz do Couto, encontra-se aliás documentada num outro estudo, a tinta-da-china sobre papel, da colecção do Museu José Malhoa, também datado de 1908. No estudo prévio de 1908, Malhoa pintou Adelaide com a alça caída e a saia branca. Nas versões definitivas (1909 e 1910) o seio cobriu-se e o traje branco foi substituído por uma saia vermelha. Na versão de 1909 verifica-se uma maior vivacidade do pincel de Malhoa – desde logo na figura de Amâncio - bem como uma profusão de elementos pintados, nomeadamente, nos braços de Adelaide - que ostentam várias tatuagens - e nos laçarotes coloridos que compõem a blusa. Ainda na versão datada de 1909, Adelaide ostenta no braço esquerdo a tatuagem de dois A’s entrelaçados (Adelaide e Amâncio) junto a dois corações e o decote é mais generoso.O exame radiográfico promovido pelo Instituto Português de Conservação e Restauro55 permitiu perceber que este arrojo foi corrigido na conclusão da segunda versão. Em ambas as versões, porém, é possível observar a tatuagem criminal dos cinco pontos na mão direita de Adelaide. Vale a pena determo-nos na profusão de elementos decorativos neste instantâneo do albergue de Adelaide: o toucador com o espelho partido – atributo clássico da iconografia representando a virtude perdida – e onde podemos descobrir o reflexo de uma cadeira junto à janela; o napperon de crochet sobre uma toalha de ramagens cobrindo a cómoda; as gravuras na parede, nomeadamente a imagem do Senhor dos Passos da Graça – então venerado em procissão nesta zona da cidade – de S. Lázaro – protegendo da peste, da fome e da guerra – e ainda a imagem de um toureiro, sobreposta a um leque, encimado por duas bandarilhas; o vaso de mangerico com um cravo e uma quadra; o candeeiro a petróleo e outros elementos reiterando a dimensão de intimidade, já sugerida na pose e na languidez de Adelaide: o pente, a borla de pó de arroz, a gaveta do toucador aberta, o lavatório sobre o qual pende uma toalha e finalmente a cortina vermelha levantada deixando antever o quarto de Adelaide. Diz-nos Sandra Leandro que o candeeiro de lata, comprado a Emília Rato, uma vizinha de Adelaide e a cortina vermelha do quarto, que o pintor adquiriu na Rua da Regueira, em Alfama, foram os únicos objectos que não se encontravam cenário que era a casa e a sina da “mulher desgraçada”.56   - Estudo para O Fado, 1908, óleo sobre madeira, 22 x 26 cm, colecção particular;

53

- LEANDRO, Sandra, socorrendo-se dos estudos de Manuel de Sousa Pinto e do pioneiro levantamento de Mathilde Tomaz do Couto, op.cit., p.86.

54

- Instituto Português de Conservação e Restauro, Relatório – Estudo Comparativo “Fado” e “CML – Fado”, Lisboa, 2002.

55

56

- LEANDRO; Sandra, op. cit, p. 91.


Estudo para O Fado, 1908 José Malhoa Óleo s/ madeira, 22 x 26 cm Colecção Particular


Adelaide, s/d. José Malhoa Estudo para O Fado Óleo s/ tela, 34 x 44 cm Colecção Galeria Antiks Design


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Testemunho verista, O Fado ilude-nos na sua planimetria, transportando-nos para o interior do albergue de Adelaide onde a cena se desenrola ao nível do nosso olhar. Em ambas as versões, os eixos, as diagonais e os ortogonais da tela, se cruzam junto ao cotovelo de Adelaide, esquecido sobre a mesa. A luz naturalista que banha o corpo de Adelaide vai escurecendo à medida que nos aproximamos do lado direito da composição, sobretudo na versão de 1910, que denota um maior tratamento fisionómico das figuras. De facto, também o tratamento lumínico vem consolidar, sobretudo na versão de 1910, um realismo de feição mimética,– diferença assinalável entre ambas as versões, nomeadamente na representação anatómica ou na figuração da guitarra portuguesa - reiterando o foro de verdade social57 aos fados de Amâncio e Adelaide. Quando terminou o quadro, José Malhoa convidou os moradores da Rua do Capelão para o ver no seu atelier Lar-Oficina Pró-Arte para onde se mudara em 1905 na então designada Avenida António Maria Avelar58. Ali se conjugavam o espaço de habitação no piso térreo e o atelier do artista no primeiro andar, abrindo-se ao exterior num imenso janelão. Embora escandalizando mentalidades à época, o convite dirigido aos habitantes da Mouraria, não terá sido alheio ao consensual reconhecimento d’ O Fado no seio das camadas populares, familiarizadas também com o conjunto de peripécias que envolveu a produção do quadro. Esse terá sido seguramente um factor de mediação decisivo relativamente a um sector importante do público lisboeta entusiasta de O Fado: ... findo o quadro Mestre Malhoa convidou os amadores da Rua do Capelão para irem ver o quadro à Avenida 5 de Outubro, onde foi apreciado por um verdadeiro cortejo de rameiras e fadistas. O Fadista tocava guitarra e manejava a navalha como poucos. Era ciumento e brigão. Foi o Amâncio, assim se chamava, quem apresentou ao pintor o outro modelo, a Adelaide. Era conhecida por «Adelaide da Facada» devido a um golpe profundo na face esquerda. Tinha um gato, cego de um olho e mau, o «Escamado», mas que não foi possível obrigar à pose.59 Efectivamente, O Fado obteve cedo consagração popular não sendo, porém, abrangido pelo gosto consensual da crítica que se distanciava sobretudo da natureza do tema representado. Com efeito, mais do que qualquer outra obra de Malhoa, O Fado suscitou uma multiplicidade de leituras indissociáveis dos contextos de recepção crítica que o acolheram. José Malhoa terminou a obra nos primeiros meses de 1910. A Ilustração Portuguesa   - Retomando a expressão de Paulo Henriques, op. cit., p. 167.

57

- Actual Casa Museu Anastácio Gonçalves no nº 6-8 da actual Avenida 5 de Outubro. Malhoa encomendou a construção em 1904 e ali viveu até à morte da mulher em 1919. O projecto, da autoria do arquitecto Norte Júnior, recebeu o Premio Valmor.

58

- Cfr. SERRA, João Variações sobre O Fado in “Revista dedicada ao pintor José Malhoa”, suplemento da Gazeta das Caldas, Caldas da Rainha, 1983, p. 26.

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Adelaide, s/d. José Malhoa Estudo para O Fado Óleo s/ tela, 34 x 44 cm Colecção Galeria Antiks Design

Pormenor de O Fado, 1909 José Malhoa Óleo s/ tela, 86 x 107 cm Colecção Particular


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dedica-lhe uma página, com reprodução fotográfica de Benoliel, qualificando-a de obraprima não só pela execução soberba, mas também pelo seu pitoresco assunto (...) São as baixas camadas sociais tentando o pincel de Malhoa, num período em que o livro e o teatro as desdenha.60 Ainda em 1910, O Fado é apresentado na Exposição Internacional de Arte do Centenário da República da Argentina, em Buenos Aires, com o título Bajo el Encanto. Em 1912 integra a exposição José Malhoa, organizada pelo seu grande amigo e discípulo Augusto Gama, na cidade do Porto. Em 1912 integra o Salão de Outono em Paris, com a designação “Sous le charme” e posteriormente seguia para Liverpool, com o título The Native Song. Em 1915 era-lhe atribuído o Grand Prize na Panamá Pacific International Exhibition, evento realizado em S. Francisco por ocasião do Canal do Panamá. Em Lisboa O Fado seria exposto a 1 de Maio de 1917, no 14º Salão da Sociedade Nacional de Belas Artes, embora usufruísse já de ampla divulgação, como o atestam as referências sistemáticas na imprensa, as ilustrações da brochura alusiva a Malhoa publicada em 1914 por Cruz Magalhães ou a peça homónima de Bento Mântua, publicada em 1915 e levada à cena no S. Carlos. Na sequência da sua exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, a Câmara Municipal de Lisboa, ainda em 1917, adquire O Fado pela quantia de 4.000$00 - verba anualmente destinada à aquisição de estatuária para ornamentação dos jardins da cidade – destinando-o para o Museu Municipal, já criado mas ainda não instalado. A demora nessa instalação levou à sua exposição na sala do Presidente, facto que motivou algumas objecções na imprensa, incidindo na inadequação do tema do quadro face à nobreza do espaço61. Com efeito, se a Ilustração Portuguesa defendia que Malhoa fez vibrar o público com o seu quadro saído do convencionalismo (...) o pintor não receava tratar a vida portuguesa, mesmo num dos seus mais baixos aspectos62, bem diferente é a opinião expressa por Álvaro Maia63 relativamente a um assunto que não prima, nem pela beleza, nem pela moral ou por Hermano Neves que discorda dos que chamam ao Fado do sr. Malhoa a dignificação e a apoteose do vício. É uma composição realista, chocante mesmo64. Para Humberto Pelágio, Malhoa terá sido vítima da popularidade de O Fado que fez apagar outros temas dominantes da sua 60

- Ilustração Portuguesa, 7 de Março de 1910. Veja-se a propósito a apropriação desta notícia por João Vieira no catálogo Fado Português, Lisboa Galeria Valbom, 2005.

61   - Cfr. SERRA, João, “Variações sobre O Fado”, Revista dedicada ao pintor José Malhoa, suplemento da Gazeta das Caldas, Caldas da Rainha, 1983. p. 27. Durante largos anos exposto no salão nobre dos Paços do Concelho O Fado (1910) aí permaneceu até à sua transferência para o Palácio da Mitra, para integrar a exposição permanente do Museu da Cidade, aí instalado entre 1942 e 1979.

- Ilustração Portuguesa, 13 e 20 de Junho de 1910.

62

- Álvaro Maia no Diário Nacional de 4 de Maio de 1917.

63

- A Capital, 5 de Maio de 1917.

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obra, que melhor justificariam a consagração, e atirado ao baixo público sendo um pouco vítima desse quadro que, criando-lhe entre a plebe e a burguesia uma auréola de consagrado intérprete da fatalidade nacional esbateu, ofuscou65 a restante obra, bem mais meritória, no seu entender. Na década de 1960 também Reinaldo dos Santos atribuiria o sucesso da obra a uma época e um meio de deficiente cultura artística66. Menos reticentes foram Fernando Pamplona, Augusto de Castro ou Egas Moniz, cujo testemunho valerá a pena transcrever: Há quem não goste do Fado por isso talvez critique essa obra-prima do genial Mestre, o mais castiço pintor que teve Portugal. As gerações passam e, digam o que disserem, a canção fica. Nesta hora continua a ser apreciada por nacionais e estrangeiros nas salas que lhes dedicam os entusiastas do Bairro Alto. «O Fado» de Malhoa é documento que perdurará, mesmo que o entusiasmo do presente pela canção popular esmoreça com o rodar dos anos que tudo consome e destrói. Os que repelem a música que a maioria ama e sente, não renegarão a obra de Malhoa que é, inegavelmente um dos melhores quadros pela verdade e pela técnica, obra excelsa da pintura portuguesa67. Já no Estado Novo consagrava-se Malhoa logo em 1928 com homenagens nacionais ao artista e, mais tarde, com a criação do Museu com o seu nome em 1933. Na exposição inaugurada na Sociedade Nacional de Belas Artes a 16 de Junho, em torno da obra O Fado como de Os Bêbados ou de A volta da Romaria, os contempladores eram como moscas atraídas por uma doçura68. A angustiante permanência deste gosto naturalista rapidamente suscita, no ambiente dos artistas do modernismo, a ironia em torno desta obra emblemática. Com efeito, a primeira geração de pintores modernos do séc. XX português, reagiu ao mais mítico dos artistas oitocentistas que, nesse tempo, era um dos símbolos da permanência e o sucesso de uma ordem estética a abater. Para a geração do modernismo português, Malhoa era um bota de elástico, presunçoso e antiquado, que vendia tudo quanto produzia, personalidade ilustre e bem admirada, embora se limitasse a pintar sempre o mesmo, um povo boçal, resignado e analfabeto. A sua obra O Fado não foi tanto um acontecimento, mas um fantasma, símbolo de um gosto naturalista e romântico que procurou coarctar a primeira geração do modernismo69.   - PELÁGIO, Humberto, José Malhoa (Pintor), Lisboa, 1928.

65

- SANTOS, Reinaldo dos, Oito Séculos de Arte Portuguesa, História e Espírito, Lisboa, 1963, Vol. I.

66

- MONIZ, Egas, A Folia e a Dor na Obra de José Malhoa, separata do Boletim da Academia das Ciências de Lisboa, Vol. XXVII, Abril-Maio de 1955, pp. 11-12.

67

68   - Cfr. PINTO, Manuel de Sousa “Conferência” in Livro da homenagem ao grande pintor José Malhoa realizada, com a exposição das suas obras na Sociedade Nacional de Belas Artes em Junho de 1928”, Lisboa, 1928.

- SILVA, Raquel Henriques in João Vieira, Fado Portuguez, Catálogo da Exposição, Galeria Valbom, 2005.

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O Fado, 1909 José Malhoa Óleo s/ tela, 86 x 107 cm Colecção Particular


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O Fado, 1910 José Malhoa Óleo s/ tela, 151 x 186 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa

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Efectivamente, este afastamento a que se ditaram os artistas do seu tempo ficou, porventura, também a dever-se ao facto de Malhoa ter usufruído sempre, em vida, de amplo reconhecimento oficial, ao contrário dos modernistas do seu tempo, cujas iniciativas inovadoras o naturalismo instalado sempre limitou. Um século corrido sobre a criação d’O Fado, a obra, como veremos, continua a ser alvo de apropriações diversificadas pelas artes plásticas portuguesas, que assim perpetuam a sua inscrição num conjunto de provocações risíveis. Com efeito, a paródia em torno do quadro de Malhoa tem-se assumido, na arte portuguesa, como um ritual de rememoriações em cadeia, iniciado pelo traço humorístico da época e com continuidade até aos nossos dias. A partir d’ O Fado de Malhoa se inspiraram renovadas criações artísticas, na caricatura na pintura, no teatro e no cinema ou mesmo nos repertórios fadistas. Neste sentido, parece ténue a fronteira entre o destino d’O Fado de Malhoa e o próprio destino da canção urbana. De facto, os seus contextos de recepção parecem coincidir, tal como os públicos, sociologicamente considerados, que neles se reconheciam. E se a atitude dos públicos de Malhoa se dividia entre a tranquila redenção de uma ortodoxia pictórica e a sua recusa - ao reconhecer nesta pintura a perpetuação de um gosto exclusivista, coarctando qualquer afirmação de modernidade -também os públicos do fado se dividiram, entre a apologia frenética e o aviltamento crítico face a uma mitologia fadista que se dimensionara a partir do século XIX e que O Fado de Malhoa sintetizava. Muitos houve, entusiastas da restante obra artista, que não aceitaram esta sua incursão num domínio que uma certa moral burguesa preferia ignorar. Aqui residirá, porventura, o motivo pelo qual existiu um período de 7 anos entre a conclusão da obra e a sua primeira exposição em Lisboa, tal como interrogava Norberto de Araújo: Coisas de entendidos em arte! Quem sabe que consagração lhe está guardada por parte do grande público?70 Curiosamente, cerca de três décadas passadas sobre a sua morte, em 1941 numa conferência proferida na Sociedade Nacional de Belas Artes, a propósito de Malhoa e o Grupo do Leão, um dos mais paradigmáticos representantes do modernismo em Portugal, José de Almada Negreiros71, haveria de referir-se a ele com reverência: Ele tem de pintar por toda a gente! Ele tem de dizer a pintar o que não sabem dizer aqueles que ele pinta! Já não é só de pintura que se trata (...) É uma linguagem que existe dentro daqueles que não sabem dizê-las! Talvez que a isso se chame arte. Mas porque não teriam pensado nisto há mais tempo? (...) Malhoa é o conspirador da Grande Conspiração para pôr a Arte a servir, a servir quem deve, a servir os   - ARAÚJO, Norberto em A Manhã, 1 de Maio de 1917.

