Fado 1910

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ÍNDICE

Abertura Miguel Honrado - Presidente do Conselho de Administração da EGEAC E.E.M. ................ 5 Emília Nadal - Presidente da Direcção da Sociedade Nacional da Belas Artes ....................... 7 “Propaganda pela Trova”: Movimento Operário e Ideal Repuplicano no Fado de Lisboa até à Ditadura Rui Vieira Nery ..................................................................................................................... 11 “O Mais Português dos Quadros a Óleo” Sara Pereira ...........................................................................................................................63 Vozes do Fado no Período da República Sofia Bicho .......................................................................................................................... 99 “Ao Fado muito se deve a Implantação da República” Pedro Félix ......................................................................................................................... 131 A Metrificação no Canto do Fado nas Vésperas da Implantação da República Paulo Lima ......................................................................................................................... 149 Projecto Museográfico António Viana .................................................................................................................... 177 Ficha Técnica .............................................................................................................. 183


O Fado, 1909 (pormenor) José Malhoa Óleo sobre tela, 86x107cm Colecção Particular

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O desígnio que empenhadamente tem guiado a EGEAC no desenvolvimento de um conhecimento profundo do Fado, encontra os seus pontos de sustentação numa abordagem académica de grande rigor científico logo articulada e, porque não dizê-lo, validada por um diálogo contínuo com o seu meio artístico, verdadeiro detentor do legado que, se por um lado, integra um passado cuja riquíssima teia de implicações, influências e cumplicidades não cessa de se revelar, é ele próprio também a garantia de que o Fado será como sempre foi, essa ars populi que nos identifica porque continuamente nos remete para um espaço comum de emoção partilhada. Um dos momentos maiores deste processo magnificamente liderado pelo Museu do Fado nos últimos 5 anos, será a entrega este ano da Candidatura do Fado à Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade – UNESCO, e do plano de salvaguarda que lhe está subjacente, constituindo uma das suas peças fundamentais. O tratamento, edição e publicação de fontes de primeira importância para a compreensão desta expressão artística impar, resultará naturalmente num passo decisivo no real conhecimento das sua complexidade social, histórica e simbólica. É justamente neste real conhecimento que se integra a exposição “Fado 1910” cuja temática possui desde logo uma poderosa acção desmistificadora da tese, tanto tempo sustentada, da ligação ideológica intrínseca entre o Fado e o Estado Novo. Constatemos portanto como o Fado no último quartel do séc. XIX e na transição para o séc. XX acompanhou se apropriou e sublimou os grande movimentos ideológicos e políticos que caracterizaram o Portugal e a Europa de então, penetrando e intervindo de forma decisiva num novo espaço social, a que não foi obviamente alheia a sua capacidade de relacionamento com novas formas culturais emergentes tais como o Teatro de Revista ou a invenção da fonografia. Não queria deixar de sublinhar a importância que, para a concretização deste projecto, assumiu a relação cúmplice que estabelecemos com essa prestigiadíssima instituição que é a Sociedade Nacional de Belas Artes. É sob a figura tutelar de Malhoa seu primeiro Presidente e maior iconógrafo do Fado que construímos este projecto; num ano em que se celebra a emergência em Portugal de uma nova ordem social e política veremos como na canção de Lisboa soaram as suas utópicas narrativas e aporias.

Miguel Honrado Presidente do Conselho de Administração da EGEAC E.E.M.

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Pintor José Malhoa José João Brito, s/d Faiança policromada 27 x 12 x 5 cm Colecção José João Brito

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Malhoa e o Fado na S.N.B.A.

A apresentação de uma Exposição organizada pelo Museu do Fado, na qual se evoca a figura de José Malhoa, encontrou o seu lugar natural na Sociedade Nacional de Belas Artes. Com efeito, o Pintor foi o 1º Presidente desta associação de artistas e o Centenário da proclamação da República, que em 2010 se comemora, coincide com o centenário da sua obra mais emblemática, “O FADO”. Poderá ser caso único, na história da arte, o facto de uma pintura se tornar imagem de um género musical que retrata a alma e o sentimento de um povo. Essa correspondência simbólica, permitiu associar o imaginário do fado a José Malhoa, ele próprio cantado como pintor consagrado, pintando com arte e com alma na voz da incomparável Amália, em perfeita rima com Lisboa. Na extensa obra produzida pelo artista, constitui uma excepção a ocorrência deste ícone da vida boémia citadina em ambiente marginal e nocturno. Retratista da burguesia e da realeza, decorador de espaços públicos, Malhoa refugiava-se em Figueiró dos Vinhos, onde morreu em 1933. Na Praia das Maçãs dedicou-se a cenas de praia e a marinhas e, no seu Casulo campestre, pintou paisagens e cenas da vida rural, episódios simples ou marcantes da existência quotidiana das populações da Estremadura. Uma pintura naturalista de exteriores, de costumes e de género, com personagens típicas e cenas imbuídas de folclore, em telas inundadas pela cor e pela luz solar. Sobressai a mesma ruralidade em “Os Bêbados”, mas no espaço fechado de uma taberna. Estudos preparatórios em 1908 e 1909, antecederam a versão definitiva de “O FADO”, terminada em 1910. O quadro foi pintado em Lisboa e o autor procurou um cenário e personagens reais na Mouraria, o que originou episódios rocambolescos e lendários. A obra foi mostrada, em primeira mão, a moradores da Rua do Capelão que se deslocaram ao estúdio de Malhoa, local que fora visitado pelo Rei D.Carlos e acessível a alguns privilegiados. Foi um escândalo revelador de como os tempos tinham mudado. Mudara também o olhar do pintor ao abordar um tema urbano. Criando imagens menos convencionais, a pintura sendo realista tornou-se abstracta, remetendo o espectador para o estado de angústia existencial que se exprime na poética do fado, no canto mais nocturno e castiço da cidade. Assim se explica o impacto causado no público pela pintura, sempre que foi exposta na S.N.B.A. Só em 1917 “O FADO” foi mostrado em Lisboa, na 14ª Exposição da Sociedade de Belas Artes realizada no Salão da sua sede, inaugurada em 1913 na Rua Barata Salgueiro. O público acorreu massivamente para admirar o quadro que já fora exposto em Buenos Aires e no Porto, em Paris, Liverpool e S.Francisco, obtendo os mais reputados prémios. O sucesso repetiu-se em 1928 quando a pintura regressou à S.N.B.A, integrada numa grande exposição retrospectiva de homenagem ao Pintor.

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O Fado, 1909 (pormenor) José Malhoa Óleo sobre tela, 86x107cm Colecção Particular

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Presença constante e premiada nos Salões da Sociedade que ajudara a fundar, em 1901 no tempo da Monarquia, José Malhoa foi também um benemérito. Por dedicação à causa dos artistas, deixou um legado para a instituição de um Prémio com o seu nome, sob a forma de uma Bolsa de Viagem a atribuir anualmente a um jovem artista. Em 1983, no cinquentenário da morte do Pintor, realizou-se uma dupla exposição: de desenho no Museu José Malhoa, nas Caldas da Raínha, e de pintura na S.N.B.A., com peças daquele Museu e de muitas outras colecções. “O FADO” foi cedido pelo Museu Municipal de Lisboa. Em 2008, expuseram-se no Salão dois estudos preparatórios de “O FADO” e uma primeira versão do tema, autenticada por peritagem. Pretendia-se que essa exposição, com obras pertencentes a colecções privadas, e um novo livro dedicado a Malhoa contribuíssem para uma visão actualizada da sua pintura, e para o fim do eclipse que tem pesado sobre uma obra que se tornou desconhecida e até depreciada. Regressam agora à S.N.B.A. aquelas peças emblemáticas, no contexto da exposição “Fado 1910”. Poder-se-á ver, na génese do célebre quadro, uma pintura do som e do sentimento de perda, que desafia os autores contemporâneos. A Direcção da Sociedade Nacional de Belas Artes agradece esta iniciativa do Museu do Fado, associando-se assim às Comemorações do Centenário da República.