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- Cfr. NEGREIROS, Almada, Malhoa e o Grupo do Leão, Letras e Artes, 20 de Julho de 1941.

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Pormenores do filme Fado, 1923 Maurice Mariaud

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vivos. (...) Por cima da pintura de Malhoa, por cima da sua própria vida de homem, o destino escolheu-o para meter mãos à obra de ligar outros destinos desencontrados da vida e da Arte. O seu caso na vida portuguesa e na Arte ultrapassa os factos e entra na verdadeira Poesia da História. De facto, a consagração d’O Fado sucedeu mais eficazmente no universo de admiradores da canção urbana e não tardaríamos a encontrar reproduções da obra na imprensa consagrada ao universo fadista, que vem a lume a partir de 1910, citações na caricatura de imprensa, integrando as decorações de recintos profissionais, ou mesmo inspirando repertórios fadistas como o célebre Fado Malhoa, em 1947, para a série de curtas metragens que Amália Rodrigues protagonizou com realização de Augusto Fraga. Fado Malhoa (José Galhardo/Frederico Valério) Alguém que Deus já lá tem Pintor Consagrado Que foi bem grande e nos dói Já ser do passado Pintou uma tela Com arte e com vida A trova mais bela Da terra mais querida Subiu a um quarto que viu À luz do petróleo E fez o mais português Dos Quadros a óleo Um Zé de samarra, Com a amante a seu lado Com os dedos agarra Percorre a guitarra E ali vê-se o Fado Faz rir a ideia de ouvir Com os olhos, senhores? Fará, mas não quem Já o viu, mas em cores! Há vozes de Alfama/ Naquela pintura


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E a banza derrama Canções de amargura Dali vos digo que ouvi A voz que se esmera Boçal do faia, banal Cantando a Severa Aquilo é bairrista Aquilo é Lisboa Boémia e fadista Aquilo é de artista Aquilo é Malhoa”

Na impossibilidade de procedermos, nestas breves páginas, a uma inventariação sistemática destas variações sobre O Fado, atentemos sumariamente em alguns casos que testemunham, afinal, a popularidade e consagração da tela, como a peça de Bento Mântua intitulada O Fado Episódio em 1 Acto (1918), uma espécie de interpretação dramática da representação pictural, ou o filme mudo, homónimo, do realizador francês Maurice Mauriaud de 1923, operando um mimetismo de todos os detalhes iconográficos da composição, desde os adereços decorativos à caracterização das personagens. Na sequência da estreia do filme no Verão de 1923 - e numa época em que os periódicos de fado assumiam já uma intenção reiterada de legitimação do género face à propagação dos discursos de distanciamento crítico que, como vimos, se dimensionavam desde o ultimo quartel do Século XIX - o jornal A Guitarra de Portugal publica um testemunho censório do filme de Mauriaud - extensível ainda a Malhoa – numa resposta do universo fadista àquilo que entende serem retratos pouco edificantes do fado: …Foi em uma visita a casa do pintor Malhôa que o Sr. Maurice ante o quadro “O Fado” pensou na execução do seu filme (…) O Sr. Mauriuad é francês. Tem centenas de peças suas em cinema, interpretadas por artistas franceses. Em Portugal também já muito lhe deve a “arte do silêncio”. Todavia, a arte que defendemos e propagamos é imprecisamente tratada. O Sr. Mauriaud enfermou tal como enfermam todos os que não vivem nos meios onde mais tarde buscam motivos para as suas obras d’arte… O distinto técnico foi vagamente informado sobre o que se passa com o fado. Esta canção do povo, sr. Mauriaud, não vive só nos meios devassos e taciturnos da nossa gente; é verdade que o dedilhar do fado na rua do capelão é lúgubre e marca a distância que vai da virtude ao vício (…) A canção é pura como a neve dos Alpes. Quem a macula são os degenerados. O ilustre homem de cinema confunde o fado Destino com o Fado Canção. O primeiro é universal, o segundo é puramente português. O Sr. Mauriaud em nada dignificou a canção, toada embaladora dos nossos navegantes, a


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O Marinheiro, 1913 Constantino Fernandes Óleo s/ tela, 146 x 145 cm (painel central), 146 x 84 cm (painéis laterais) Colecção MNAC Museu do Chiado / Instituto de Museus e Conservação


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mais embaladora que conhecemos… Lamentamos que João Ferreiro (Soveral) a não cante, porque na vida real cantam-na e adoram-na porque ela é bem um hino do trabalho. Os nossos poetas trabalhadores e heróicos, teem-na como uma oração que os faz sonhar. Na sua película só se escuta o fado canção no bordel lamacento cantado por faquistas e rameiras, atraindo simplesmente gente de baixa moral e na vida portuguesa que o Sr. Mauriaud conhece tão vagamente ele atrai desde a costureirita simples e modesta, ao operário honrado e digno à escritora Maria de Carvalho e ao ilustre clínico Dr. Borges de Sousa. Fere-nos o vermos a guitarra pegada por mãos de crime (…) Como a nossa canção é comprometida! Se o sr. Maurice nos dissesse qual é a canção que tantos degenerados faz na sua terra natal tão prenhe de prostituição?! Enfim a arte do silêncio poderá ficar devendo bastante ao Sr. Mauriaud, mas a nossa canção só lhe ficara devendo algo de descrédito. Malhôas, Mantuas, Mariares poderão ter feito grandes obras para a arte da cor e das atitudes mas a arte do sentimento, do coração, só se poderá sentir traída. Em 1913 a temática do fado irrompe novamente na pintura pela pena de Constantino Álvaro Sobral Fernandes (1878-1920) no tríptico O Marinheiro. Tendo cumprido a sua formação na Escola de Belas Artes em Lisboa e complementando, mais tarde, a sua educação artística em países como a Itália, Bélgica, Holanda e Espanha, Constantino Fernandes no seu regresso a Portugal, em 1908, aliava, ao rigor e talento de habilíssimo desenhador, uma grande exactidão na aplicação da paleta cromática. Em O Marinheiro, Constantino fixou três momentos da vida no mar: um trecho do navio em plena viagem, uma cena de chegada ao cais pautada pelo reencontro familiar e um momento de acostagem do navio num porto distante, onde um marinheiro vergado pela saudade avivada pela carta que acaba de receber, masca o seu cachimbo enquanto escuta a toada da guitarra portuguesa. Retomando um dos mitos fundadores da história do fado - o da sua origem marítima, que Tinop defendera nos alvores do século XX e José Régio fixou no célebre Fado Português72 - a representação do fado sucede nesta composição, também pela via de uma inevitável associação aos temas da saudade e da melancolia, profusamente ilustrados nos textos fadistas, e, desde logo, pela figura do tocador, de grande rigor no desenho anatómico e na figuração da guitarra portuguesa. Outras representações de pendor figurativo da primeira metade do Século XX documentam inequivocamente o enraizamento do culto do fado e a sua gradual consagração à escala nacional. De facto, culto do fado surge aqui documentado em ambientes diversificados, desde os cafés, tabernas e botequins – como nas obras de Eduardo Moura, Interior de   - Gravado por Amália Rodrigues Amália em 1965, com música de Alain Oulman : “O Fado nasceu num dia/Em que o vento mal bulia/Na amurada de um veleiro/ E o céu o mar prolongava/No peito de um marinheiro/ Que estando triste cantava” .

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uma Taberna, 1909 ou Alberto Souza, Café da Severa, 1924 – como prática quotidiana em ambientes urbanos e rurais – como no caso das obras de Alfredo Roque Gameiro, Rua de S. Miguel em Alfama, Raquel Roque Gameiro, Minho, 1935, ou Carlos Reis, Jardim com Tocador de Viola ou mesmo Emmerico Nunes, Da Madragoa à Ajuda pela Pampulha, datada de 1947. Nesta curiosa composição, o Fado pontua o quotidiano da cidade acompanhando um cortejo fúnebre que a intenção humorística de Emmerico Nunes faz transmutar em evento festivo.

Café da Severa, 1924 Alberto de Souza Tinta-da-china e aguarela s/ papel, 29 x 36 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa


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Rua de São Miguel em Alfama, séc. XX Alfredo Roque Gameiro Aguarela s/ papel, 65 x 41 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa


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O contexto artístico europeu dos alvores do século XX constituiu um momento de reflexão e sondagem, a um tempo lúcida e inquieta, pelo aparecimento de vanguardas estéticas que se manifestaram por impulsos de ruptura face às perspectivas académicas institucionais. Promovendo-se uma dinâmica de autonomia crescente da arte pelo exercício individual das energias criadoras, presidiram a estes novos movimentos os valores associados a uma ética de experimentalismo formal e plástico, numa aventura heurística de redescoberta do mundo através de uma renovada linguagem estética. A geografia destas vanguardas artísticas organizou-se a partir de Paris, cidade onde se ensaiavam as grandes linhas de reflexão no domínio da criação e dos critérios subjacentes à recepção crítica da obra de arte. Em 1911, a guitarra parece figurar numa das obras de um dos pioneiros do cubismo, Georges Braque. Atentando numa fotografia do seu estúdio73 publicada por Anne Gantefuhrer-Trier podemos observar uma guitarra portuguesa com cravelhame em madeira fixada na parede, ladeando um violino e outros objectos. Efectivamente, o artista trouxera já à tela a temática dos instrumentos musicais também no figurino cubista74 e na senda de Picasso75. Porém, em O Português, de Braque, o instrumento concorre para a identidade do protagonista, reiterada no título: O Português. Atestando a consagração do fado como referencial identitário de Portugal, esta obra remete-nos para o estatuto de ícone pátrio que a guitarra vinha ganhando. Entre nós, a guitarra assumir-se-ia como motivo de inspiração formal sendo sobretudo este sentido alegórico a fixá-la nas telas de Eduardo Viana, Amadeo ou do casal Delaunay. Em Portugal, os ecos do modernismo eram então timidamente introduzidos pela geração congregada em torno da revista Orpheu (1915) que integrava as figuras de Almada Negreiros (1893-1970), Fernando Pessoa (1988-1935), Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), Santa-Rita (1889-1918) e Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918). Em Lisboa, ainda em 1928, a cristalização do imagético de oitocentos, constituía um receituário de fácil digestão pelo grande público. Com efeito, a vida artística oficiosa não ofereceu, ao longo da década de 20, hipótese de permeabilidade aos novos modernistas, anões modernos aos ombros de gigantes antigos76 aos quais cerravam portas o Museu de Arte Contemporânea – então dirigido por Columbano – e a Sociedade Nacional de Belas Artes – que, em 1921, excluía Eduardo Viana do Salão. 73   - S/d, fotografia a preto e branco, Paris, Arquivos Charmet publicada em Cubismo, Anne Gantefuhrer-Trier, Taschen, 2004.

- Vejam-se, a título de exemplo, Instrumentos Musicais, 1908 ou Jarro e violino, 1910.

74

- O Guitarrista, 1910 e Menina com Bandolim 1910.

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- Retomando a expressão de Matei Calinescu, em “Five Faces of Modernity”, Duke University Press, 1977.

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Da Madragoa à Ajuda pela Pampulha, 1947 Emmerico Nunes Aguarela s/ papel, 48 x 63 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa


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Face às restrições do mercado, restava a criação de espaços de exposição alternativos77, como A Brasileira – que a partir de 1925 expunha alguns trabalhos de Viana, Almada, Bernardo Marques, António Soares, Jorge Barradas e Stuart de Carvalhais – ou o Bristol-Club que, no ano seguinte, adquiria obras de Almada, Viana, Stuart, Soares e Barradas. A geração de criadores que introduziram o modernismo em Portugal, na década de 10 do séc. XX, caracterizou-se, nas palavras de Rui Mário Gonçalves, por várias atitudes automarginalizantes, entre as quais podemos salientar duas: a obsessão pela originalidade e a passagem do humor fútil aos actos provocatórios futuristas.78 Figura central desta geração, Almada Negreiros preconizou o ideário do modernismo português nos domínios da literatura, das artes visuais, da dança e do teatro. Convivendo assiduamente com Santa-Rita79 - que se proclamava encarregado pessoalmente por Marinetti de difundir em Portugal os manifestos do futurismo – ambos alargariam o espectro das revistas Orpheu (1915) e Portugal Futurista (1917) a outros domínios artísticos, para além do campo das letras. Diz-nos Rui Mário Gonçalves que o segundo número da revista Orpheu provocou as reacções mais diversas. Um jornalista interrogou três médicos para que se pronunciassem sobre a sanidade mental dos colaboradores da revista.80 Júlio Dantas (1876-1962) médico, dramaturgo, cronista, poeta, figura central da vida literária e cultural do seu tempo – autor, nomeadamente, de A Severa (1901) consagrada à saga mítica da cantadeira meretriz - declarou que os colaboradores de Orpheu eram doidos de encerrar.81 Almada contra-atacou violentamente, redigindo um fulgurante Manifesto Anti-Dantas com veemência verbal pontuada pela frase imperativa: Morra o Dantas, morra! Pim! O Dantas é a vergonha da intelectualidade portugueza! O Dantas é a meta da decadência mental! (...) E há ainda quem lhe estenda a mão! E quem tenha dó do Dantas! Morra o Dantas! Morra! Pim! Visando ruidosamente a estagnação da cultura portuguesa, o Manifesto Anti-Dantas centrava-se numa das figuras mais proeminentes na vida cultural do seu tempo, e, curiosamente, um dos mais mediáticos cultores da canção urbana que, logo em 1901, redigira a peça teatral A Severa, que o primeiro filme sonoro português haveria de fixar,  - Veja-se SILVA, Raquel Henriques da, Sinais de Ruptura, Livres e Humoristas in “História da Arte Portuguesa”, dir. Paulo Pereira, Vol. III, Círculo de Leitores, 1995.

77

- GONÇALVES, Rui Mário, Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.5.

78

- em consequência da guerra de 1914-1918,

79

- Cfr. GONÇALVES, Rui Mário, Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.5.

80

- Cfr. GONÇALVES, Rui Mário, Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.5.

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na grande tela, em 1931, pela mão de Leitão de Barros. Atentando nesta polémica, percebemos também a centralidade da controvérsia em torno da canção urbana, desde sempre associada, no seio das elites artísticas mais progressistas, a atitudes de conformismo e passividade acrítica consonantes com a estagnação cultural do País. Não obstante, também os modernistas aproveitaram os temas e objectos populares introduzidos no contexto do “reaportuguesamento de Portugal”82 e mesmo o autor do fulgurante Manifesto Anti-Dantas não deixou de produzir interessantíssimos testemunhos pictóricos de grande carga onírica evocando o universo do Fado e da guitarra portuguesa. De facto, se na obra Fadistas83 sobressai a ironia subjacente ao traço caricatural, no desenho Marinheiro e Rapariga84 concluído em Paris em 1923, a representação do universo fadista faz-se associar à faina marítima, temática de resto ilustrada por Almada em Homem tocando Guitarra85 ou Marinheiro tocando Guitarra,86 e que pontuara já as representações oitocentistas de Jorge Bekerster Joubert e E.J. Maia ou o célebre Marinheiro, que Constantino Fernandes concluíra em 1913. O próprio Almada afirmaria na sua Histoire du Portugal par Coeur em 1919:87 Tejo, lombada do meu poema aberto em páginas de Sol... Portugal é o último coração europeu antes do Mar. Nós temos todos os rios de que tínhamos necessidade. O Tejo é o maior; nasce em Espanha, como outros, mas não quis ficar lá (...) Nós também temos varinas que vão pelas ruas como barcos sobre o Mar. Têm o gosto do sal. Nas canastras transportam o Mar. Num outro conjunto de trabalhos, os desenhos Marcha Nocturna I e Marcha Nocturna II88, o imaginário do fado reincidirá na obra de Almada, desta feita intrinsecamente ligado à festa urbana de Lisboa. Integrando um conjunto de 23 projectos encomendados pela Câmara Municipal de Lisboa a Almada Negreiros (1893-1970), para ilustração do Programa das Festas da Cidade de 1934, Almada faz figurar, num dos desenhos, o grupo - de seis 82   - RAMOS, Rui,”A Segunda Fundação 1890-1926”, História de Portugal (Direcção de José Mattoso), Vol. VI, Círculo de Leitores, 1994, pp. 574 e seguintes.

- José de Almada Negreiros, Fadistas, s/d, lápis, 40,5 x 62, 5 cm, colecção particular;

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- José de Almada Negreiros, Marinheiro e Rapariga, s/d, lápis s/ papel, 40,5 x 62, 5 cm, FCG/CAMJAP

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- José de Almada Negreiros, Homem Tocando Guitarra, Biarritz, 1919, lápis s/ papel 26 x 36 cm, colecção particular;

85

- José de Almada Negreiros, Marinheiro Tocando Guitarra, 1923, lápis s/ papel 25 x 32,5 cm, colecção particular

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87   - Escripta para ser espalhada por todas as partes depois de julgada por todos os Portuguezes como explicaria Almada em 1922;

- José de Almada Negreiros, Marcha Nocturna I, tinta-da-china sobre papel, 24 x 18 cm, e Marcha Nocturna II, tintada-china sobre papel 23 x 17, 1934, Colecção Museu da Cidade, CML.

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Marinheiro e Rapariga, 1928 Almada Negreiros Lápis s/ papel, 62,5 x 40,5 cm Colecção Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão / Fundação Calouste Gulbenkian


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pares de marchantes envergando trajes festivos - segurando arcos enfeitados por guitarras portuguesas. Em 1945 Almada Negreiros concluiria o tríptico da Gare Marítima de Alcântara, nele inscrevendo a sua visão sintetizadora da lenda da Nau Catrineta, uma das recolhas efectuadas por Almeida Garrett que entre 1830 e 1851 juntamente com outras poesias de tradição popular dariam origem ao Romanceiro. Em 17 de Julho de 1943 era inaugurada a Gare Marítima de Alcântara com uma simples recepção ao navio “Serpa Pinto” vindo de Filadélfia com 253 passageiros a bordo, na sua maioria súbditos ingleses refugiados de guerra. Também na realização dos frescos da Gare Marítima de Alcântara, projectada pelo arquitecto Pardal Monteiro, com quem longamente trabalhou, Almada confirmou a centralidade do seu lugar na arte portuguesa do Século XX. Evocando o imaginário da Lisboa Ribeirinha e a vocação marítima e aventureira dos portugueses, Almada deixou uma insuperável ilustração no tríptico do “romance” da Nau Catrineta. A execução dos oito magníficos painéis a fresco – dois trípticos e duas composições isoladas – com que Almada Negreiros decorou o átrio do segundo piso (1943-1945), apontava para um prazo de três anos, aquando da celebração do contrato, pelo valor de 200.000$0089. No tríptico Lá vem a Nau Catrineta Que Traz Muito que Contar, Almada fixou o imaginário da cidade, sintetizando a lenda em três cenas, desde a aventura dos mareantes no mar tenebroso, a fé na divina providência, o amor à pátria e à família. Na primeira cena, os marinheiros mostram-se desesperados, enquanto o capitão busca por uma linha de terra. Nas velas, pairando sobre o navio, as sombras do diabo e da morte.90 Na segunda cena, central, um anjo da guarda figura junto ao mastro, enquanto no plano superior as três filhas do capitão aguardam o regresso da Nau. Uma guitarra portuguesa repousa no solo. Finalmente, na terceira cena, o desfecho feliz: a chegada a terra, a multidão dando largas à sua alegria e o capitão abraçando as três filhas - a filha que chorava empunhando agora a guitarra portuguesa. No alto, o anjo venceu o demónio e afugentou a morte. Entre a multidão, mulheres vendendo fruta, vinho e pão, mulheres rezando, velhas observando, os marujos rodeando o capitão. Como afirma Rui Mário Gonçalves: abrangendo todas as classes, todas as idades, todas as épocas, Almada firmou nos frescos um happy end da lenda mais enraizada nas tradições portuguesas. De facto, mais do que o gosto dos portugueses pelo Fado, esta obra poderá testemunhar, o gosto dos portugueses por um final feliz91.   - Gares Marítimas: Alcântara, Rocha do Conde d’Óbidos, Lisboa, Administração do Porto de Lisboa, 1999.

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- Rui Mário Gonçalves chama a atenção para o pormenor do auto-retrato do artista na representação da cabeça do diabo em Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.22.

- GONÇALVES, Rui Mário, Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.22.

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Consagrando-se progressivamente como ícone pátrio, referencial identitário da portugalidade, terá sido sobretudo pelo seu sentido alegórico que a guitarra portuguesa integrou algumas obras dos primeiros modernistas, assumindo-se, posteriormente, como motivo de inspiração formal nos trabalhos de Viana ou do casal Delaunay. Atestando a presença da guitarra no ambiente boémio do atelier, fenómeno que estimamos ter tido alguma constância nas primeiras décadas do século XX, encontramos numa outra incursão de José Malhoa, a surpreendente Peccata Nostra de 1920.92 O mesmo fenónemo é ainda corroborado pela célebre Guitarra Minhota de Eduardo Viana, ou mesmo pela fotografia em pose fadista de Amadeo, que inspiraria, na década de 1980, uma renovada dimensão onírica nos trabalhos de Júlio Pomar. Já no século XXI também Nikias Skapinakis sucumbiria ao tema na obra Quarto de Amadeu da série Quartos Imaginários93. Amadeo de Souza Cardoso94, primeiro, depois os Delaunay95 e Eduardo Viana96, viram na guitarra motivo de inspiração formal, ícone pátrio, com evidente carga de urbanidade. Terá sido sobretudo este sentido alegórico a promover a guitarra, mais do que propriamente a canção, como imagem na pintura do Século XX. Regressado de Paris em consequência da guerra, Amadeu refugiara-se em Manhufe, Amarante e realizaria em Lisboa uma exposição na Liga Naval, entusiasticamente apoiada por novo manifesto de Almada: Amadeo de Souza-Cardoso é a primeira descoberta de Portugal na Europa do séc. XX97. De facto, a curta existência de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) foi suficientemente rica do ponto de vista criativo para o consagrar como um dos mais importantes artistas portugueses do século XX. Desenvolvendo uma obra recheada de constante experimentação, em parte motivada pela sua ida para Paris em 1906 - onde conviveu com artistas como Modigliani e o casal Sonia e Robert Delaunay, observando de perto as novas tendências que se viviam naquele que era o grande centro artístico europeu – os seus trabalhos articulam, de modo altamente personalizado, os conceitos do cubismo e do

- José Malhoa, Pecatta Nostra, 1920, pastel, 39 x 60 cm, Embaixada do Brasil, Lisboa.

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- SKAPINAKIS, Nikias, Quartos Imaginários, Lisboa, Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, 2006.

93

- Pintura, 1917.

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- Robert Delaunay, Natureza Morta Portuguesa, s/d.

95

- Em K4 Quadrado Azul, 1917.

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- Cfr. GONÇALVES, Rui Mário, Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.8.

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Lá vem a Nau Catrineta I, II e III, 1998 Tapeçarias de Portalegre Lá vem a Nau Catrineta que tem muito que contar, Almada Negreiros, 1945 406 x 254 cm Colecção Montepio Geral


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Marcha Nocturna, 1934 Almada Negreiros Tinta-da-china s/ papel, 23,5 x 17,7 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa

Marcha Nocturna, 1934 Almada Negreiros Tinta-da-china s/ papel, 24,7 x 18, 3 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa

Marinheiro Tocando Guitarra, Paris, 1923 Almada Negreiros Lápis s/ papel, 32,5 x 25 cm Colecção Particular



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expressionismo, como se aliasse a importância da cor para o expressionismo - desenvolvido essencialmente na Alemanha - e o delineamento espacial da forma - predominante no movimento cubista – juntando-os segundo as suas próprias regras.98 Concluídas perto do final da sua vida obras Entrada e Pintura recorrem à figuração da guitarra não directamente ligada ao Fado, mas seguramente relacionada com uma representação simbólica da nacionalidade, em composições de evidente energia criativa. O recurso à guitarra como elemento de inspiração formal será uma constante na obra de Amadeu, preconizando a sua ligação simbólica ao tema da portugalidade, sempre pautado por uma triste ironia como em Pintura, onde vemos uma guitarra que sangra, porventura face à estagnação cultural em que mergulhara o País. Concluída em 1917, no mesmo ano em que o oficioso Malhoa expunha o Fado na 14ª Exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes, a obra Pintura de Amadeo atestava bem a profunda rejeição do modernismo português pela presença tardia, entre nós, do gosto pelo receituário oitocentista, enfim, a reprovação reiterada de um ideário cultural que o Fado integrava e animava, enquanto imagem musical portuguesa. Um ano antes, também Eduardo Viana em K4 Quadrado Azul (1916) - homenagem que tomava como título a novela futurista redigida por Almada - prestava tributo às obras modernistas e futuristas de pintores e escritores como Santa Rita e Amadeo de Souza-Cardoso ou os poetas Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Tratando-se de uma natureza morta realizada dentro do gosto da primeira fase do movimento cubista, também aqui a presença da guitarra e da viola nos remetem para a alegoria da portugalidade que encontramos nas obras de Amadeu de Sousa-Cardoso, recorrendo a um elemento central do imagético oficioso, tão criticado por artistas como Viana a quem, ainda na década de 20, eram vedadas as portas da Sociedade Nacional de Belas Artes.

- Cfr. GONÇALVES, Rui Mário, Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.8.

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Pintura, c. 1917 Amadeo Souza-Cardoso Óleo s/ tela, 93, 5 x 93, 5 cm Colecção Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão / Fundação Calouste Gulbenkian

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K4 Quadrado Azul, 1916 Eduardo Viana Óleo s/ tela, 46,5 x 56 cm Colecção Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão / Fundação Calouste Gulbenkian


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Indissociável da representação plástica do Fado será também o entendimento dos discursos críticos que sobre o género se fixaram, na nossa literatura, a partir da Geração de 70 e se prolongaram, ao longo da primeira metade do séc. XX, num denominador comum de hostilidade à canção urbana de Lisboa, transversal a diferentes sectores ideológicos e que a literatura e as artes plásticas, tantas vezes, partilharam. Dimensionando-se em diferentes momentos da história do fado, estes discursos críticos estruturaram-se a partir de motivações diversas, quer, formulando, num primeiro momento, um distanciamento crítico da marginalidade associada aos contextos performativos do Fado, quer por força de constrangimentos de ordem ideológica que se prolongam durante todo o séc. XX, dos quais constituem bons exemplos o célebre repto não cantem o fado! de António Arroio99, em 1909, ou as palestras de Luiz Moita difundidas em 1936, na Emissora Nacional e logo compiladas no livro O Fado, Canção de Vencidos, passando pela postura de franca rejeição de Fernando Lopes Graça até ao aviltamento e à crítica de António Osório em 1974100. Recuando ao século XIX, valerá a pena atentar nas palavras de Eça de Queiroz, de claro distanciamento crítico em relação ao fado: Atenas produziu a escultura, Roma fez o direito. Paris inventou a revolução, a Alemanha achou o misticismo. Lisboa que criou? O Fado… Fatum era um Deus no Olimpo; nestes bairros é uma comédia. Tem uma orquestra de guitarras e uma iluminação de cigarros. Está mobilada com uma enxerga. A cena final é no Hospital e na enxovia. O pano de fundo é uma mortalha.101 Já na década seguinte caberia a Ramalho Ortigão o desabafo violento: De quando em quando a polícia, para o fim de dar uma espécie de satisfação à sociedade pela frequência de tantos crimes, prende um fadista. O que temos de perguntar é: -Por que se não prendem os fadistas todos? (...) Quer a polícia um bom conselho, que resume tudo? Inverta os seus meios de garantir a segurança pública: tire o retrato aos cães e deite a rede aos fadistas102. E se nos alvores do século XX António Arroio103 defendia que o fado (…) nasceu nos centros de maior abominação; a maneira de o cantar é o conjunto mais completo e ridículo de erros estilísticos, de faltas de bom gosto, também para Albino Forjaz Sampaio o Fado era uma canção de vadios, um hino ou desabafo de criminais. Apoteiosia o crime, o calão, o degredo, a miséria, a prostituição, o hospital. É uma canção de degenerados, de esgotados e unge-o sempre uma sentimentalidade canalha, como diz Camilo, que faz safar a honesta gente. 99

-Cfr. ARROIO, António, O Canto Coral e sua Função Social, Coimbra, França Amado, 1909, pp. 58.

- OSÓRIO, António, A Mitologia Fadista, Livros Horizonte, Lisboa, 1974.

100

- Cfr. CARVALHO, Pinto de, História do Fado, (1903) Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984, p. 53.

101

- ORTIGÃO, Ramalho Ortigão, “O fadista,” As Farpas, O País e a Sociedade Portuguesa, Vol.VII, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1943 p. 173-181. 102

- ARROIO, António O Canto Coral e sua Função Social, Coimbra, França Amado, 1909, pp. 79-80.

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Monótono, arrastado, langoroso, não é uma canção é um lamento (....)O Fado é a canção da decadência, uma canção de serralho, sensual, amolengada, fatalista e choramingona.104 Atestando a permanência da polémica em torno do Fado, o inquérito promovido praticamente uma década depois, pelo multifacetado Leitão de Barros, que em 1931 filmaria A Severa a partir do texto homónimo de Júlio Dantas. Enquanto editor do Notícias Ilustrado, Leitão de Barros dedicaria ao Fado, em Abril de 1929, uma das edições do suplemento, numa publicação de 32 páginas a um inquérito sobre o Fado105 a que respondem opinativamente Afonso Lopes Vieira, Manuel da Silva Gaio, Hipólito Raposo, Alfredo da Cunha, Fernando Pessoa, Stuart Carvalhais, José Leite de Vasconcelos, Branca Colaço, Campos Monteiro, Agostinho de Campos, António Botto, entre outros. As mais extremadas opiniões respondem aos questionamentos de Leitão de Barros: O Fado será ou não uma canção nacional? Os seus intuitos são moralizadores ou, pelo contrário, atingirão uma feição dissolvente? Há vantagem em dar ao Fado o desenvolvimento necessário a elegê-lo como uma especialização artística, étnica ou musical? Turístico, poético, saudosista, invocativo, regional, representa o Fado uma expressão de Beleza, de propaganda, de atracção nacional?106 Respondendo ao inquérito, Afonso Lopes Vieira afirmava: De modo algum considero o Fado a canção nacional (…) O Fado é a lastimosa glória de Lisboa – uma vergonha lírica.107 Na mesma esteira, Manuel da Silva Gaio afirma: Tenho o Fado por música desmoralizante pois que é, a um tempo, sensualmente excitante e emolientemente depressiva (…) E por destrutivo o tenho igualmente; porque, de pessimista e desolado, só pode infiltrar-nos na alma o desalento, atormentar-nos as melhores energias, embalar-nos num ocioso fatalismo (…) Não desenvolvamos fado algum (…) Sob o ponto de vista turístico uma só coisa temos a fazer com respeito ao Fado para não nos desacreditarmos perante os nossos hóspedes: evitar que eles o oiçam.108 Também Hipólito Raposo, considerando que o Teatro se perverteu com o Fado considera que o fado é o calão da música (…) cantá-lo e tocá-lo (…) afigura-se-me desfaçatez audaciosa a que o foro da cidade deveria aplicar a justiça devida a malfeitores confessos.109 Na mesma esteira Agostinho de Campos considera que A educação da nossa gente precisa de tónicos   - SAMPAIO, Albino Forjaz Prosa Vil, Lisboa, Empresa Literária Fluminense, 1911, p.11.