Emília Nadal Presidente da Direcção da Sociedade Nacional da Belas Artes

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Fado Patriotico Letra de Fernandes Martins Música de António Menano P. Santos & Cª. – Salão Mozart, s/d Colecção Michel de Roubaix


“PROPAGANDA PELA TROVA”: MOVIMENTO OPERÁRIO E IDEAL REPUBLICANO NO FADO DE LISBOA ATÉ À DITADURA1 Rui Vieira Nery

Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos de Música e Dança

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Uma versão parcial preliminar deste ensaio, intitulada “O Movimento Operário e a Consciência Social na Tradição Oral do Fado de Lisboa”, foi apresentada ao colóquio Literatura e Memória na Literatura Tradicional Portuguesa, promovido pela Universidade do Algarve e pela Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República (Tavira, 11 de Abril de 2010).


História do Fado, Pinto de Carvalho (Tinop) Lisboa, Empreza da História de Portugal, 1903 Colecção Francisco Mendes

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O ESTUDO DO FADO E A PROBLEMÁTICA DAS LITERATURAS TRADICIONAIS Desde as primeiras manifestações documentadas da prática do Fado de Lisboa, na viragem para a década de 1830, que os estudos sobre o género se têm ressentido de uma verdadeira “terra de ninguém” disciplinar marcada por um cruzamento de rejeições oriundas de contextos de natureza diversificada mas coincidentes nos seus efeitos. Os primeiros olhares sobre o Fado surgem-nos ou das fontes policiais que pretendem identificar e controlar o circuito assumidamente proletário – e mesmo, em boa parte, marginal – em que num primeiro momento se processa a sua prática, ou de observadores que a analisam na óptica da moral e da saúde públicas, ou ainda da pequena crónica jornalística de costumes. Prolongam-se depois pelas perspectivas maioritariamente adversas da literatura erudita de toque naturalista e regenerador (o Camilo final, Eça, Ramalho, Fialho), que a consideram, de um modo geral, um sintoma da própria decadência cultural da sociedade oitocentista, e pela hostilidade dos pioneiros dos estudos sobre Cultura popular, de Teófilo Braga a Leite de Vasconcelos, que a encaram, pelo menos de forma implícita, como um fenómeno de degenerescência urbana do que seria a verdadeira natureza de um Volksgeist identitário nacional cuja construção ideal se deveria fazer, na sua perspectiva, apenas a partir de paradigmas das tradições rurais. A mesma atitude atravessa uma boa parte do pensamento português do século XX, em que as correntes intelectuais conservadoras, em particular as derivadas do Integralismo Lusitano, vêem no Fado um fenómeno demasiado moderno, urbano, multiétnico e multicultural para ser associado à matriz da nossa identidade mais profunda (António Arroio2, Luís Moita3), e as Esquerdas se incomodam com o que nele encontram de um aparente fatalismo mórbido, traço que julgam incompatível com a causa da luta constante pela mudança social progressista (Lopes Graça4, António Osório5). A Academia recusa assim tradicionalmente, no quadro institucional da Antropologia, da Etnologia, da Sociologia, dos Estudos Literários e Artísticos, da Musicologia ou das demais Ciências Sociais e Humanas, conceder ao Fado a dignidade de objecto de estudo respeitável. Com excepção de algumas obras isoladas de teor sobretudo cronístico (e até com algum registo anedótico) surgidas no início do século XX (Pinto de Carvalho6, Alberto Pimentel7), a bibliografia sobre o Fado decorre antes de mais, por isso mesmo, da própria produção editorial ligada à dinâmica interna e à difusão do seu campo, como um esforço de auto-representação que passa, designadamente, pela construção, pelos próprios agentes no terreno, de um conjunto de mitos de origem legitimadores, pela definição tendencial de normas enquadradoras da sua prática performativa e pela fixação do seu repertório nuclear.

2

António Arroio, O Canto Coral e a sua Função Social. Coimbra: França Amado, 1909.

3

Luís Moita, O Fado, Canção de Vencidos. Lisboa: Empresa do Anuário Comercial, 1936.

4

Cf., por todos, Fernando Lopes Graça, A Canção Popular Portuguesa. Lisboa: Publicações Europa-América, 1953; Id., A Música Portuguesa e os seus Problemas, Vol. II. Lisboa: Vértice, 1959.

5

António Osório, A Mitologia Fadista. Lisboa: Livros Horizonte, [1974].

6

Pinto de Carvalho, História do Fado, Lisboa: Empresa da História de Portugal, 1903.

7

Alberto Pimentel, A Triste Canção do Sul: Subsídios para a História do Fado. Lisboa: Livraria Central de Gomes de Carvalho, 1904.

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Só a partir da década de 1980, com os estudos pioneiros de Joaquim Pais de Brito no ISCTE8, que culminarão com o marco fundamental da exposição Fado: Vozes e Sombras9, no âmbito da programação da Lisboa 94 – Capital Europeia da Cultura, e depois com o início das actividades do Instituto de Etnomusicologia (hoje INET-MD) da Universidade Nova de Lisboa, sob a direcção de Salwa Castelo Branco, incluindo o meu próprio trabalho na perspectiva da Musicologia Histórica e dos Estudos Culturais, esta situação se tem vindo a alterar de modo significativo. Hoje, com o estabelecimento em 1998 do que viria a ser o Museu do Fado, dirigido por Sara Pereira, a publicação em 2004 do meu trabalho Para uma História do Fado10, a edição já no corrente ano da Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX11, mais uma vez da responsabilidade de Salwa Castelo Branco, e os trabalhos de preparação da candidatura do Fado à Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da UNESCO, neste momento à beira da sua apresentação formal, a situação começa a ser outra. Há actualmente dezenas de jovens investigadores envolvidos no estudo e na reflexão aprofundados sobre este tema, constituindo pela primeira vez uma massa crítica que permite de uma vez por todas a legitimação incontestada deste campo de estudos. E contudo continua a ser difícil o seu enquadramento disciplinar específico, talvez porque o próprio objecto em análise seja tão multifacetado que implica necessariamente na sua abordagem um cruzamento de competências epistemológicas, teóricas e metodológicas diversificadas que vai beber a áreas disciplinares muito diferentes entre si mas não se confunde exclusivamente com nenhuma destas em particular. A associação do estudo do Fado à problemática da Literatura Tradicional Peninsular pode parecer assim, até certo ponto, uma intrusão ilegítima do primeira na segunda, sobretudo por dois factores que são fáceis de identificar. Em primeiro lugar, o tempo histórico do Fado, na acepção braudeliana do conceito, poderia parecer demasiadamente um “tempo curto”, por oposição ao “tempo longo” implícito da Literatura Tradicional, representando, ao contrário desta, um fenómeno que emerge já em plena Época Contemporânea, como resultado de um processo intenso de mudança demográfica e social associado à modernidade urbana oitocentista e novecentista, sem aparentes raízes directas imediatas no legado cultural popular essencialmente rural e em muitos casos multi-secular do Antigo Regime. Em segundo lugar, o Fado parece evidenciar desde os seus primeiros registos escritos uma forte componente de autoria individual identificada, tanto musical como sobretudo poética, e muito embora a sua prática performativa incorpore, em particular até finais do século XIX, uma vertente improvisatória mais ou menos livre o seu repertório tende desde muito cedo a ser objecto de fixação e circulação escrita, distinguindo-se assim, por exemplo, do Romanceiro tradicional. A estes argumentos de peso valeria contudo a pena contrapor alguns outros que matizam, a meu ver, essa aparente oposição das duas realidades, sobretudo quando abordamos o desenvolvimento do Fado anterior à sua fase de estabilização – e de algum modo de “folclorização” – nas décadas de 1920 e 30, com o impacte da tendência para a profissionalização dos seus intérpretes e criadores, da implantação de uma rede permanente de espaços performativos próprios (as chamadas 8

Cf. por todos, no que respeita aos primeiros trabalhos do autor sobre esta temática, Joaquim Pais de Brito, “Fado, um Canto na Cidade”, Etnologia I, 1 (1983), pp. 149-184.

9

Joaquim Pais de Brito, dir., Fado: Vozes e Sombras. Lisboa: Lisboa 94/Electa, 1994.

10

Rui Vieira Nery, Para uma História do Fado. Lisboa: Público/Corda seca, 2004.

11

Salwa Castelo Branco, dir., Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX. Lisboa: Círculo de Leitores, 2010, 4 vol..

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Triste Fado! L.F. de Castro Soromenho Lisboa, 1871 Colecção José Pracana


“casas de Fado”), da solidificação e expansão do seu repertório nuclear, e do aparecimento dos novos mecanismos de difusão do disco e da rádio, ao que a partir de 1926-27 se juntará, com um peso esmagador para a formatação posterior do género, a imposição da censura prévia às letras cantadas. Antes de mais, se é hoje historicamente incontestável a presença central, no núcleo original da emergência do Fado em Lisboa no segundo quartel do século XIX, do Fado dançado afro-basileiro de que dispomos de numerosas descrições literárias nos primeiros anos do século, tampouco há dúvidas de que essa matriz inicial afro-brasileira depressa se terá, logo desde o primeiro momento da sua introdução na capital do Reino, fundido com múltiplas influências de géneros poético-musicais locais, muitos dos quais certamente trazidos de várias regiões rurais pelo processo migratório intenso que atraiu à cidade vagas sucessivas de novos habitantes vindos de todo o País. Estamos por isso perante um processo de mudança interna do género, logo desde a sua origem, em que os padrões rítmicos, harmónicos, formais - e até coreográficos – essenciais do modelo original transatlântico tendem a sobreviver como eixos estáveis da sua identidade, mas são modificados de forma crescente por elementos oriundos de outros géneros de canção e dança tradicionais autóctones, numa interacção que é hoje difícil de identificar nos seus contornos mais precisos pela escassez da documentação escrita produzida nesta primeira etapa constitutiva. Depois, é necessário sublinhar que, apesar da tendência para o registo escrito do repertório fadista se iniciar já desde a década de 1850 e se intensificar exponencialmente ao longo da segunda metade do século XIX, a identificação das respectivas autorias individuais começa a fazer-se sobretudo no plano dos textos, e muito menos no campo da composição musical. A maior parte das largas dezenas de melodias de fados publicadas entre o Álbum de Música Nacionaes de João António Ribas12, nos anos 50, e o Cancioneiro de Músicas Populares de César das Neves13, na década de 1890, são ainda de autores anónimos e representam inclusive, em muitos casos, registos de meras variantes de matrizes melódicas recorrentes que manifestamente circulam na comunidade fadista sem preocupações de atribuição autoral. Este anonimato predominante da composição musical assenta, de resto, numa outra particularidade da prática do género, que é a da independência do texto cantado em relação à música sobre a qual se canta, podendo uma mesma linha melódica ser utilizada para suportar múltiplos textos sucessivos, livremente escolhidos pelo intérprete. Não falemos já, neste contexto, do peso significativo que desde sempre tem a margem de variação melódica individual em relação à estrutura básica da melodia, tenha esta ou não autor conhecido, fenómeno que explica o aparecimento gradual de numerosas versões de fados anteriores que se autonomizam e se convertem em novos fados reconhecidos e circulados como tal. Mas registe-se, como observação marginal, que um dos primeiros autores de Fado cujas melodias são registadas com autoria expressa é, significativamente, um dos maiores ícones do género no final do século XIX, Augusto Hilário, de quem César das Neves faz questão de preservar explicitamente dois fados cuja fusão posterior numa única melodia dará origem ao Fado Hilário hoje clássico no repertório. No caso dos poemas parece haver, é verdade, uma tradição de atribuição individual mais sistemática do que no das melodias, começando logo por versos atribuídos pelos cronistas dos primeiros anos do século XX a figuras igualmente

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João António Ribas, Album de Musicas Nacionaes Portuguezas, Constando de Cantigas e Tocatas Usadas nos Differentes Districtos e Comarcas das Provincias da Beira Traz-os-Montes e Minho. Porto: C. A.Villa Nova, [1852 ?]; reed./Porto: id., [1860]. 13

César das Neves & Gualdino Campos, Cancioneiro de Musicas Populares, 3. Vol.. Porto: Vol. I/Typographia Occidental, Vols. II-III/Imprensa Editora, 1893-98.