104

- Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929, p. 10.

105

106

- Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929, p. 10.

107

- Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929, p. 10.

- Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929, p. 10.

108

- Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929, p. 11.

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Ilustração de Bernardo Marques para O Fado Canção de Vencidos Luiz Moita, Lisboa, Empresa do Anuário Comercial, 1936

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Fado, s/d. Bernardo Marques Tinta estilográfica preta s/ papel, 24 x 31 cm Colecção Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão / Fundação Calouste Gulbenkian

Fado da Rua, s/d. Bernardo Marques Sépia s/ papel, 20,2 x 25,8 cm Colecção Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão / Fundação Calouste Gulbenkian


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e o Fado é estupefaciente. (…)110 O mesmo posicionamento de rejeição crítica encontramos em Francisco Fernandes Lopes para quem As pragas – diz o povo –são como as procissões: recolhem sempre de onde saem. Mas a “praga” do fado é que não há maneira de recolher de onde saiu…111 Na mesma linha Carlos Leal afirma O fado hoje é, quando muito – o que já é uma tremenda desgraça – a canção da tuberculose. 112 As opiniões legitimadoras do género chegavam de Carmo Dias, Eduardo dos Santos e António Botto para quem O Fado é a mais tocante e a mais compreensível expressão musical do nosso fatalismo113 mas também de Stuart Carvalhais, magno cronista da noite lisboeta, profícuo impulsionador da iconografia do género, que assim saía em defesa do Fado: ...de Norte a Sul de Portugal canta-se o fado, de preferência, quer seja nos salões ou nas tabernas, porquê? Porque o fado e a saudade acompanham o português para toda a parte, o Fado é nostálgico, por isso mesmo está bem para o nosso feitio saudosista…É o Fado desmoralizador? Não, um dos momentos mais felizes da minha vida foi quando perdido em terra estranha (no Havre) já noite alta percorrendo as docas, ouvi a bordo de um pequeno vapor uma voz melódica e nostálgica, acompanhando o gemer de uma guitarra, que alegria me entrou na alma! Sou pois de opinião que se deve continuar essa tradição, e atirar para o lixo esses Fox-trots e Blak-botons e outros americanismos que nos desnacionalizam! Todos os países têm as suas canções características Portugal tem o Fado só o Fado!114 Já em meados do século XX, a colagem estratégica do regime de Salazar ao Fado contribuiria, mais ainda, para um fenómeno de aviltamento e crítica na representação visual do tema. Acompanhando o debate ideológico sobre o Fado que se estende do último quartel do século XIX ao último quartel do século seguinte, a representação visual do tema encontrou, no terreno fértil do mundo editorial, o principal suporte para as narrativas dos discursos plásticos emergentes, elemento central da produção, divulgação e recepção crítica dos trabalhos gráficos de artistas como Stuart Carvalhais, Amarelhe, Bernardo Marques, Carlos Botelho ou F. Valença, entre muitos outros. Palcos privilegiados do diálogo entre criadores e público, os periódicos actuavam necessariamente ao nível da recepção crítica dos trabalhos

- Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929, p. 11.

110

- Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929, p. 12.

111

- Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929, p. 12

112

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- Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929, p. 11.

- Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929, p. 11

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publicados e a obra desses artistas foi, nessa perspectiva, projectada no próprio público que representou e que a consumiu, num jogo de reconversão de dados, assumindo-se na dupla condição do seu espelho e da sua consciência. De facto, a partir de 1910, a proliferação gradual de publicações periódicas consagradas ao fado, atestava a enorme vitalidade da canção urbana nas primeiras décadas do século XX. Assumindo-se simultaneamente como veículo legitimador do género, espaço de debate fundamental na defesa e promoção do Fado, esta imprensa especializada publicará as biografias de uma plêiade de cultores e protagonistas do fado, anúncios de digressões e espectáculos, de lançamentos discográficos e editoriais. Evocando temas diversificados da história do fado, divulgando os textos cantados, estes periódicos alimentam um aceso debate ideológico em torno do fado, contribuindo inequivocamente para a legitimação do género115, quer respondendo directamente aos principais detractores da canção urbana, quer pela elaboração de regras e preceitos para a arte performativa numa estratégia clara de dignificação do género, como pode ler-se na Canção do Sul de João Reis, de 1932: Nós queremos e fazemos quanto em nossa força couber para consegui-lo, que o Fado, (...) não seja abandalhado por indivíduos sem escrúpulos que pelas espeluncas ignóbeis cantam com voz avinhada por entre as gargalhadas das meretrizes, mutilando barbaramente a língua que Castilho, Herculano e Camilo tanto engrandeceram 116. Nos alvores da década de 20, também as editoras de música como a Sassetti Editora e a Valentim de Carvalho convidam, para a ilustração das capas de discos e de partituras, um conjunto de artistas que renovará o aspecto gráfico das mesmas e cujo corpus constitui um importante documento do novo programa estético. Atestando a popularidade das canções, as partituras musicais constituíram, no período anterior à gravação fonográfica, o suporte de divulgação das novas composições. Nos periódicos da especialidade, nas capas de discos ou pautas impressas, o fado constituía o cenário insistentemente reinventado, num discurso plástico herdeiro do humorismo e que se pautava agora por uma economia de linhas e ampla liberdade da cor. Nestes lugares de figuração intensamente colorida, ganhava corpo uma nova linguagem estética, recorrendo à estilização do traço para sintetizar o discurso plástico, também ele legitimador da arte

- Vejam-se os periódicos O Fado, dirigido por Carlos Harrington em 1910 e, do mesmo ano, A Alma do Fado com direcção de Raul Augusto de Oliveira e A.C. de Sousa ou O Fadinho-Semanário de Crítica e Propaganda do Fado, dirigido por José Carlos Rates. Em 1916 surge O Fado: Publicação semanal literária e ilustrada e A Trova Popular em 1919, seguindo-se A Canção Portuguesa em 1921. A partir de 1922 é publicado o mais influente de todos estes jornais, A Guitarra de Portugal, sob a direcção de João Linhares Barbosa e, no ano seguinte A Canção do Sul, de João Reis.

115

-A Canção do Sul, ano 9, nº 62, de 1 de Fevereiro de 1932.

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Fado, s/d. Bernardo Marques Sépia s/ papel, 20, 1 x 25,8 cm Colecção Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão / Fundação Calouste Gulbenkian

Fado Fino, s/d. Bernardo Marques Sépia s/ papel, 20,1 x 25,9 cm Colecção Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão / Fundação Calouste Gulbenkian

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Guitarra de Portugal Ilustração de Stuart Carvalhais 15 de Setembro de 1934 Colecção Museu do Fado


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performativa e em plena sintonia com o conteúdo editorial. Paralelamente, consagrava-se, em definitivo, a articulação entre fotografia e desenho, artifício técnico também propício ao estreitamento da cumplicidade entre objecto e consumidor, cidade real e fado sonhado. A implementação de uma gramática plástica essencialmente apologética da prática performativa, surgiu, em boa medida, graças aos trabalhos realizados através do universo editorial, laboratório central de pesquisa e experimentação artística do modernismo português. Seria efectivamente o domínio editorial o principal suporte das narrativas do discurso plástico de autores como Stuart Carvalhais, Bernardo Marques, Armindo, Júlio de Sousa, Telles Machado, Carlos Botelho, Américo Amarelhe, Almada Negreiros, entre outros, cujos trabalhos de ilustração de periódicos, partituras de fado, discos e livros, integram parte significativa do corpus de representação do tema nas artes visuais portuguesas da primeira metade do século XX, consolidando definitivamente uma gramática plástica de legitimação do género. Palcos privilegiados do diálogo entre criadores e público, os periódicos actuavam necessariamente ao nível da recepção crítica dos trabalhos publicados e a obra desses artistas foi, nessa perspectiva, projectada no próprio público que representou e que a consumiu, num jogo de reconversão de dados, assumindo-se na dupla condição do seu espelho e da sua consciência. Quiseram os Fados que o conjunto dos trabalhos que Stuart Carvalhais (1887-1961) ilustrador, desenhador, caricaturista, cenógrafo - consagrou à canção de Lisboa viesse a ocupar um lugar central no plano da iconografia do Fado, autêntico paradigma do mimetismo e da citação, a par do oficioso Malhoa, ambos referências paradigmáticas no domínio da representação visual do tema. Muitos dos originais que viriam a afirmar a relevância do conjunto da obra de Stuart, sucumbiram ao imediatismo de um quotidiano vivido nas redacções de jornais, nas gráficas, na efemeridade do universo publicitário ou na construção cenográfica das produções teatrais, sempre transitórias. O autor de centenas de ilustrações consagradas ao Fado foi, durante longos anos, aquele a quem ninguém associava o nome à pessoa,117 uma fatalidade denunciada por Reinaldo Ferreira, em 1923. Curiosamente, a sua popularidade nos ambientes lúdicos e espaços de convivialidade dos bairros de Lisboa não lhe advinha do seu talento, onde todos ignoravam a sua profissão e a sua arte118. Não acompanhando as políticas do Estado Novo e do Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro, Stuart 117

- Cfr. PACHECO, José, Stuart e o Modernismo em Portugal Lisboa, Vega, colecção Artes/Ilustradores, s/d., p.17.

- Idem, ibidem.

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distanciara-se também dos modernistas que, na senda de Cristiano Cruz, apostavam na afirmação das artes ditas nobres, não subscrevendo a dependência ideológica dos artistas face ao mercado editorial. A isto acrescia o facto de os exercícios da vanguarda estética do modernismo e a inevitável assimilação de arquétipos, em tudo distantes da vivência do lisboeta comum, não exercerem grande fascínio sobre a personalidade artística de um Stuart, cronista dos tipos e costumes de Lisboa que, ainda na década de 40, afirmava fazer “bonecos para distrair a fome.”119 Diversos estudos têm vindo a resgatar120, para um plano central da arte portuguesa, a vida e a obra de Stuart Carvalhais, autor de vigorosa produção artística, documento visual dos tipos e costumes de Lisboa, durante aproximadamente meio século. Retomando esta dimensão temporal, foquemo-nos nos alvores da década de 20, data em que a Sasseti Editora (1921) e a Valentim de Carvalho (1922), firmam contrato com vários artistas que para elas executariam múltiplas ilustrações de capas de partituras ou de discos, concebendo ainda os suportes publicitários. Atestando a popularidade das canções, as partituras musicais constituíram, no período anterior à gravação fonográfica, o suporte de divulgação das novas composições. A partir da década de 20, também as editoras de música convidam, para a ilustração das capas de partituras, um conjunto de artistas que renovará o aspecto gráfico das mesmas e cujo corpus constitui um importante documento do novo programa estético, que permite iluminar comportamentos de mercado, hábitos de consumo, mentalidades ou contextos de produção artística e no qual a figura de Stuart Carvalhais exerceu efectiva preponderância. Decorrendo no contexto celebrativo da obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica121, as ilustrações de Stuart Carvalhais descrevendo ou recriando o contexto que iluminavam, contemplaram, desde a narrativa simples, escrita ao sabor do conteúdo musical, à intervenção mais criativa, no intuito de reforçar o poder dos signos plásticos e visuais, junto do público seu consumidor. Neste contexto se apreendem as diferentes nuances do seu discurso gráfico, desde 119

Cfr. PACHECO, José, Stuart, O Desenho Gráfico e a Imprensa, Lisboa, Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas e Transformadoras do Papel, 2000, p.211.

- Vejam-se os estudos, da autoria de PACHECO, José, “Stuart e o Modernismo em Portugal”, Lisboa, Vega, colecção Artes/Ilustradores, s/d., “Stuart Carvalhais, 1887-1961”, Tese de Mestrado em História da Arte Contemporânea Portuguesa, texto policopiado, FCSH da Universidade Nova de Lisboa, 1989; “Stuart, O Desenho Gráfico e a Imprensa”, Lisboa, Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas e Transformadoras do Papel, 2000, bem como “Stuart: 1887-1987, Centenário do Nascimento”, Fundação Calouste Gulbenkian, CAMJAP, 1987. Também Paulo Madeira Rodrigues em 1982 coordenou um importante inventário da obra publicada no catálogo da exposição promovida, à data, pela CML, intitulada Vida e Obra de Stuart de Carvalhais.

120

- Cfr. BENJAMIN, Walter, op.cit. Lisboa, Relógio d’Água, 1992.

121


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a poética de um Fado do Sonho, ao recurso a um traço rápido e vigoroso, violento e sintetizador, presente nas capas do Fado do Trolha ou de Fado Operário. Esta diversidade de recursos constituía, para Stuart, o veículo para a recepção crítica dos seus trabalhos, repertório fundamental à comunicação que pretendia. Com efeito, a multiplicidade de suportes, artifícios técnicos, efeitos plásticos e visuais, foi uma das características mais marcantes da sua produção artística, em geral caracterizada pelo não estilo, factor que lhe permitiu consagrar uma visão pessoal do mundo, impregnada de significado social, político e filosófico.122 Ao atentarmos na ilustração das partituras, percebemos que à mudez das figuras representadas corresponde, invariavelmente, a eloquência do gesto. No mesmo suporte, o discurso plástico de Stuart fez coincidir a música silenciada com a amplificação da sua dimensão cultural. Observando as diferenças estilísticas na representação do Fado preconizada por estas ilustrações, intuímos omissões e denúncias, significados diversos, apreendidos num contexto onde se jogam as noções de identidade, comunicação e alteridade. Iluminando os registos sonoros específicos da canção urbana, Stuart fez perpassar, nas diversas ilustrações que concebeu, a sua inquietação pessoal. No âmbito desta dualidade que lhe foi característica, a gargalhada mais sonora abafava, por vezes, uma tragédia colossal123. Testemunho das suas preocupações sociais é-nos dado pelas ilustrações elaboradas para a capa de duas edições de Guitarra de Portugal 124 que, num registo de imediatismo, em tom de grito que o papel emudeceu, nos apontam para o ambiente do bas-fond lisboeta. A mesma linha vigorosa, característica da representação de operários e varinas, mendigos e rameiras, boémios e fadistas, encontramos na capa da partitura de A Mulher da Meia Noite ou, ligeiramente mais contida, na expressão das cinco figuras, dispostas em segundo plano da ilustração de O Fado da Rusga, ou ainda nos exemplos, vistos acima, do Fado do Trolha, ou do Fado Operário. Noutra esfera da sua versatilidade situamos o discurso plástico de Fado Paris ou Fado Hespanhol, onde a composição recorreu a traços estilizados e a uma exuberância de cores para representar figuras femininas modernas e elegantes, envergando maquilhagem, chapéu ou echarpe, ao melhor tom do anunciado cosmopolitismo. Capista por excelência, Stuart inovou ainda ao nível dos elementos gráficos que convivem com a ilustração, abandonando os floreados nas molduras que passam a desenvolver-se em 122   - PACHECO, José, Stuart O Desenho Gráfico e a Imprensa, Lisboa, Associação Portuguesa das Indústria Gráficas e Transformadoras de Papel, 2000, p. 246.

- Como escreve Rebello de Bettencourt em 1930, citado por José Pacheco, op.cit. 2000, p. 232.

123

- Ilustrações de capa para a Guitarra de Portugal, de 15 de Setembro de 1934

124

e de 30 de Dezembro de 1935.