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icónicas várias décadas anteriores, como Severa ou Cesária, com base em tradições de autoria que circulavam no seio da comunidade fadista. E é também verdade que muitas das primeiras letras de autor identificado publicadas são as que foram escritas já por poetas de perfil erudito atraídos para o género, em particular pelo circuito da boémia estudantil coimbrã, e não prioritariamente as de autor popular (é o caso de muitos dos poemas de recorte nitidamente erudito dos fados do Cancioneiro de César das Neves, mesmo que aplicados a melodias identificadas como de circulação popular, o que de resto se enquadra no esforço de “legitimação social” do género que ressalta nos vários comentários em que o Cancioneiro procura distanciar expressamente o Fado das suas origens mais desrespeitáveis). Uma percentagem relevante das letras publicadas nas numerosíssimas antologias poéticas editadas entre a década de 1870 e a de 1920 continua, em qualquer caso, a ser de autor anónimo, mas não há dúvida, por outro lado, de que nas últimas décadas do século XIX e na viragem para o seguinte se multiplicam paralelamente edições de poemas para Fado da autoria de poetas populares intrinsecamente associados ao género, quer em brochuras autónomas quer no contexto das primeiras publicações periódicas que lhe são dedicadas. O registo escrito da música e/ou dos versos e a identificação crescente das respectivas autorias, sobretudo poéticas, não invalidam, pois, a transmissão essencialmente oral deste repertório, por vezes até com rápida perda da memória da autoria inicial e com assinaláveis variantes de texto no decurso desse processo de circulação. Um exemplo particularmente emblemático deste fenómeno é a maneira como há fados que dão testemunho da vivência dos combatentes da I Grande Guerra nas trincheiras14 e que surgem simultaneamente em múltiplas colectâneas, manuscritas ou impressas, produzidas por vários antigos soldados, com atribuições autorais contraditórias ou até com a omissão pura e simples do nome do autor original. O registo escrito funciona, portanto, neste contexto, menos como um mecanismo de fixação de repertório e das suas autorias do que como um mero suporte mnemónico para a sua circulação oral. É interessante verificar, além disso, a maneira como já desde finais do século XIX começamos a assistir a uma difusão geográfica ampliada do Fado a outras áreas do País para lá do seu contexto original da Grande Lisboa e do fenómeno específico da bolsa estudantil coimbrã, quer pelos veículos mais tradicionais de circulação poético-musical da canção popular, como seja o dos cantores de rua itinerantes que fazem o circuito das festividades populares, quer pela nova rede de agitação e propaganda posta em acção pelo movimento operário organizado a partir das décadas de 1870 e 80, que na viragem para o século XX leva às zonas de maior concentração de trabalho assalariado do interior fadistas militantes, como Avelino de Sousa, João Black ou Carlos Harrington. Como bem o demonstrou Paulo Lima15, este segundo circuito de difusão tem um efeito decisivo na penetração nos repertórios poético-musicais locais de arquétipos formais típicos da poesia de Fado, como o da quadra em redondilha maior glosada em quatro décimas, e na própria apropriação tendencial da dança do Fado como parte do repertório dos bailes populares em regiões até então alheias à prática fadista. Por último, a própria questão de fundo do tempo histórico a que atrás me referia, como factor de diferenciação essencial entre o Fado e a Literatura Tradicional, talvez seja afinal menos separadora dos dois campos do que à primeira vista poderia parecer. Bem vistas as coisas, todos temos consciência de que mesmo as tradições literárias e poéticas populares de origens históricas comprovadamente mais remotas evidenciam na sua prática de hoje um processo de mudança histórica

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Cf. Rui Vieira Nery, “Do Entusiasmo Patriótico à Tragédia das Trincheiras: A I Grande Guerra nas Letras do Fado de Lisboa”, in actas do Congresso Internacional War and Memory (Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, Novembro de 2009), no prelo. 15

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Paulo Lima, O Fado Operário no Alentejo (Sec. XIX-XX); O Contexto do Profanista Manuel José Santinhos. Vila Verde: Tradisom, 2004.


relevante que poderá ter-se efectuado a um ritmo menos acelerado do que o das suas correspondentes mais vincadamente urbanas mas não deixou de as abrir, também a elas, ao longo dos tempos, a “contaminações” temáticas, musicais e performativas por parte de outros géneros – entre os quais possivelmente o próprio Fado, através da sua difusão intensa à escala nacional durante todo o século XX. A Bela Infanta de uma anciã da Serra da Estrela que na realidade envelheceu já a ouvir durante uma boa parte da sua vida a Emissora Nacional e cujos filhos e netos poderão ter passado entretanto pela emigração em França não terá já alguns ecos, mesmo que remotos, da ornamentação vocal de Amália Rodrigues no Ai Mouraria? Ritmos de mudança interna mais ou menos velozes, processos de transmissão mais ou menos dependentes da oralidade ou da escrita, fenómenos de autoria individual mais ou menos marcados – em todos estes domínios há entre o Fado e a Literatura Tradicional menos separação estanque e mais património objectivo comum a ambas as realidades do que à partida se poderia supor, justificando assim plenamente, a meu ver, que a temática do Fado, nesta sua primeira fase até à década de 1930, possa ser abordada e discutida com pertinência num contexto de estudos sobre Literatura Tradicional, sem que nenhuma das partes abdique por isso da sua especificidade.

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Fado do Expedecionario Revista Dominó no Éden Teatro Colecção Michel de Roubaix

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Canção do Expedicionario Canção patriótica radiodifundida pela Emissora Nacional Letra de Silva Tavares Música de António Melo Sassetti & Cª, 1942 Colecção Michel de Roubaix

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O FADO COMO VEÍCULO DE MEMÓRIA E CIDADANIA Mais do que por todos os paralelismos que procurei até aqui traçar no que respeita à natureza dos respectivos processos de criação e transmissão, o Fado e a Literatura Tradicional estão inequivocamente ligados pela sua função comum de suporte dos valores da memória e da cidadania como veículos de construção da identidade das comunidades de que emergem. No contexto da Cultura Popular urbana lisboeta desde o segundo quartel do século XIX o Fado afirma-se claramente como o veículo preferencial da auto-representação simbólica das comunidades dos bairros populares da capital, primeiro dos do coração da cidade velha, ao longo dos cais do Tejo; depois dos que, com a expansão urbana oitocentista, se vão abrindo pela cintura da região saloia, numa ponte estreita com a ruralidade envolvente; por fim dos que resultam da implantação do primeiro tecido industrial nos extremos ocidentais e orientais de Lisboa. Como eu próprio já escrevi: “neste processo de crescimento urbano e demográfico a incorporação de uma população imigrante sempre mais numerosa implica que a própria identidade cultural da cidade se vá constantemente refazendo, à medida que o mosaico do tecido social lisboeta vai integrando novos moradores que podem vir ora das regiões mais próximas da Estremadura e do Ribatejo, ora das Beiras, do Alentejo, do Algarve, ora mesmo, em alguns casos, do Brasil. A Cultura Popular da Lisboa oitocentista é um verdadeiro caldeirão efervescente de tradições religiosas e práticas artísticas das mais diversas origens, com cantigas e danças trazidas um pouco de toda a parte que se vão depois fundindo não só com a matriz cultural mais tradicional da cidade como entre si mesmas, produzindo pouco a pouco híbridos multifacetados, eles próprios em permanente evolução. O que vem de fora não fica igual ao que era uma vez integrado no novo contexto urbano, como o que já neste existia não pode permanecer imune ao contágio das práticas e géneros recém-chegados”. […] “Os bairros populares de Lisboa, velhos e novos, entram assim no século XX ainda em pleno processo de construção da sua identidade própria, bem distinta, pelo seu próprio processo turbulento de expansão e reconfiguração demográfica e inter-cultural, dos que tinham caracterizado no passado a cidade pré-moderna. Mais do que uma identidade específica generalizada à escala de cada bairro, propriamente dito, é cada uma destas comunidades locais, de maiores ou menores dimensões conforme os casos, que vai construindo pouco a pouco os seus novos códigos culturais e a sua nova auto-imagem colectiva, num primeiro momento ainda à dimensão da rua, do pátio, do quarteirão, ou seja, da geografia específica em que se enquadra o núcleo essencial do quotidiano da população envolvida. E esse não é – sublinhe-se – um processo de negociação cultural idílica: tudo isto se passa no contexto brutal de um dia a dia de luta desesperada pela sobrevivência, marcado pela miséria, pela fome, pela doença, pela insalubridade, pela falta de escolaridade ou de assistência social mínimas, mas também, por isso mesmo, pela procura e definição de formas enérgicas de entreajuda, de solidariedade e de partilha comunitária, que se traduzem, designadamente, num associativismo popular cada vez mais pujante”.16 Neste quadro o Fado oitocentista define-se como auto-retrato fiel deste quotidiano popular, reflectindo a mundividência colectiva das comunidades que o protagonizam e descrevendo na primeira pessoa, de forma assumidamente vivencial e

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Rui Vieira Nery, Pensar Amália. Lisboa: Tugaland, 2010, pp.206-207.


partilhada, todos os aspectos da respectiva existência: os rituais da procriação e da morte; os gestos tradicionais da festa e do luto; as práticas da devoção e da afirmação da identidade colectiva; as pulsões individuais do desejo, do ciúme, da traição e do abandono; a memória possível das raízes identitárias mais remotas, algumas delas por vezes ainda de cariz fortemente rural. Mas também a consciência aguda do estatuto de exclusão social que caracteriza a vida da comunidade, a descrição das privações sofridas no local de trabalho e no de residência, o sonho de mudança e de progresso social – e desde muito cedo uma intervenção assumidamente política que acompanha o próprio despertar do movimento operário e de todas as formas de associativismo de base que vão da simples luta pela melhoria das condições de vida à militância activa em causas cada vez mais radicais de regeneração social. A ideia de que o Fado, pela própria popularidade generalizada de que goza no seio deste proletariado urbano, pode constituir um veículo privilegiado de transmissão dos ideais mais ambiciosos de mudança social e política não é apenas uma constatação que emerge incontornavelmente da análise a posteriori do vasto repertório fadista escrito que nos chegou deste período. É uma convicção explicitamente defendida por muitos dos principais autores que poderíamos considerar como os “intelectuais orgânicos” destas comunidades populares lisboetas e constitui, deste modo, uma componente expressa e consciente de um programa político de construção de uma utopia igualitária, passe esta, na sua acepção mais imediata, pelo simples derrube da Monarquia ou corresponda já a qualquer dos modelos de sociedade utópica mais enraizados no seio do movimento operário português deste período, do socialismo utópico ao anarquismo. Avelino de Sousa, tipógrafo de profissão, intelectual operário e poeta popular de Fado, definirá bem no seu opúsculo de 1912 O Fado e os seus Censores esta postura militante assumida para o género, congratulando-se de que “essa trova se metamorphoseasse á luz vivificadora do Progresso e se tornasse de há muito n’um elemento de propaganda para os grandes ideaes”17. Respondendo aos ataques que Albino Forjaz de Sampaio desferira numa crónica recente contra o Fado, em que este alegava a indignidade moral indelével que a seu ver adviria para o género da sua associação histórica inicial aos meios da prostituição e da marginalidade, Avelino de Sousa responde com uma argumentação apaixonada sobre o que considera ser no género a sua enorme capacidade de consciencialização e mobilização populares para o triunfo da causa do Progresso: “No lodo – metaphoricamente, é claro – tambem nascem flores! E o Fado, vindo do lodo, transformou-se n’uma flôr vicejante e bella, á custa de muito esforço e boa vontade dos humildes poetas e trovadores populares, que, sentindo bem dentro d’alma toda a psychologia da velha canção e quanto ella está arreigada no animo do povo, a burilaram carinhosamente, retocando-a, aperfeiçoando-a, fazendo d’ella a trova educadora, por meio da qual se confraternisa, se chora e ri, se combate pelo Ideal e se condemna a immoralidade, a tyrannia, a impudicia.”18 “[…] vem o humilde filho do povo, o desherdado da blusa – como eu, doutor – e esse quer trovas enérgicas, dramatisadas, onde se concretize toda a sua discrepância por tudo o que é iníquo e revoltante, a dentro de uma sociedade infame e polluida, e de cujos poderosos detentores do Capital só o operario é victima! Nessas trovas faz-se a propaganda contra a Reacção, stygmatiza-se o roubo legal commetido pelo honrado commerciante, disseca-se o ventre da Abundancia, cheio à custa do suor do pobre, da eterna besta de carga, jungida ao carro triumphal do Rei Milhão! 17

Avelino de Sousa, O Fado e os seus Censores. Lisboa: ed. do Autor, 1912, p. 3.

18

Id., p. 4.

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Estas são as canções sociaes, em redondilhas ou alexandrinos, - que para tudo o Fado tem variantes que o doutor desconhece – onde ha brados de revolta, gritos de desespero, clamores d’alma, sobreexcitações de espírito em que o protesto ressalta forte, viril, austero e justo, contra as torpezas, mais do que muito condemnaveis, do Existente!” “Ao Fado tudo se canta e tudo se diz! Há no seu âmago: Alma, Sentimento, Energia, Coração!”19 E o autor de O Fado e os seus Censores sintetiza mais adiante, já quase em jeito de conclusão, esta sua verdadeira profissão de fé no potencial revolucionário do género: “Ora, precisamente, para cantar essa vida de escravidão, n’um brado altissonante e forte, bem como para protestar energicamente contra tudo o que é iníquo, bárbaro e anti-civilizador, é que eu aproveito o Fado – a melhor e mais singella das trovas e que o povo melhor comprehende, quer nellas se cante a belleza esthetica e esculptural da Mulher, quer nellas se exteriorise as amarguras da vida e os protestos dos que soffrem.”20 O mesmo Avelino de Sousa publicará, por sinal, poucos anos mais tarde, numa colectânea de versos impressa em 1919 mas coligindo textos de toda a carreira criativa do autor, um fado de sua autoria que condensa emblematicamente, agora no registo poético, quase que como demonstração prática, no próprio repertório, do princípio enunciado, a sua convicção sobre a função militante do Fado: O Fado é velha canção, Mas também é canção nova; - façamos, pois, á guitarra, Propaganda pela trova! Julgam as altas camadas Que a popular canção terna Só nasceu para a taberna, Ou p’r’ás tardes de touradas. Vêem n’ella as desgarradas, O vicio, a devassidão, E a desmoralisação De idos tempos da Severa: por isso p’r’á alta esfera O Fado é velha canção. Porém, o Fado atual É o Fado-Pensamento, E o mais fácil elemento De educação social! 19

Id., pp. 5-6.

20

Id., p. 52.

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O fado da bacchanal Ha muito desceu á cova, Dando-nos frisante prova Que p’ra o operariado, É antigo por ser fado, Mas também é canção nova. Ao Fado, canta-se o Amor, A Arte, a Sciencia,a Politica, Ao Fado, se faz a critica Do Capital opressor. O poeta, o trovador, É ao Fado que se agarra, Cantando, como a cigarra, Sua trova dolorida! - A apologia da Vida Façamos, pois, á guitarra. Seja o Fado o escalpelo Dissecando a sociedade, Autopsiando a maldade, Erguendo alto o que é belo! Seja o troveiro singelo Do que a consciência aprova, - D’este modo se renova O que era velho a valer E, assim, se pode fazer Propaganda pela trova.21 “Canção nova” ou “Fado-Pensamento”, o Fado é aqui assumido no próprio terreno da lírica, e já não apenas do da teoria revolucionária abstracta, como o mais eficaz dos veículos de “Propaganda pela trova”. Avelino de Sousa não é, porém, de modo algum o único autor de Fado oriundo do movimento operário que teoriza sobre esta função de agitação social e consciencialização política das massas atribuída ao género. A imprensa periódica, quer a associada genericamente às correntes republicanas radicais, sindicalistas, socialistas e anarquistas, quer a ligada especificamente ao universo do Fado, apresenta inúmeros testemunhos desta mesma postura de princípio, o mesmo sucedendo com numerosas publicações de volumes isolados, o que continuará a ocorrer até à imposição da censura pela Ditadura Militar de 1926. Pouco depois da edição do texto de O Fado e os seus Censores, vem a lume, por exemplo, em 1913

21

Avelino de Sousa, A Minha Guitarra. Lisboa: Empreza Editora Popular, 1919, p. 7.