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Fado Paris, 1927 Ilustração de Stuart Carvalhais Sassetti & Cª, 1927 34 x 27 cm Colecção Michel de Roubaix


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Fado Hespanhol, 1927 Ilustração de Stuart Carvalhais Sassetti & Cª, 1927 34 x 27 cm Colecção Michel de Roubaix

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Fado La Goya, 1923 Ilustração de Amarelhe Sassetti & Cª 35 x 27 cm Colecção José Pracana


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Fado de La Goya, 1923 Ilustração de Amarelhe, Valentim de Carvalho 32,5 x 27 cm Colecção José Pracana

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Desenvolve-se a Epidemia Stuart Carvalhais Os RidĂ­culos, 14 de Maio de 1949

Bairro Alto, s/d. Stuart Carvalhais Humores ao Fado e Ă Guitarra, Lisboa, 2000


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traçados geométricos, de cores vibrantes, ou introduzindo os tipos modernos de lettring com efeitos de preenchimento a duas cores. Apontamento curioso é-nos dado ainda pela evolução da sua assinatura, que assumiu variantes distintas do traço freneticamente rasgado que usualmente lhe reconhecemos. Em função da estabilidade do trabalho final, Stuart optou por vezes pelo enquadramento da sua firma por moldura quadrangular, dispondo-a em duas linhas ou, noutros casos, fazendo-a brotar da raiz de uma flor, como podemos observar em alguns anúncios concebidos para a Sassetti. Efectivamente, o carácter reflexivo de Stuart colocou-o mais além da narrativa visual, impondo ao seu trabalho gráfico uma contemplação da cidade eminentemente criativa, pela introdução de variações estilísticas em função da representação pretendida e consequente recepção crítica. Da Lisboa popular das tabernas e alfurjas ao Chiado domingueiro dos cafés, das profissões alfacinhas extraídas ao quotidiano, à Lisboa das burguesinhas de lindas pernas e cabeças vazias125, do Fado à Jazz-Band, eis o repertório do imagético de Stuart Carvalhais, transmontano que interiorizou Lisboa como poucos, iluminando-a, para nosso fascínio, durante aproximadamente cinquenta anos. Assinando igualmente algumas capas de partituras de Fados da Sassetti e da Valentim de Carvalho, Carlos Botelho (1899-1982) afirmou-se primeiramente como caricaturista e desenhador, sobretudo na célebre página “Ecos da Semana” do Sempre-Fixe (1928-1950), firmando notáveis crónicas da vida lisboeta, nas quais o Fado é muitas vezes figura central, na exacta medida em que novos públicos se rendiam à canção urbana, cuja consagração popular era já uma evidência. Na década de 1940 também Stuart parodia a epidemia de cantadeiras126ou os êxitos de Amália Rodrigues no exterior chegando mesmo a propor um projecto de tradução da Mouraria para todos os países127:   - Retomando a expressão de Irisalva Moita em Vida e Obra de Stuart Carvalhais, Lisboa, CML, 1982, p. 6.

125

- Os Ridículos 24 de Setembro de 1949.

126

- Os Ridículos, 27 de Abril de 1949.

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Ay Mourary Of the Old Palma Street! Onde I a day Deixei K.O. a minh’alma! Pour avoir passe A mon coté Un gigolo De couler noire Petite bouche Que me tramou ! No início da década seguinte, a praga moderna era assim anunciada: segundo as últimas estatísticas existem no Bairro Alto 1.844 restaurantes onde se canta o fado e vão abrir mais 8.000. 128 Com Botelho, os registos sobre o Fado afirmam-se como documento visual, de vincado carácter narrativo, cuja leitura global permite atestar um percurso de consagração progressiva da canção urbana, no conjunto de trabalhos que compõem o seu diário do não dito (...) documento precioso e aflitivo de como se vivia, ou podia viver em Portugal de 1928 a 1950.”129 Neste discurso pessoal humorístico sobre os factos do quotidiano da cidade, as referências ao Fado têm início em 1930 – e logo são censuradas como o atesta o Piu, desabafando “com esta não enFado mais” 130 – passando por violentas sátiras à popularidade de Amália Rodrigues, em 1948131 e pela inerente contextualização da situação cultural do País, à luz da Europa. Vale a pena determo-nos nos escritos de uma das pranchas dos Ecos da Semana em 1930: E logo ao romper do dia, oiço o fado à Maria/ Já não há uma revista onde não cante um fadista/ Deixou de ser grafonola para ser grafadola/ Se vou ao Jardim Zoológico oiço fado não é lógico/ Vou beber para a Avenida dão-me fado por bebida/ Já não há um restaurante sem um fado soluçante/ à noite a telefonia com tanto fado arrelia…132

- Os Ridículos 28 de Março de 1951

128

- Cfr. FRANÇA, José Augusto, Ecos da Semana, Botelho, 1928-1950, Lisboa, FCG/CAM, 1989, p.3

129

- A Canção Nacional in Ecos da Semana de 6 de Agosto de 1930. O Píu denunciava nos Ecos, os cortes efectuados pela censura.

130

- Ecos da Semana de 18 de Março de 1948.

131

- Ecos da Semana de 6 de Agosto

132

de 1930.


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A Amália chegou de Paris e Londres Stuart Carvalhais Os Ridículos, 27 de Abril de 1949

A Amália foi cantar para a Africa! Stuart Carvalhais Os Ridículos, 28 de Março de 1951

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Atestando a franca mediatização que a difusão radiofónica trouxe ao fado, em meados dos anos 30, Mário Marques parodia as alterações suscitadas no ambiente doméstico após a aquisição de um receptor: De manhã, ainda antes de fazer a barba, o chefe de família liga a corrente e a família, ainda em camisa, apanha logo com um duche de fados da Maria Alice. E, pelo dia adiante, o aparelho continua a moer discos, originando enormes discussões.133 Na mesma linha também Agostinho Campos escrevia, em 1934, sobre o fenómeno que apelidava de rádio mangueira: os moradores (…) não têm licença de dormir, senão quando, cansado de dar à tarracha, Sua Magestade o Rádio-Processo adormece – para recomeçar amanhã, sem falta134. Efectivamente, se o humor gráfico do último quartel do século XIX recorreu ao universo do Fado para veicular duras críticas ao quotidiano social e político – utilizando de forma recorrente o popular Zé Povinho de Bordalo - a partir de 1920, com a profissionalização dos seus intérpretes e a progressiva divulgação desta expressão musical através do Teatro de Revista, da gravação em disco, da Rádio, do Cinema e da Televisão, a caricatura e o humor gráfico passam a parodiar o próprio Fado, representando as polémicas entretanto nascidas na imprensa da especialidade, as actividades de digressão dos seus protagonistas e, sobretudo, a construção de um estatuto oficioso de canção nacional. Pertencem a Américo Amarelhe algumas das mais exuberantes capas de partituras que integram o nosso recenseamento imagético. Com efeito, em ambas as ilustrações de Fado la Goya, se afirma um traço vigoroso, de cromatismo intenso com alguma economia de linhas, ao tom do modernismo. Amarelhe ilustrou ainda inúmeras capas de A Guitarra de Portugal, regra geral representando os feitos e glórias de uma plêiade de fadistas como Ercília Costa, Berta Cardoso, Estêvão Amarante, Beatriz Costa ou Aldina de Sousa. Instrumento de progressiva mediatização do fado desde as últimas décadas do Século XIX, também o Teatro de Revista suscitou a criação plástica na concepção de figurinos e cenografias. De facto e como salienta Luis Francisco Rebello Além do comentário da actualidade – de incidência predominantemente política, mas também social, económica, literária e artística (..) – a revista investe noutros espaços, quase sempre ligados aos prazeres sensoriais e às actividades lúdicas …Sem muito exagero pode dizer-se que a Revista é um prisma em que se reflectem as várias faces do anedotário e do imaginário nacionais, ou, menos

- SANTOS, Rogério, As Vozes da Rádio, 1924-1939, Lisboa, Caminho, 2005, p. 327.

133

- Radio Semanal de 6 de Outubro de 1934, cfr. SANTOS, Rogério, As Vozes da Rádio, 1924-1939, Lisboa, Caminho, 2005, p. 275.

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ambiciosamente, mas com maior rigor, da população dos grandes centros urbanos135 Na implementação de uma nova linha estética que Ferro promoveria através do Secretariado de Propaganda Nacional colaborariam Almada Negreiros (Chic-Chic em 1925 e Feira do Diabo em 1939) António Soares, Stuart Carvalhais, Jorge Barradas, Sarah Afonso, Lino António, (Pé de Vento e A Cigarra e a Formiga em 1930, Ai-Ló, O Mexilhão e O Canto da Cigarra em 1931, Pernas ao Léu em 1933) Jorge Herold (Balancé e Agua Vai), Júlio de Sousa (A Feira da Alegria).136 Não obstante, na concepção plástica para a Revista ganhariam proeminência as figuras de Maria Adelaide Lima Cruz – discípula de Carlos Reis – e de Pinto de Campos, este último com uma actividade mais duradoura, criando, ao longo de dezoito anos, largas dezenas de cenografias e figurinos plenos de ritmo e cor, numa sempre reinventada perspectiva de modernidade. Como vimos, a partir de meados da década de 30, a difusão radiofónica consagrava cada vez mais espaço a palestras de índole nacionalista, fazendo sucumbir a vertente da experimentação radiofónica à propaganda doutrinária do Estado Novo. Seria neste contexto que se publicariam as palestras de Luiz Moita - emitidas em 1936 pela Emissora Nacional sob o título O Fado, Canção de Vencidos137 - e ao longo das quais o seu autor, em oito sessões, promovia um conjunto de duras críticas ao Fado, sem deixar, porém, de se documentar exaustivamente. No ano seguinte, Victor Machado publicaria Ídolos do Fado, elaborando uma preciosa antologia de biografias de consagrados expoentes da canção urbana, na linha dos discursos defensores do género. Reunindo o conjunto de palestras de Luiz Moita emitidas na Emissora Nacional, O Fado, Canção de Vencidos era ilustrado por Bernardo Marques, (1899-1962) analista atento do quotidiano da cidade, que registou num traço conciso e imediatista. Centrando-se nos bairros de Lisboa e nas suas gentes, os trabalhos de Bernardo Marques reflectem com fina ironia os ambientes nocturnos, por vezes um retrato duro do bas-fond lisboeta. Também as ilustrações de O Fado, Canção de Vencidos atestam essa ironia triste, ilustrando aqui um posicionamento de dura crítica do universo do Fado em Lisboa. Com o golpe militar de 28 de Maio de 1926 e a implementação da censura prévia sobre espectáculos públicos, imprensa e demais publicações, a canção urbana sofreria profundas mutações. De facto, logo no ano seguinte, regulamentando globalmente as actividades

- REBELLO, Luis Francisco, O Teatro de Revista, Vol. I, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1984 p.31

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- Idem, ibidem.

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- MOITA, Luiz, O Fado Canção de Vencidos, Lisboa, Empresa do Anuário Comercial, 1936.


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Ecos da Semana Carlos Botelho Sempre Fixe, 18 de Marรงo de 1948


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Ecos da Semana - Sécas e Culturas Carlos Botelho Sempre Fixe, 10 de Março de 1949

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de espectáculo através de um extenso clausulado, o Decreto-Lei nº 13 564 de 6 de Maio de 1927, vinha consagrar, ao longo do disposto em 200 artigos, uma Fiscalização superior de todas as casas e recintos de espectáculos ou divertimentos públicos (…) exercida pelo Ministério da Instrução Pública, por intermédio da Inspecção Geral dos Teatros e seus delegados. Neste contexto, o fado sofreria inevitavelmente profundas mutações regulado agora, nos termos do disposto naquele instrumento legal, ao nível da concessão de licenças a empresas promotoras de espectáculos, nos mais diversificados recintos, dos direitos de autor, da obrigatoriedade de visionamento prévio de programas e repertórios cantados, da regulamentação específica para a atribuição da carteira profissional, da realização de contratos, deslocações em tournées, entre inúmeros outros aspectos. Impunham-se, assim, significativas mutações no âmbito dos espaços performativos, no modo de apresentação dos intérpretes, nos repertórios cantados – despidos de qualquer carácter de improviso – consolidando-se um processo de profissionalização de uma plêiade de intérpretes, instrumentistas, letristas e compositores, que passava a actuar em recintos diversificados para um público cada vez mais alargado. Gradualmente, tenderia a ritualizar -se a audição de fados numa casa de fados, locais que iriam sobretudo concentrar-se nos bairros históricos da cidade, com maior incidência no Bairro Alto, sobretudo a partir dos anos 30. Estas transformações na produção do fado irão necessariamente afastá-lo do campo do improviso, perdendo-se alguma da diversidade dos seus contextos performativos de origem e, por outro lado, obrigar à especialização de intérpretes, autores e músicos. Paralelamente, as gravações discográficas e radiofónicas propunham uma triagem de vozes e práticas interpretativas que se impunham como modelos a seguir, limitando o domínio do improviso. Na década seguinte, vingariam definitivamente as tendências de um revivalismo dos aspectos ditos típicos, que apontavam para a recriação dos aspectos mais genuínos e pitorescos nos ambientes performativos do fado. Neste sentido, A Canção do Sul, em 1938, aconselhava sobre a decoração dos recintos: Os ornatos devem ser todos de origem popular e lisboeta; e, quando não de carácter marítimo (...) de carácter camponês como as ornamentações bairristas dos festejos de Santo António. Os vasos de cravos e manjericos e tudo quanto possa significar culto pelas flores ou evocar janelas e varandas onde a mulher de Lisboa espera o português marinheiro em horas de saudade – são autênticos símbolos fadistas (...) Oxalá os artistas decoradores, que neste momento trabalham na remodelação de alguns salões de fado, se integrem neste essencial preceito de fadismo.138 Atestando a proliferação de casas típicas nos bairros da capital, e a progressiva ritualização da audição de fados em local próprio e dentro de um horário previamente definido,   - A Canção do Sul, ano 16, nº 214, de 1 de Novembro de 1938.

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Lisboa em Festa, séc. XX Eduardo Viana Óleo s/ tela, 89 x 86 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa

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Ramalhete de Lisboa, 1935 Carlos Botelho Óleo s/ contraplacado, 71 x 101 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa


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encontramos a descrição feita por José Gomes Ferreira a um amigo inglês em visita à capital: (...) O meu amigo inglês estava fatigadíssimo....Ouvi-o confessar, com uma sinceridade impressionante: - Tenho viajado muito! Sei de cor os Museus, as Casas e os Bicos de todas as cidades (...) Mas agora basta! Mostre-me qualquer coisa de diferente que não se encontre em outro país. Não há? Meditei um segundo e respondi, cheio de convicção: - Há sim senhor. Há “cabarets”.... O estrangeiro tregeitou desdém. Mas eu continuei, imperturbável: - Há “cabarets” estranhos, “cabarets” ao contrário, sem “jazz-band”, sem pretos, sem mulheres fatais, sem alegria nem champagne! Verdadeiras “casas de sofrer”, com mesas, cadeiras e bebidas, tristíssimas, frequentadas por quem quer chorar em público, sem medo do ridículo. Venha comigo e verá... (…) Tomámos um taxi. Descemos uma rua melancólica. Abrimos uma porta de vidro e, em silêncio, penetrámos num ambiente de fumo onde muitas pessoas se preparavam para sofrer em comum. Os criados andavam com botas de borracha. Alguns senhores, com a cabeça entre as mãos, meditavam. Um careca, com os olhos cheios de desespero, talvez uma letra a vencer no dia seguinte, sorvia um capilé. Perto de nós uma senhora viúva, inundada de crepes, transformava a boca num molde para um soluço. Ia começar a sessão. Um criado trouxe duas cadeiras. O “viola” e o guitarrista entraram, com ritmos de enterro. Em seguida, o cultivador da canção nacional, vestido de preto, pálido, sinceramente triste, fez a sua aparição. Houve um sussurro religioso. Todos se prepararam para sofrer com comodidade. Aquele rapaz esguio, de patilhas, caiu em êxtase. As lágrimas já estavam prontas para o que desse e viesse. Silêncio! E o fadista começou a contar a história daquela mãe que pediu a Nossa Senhora a mercê de dar novos olhos à filha cega! Depois descreveu os horrores da Grande Guerra! Em seguida insistiu na evocação dos feridos dum hospital, mutilados, longe das suas mãezinhas. E acabou, por dizer, em versos ingénuos, o drama daquela rapariga perdida que apanhou uma facada quando se ia regenerar! Tudo isto em ré menor! A voz era harmoniosa e insinuante. Os frequentadores daquela “casa de sofrer” deixaram cair as lágrimas, sofriam, erguiam as mãos aflitas! Que bom! Éramos portugueses e estávamos ali todos juntos a meditar nas misérias do mundo e a esquecer-nos do sol, das árvores e do mar! Eu, a gostar, no fundo, porque, afinal de contas, nasci em Portugal e o fado é «nosso», «muito nosso»! - Rapaz! Mais um capilé.139 139   - FERREIRA, José Gomes, “Notícias Ilustrado – Comentários” suplemento do Diário de Notícias, Lisboa, ano IV, Serie II, nº 174, de 11 de Outubro de 1931.