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uma pequena brochura intitulada Fado Livre ou Racional22, assinada apenas pelas iniciais “J. de S. R” e pelo pseudónimo literário “Sezuirosa”, em que parece poder descortinar-se uma anagrama envolvendo o apelido “Souza”. Trata-se de um curiosíssimo opúsculo de filiação político-ideológica declaradamente anarquista, cuja introdução – escrita por sinal numa ortografia reformada de intenções popularizantes que parece antecipar o bizarro Acordo Ortográfico que acaba de se abater sobre a Língua Portuguesa – retoma o mesmo raciocínio: “O fado cujo lyrismo poético tem cultores entuziastas em quazi todas as classes, deve ser aproveitado por todos os prozelitos do sublime Ideal emancipador como um meio de incitamento á propaganda do mesmo Ideal; deve ser aproveitado por todos qe sejam dotados de inspirações muzicaes e poéticas cujas poezias sejam tendentes á completa emancipação e libertação de toda a Umanidade oprimida.” “Com este intuito pensei em arranjar alguns versos, bem ou mal burilados, qe aprezento á benevolência dos criticos conscienciózos e, seja qual for a apreciação, não me desviará da convicção qe me impeliu e animou a arquitètar e a publicar esta compozição com a respética muzica em qe devem ser cantados.” “Os cantadores profissionaes, bem como os de passa-tempo, dotados de sentimentos altruístas, encontrarão neste trabalho um meio qe, além de servir de distràção, serve para fazer influir as pessoas qe desconheçam o Ideal emancipador, na sua essência, a qe dele tomem perfeito conhecimento em todos os seus detalhes, para qe ao mesmo tempo, por sua vez – o façam exparjir e divulgar por toda a parte.” “O fado é o cantico sentimental qe mais enraizado está nos costumes vulgares, em cujas expressões muzicaes se demonstra a dor moral e o espírito de revolta contra todas as injustiças e iniquidades sociaes, como tambem cantando se póde lamentar os acontecimentos trájicos e demonstrar os devaneios e as paixões amorózas. O fado, com poezias adequadas póde tambem servir de incitamento qe desperte para a vida livre – a vida emancipada. Este incitamento por meio de poezias cantadas tem de ser bazeado nas circunstancias que nos oprime e nos escraviza cujas consequencias sejam ou tendam para a completa emancipação de todos os oprimidos.” “O intuito de pretender ser util á libertação da Umanidade escravizada é que impeliu a arquitètar estes versos e a respètiva muzica componentes deste trabalho, com o titulo de Fado Livre.”23 Estas declarações um pouco ingénuas de princípio, tal como o discurso apesar de tudo mais elaborado de Avelino de Sousa, fundamentam, pois, no plano da formulação teórica interna ao próprio género e ao seu campo social, aquilo que a sua prática nesta época amplamente confirma: a de um Fado que age como instrumento de construção e difusão de uma identidade popular urbana, de preservação activa da respectiva memória, de estímulo à sua consciencialização e de motor de participação cívica das comunidades nela envolvidas num processo de mudança social e política radical das suas condições de vida. Nem todos os fados publicados têm, naturalmente, este carácter militante. Continuamos por certo a encontrar muitos 22

J. de S. R. “Sezuirosa”, Fado Livre ou Racional. Lisboa: Oficinas Gráficas do Jornal “O Zé”, [1913 ?]

23

Id., pp. 1-2.

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textos de carácter lírico, amoroso, devocional, festivo, sem esta carga política expressa. E do mesmo modo encontramos poemas em que a descrição do quotidiano social se faz pela mera evocação de pequenas tragédias individuais que se lamentam sem dar a esse lamento um contexto genérico de contestação social. Fala-se da orfandade, da viuvez, da deficiência física, do pequeno crime de proximidade, da violência doméstica, sem necessariamente enquadrar estes dramas pessoais no plano mais geral da exclusão social que lhes está subjacente. Mas não pode haver qualquer dúvida sobre a presença muito significativa – e claramente em expansão progressiva – na lírica fadista, no meio século entre a década de 1870 e o final da de 1920, desta consciência social de cariz assumidamente contestatário e subversivo da ordem social estabelecida. Tal como vimos que faz sentido falar do Fado desta época em articulação com a problemática da Literatura Tradicional, também o faz abordá-lo, historicamente, para este período que antecede a imposição da censura poética e a formalização crescente da sua prática e do seu repertório, na sua qualidade de suporte privilegiado de Memória e Cidadania activas da comunidade que o produz.

Canção do Sul Ano 1 – Nº 17 9 de Abril de 1927 Espólio de Armando Neves Oferta de Alexandra Paula Hora Neves Inv. nº 12627 Colecção Museu do Fado

A Trova Popular Ano 1 – Nº 1 22 de Maio 1920 Espólio de Armando Neves Oferta de Alexandra Paula Hora Neves Inv. nº 12967 Colecção Museu do Fado

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ALGUNS ESTUDOS DE CASO: O MOVIMENTO OPERÁRIO Na impossibilidade de cobrir de forma sistemática no espaço limitado do presente ensaio um material empírico muito vasto e de grande variedade interna, limitar-me-ei a apresentar e comentar brevemente alguns exemplos paradigmáticos desse material, agrupados em torno dos dois grandes temas do Movimento Operário e da República. Dentro de qualquer deles poderia abordar categorias temáticas específicas, como a da situação da mulher, a da questão religiosa ou a do debate sobre Literatura e Arte, que são extensões indirectas destes temas fundamentais mas concentrar-me-ei, para evitar uma excessiva dispersão, nos textos de crítica social e política. 1 - “Dó e compaixão”: o apelo à caridade Quem tem dó e compaixão D’um infeliz desgraçado, Prestes a morrer de fome, No mundo desamparado. Quem é que vae a passar E não vê o pobresinho. Pelas pedras do caminho Os seus passos a arrastar! Quem o não ouve chorar, Que até corta o coração: “Senhor’s, senhor’s, dêem pão A quem se arrasta com dôres! D’esta vida só de horrores Quem tem dó e compaixão”. Fui jovem, tive alegria Tive uma casa tambem, Tive pae e tive mãe Quando vi a luz do dia. N’esse tempo não sentia Um momento amargurado, Das mulheres eu fui amado Com amor até á morte! Attentem na triste sorte D’um infeliz desgraçado! Conquistei muita belleza Fui hábil p’r’o trabalho; As canções da serra e malho, Eu cantei-as com firmeza.

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Hoje a cahir de fraquea Como tudo o que não come, Para que alimento eu tome, Da me um cobre unicamente, Dae socorro ao indigente Prestes a morrer de fome! Dae esmola, sereis ditosos, Porque o obulo consola; E áquelles que dão esmola Fal-os Deus ser venturosos: Do mundo fruindo os gozos O homem remediado, Há de sentir-se dotado Do prazer o mais feliz, Se accudir ao infeliz No mundo desamparado.24 Este fado anónimo foi publicado no folheto Almanach dos Bons Cantadores para 1898 – Fados das Salas, Praias e Hortas e constitui um exemplo curiosíssimo do tipo de publicações utilitárias para consumo popular que abundam neste período, já que junta o calendário litúrgico, a previsão dos eclipses, a lista dos mercados e feiras de cada cidade do Reino, a previsão dos ritmos das marés, as épocas de sementeira e colheita dos vários produtos agrícolas, as tabelas dos caminhos de ferro e só depois as letras de trinta fados. Na capa surgem os retratos de dois ícones do Fado, Roldão e Hilário, e na folha de rosto duas figuras masculinas a tocarem guitarra - um dandy elegante, de monóculo, paletó e polainas, e um trabalhador de colete e faixa à cintura. A mensagem é, pois, óbvia: o Fado é aqui apresentado como uma canção interclassista, a que ricos e pobres podem aceder em pé de igualdade. Estamos, no entanto, perante um folheto de natureza muito pobre, produzido em mau papel, impresso com tipos gastos e editado pela humilde Livraria Económica – bem distinto, pela simplicidade do aparato gráfico e dos materiais utilizados, das partituras para canto e piano luxuosas e bem ilustradas dos fados destinados à prática musical doméstica das meninas de classe média – o que sugere que se destina predominantemente a um público de poucas posses, cujo quotidiano é marcado, de facto, por situações gritantes de pobreza extrema como a que o poema descreve e que uma canção identitária da vivência popular não poderia deixar de reflectir. Interessante é constatar como a postura ideológica do poema que acabo de citar, com o seu apelo a que o “homem remediado” venha “accudir ao infeliz”, remete assumidamente, neste caso, para a mensagem de conciliação interclassista e de resignação à ordem social vigente que acima referi. Não há aqui qualquer sugestão de injustiça social ou de necessidade de mudança política para a combater, apenas o registo conformado da “triste sorte de um desgraçado”, que o “obulo” consolador pode de algum modo remediar satisfatoriamente. Neste mesmo registo da comiseração caridosa pela miséria encontramos no repertório poético do Fado, como seria de

24

Almanach dos Bons Cantadores para 1898 - Fados das Salas, Praias e Hortas, Lisboa: Livraria Económica, 1898, p. 20.

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esperar, uma produção volumosa, e mais tarde será esta, afinal, a única abordagem à problemática da pobreza tolerada pela censura da Ditadura Militar e do Estado Novo. Mas mais representativo da atitude geral do género perante a questão social é a lírica militante que aposta, pelo contrário, na denúncia expressa da exclusão social e na luta pela igualdade.

2. “Um pobre operário morreu”: a denúncia individual da desigualdade Descobre-te, milionario, Vae o enterro a passar: - É o corpo d’um operario Que morreu a trabalhar. Uma pedreira abateu D’uma forma inesperada, Mas ao dar-se a derrocada Um pobre operario morreu. No seu posto pereceu Esse infeliz proletário Que auferia um magro salario, Mal chegando para o pão! Por isso, ante o seu caixão, Descobre-te, milionario. Toda a vida trabalhou P’ra garantir-te a opulencia, Deixando na indigencia Os filhos que procriou. Produziu e batalhou P’r’á familia sustentar; E tu vives a gosar Com altivez ilegítima: - Emquanto, da tua victima, Vae o enterro a passar. Escravo do Capital Deixa os filhos na orfandade, Devido á desegualdade Do vil meio social. Em constante bacchanal Gosas tu, ó argentario, Esqueces torpe usurário

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No seio da tua gala, Que o fardo que desce á vala É o corpo d’um operario! Para ti sorri a Sorte Tens oiro, luxo, agasalho! Elle só teve trabalho Miseria, desgosto e morte. Deixa os filhos e a consorte N’um lutuoso penar, Quem sabe se a mendigar, Emquanto gosas, farcista! - Eis a herança do artista Que morreu a trabalhar!25 Este texto de Avelino de Sousa, publicado numa colectânea dos seus versos em 1919, mas com a indicação de que se trata de uma glosa sua, “a pedido”, de uma quadra alheia pré-existente, descreve igualmente, como o anterior, e também ele em tom lancinante, uma situação de miséria individual que não terá remédio alternativo senão o recurso à caridade pública. Mas a abordagem dessa situação é agora completamente distinta: a miséria não é aqui apresentada como uma desgraça individual inevitável, um capricho incontornável do destino que afecta uma vítima isolada e pode ser minorado pela simples generosidade de quem tem mais posses, mas como o resultado directo de uma injustiça social assente num sistema económico de distribuição desigual da riqueza, e como um libelo de acusação à oligarquia financeira beneficiária desse sistema. A descrição da pobreza é feita numa perspectiva clara de denúncia da exploração que lhe está subjacente, e passámos, por isso, de um mero olhar de piedade humanitária para uma denúncia política assumida da ordem social, na linha ideológica característica de um movimento operário radical, de tendência já assumidamente socialista. 3. - “Contra o capital perverso”: o enunciado geral da luta de classes Vive pobre o pobre op’rário Que trabalha, noite e dia... Vive rico o usurário No seio da Burguesia! Eis o contraste fatal, Do nascer a subtileza: D’um lado, o berço – Pobreza D’outro o berço – Capital. D’um lado o esforço animal

25

Avelino de Sousa, A Minha Guitarra, p. 48.

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A Minha Guitarra, Avelino de Sousa Lisboa, Empresa Editora Popular, 1919 Colecção Nuno Siqueira

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O Fado e os Seus Censores, Avelino de Sousa Lisboa, Edição de Autor, 1912 Colecção Francisco Mendes

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Do infeliz proletário; E do outro o argentário P’ra quem a vida é rendosa! Porque enquanto o rico goza Vive pobre o pobre op’rário. O pobre é triste sendeiro Que come a ração amarga, Tal como a besta de carga Debaixo do cavaleiro. Monta-o o rico embusteiro Com toda a sobranceria, Crava-lhe a espora-ufania, E com cinismo arrojado, Escarnece o desgraçado Que trabalha noite e dia! É assim que o faz puxar O carro do Rei-Milhão, Pois, do pobre a produção Constitui o seu bem- ‘star. Tem, para o fazer trotar O chicote do salário, A cujo total precário Quer que o infeliz se dobre... E assim à custa do pobre Vive rico o usurário! Op’rários do Universo – A minha humilde canção, Incita à Revolução Contra o Capital perverso. Vêde neste pobre verso Vossa amargosa agonia... E lutai com energia De modo que se invalide O Inimigo que reside No seio da Burguesia.26

26

34

Avelino de Sousa, O Fado e os seus Censores, p. 52


Em 1912 o mesmo Avelino do Sousa tinha publicado em O Fado e os seus Censores este texto inflamado, como “uma amostra que define, de uma maneira flagrante, o contraste entre as duas camadas sociaes”. O registo é idêntico ao do exemplo anterior: a pobreza tampouco é aqui já apresentada como uma desgraça individual ou um capricho do destino cruel, mas como a consequência de uma sociedade injusta, assente na exploração da força de trabalho dos assalariados. Contudo, passámos de uma reflexão a partir de um caso humano individualizado para uma profissão de fé político-ideológica com um carácter genérico, ou seja, para uma postura de olhar crítico sistemático sobre a sociedade no seu todo, embora o texto não apele directamente à acção revolucionária e não fique claro nesta denúncia genérica, por outro lado, o modelo de sociedade alternativa nela implícito. Não sabemos, a julgar apenas por este texto, se estamos perante uma voz próxima da social-democracia da II Internacional ou dos movimentos anarquistas. 4. - “Deixa esse sono maldito: a chamada à revolução” Levanta-te explorado Quebra os pesados grilhões Procura a liberdade No seio das Revoluções. É o braço universal. É a força da vontade, Procura a luz da verdade Ao som da internacional. Derruba do pedestal O burguez endinheirado, É o momento chegado, O destino assim tem escripto, Deixe esse somno maldito Levanta-te explorado. Percorre os velhos casaes Desperta os trabalhadores, Esses são os luctadores, Valorosos e leaes. Não há filhos, não há pães, São mudos os corações E prégando às multidões, Essa tão santa doutrina Para o labor na officina, Quebra os pesados grilhões.