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Entretanto, no contexto das artes plásticas nacionais, os modernistas obtinham uma ambígua e comprometida visibilidade nacional140 com a criação do Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro. De facto Ferro aludira já em 1930, às dúzias de rapazes cheios de talento e mocidade que esperavam ansiosamente para serem úteis ao seu país.141 Salazar acederia positivamente ciente das razões do seu ideólogo ao afirmar que a arte, a literatura, a ciência constituem a grande fachada do que se vê lá de fora e naturalmente inspirado pelo lema de Mussolini é preciso criar a arte nova dos nossos tempos.142 Neste sentido, logo em 1933, criava-se a Academia Nacional de Belas Artes, reestruturava-se o ensino artístico e fundava-se o Secretariado de Propaganda Nacional. Através do SPN e no seguimento do decreto-lei de 6 de Maio de 1927 que regulamentava toda a performação artística, se renovavam também os conceitos e práticas de promoção cultural e turística – concursos de montras, edições de propaganda, programas de obras públicas, participação em certames internacionais e exposições anuais de Arte Moderna. Caberia a Mário Eloy (1900-1951) o primeiro prémio Amadeo Souza-Cardoso criado por António Ferro no SPN. Autor de pelo menos duas obras representativas do género Le Fado de Lisbonne (1927) e Fado (1935), a cidade de Lisboa foi nas palavras de Helena Vasconcelos “o seu berço e o seu caixão.”143 Pintando e desenhando os temas da cidade, o casario, as festividades e o Fado, numa articulação de ambientes urbanos com aspectos rurais, à medida que o desencanto com a vida cultural lisboeta se acentuava e que a doença se anunciava – até ao internamento no Hospital do Telhal em 1942 – nas telas de Eloy ganhava gradualmente corpo a referência a um mundo onírico assombrado por pesadelos. A ligação ao universo do Fado ter-lhe-á sido natural pela íntima ligação ao imaginário da cidade. O desfecho dos últimos anos de vida, solitário e perturbado pela doença, levou Jorge Segurado a traçar um perfil do artista que tem prevalecido: o do português que o Estado Novo formou e, simultaneamente, ajudou a destruir, provocando aquela que é uma das suas múltiplas ambiguidades.144 Outro dos artistas que, a par de Eloy, traçou, nos anos 30, uma carreira breve e relativamente marginal, foi o portuense Dominguez Alvarez (1906-1942). Em A Casa das Violas – numa composição desnivelada, pautada por elementos de força contraditórios, com montras   - CFr. SILVA, Raquel Henriques, Sinais de Ruptura, Livres e Humoristas in “História da Arte Portuguesa”, dir. Paulo Pereira, Vol. III, Círculo de Leitores, 1995, p. 390.

140

- SILVA, Raquel Henriques, Sinais de Ruptura, Livres e Humoristas in “História da Arte Portuguesa”, dir. Paulo Pereira, Vol. III, Círculo de Leitores, 1995, p. 390.

141

- Idem, ibidem,

142

- VASCONCELOS, Helena, Mário Eloy, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho Edimpresa, 2005, p.18.

143

- VASCONCELOS, Helena, Mário Eloy, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho Edimpresa, 2005, p.27.

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Casa das Violas, s/d. Domingos Alvarez Óleo s/ tela colada em cartão prensado, 22,5 x 26, 5 cm Colecção Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão / Fundação Calouste Gulbenkian

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desalinhadas, num ambiente vincado pelo artifício e pela sombra -Alvarez documenta o estabelecimento existente à época no Porto atestando a consagração popular do género por todo o País nos anos 30, época provável da conclusão da obra. O mesmo sentido de transfiguração, pontuado embora por uma maior expressão onírica, poderemos observar na obra de Júlio Reis Pereira (1902-1983). Principal ilustrador da revista Presença - de que seu irmão José Régio, foi um dos directores – o multifacetado Júlio, engenheiro, poeta e pintor, faz figurar a guitarra portuguesa em ambientes de vincada carga poética. Na série de desenhos Poeta, produzidas desde o final da década de 30 aos meados da década de 70, Júlio recorre sistematicamente à guitarra, transmutando-a em instrumento de fascínio aqui enfatizado na sua carga mágica e onírica. De carácter vincadamente neo-realista, a obra que Arnaldo Louro de Almeida (n. 1926) conclui em 1947 e que integramos no presente catálogo foi pela primeira vez exposta ao público em 2008, no Museu do Fado, onde integra o circuito expositivo permanente. Tendo participado nas Exposições Gerais de Artes Plásticas realizadas entre 1946 e 1955, Arnaldo Louro de Almeida apresenta, nesta obra, a temática do quotidiano do proletariado, num ritual familiar valorizado através de um claro-escuro dramático, acentuando a desconformidade sofredora dos rostos, pés e mãos como ícones intencionais de exploração social e de um adivinhado desejo de luta. À parca refeição, miséria que a chegada de um jovem descalço vem agravar, assiste a imagem de Nossa Senhora de Fátima. Uma guitarra portuguesa a um canto, deixa adivinhar duras críticas ao regime, prenúncio do proclamado slogan oposicionista dos três F’s145 popularizado, como veremos, nos anos 60. Dois anos mais tarde, numa representação bem mais suavizada, Rolando Sá Nogueira (1921-2002) no seu Retrato de Maria Alice Manta (1949) faz figurar um instrumento – que adivinhamos ser uma guitarra com cravelhas em madeira – nas mãos da companheira do seu amigo, João Abel Manta, numa representação que nos remete para a figuração da guitarra no ambiente dos ateliers nas primeiras décadas do séc. XX, tendência que pressentimos em O Meu Atelier em Paris de Armando Basto, nas obras de Eduardo Viana ou mesmo na luxuriante Peccata Nostra de Malhoa.

- Leia-se Fado, Futebol e Fátima, slogan preconizado pela Oposição democrática atentando na manipulação da consciência cívica dos portugueses, através da exaltação do culto destes 3 fenómenos;

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Poeta, 1975 Júlio Aguarela da série Poeta Tinta-da-china e lápis aguarela s/ papel, 42 x 30 cm Colecção Particular




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Desenho da série Poeta, 1939 Júlio Tinta-da-china s/ papel, 55,5 x 48 cm Colecção Particular

Desenho da série Poeta, 1973 Júlio Tinta-da-china s/ papel, 41,5 x 30,5 cm Colecção Particular

Desenho da série Poeta, 1938 Júlio Tinta-da-china s/ papel, 45,5 x 33,5 cm Colecção Particular

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Sem Título, 1947 Arnaldo Louro de Almeida Aguarela s/ cartão, 39 x 58 cm Colecção Arnaldo Louro de Almeida

Retrato de Maria Alice Manta, s/d Sá Nogueira Óleo s/ tela, 65 x 41 cm Colecção Abel Manta



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A partir de meados do século XX, como explica Rui Vieira Nery, o Estado Novo vai gradualmente invertendo a sua distanciação ideológica inicial em relação ao Fado para procurar agora, pelo contrário, incorporar o género numa estratégia de imagem populista que se estende a todos os domínios da indústria cultural de massas – da Rádio e Televisão, à Revista e ao Cinema.146 De facto e Tal como se procurará colar, no plano internacional, à imagem de prestígio crescente de Amália Rodrigues, também no plano interno o regime multiplicará e apadrinhará agora as oportunidades de exposição pública do Fado, assegurando-lhe uma presença relevante nos Serões para Trabalhadores da FNAT, nas festas de impacte popular promovidas ou apoiadas pelo SNI e pelas autarquias, na Rádio e na Televisão estatais, na cinematografia oficiosa147. Autor da mais extensiva produção pictórica sobre a temática fadista, Cândido da Costa Pinto (1911–1977)148 fixou na tela mais de uma dezena de trabalhos pontuados pela figuração da guitarra portuguesa ou mesmo por referências directas ao Fado. Inteiramente pintado em S. Paulo, pouco depois de Cândido da Costa Pinto ali se ter instalado, a obra Anti-Fadismo ocupa um lugar central na produção do artista, espécie de ajuste de contas com a estagnação da realidade portuguesa. Luís de Moura Sobral149 desvendou as notas que Costa Pinto redigiu a propósito da tela: um poema, datado do mesmo ano do quadro onde o autor defende, a propósito desta obra e marca aqui e agora, o Anti-Fadismo leal, que dá bom rumo à Missão do Povo de Portugal! (…) o quadro representa a revolta da jovem consciência popular contra o espírito de aceitação de grande parte do povo português, submetido passivamente a um fatalismo social e humano que o Fado (canção popular de Lisboa) canta e descreve. Elevando-se contra a passividade acrítica do fado, que considera fomentar a estagnação e o conformismo colectivos, Cândido da Costa Pinto justificaria: Acho apenas que os maus estímulos deviam ser eliminados e considero o Fado (concretização virulenta do referido espírito) um mau estímulo – embora possa servir de motivo de curiosidade (não de respeito nem de admiração) para atrair turistas. Aliás, parece

- NERY, Rui Vieira, Para uma História do Fado, Ed. Publico Comunicação Social, Lisboa, 2004, p. 238.

146

- NERY, Rui Vieira, Para uma História do Fado, Ed. Publico Comunicação Social, Lisboa, 2004, p. 240.

147

148   - Veja-se o exustivo catálogo Cândido da Costa Pinto, Retrospectiva, 1911-1977, Museu Municipal Dr. Santos Rocha, Figueira da Foz e Centro de Arte Moderna Fundação Calouste Gulbenkian. om efeito, a participação numa das exposições do SNI, com a obra Em Lisboa Há Bacalhau (1947), conduziria à cisão definitiva com os seus camaradas surrealistas que defendiam o firme distanciamento das exposições oficiosas do regime de Salazar. Isolado a partir de então, a sua pintura entrou definitivamente no campo da abstracção. 149   - Cfr. SOBRAL, Luís de Moura in Cândido da Costa Pinto, Retrospectiva, 1911-1977, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, 1995, pp.45-159.


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que o Fado não é de origem portuguesa.150. A cena desenrola-se na zona ribeirinha de Lisboa, vislumbrando-se a colina até ao Castelo. No primeiro plano, do lado direito, um indivíduo destrói ruidosamente uma guitarra portuguesa. Ao centro, uma fadista esganiçada. À esquerda, a figuração da miséria – também ela empunhando uma guitarra – o alcoolismo e, atrás, sorumbáticas figuras observando a cena. Dois jovens parecem contemplar a cena, com triste condescendência, em frente da pomba da paz. No canto superior direito, uma figura espreita por uma janela com gradeamento, reiterando o hermetismo da realidade cultural portuguesa contemporânea de Costa Pinto. Retomando as palavras de Jung, Cândido da Costa Pinto parece recorrer à amplificação e concentração de uma imagem onírica por meio de associações orientadas e com paralelos na história simbólica e do pensamento pelos quais se aclara o sentido da interpretação. Podemos rastrear a génese de Anti-Fadismo até cerca de 1946, data de um estudo para a figura da direita, um esgazeado, famélico e esfarrapado rapaz que despedaça com alucinado ódio uma guitarra151. O fadismo das misérias Covardias e decadências Que apagas quantos e quantas Ao teu mau fascínio cedem: Pára, pára de cantar! São os melhores que to pedem! A Grande Vida da Hora Desce do Alto e a Prumo E marca aqui e agora O Anti-Fadismo leal Que dá bom rumo à Missão Do Povo de Portugal152 Uma gigantesca guitarra com o braço torcido suportando um estendal de roupa, fez-se amarrar ao cais por duas cordas. Um casal passeando, parece indiferente à faca cravada no chão, mais adiante, perto de um corpo estendido. Eis o argumento de narrativa trágicourbana na tela S/ título, datada de 1945. Inevitavelmente, a guitarra transforma-se aqui no tema principal do quadro assumindo um carácter assumidamente público segundo a premissa de R. Morris153. Concretamente, a pintura parece apresentar, resignada e fenomenologicamente, um 150   - Cfr. SOBRAL, Luís de Moura in Cândido da Costa Pinto, Retrospectiva, 1911-1977, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, 1995, pp.45-159.

- SOBRAL, Luís de Moura, op. cit., p.

151

-Versos do autor a propósito de Anti-Fadismo, cfr. Luís de Moura Sobral in Cândido da Costa Pinto, Retrospectiva, 1911-1977, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, 1995. 152

- Notas sobre Escultura, p. 94.

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Anti-Fadismo, 1963 Cândido da Costa Pinto Óleo s/ tela, 132 x 285 cm Colecção Fundação Portuguesa das Comunicações


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Fado.Evasão, s/d. Cândido da Costa Pinto Óleo s/ tela, 80 x 98 cm Colecção Fundação Portuguesa das Comunicações

Contra o Vento, 1945 Cândido da Costa Pinto Óleo s/ madeira ou platex, 52 x 66,5 cm Colecção Carlos do Carmo

Sem Título, c. 1945 Cândido da Costa Pinto Óleo s/ tela, 65 x 46 cm Colecção Carlos do Carmo



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objecto que existe para além do nosso querer, independentemente do que possamos pensar dele.154 Aqui, a escala e proporção desmesuradas da guitarra parecem concorrer para a representação de uma Lisboa subjugada ao conformismo do Fado, destino angustiante e inultrapassável. Como salienta Luís de Moura Sobral: Objecto de fascinação e de raiva, tudo isso, sincreticamente, era a guitarra portuguesa para Costa Pinto, que continuará a representála obsessivamente até ao fim da sua vida de voluntário exilado paulista155. A amplificação da guitarra portuguesa faz-se à custa da escala da própria cidade, insistentemente apagada, sombria. Nalguns trabalhos de Costa Pinto a guitarra portuguesa é ela própria arquitectura urbana, edifício majestoso, espécie de denominador estilístico na malha urbana de Lisboa, assumindo um carácter eminentemente público, claramente identificado com a própria cidade, do ponto de vista arquitectónico. Neste aviltamento e crítica à regulamentação das artes pelo regime de Salazar e seu ideólogo, António Ferro, retratam-se, recorrentemente, elementos icónicos do imaginário alfacinha: estendais de roupa, manjericos, sardinhas assadas, garrafas de vinho, candeeiros iluminando tenuemente o casario, fadistas e rameiras, figuras complacentes num universo pictórico que cristalizaria Lisboa como a mais resignada, sombria e triste das cidades. Como salienta Rui Vieira Nery, nas vésperas da revolução de Abril, o mainstream fadista em Lisboa apresentava uma dimensão e uma dinâmica significativas, fruto de uma evolução que fizera transitar o Fado dos ambientes mais informais para um processo de plena profissionalização. A rede de casas de Fado é ainda o espaço privilegiado de apresentação de um leque alargado de fadistas, cobrindo várias sensibilidades e gostos, dentro do género.156 Em paralelo, e enquanto a canção de intervenção ganhava corpo nas vozes de José Afonso (das Cantigas do Andarilho, 1968 às Cantigas de Maio, 1971) Adriano Correia de Oliveira (O Canto e as Armas, 1969), José Mário Branco (Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, 1971) ou Sérgio Godinho (Os Sobreviventes, 1971 e Pré-História, 1973), aprofundavam-se gradualmente as divergências ideológicas face ao universo do Fado157. Em 1974, assim o definia António Osório: O Fado entrega-se à resignação comprazendose com a própria dor, faz gala no seu pessimismo lúgubre. Agonia consigo mesma satisfeita, conformismo levado ao extremo, apatia e renúncia totais, eis os traços dominantes da moral que supura no Fado. O que este revela, em ponto grande, é uma frustração arrepiante. O

154   - Cfr. SOBRAL, Luís de Moura in Cândido da Costa Pinto, Retrospectiva, 1911-1977, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, 1995. 155   - Cfr. SOBRAL, Luís de Moura in Cândido da Costa Pinto, Retrospectiva, 1911-1977, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, 1995. 156

- NERY, Rui Vieira, Para uma História do Fado, Ed. Publico Comunicação Social, Lisboa, 2004, p.248-249.

- NERY, Rui Vieira, Para uma História do Fado, Ed. Publico Comunicação Social, Lisboa, 2004, p. 250.

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Marialva, 1976/77 João Abel Manta Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar Guache s/ papel, 28, 3 x 36 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa

Miguel, 1976/77 João Abel Manta Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar Guache s/ papel, 28, 3 x 36 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa

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Camões, 1976/77 João Abel Manta Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar Guache s/ papel, 28, 3 x 36 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa


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Folclore, 1976/77 João Abel Manta Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar Guache s/ papel, 28, 3 x 36 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa

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fatalismo fadista, (...) assenta na destruição da razão, na irrelevância da vontade, na inutilidade da acção.158 Restabelecida a Democracia em 25 de Abril de 1974, o Fado defrontar-se-ia com um contexto de rasgada hostilidade. Aos argumentos críticos que o conotavam com o salazarismo e a própria estratégia de sustentação política do regime deposto, somava-se, como explica Rui Vieira Nery, a publicação da obra de António Osório em Junho do mesmo ano, os ataques violentíssimos a Amália Rodrigues em praça pública, nas páginas de jornais, acusada de dever a sua carreira à protecção do regime ou mesmo – testemunho já de pura esquizofrenia política159 – de pertencer à própria PIDE. Em 1977 João Abel Manta (n. 1928) publicava um conjunto de caricaturas ilustrando os anos do Salazarismo. Em entrevista ao Jornal de Letras explicaria: Há uma estética dos regimes (..) e o salazarismo também tinha a sua. Até nas cores, até nos fadistas ranhosos ou nos bailarinos do Verde-gaio. E foi também essa estética que eu procurei transmitir neste álbum.160 Sublimando tudo quanto teve de suportar durante o reinado de Salazar estes trabalhos “em espécie de banda desenhada” apresentam o fascismo mesquinho na sua paranóia, virando contra ele o humor. As Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar integravam naturalmente o Fado e esses fadistas ranhosos161, ora associados ao marialvismo, ora a prostitutas, em registos pautados pela transversal visão de uma canção urbana decadente, irrisória e ridícula. Em 1985, pela mão de Júlio Pomar (n. 1926) a guitarra portuguesa surgiria novamente na pintura, protagonizando a composição de Lusitânia no Bairro Latino, a par dos retratos de Mário de Sá Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza Cardoso, captados enquanto emigrantes em Paris. Ali adivinhamos a solidão de Sá Carneiro e Santa-Rita Pintor junto à Torre Eifell, enquanto Souza Cardoso arrimado a uma enorme guitarra portuguesa parece dialogar com o aeroplano dos irmãos Right, que voava em Paris quando os futuristas portugueses por lá andavam. Também em Ulisses e as Sereias com a Guitarra Portuguesa (2001) assistimos novamente ao protagonismo da guitarra portuguesa na composição, com o estatuto evidente de ícone pátrio. Na obra de Júlio Pomar perpassam, aliás, alguns dos temas mais caros à iconografia portuguesa, também patentes na representação dos seus

158

- OSÓRIO, António, A Mitologia Fadista, Lisboa, Livros Horizonte, 1974, pp.103-105.

- Cfr. NERY, Rui Vieira, Para Uma História do Fado, Lisboa, PÚBLICO, Corda Seca, 2004, p. 256.

159

- Jornal de Letras, João Abel Manta -Retratos do Salazarismo, 18 de Novembro de 1998.

160

- Idem, ibidem;

161

Lusitânia no Bairro Latino, 1985 Júlio Pomar Acrílico s/ tela, 158,5 x 154 cm Colecção Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão / Fundação Calouste Gulbenkian



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Carlos do Carmo I, 2007 Júlio Pomar Acrílico, pastel e carvão s/tela, 79,5 X 59,5 cm Colecção Carlos do Carmo

Carlos do Carmo, 2011 Júlio Pomar Acrílico e pastel s/ papel, 70 x 49,5 cm Colecção Fundação Júlio Pomar



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Fernando Pessoa e Alfredo Marceneiro, 2011 Júlio Pomar Acrílico e pastel s/ tela, 87,2 x 78,2 cm Colecção Fundação Júlio Pomar

Mariza, 2011 Júlio Pomar Acrílico e pastel s/ tela, 128 x 98 cm Colecção Fundação Júlio Pomar




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Cristina Branco Alegoria à República, 2010 Júlio Pomar Serigrafia, 71,5 x 54,5 cm Colecção Fundação Júlio Pomar

Cristina Branco Alegoria à República, 2010 Júlio Pomar Pastel s/ tela, 50,5 x 37,5 cm Colecção Fundação Portuguesa das Comunicações

Cristina Branco Alegoria à República, 2010/2011 Júlio Pomar Acrílico e pastel s/ tela, 146 x 114 cm Colecção Fundação Júlio Pomar

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mais emblemáticos vultos. No registo de uma gradual proximidade ao universo do Fado, pontuada também pela produção de repertórios de fino recorte humorístico, Pomar tem desenvolvido, desde 2007, um conjunto de obras onde a representação dos protagonistas do Fado adquire particular relevância. Neste âmbito salientam-se os três retratos que consagrou, nesse mesmo ano, a Carlos do Carmo162 - um outro retrato de Carlos do Carmo de 2011 - a representação de Cristina Branco protagonizando a República em 2010 e ainda um inédito de Mariza, aqui iluminado por 15 planos distintos do registo processual de composição da obra. Nestes planos imaginamos o contínuo diálogo com a obra, a inquietude de Júlio transmutando as personagens, ao sabor de conversas reais e imaginárias, metamorfoseando os heróis que afinal lhe são tão próximos, numa cumplicidade criativa entre autor e retratado que poderia durar para sempre. Ao longo deste diálogo íntimo, desfila o quotidiano destes heróis, sempre reconhecidos e reconhecíveis até à captação de um instante fotográfico luxuriante de cor que os fixará em tela. Numa outra obra concluída no momento da presente exposição, a inquieta lucidez de Pomar celebra picturalmente a improvável dupla de Alfredo Marceneiro e Fernando Pessoa, para quem: Toda a poesia - e a canção é uma poesia ajudada – reflecte o que a alma não tem. Por isso a canção dos povos tristes é alegre e a canção dos povos alegres é triste. O Fado, porém, não é alegre nem triste. É um episódio de intervalo. Formou-o a alma portuguesa quando não existia e desejava tudo sem ter força para o desejar. As almas fortes atribuem tudo ao destino; só os fracos confiam na vontade própria porque ela não existe. O Fado é o cansaço da alma forte, o olhar de desprezo de Portugal ao Deus em que creu e que também o abandonou. No Fado, os Deuses regressam, legítimos e longínquos. É esse o segundo sentido da figura de El-Rei D. Sebastião.163 Também a respeito desta obra, o artista confirma a transmutação das figuras de fundo: acompanhando Marceneiro e Pessoa, por ali desfilaram já Adão e Eva, Salomé empunhando a cabeça de S. João Baptista, até chegar uma majestática Varina que lhes colheu o protagonismo. Dando continuidade à figuração antropomórfica de animais, um surpreendente Burro Tocando Guitarra, desenhado sobre cartão de embalagem, interpelanos na sua expressividade fadista de feição doce. Na obra Mouraria (1990) Graça Morais (n. 1948) centra formalmente a narrativa na imagem de uma guitarra portuguesa que associa à representação de uma figura feminina. A representação da fadista, envergando um xaile vermelho, é secundada, no plano inferior direito, por um retrato de um anónimo habitante do bairro. Remetendo-nos definitivamente para o universo do Fado, já em 1990 realizara uma série de trabalhos onde a guitarra figura   - Assinalando a edição do disco À Noite.

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- Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929, p.12.

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Burro Tocando Guitarra, 2011 Júlio Pomar Carvão sobre cartão de embalagem, 129 x 89 cm Colecção Fundação Júlio Pomar


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fragmentada, em testemunhos visuais onde se apresentam pedaços dos seus componentes ou decoupages da sua forma, assinalando um território mítico.164 Em 1994, a exposição Fado, Vozes e Sombras, dirigida por Joaquim Pais de Brito, no Museu Nacional de Etnologia, encetava os primeiros passos no sentido do reconhecimento do Fado como património musealizável e, sobretudo, como legítimo objecto científico de estudo e investigação. Três anos corridos sobre Lisboa, Capital Europeia da Cultura, Leonel Moura apresentava a série 50 Retratos de Personalidades do Século XX Português. Almada Negreiros, Amadeo Souza Cardoso, Fernando Pessoa, José Saramago, José Régio, entre tantos outros, figuravam ao lado de Carlos Paredes, Amália Rodrigues e Alfredo Marceneiro, numa panóplia que, nas palavras do autor ”desenha vivências essencialmente positivas”165. Recorrendo a fotografias extraídas dos media, Leonel Moura apropria-se das imagens para as reproduzir, com pormenores luxuriantes de cor, celebrando ícones da cultura tradicional portuguesa – de que os casos de Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro ou Carlos Paredes são um excelente exemplo – para os celebrar, numa perspectiva de reconciliação com a modernidade. Retomando a reflexão de Benjamin, que logo em 1939 afirmava Já se tinha dedicado muita reflexão vã à questão de saber se a fotografia seria uma arte – sem se ter questionado o facto de, através da invenção da fotografia, se ter alterado o carácter global da arte166 e, subscrevendo a tese Warholiana da década de 60 de exploração máxima das possibilidades da fotografia, Leonel Moura sublinha fazer parte de uma convicção estética, essencialmente conceptual, onde se entende que interessa pouco produzir novas formas, mas antes trabalhar com as que já existem. (...) Para mim, um artista não é mais do que um homem qualquer que atravessa o seu tempo. E o meu, é um tempo de mediatizações, não de corpos presentes (…) Em Portugal o brusco desenvolvimento económico da última década e a integração europeia criaram uma sensação de perda e uma enorme desorientação quanto à nossa consistência cultural. Sentimento que tem desencadeado inúmeras manifestações, também aqui quantas vezes confundindo identidade com nacionalismo, afirmação própria com recusa da diferença. No entanto e na generalidade dos casos estamos perante uma procura séria e empenhada de reconhecimento individual e colectivo.167 Efectivamente, já na série Amália, Moura explorara a capacidade dos media de amplificar fenómenos, mediatizandoos, também através da proliferação de imagens. Nesta série, perspectiva de evidente visão

- CABRAL, Pedro Caldeira, Guitarra Portuguesa, Ediclube, 1999, p. 286.

164

- MOURA, Leonel, in 50 Retratos de Personalidades do Século XX Português, Lisboa, PUBLICO, 1997, p. 3.

165

-BENJAMIN, Walter Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Editores Relógio d’Água, 1992, p.89.

166

- MOURA, Leonel, op. cit. ibidem.

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Mouraria, 1990 Graça Morais Acrílico, carvão e pastel s/ tela, 190 x 148 cm Colecção Particular

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conciliadora do Fado com a modernidade, Moura fez imprimir fotografias da artista nos mais variados suportes, por vezes com a inscrição PORTUGAL aposta sobre o seu rosto, numa manifestação vincadamente celebrativa da nossa identidade.

Fado, 1995 Paula Rego Serigrafia, 36,5 x 40, 5cm Colecção Museu do Fado


Ecos do Fado na Arte Portuguesa XIX-XXI

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Em Novembro de 2001 no quadro da exposição Os Azulejos, o Fado e a Guitarra Portuguesa,168 visando a eventual conciliação de dois paradigmas da cultura portuguesa, a azulejaria e o Fado, um conjunto de doze artistas são convidados a representar o tema: Júlio Pomar, Maria Keil, Eduardo Nery, Pedro Proença, Paula Rego, Querubim Lapa, Sá Nogueira, Júlio Resende, Álvaro Siza, Bela Silva, José de Guimarães, João Abel Manta. Inspirando-se no universo de Carlos Paredes, Júlio Pomar utiliza o cromatismo azul tão característico da azulejaria portuguesa para recriar uma conhecida representação fotográfica de Paredes, que captou o músico debruçado sobre a guitarra com a mão direita dedilhando as suas cordas. O nome de Carlos Paredes, aposto sobre o desenho vem reiterar a musicalidade da composição. Num traço fluído de grande suavidade cromática, Maria Keil (n.1914) retrata uma série de fadistas e músicos, num discurso narrativo a que imprimiu algum humor. Solução nitidamente distinta criará João Abel Manta (n.1928). Curiosamente, mais de vinte anos corridos sobre as suas Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar, Abel Manta insistirá na representação dos aspectos mais sombrios do tema. Documentando uma versão mais castiça do tema, Pedro Proença (n. 1962) revela uma solução bastante lúdica e humorística – característica das suas narrativas – onde podemos observar uma imagem recorrente da imagética do Fado: uma fadista e seu acompanhante, quase esmagado por um gato. Uma guitarra e um exuberante coração encarnado centram a composição de Rolando Sá Nogueira (1921-2002). Numa opção conceptual, Eduardo Nery (n. 1938) associou a um azul profundo a palavra Fado, inscrita em lágrimas. Já em 1995 Paula Rego (n. 1935) representara o tema numa composição em que o protagonismo se faz centrar na figura feminina, em primeiro plano, tocando viola. Nesta colecção de azulejos recria duas versões do tema: um azulejo a preto e branco com o convencional retrato da fadista e seu acompanhante e, um outro, policromado, conferindo à figura feminina a centralidade na composição. Entre 2002 e 2004 Arman (1928-2005), consagra volumosa produção artística ao Fado e aos seus maiores ícones. Entre os objectos de que se foi apropriando, a guitarra portuguesa tem lugar de destaque. Uma série dedicada ao tema, onde a homenagem a Amália se nomeia, ilustrava uma guitarra fragmentada, submersa num gesto pollockiano, em derrames de tinta sobre a tela. Com Arman, as próprias trinchas se incluíam nas telas onde fios de tinta se arrumavam pretensamente em cadeias tonais. A guitarra portuguesa é a figura central destes trabalhos: as trinchas assumem o papel das volutas da guitarra, e as ilhargas, ou os seus fragmentos, dispersos no suporte, submergem-se em linhas e salpicos exuberantes de cor.

- Exposição promovida pelo Museu do Fado em parceria com a Corda Seca;

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Marceneiro, 1997 Leonel Moura Serigrafia, 49,5 x 35 cm Colecção Particular

Carlos Paredes, 1997 Leonel Moura Serigrafia, 49,5 x 35 cm Colecção Particular

Amália Negra, 1997 Leonel Moura Impressão s/ tela, 49,5 x 35 cm Colecção Bruno de Almeida



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S/ Título, 2002 Arman Técnica mista s/ tela, 100 x 81 cm Colecção Galeria Valbom


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Em 2005 João Vieira opera uma das mais interessantes reflexões sobre a imagética fadista, na exposição Fado Portuguez169, centrada em torno do Fado de Malhoa e dos seus ecos, junto da primeira geração do modernismo português. Em O Mais Português dos Quadros a Óleo, (2005) lemos uma paródia colectiva ao original de Malhoa. Com a colaboração dos Homeostéticos170, João Vieira apropria-se de O Fado (Malhoa, 1910), para o reinventar, através de uma desfocagem quadricular, exuberante de cor e de luz, numa narrativa plástica plena de humor e para a qual concorre a cumplicidade de artistas como Manuel Vieira (no pormenor Mamalhoas, Pedro Portugal em Luz Explicadista Pedro Proença em Leque e Fernando Brito com Espelho Quebrado. A paródia amplifica-se, portanto, nos pormenores: em Mamalhoas o detalhe dos seios da figura feminina associa-se ao registo humorístico em torno do nome do autor original; em Luz Explicadista são parodiados os elementos da iconografia popular ou do Fadismo, palavra inscrita entre a expressão Desonestidade e Fraude e, finalmente Espelho Quebrado apresenta a versão conceptual do ícone representado na obra original - um espelho quebrado, atributo de um destino desafortunado - que na obra de João Vieira é praticamente imperceptível, senão conhecermos a obra de Malhoa. Finalmente em Leque, Pedro Proença parodia os símbolos nacionais, colocando uma minúscula bandeira nacional em cima de um leque ao lado do qual figura uma corda entrelaçada em jeito de forca171. Nem mesmo o título da obra escapa à sátira humorística: João Vieira copia o verso do fado de José Galhardo que apelidou a obra original de “O Mais Português dos Quadros a Óleo”. Convocando o ajuste de contas da geração do modernismo português perante o oficioso Malhoa172, João Vieira avisara, logo na abertura do catálogo: Pelo caminho, dou uma boa rabecada no Fado do Malhoa. Que está cada vez mais caro.173 Um pastiche de um dos números da Ilustração Portugueza de 1910, celebrativo do êxito da obra original de Malhoa amplifica o risível da citação. Mimetizando escrupulosamente o figurino do original, João Vieira introduz a fotografia do seu quadro (Fado Vieira 2005) e parodia o texto original alusivo à obra de José Malhoa, cujo nome é naturalmente substituído pelo seu. A paródia estende-se ainda à própria notícia - O quadro de Vieira foi enviado ao Salon onde receberá sem dúvida a consagração bem devida a essa obra-prima do illustre pintor Demeter, 2004 Arman Bronze e Madeira, 64 x 13 x 84 cm Colecção Galeria Valbom

169

- SILVA, Raquel Henriques, Fado Portuguez, Lisboa, Galeria Valbom, 2005.

- Manuel Vieira, Pedro Portugal, Pedro Proença e Fernando Brito.

170

- Veja-se Fado Portuguez, Catálogo da Exposição, Lisboa, Galeria Valbom, 2005.

171

- Veja-se o texto introdutório de SILVA, Raquel Henriques, em Fado Portuguez, Lisboa, Galeria Valbom, 2005.

172

- VIEIRA, João, O Fado Portuguez, Lisboa, Galeria Valbom, 2005.

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O Mais Português dos Quadros a Óleo, 2005 João Vieira Painel Lenticular, 300 x 365 cm Colecção Museu da Cidade / Câmara Municipal de Lisboa


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Fado Vieira, 2005 João Vieira Óleo s/ tela, 180 x 200 cm Colecção Galeria Valbom

Fado Vadio, 2005 João Vieira Óleo s/ tela, 180 x 200 cm Colecção Manuel João Vieira


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portuguez - e à fotografia inscrita no plano inferior onde João Vieira se faz representar de bigode à semelhança de Malhoa. Na obra Fado Vieira (2005) continua a explorar-se a ironia sobre o quadro original, desta vez celebrando os modernistas, pela inscrição, no topo e no plano inferior dos nomes de SantaRita Pintor, Almada, Amadeo Souza-Cardoso e Eduardo Viana, como que preconizando um ajuste de contas com o passado. A figuração tende à estilização, patente na representação dos velhos símbolos do leque, do manjerico, da vela e do espelho quebrado. Finalmente, em Fado Vadio (2005) João Vieira amplifica a paródia, apresentando as figuras de nuas, deitadas sobre a cama e incluindo alguns elementos iconográficos presentes no quadro de Malhoa, nomeadamente a garrafa de vinho e a vela. Logo na abertura do catálogo da exposição, Vieira, efectivamente, avisara: Pelo caminho, dou uma boa rabecada no Fado do Malhoa. Que está cada vez mais caro.174

- VIEIRA, João in O Fado Portuguez, João Vieira, Catálogo da Exposição, Lisboa, Galeria Valbom, 2005.

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Barco Negro, 2004 João Pedro Vale Barco de madeira, ferro, objectos de plástico, cera, fitas de cetim, cordas, borrachas, moedas, rede, pneu, roupa, sapatos, 200 x 200 x 600 cm Colecção Pedro Cabrita Reis


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Atentando no Barco Negro de João Pedro Vale reencontramo-nos inevitavelmente com um dos mais emblemáticos fados de Amália, escrito por David Mourão-Ferreira a partir da cantiga brasileira de Caco Velho, Mãe Preta e celebrizado no filme de Henri Verneuil, Les Amants du Tage em 1955. A própria Amália confessaria, a respeito do tema: Foi o Barco Negro que me levou ao Olympia e me fez internacional.175 No interior e exterior deste Barco Negro, uma profusão caótica de materiais dispersos como cordas, moedas, borrachas, redes, pneus, roupas ou sapatos. Em suma, aquilo que João Pinharanda considerou como elementos inquietantes que se agregam (com o único sentido de enegrecerem uma imagem e dar conta ao mundo da realidade do luto e da solidão). Aí regressamos se procuramos um objecto-lugar de evocação da fadista176.

- Cfr. FERREIRA, David, Primavera, David Mourão-Ferreira e o Fado, Lisboa, EGEAC/Museu do Fado, 2007, p.34.

175

- PINHARANDA, João, “À procura de um Rosto” in Amalia, Coração Independente, Lisboa, Museu Colecção Berardo, 2009, p. 311.

176


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Em Coração Independente (2004) Joana Vasconcelos convoca imagem e som para evocar um verso do fado Estranha Forma de Vida de Amália Rodrigues. Concebidos em três versões distintas - vermelho, negro e dourado – os seus corações evocam necessariamente a expressão musical mais central da identidade portuguesa num dos fados de Amália. A ilusão cenográfica proporcionada pelo efeito dos talheres de plástico remete-nos, inevitavelmente, para a filigrana minhota, num processo que Pinto de Almeida classificou como uma espécie de delírio do signo.177 Como salienta José Gil, A ideia forte consiste em construir um objecto já feito: transformar o já feito em fazer, (…) transferir-lhe o poder provocatório em força de presença. Conceber em actos de escultura as decisões instantâneas que presidem à escolha de um ready-made. Não é pois, um tradicional esculpir mas, antes do mais, um atto mentale.178 Marcado pela inclusão seriada e repetida de objectos subtraídos ao quotidiano, também o Coração Independente vem reiterar a sistemática reactualização das tradições nacionais que sistematicamente redescobrimos, expressiva e ruidosamente recriadas, na obra de Joana Vasconcelos.

- ALMEIDA, Bernardo Pinto de, Ciclopes, Mutantes, Apocalípticos, A Nova Paisagem Artística no Final do século XX, Lisboa, Assírio e Alvim, 2004, p. 269.

177

- GIL, José, Sem Título, Escritos Sobre Arte e Artistas, Lisboa, Relógio d’Água Editores, Junho de 2005, p.233.

178

Santo António, 2003 António Carmo Óleo s/ tela, 150 x 130 cm Colecção António Carmo

Coração Independente, 2005 Joana Vasconcelos Técnica Mista, 371 x 220 x 75 cm Colecção Museu Colecção Berardo



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Na obra que Miguel Palma consagra a Carlos Paredes em 2004179, uma guitarra deixa-se habitar por um auditório, numa evocação clara do carácter solístico na execução do instrumento impulsionado por Carlos Paredes. Testemunho conceptual do talento maior de Paredes, a obra de Palma parece, pois, corporizar a metáfora da guitarra com gente dentro, como se várias mãos habitassem nela e dela extraíssem o som.

- Na exposição Arte para Paredes, Cordoaria Nacional, 2004.

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Sem Título, 2004 Miguel Palma Técnica Mista, 80 x 40 x 40 cm Colecção João Pinto de Sousa

Saudades de uma estranha II, 2009 Adriana Molder Grafite sobre impressão UV s/ esquisso, 69 x 89 cm Colecção João Pinto de Sousa


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Citando imagens fotográficas, Adriana Molder propõe um reconhecimento indirecto da figura de Amália, a partir da fotografia que lhe serve de modelo, num processo de desfiguração, que se pretende ser retrato da alma ou do íntimo temor que habita os corpos; temor em que Amália fundava a sua própria existência, temor que Amália cantava nos seus fados e quye escurecia a sua vida de glórias públicas com uma enorme solidão interior.180

- PINHARANDA, João, “À procura de um Rosto” in Amalia, Coração Independente, Lisboa, Museu Colecção Berardo, 2009, p. 310.

180


Fados tradicionais, 2002 Nuno Saraiva Conjunto de ilustrações para o CD Fados tradicionais,disco II, Colecção “Os Azulejos, o Fado e a Guitarra Portuguesa”, Corda Seca Tinta da china,140 guache e colagem, arte-finalizado em Adobe Photoshop Colecção Nuno Saraiva


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O Marinheiro, 2010/ 2011 António Viana Acrílico e jacto de tinta s/ tela 117 x 357 cm Colecção António Viana


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Carlos Paredes, Só Tu!, 2003 Ana Haterly Tinta s/ papel 21 x 14, 5 cm Colecção João Pinto de Sousa


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A fotografia ocupou, indiscutivelmente, um lugar central na construção da imagem do artista, cumprindo um papel de relevo na sociedade de consumo da média burguesia, a partir de meados do Século XX. Como salientou Emília Tavares: A evidente fotogenia de Amália Rodrigues foi crucial para uma construção iconográfica extremamente rica que acompanha toda a sua carreira.181 De facto, Silva Nogueira, Augusto Cabrita ou a nível internacional Irving Penn, Bruno Bernard, Sabine Weiss, Thurston Hopkins, Charles Ichai ou o Studio Harcourt marcaram profundamente a imagem da artista, como de resto demonstrou, comprovadamente, a exposição que o Museu Colecção Berardo lhe consagrou em 2009. Optámos, na presente exposição, por convocar a geração de fotógrafos que tem trabalhado o tema, fixando, na actualidade, os diferentes protagonistas e contextos performativos: Luís Carvalhal, Jorge Simão, Reinaldo Rodrigues, José Frade, Augusto Brázio, Rita Carmo, Clara Azevedo. Em Encore, Ana Rito preconiza uma distinta nomeação de Amália, num tríptico profano182 integrado por três ecrãs. No painel central, o nome Amália é evocado por várias bocas. Nos laterais duas bailarinas coreografam o fado Grito. O som está ausente da peça, onde só poderemos intuir o nome de Amália pela leitura dos lábios no painel central. Trata-se, pois, de uma estratégia evocativa e performativa, como salientou João Pinharanda: nomeála, chamando-a pelo nome; mimá-la, encenando-lhe e cantando-lhe um fado.183 Um fado que se calou e que aqui, desde o início, nos convoca e interpela, como metáfora da eloquência do silêncio das imagens.

181   - TAVARES, Emília, “A Imagem da Voz” in Amalia, Coração Independente, Lisboa, Museu Colecção Berardo, 2009, p. 199.

- Idem, ibidem, p. 313.

182

- Idem, ibidem, p. 313.

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Ecos do Fado na Arte Portuguesa XIX-XXI

Camané, 2003 Reinaldo Rodrigues

Camané Camarim do São Luiz TM, Concerto Músicas da Minha Vida, 6 de Maio de 2006 Jorge Simão

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Ecos do Fado na Arte Portuguesa XIX-XXI

Mariza, Lisboa, 2006 Rita Carmo

NĂŁo sei se canto se rezo - Argentina Santos, Lisboa, 2010 LuĂ­s Carvalhal

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Cristina Branco, Lisboa, 2011 Augusto Brรกzio

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Fado no ElĂŠctrico - Nuno de Aguiar, Lisboa, s/d Clara Azevedo


Ecos do Fado na Arte Portuguesa XIX-XXI

Fado no Eléctrico - Esmeralda Amoedo, Lisboa, 2010 José Frade

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Ecos do Fado na Arte Portuguesa XIX-XXI

Adriana Molder Alberto de Souza Alfredo Roque Gameiro Almada Negreiros Álvaro Siza Amadeo Souza-Cardoso Ana Haterly Ana Rito António Carmo António Viana Arman Arnaldo Louro de Almeida Bela Silva Bernardo Marques Cândido da Costa Pinto Carlos Botelho Carlos Reis Clara Azevedo Columbano Bordalo Pinheiro

Constantino Fernandes Domingos Alvarez E. J. Maia Eduardo Moura Eduardo Nery Eduardo Viana Emmerico Nunes Estrela Faria Graça Morais Joana Vasconcelos João Abel Manta João Pedro Vale João Vieira Jorge Simão José de Guimarães José Frade José Malhoa Juan Soutullo Júlio

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Júlio Pomar Júlio Resende Leonel Marques Pereira Leonel Moura Luís Carvalhal Maria Keil Miguel Palma Nuno Saraiva Paula Rego Pedro Proença Pinto de Campos Querubim Lapa Raquel Roque Gameiro Reinaldo Rodrigues Rita Carmo Rolando Sá Nogueira Stuart Carvalhais Xana


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Ecos do Fado na Arte Portuguesa XIX-XXI

Projecto Museogrรกfico: Antรณnio Viana

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Ecos do Fado na Arte Portuguesa XIX-XXI

Ficha Técnica Produção:EGEAC E.E.M./Museu do Fado Conselho de Administração: Miguel Honrado Lucinda Lopes Francisco Motta Veiga Comissariado: Sara Pereira Projecto Museográfico: António Viana Assistente de Realização: Miguel Costa Produção Executiva: Sofia Bicho, Cristina Almeida, Ana Gonçalves Textos: Sara Pereira Construção e Montagem: LAB Oficina de Design Projecto Luminotecnia: Vítor Vajão Tabelas: Sofia Bicho, Susana Costa, Ana Gonçalves Comunicação: Rita Oliveira Seguros: Corbroker Design Gráfico do Catálogo: Luís Carvalhal Impressão: R.P.O. Depósito legal: ISBN: 978-989-96629-3-3

Agradecimentos Adílio Soares, Alfredo Almeida, Bruno de Almeida, Carlos Barbosa, Carlos Coutinho, Carlos do Carmo, Cláudia Figueiredo, Cristina Leite, Diogo Gaspar, Fátima Santos Marques, Fernando Moura, Henrique Carvalho, Hipólito M. Pires, Isabel Carlos, Isabel Manta, Helena Barranha, Helena Miranda, Jean-Luc Delest, João Pinto de Sousa, José Carlos Alvarez, Júlia Coutinho, Júlio Pomar, Lourenço Soares, Luís Andrade, Luís Raposo, Manuel João Vieira, Maria Alzira Roque Gameiro, Maria Amélia Santos Almeida, Maria de Aires Silveira, Maria Helena Trindade, Maria João Vasconcelos, Maria José Almeida “Zambeze”, Matilde Tomaz do Couto, Patrícia Rosas, Paula Almeida, Pedro Cabrita Reis, Pedro Lapa, Pedro Rapoula, Rosário Lourenço, Vasco Pereira Coutinho, Vera Fino.

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Com o apoio de:

MUSEU DA CERÂMICA MUSEU DA MÚSICA MUSEU JOSÉ MALHOA MUSEU NACIONAL DE ARQUEOLOGIA MUSEU NACIONAL DE ARTE CONTEMPORÂNEA - MUSEU DO CHIADO MUSEU NACIONAL SOARES DOS REIS MUSEU NACIONAL DO TEATRO




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