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A tua victoria contemplo Serás livre finalmente, E teus filhos certamente Seguirão o teu exemplo. O dever terá seu templo Para bem da humanidade, Ó sublime egualdade, Nos momentos derradeiros Ampara os pobres obreiros Procurando a liberdade. E nunca mais a ambição Dominará qualquer ente, O trabalho unicamente Será a vida e o pão. Thronos rolando no chão, Entre horríveis maldições, E as vindouras gerações Hão de abençoar o passado, Com nobre sangue regado No seio das revoluções.27 Num opúsculo não datado, mas muito possivelmente dos primeiros anos do século XX, sob o título aparentemente inócuo Os Mais Lindos Fados e Canções, encontramos este apelo convicto à insurreição revolucionária, mesmo que regada, se necessário, com “nobre sangue”, e preparada “pregando às multidões”, percorrendo de porta em porta “os velhos casaes” e parando “o labor na oficina”. Registe-se a menção do “som da internacional”, atestando já neste período a circulação em Portugal, no contexto operário lisboeta, de L’Internationale, cujo poema original, escrito em 1871 por Eugène Pottier, na sequência dos eventos da Comuna de Paris, e posto em música já em 1888 por Pierre Degeyter, fora logo em 1889 consagrado como hino oficial da Segunda Internacional e conhecera desde então intensa divulgação no circuito do movimento operário europeu. Note-se que esta publicação, da responsabilidade da Livraria Barateira – e de que possuo a 23ª edição, o que dá bem a noção da popularidade e da circulação imensas de semelhantes folhetos – não constitui toda ela um manifesto político coerente. Os vários textos expressamente subversivos nela incluídos alternam pacatamente com poemas de amor, sátiras inocentes, hinos à natureza ou séries de quadras soltas. Estamos perante uma colecção de poesia popular de âmbito muito lato, que cobre todos os tópicos que o editor considera apelativos ao seu público-alvo, pelo que ao lado destes poemas de cariz militante aceso nos pode surgir um mote de humor ingénuo como o seguinte:

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Os Mais Lindos Fados e Canções (Portuguezes e Brasileiros). 23ª ed./Lisboa; Barateira, s.d.., p. 12.

A Portugueza. Marcha Canto / Piano Letra de Henrique Lopes de Mendonça Música de Alfredo Keil Neuparth & Carneiro Editores, s/d Colecção José Pracana


No mercado da ribeira Ouve uma grande questão, Foi p’ra morgue o carapau P´ro limoeiro o cação […].28 Mas podemos, bem vistas as coisas, descortinar por detrás desta aparente incongruência, aspectos unificadores de toda a colecção. O Mercado da Ribeira é, afinal, um espaço emblemático do dia a dia popular lisboeta, a Morgue e a cadeia do Limoeiro são riscos presentes a cada momento na existência frágil deste povo trabalhador. Estes quadros aparentemente ingénuos da realidade quotidiana das classes populares são, no fim de contas, complementos naturais dos textos de apelo militante à alteração radical da sociedade em que esse quotidiano popular assenta. 5. – “Um de Maio, álerta! álerta!”: a filiação socialista expressa Um de maio, álerta! álerta! Soldados da liberdade! Eia avante, é destruir Fronteiras e propriedades. Sentinelas avançadas, Redobrai vossa atenção, E, ao grito da revolução, Estejam a postos e formadas; Haja união, camaradas, E a vitória será certa, Eis o alvo que nos desperta P’rá missão civilizada, É dia, resurge a aurora, Um de Maio, alerta! alerta! Lutemos pelo ideal D’onde o nosso bem dimana, Sigamos José Fontana E Antero de Quental; abaixo o vil capital Inimigo da igualdade, Haja solidariedade, Sigamos um trilho novo, Avante, filhos do povo, Soldados da liberdade!

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Id., p. 89.

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Mostrai aos vis argentários Que é falso o seu predomínio, Que à força do latrocínio Se fizerem proprietários; Erguei-vos, ó proletários! Que a glória há-de surgir, E para termos no porvir, Paz, amor, civilização, Os muros da opressão Eia, avante, é destruir!

Abaixo o militarismo, Que tambem é retrocesso, Trabalhadores do progresso, Defensores do socialismo! Um belo positivismo Mostrai à vil sociedade, Que a terra é da humanidade. Que é de todos quanto encerra, Que não pode haver na terra Fronteiras e propriedade!29

Ainda no folheto Os Mais Lindos Fados e Canções surge-nos este apelo revolucionário cujo primeiro aspecto interessante é o da evocação explícita do Primeiro de Maio como data emblemática do movimento operário - a data da carga policial sobre os grevistas do Haymarket de Chicago em 1886, que o congresso de Paris da Internacional Socialista, três anos depois, proclamara como dia mundial do trabalhador e que é comemorado em Portugal pela primeira vez logo em 1890. Neste mesmo contexto é reveladora a referência expressa à liderança de José Fontana e Antero de Quental, figuras gradas do Partido Socialista Português, fundado em 1875, e são igualmente definitórias, no plano ideológico, as linhas de intervenção enunciadas: a derrota do “vil capital” e do “militarismo”, a defesa do “socialismo” e do “bello positivismo”, a abolição das “fronteiras e propriedade”. Significativamente, este é também o texto que Pinto de Carvalho tinha escolhido em 1903 para exemplificar na sua História do Fado o que designa por “novíssimo fado socialista”30.

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Id., p. 30.

30

Pinto de Carvalho, op. cit., p. 261.

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Joaquim Ramos A Portugueza 78 rpm Ed. Homokord 9417 Colecção Museu do fado


6. – “A pena de Kropotchine”: a referência teórica internacional

Bravos heroes do Progresso Ávante pelo grande Ideal A Republica não basta P’ra esmagar o Capital. Ávante, que apoz a Guerra Vem a benéfica Paz, Ávante, porque aliás, Hão de lançar-nos por terra. A nossa lucta encerra A queda do Retrocesso Para que tenhaes ingresso No Templo da Egualdade, Luctae pela Liberdade, Bravos heroes do Progresso.

Discos de 78 rpm Colecção Museu do Fado

Aproveitemos a Luz, Que o vosso sentir define, P’la pena de Kropotchine, E de Nordau, que seduz! De Tolstoi, que nos conduz, Ao pensamento liberal; Do convivio fraternal Resurgirá a União… Derrubermos a Oppressão, Ávante pelo grande Ideal. P’ra alcançar a Egualdade Serão bons todos os trilhos Que mostrem a nossos filhos, A Aurora da Liberdade! A Deusa Fraternidade Pela sua missão tão casta O meu cérebro arrasta A dizer povo não temas! P’ra nos livras das algermas A Republica não basta... Propagar pelo Comicio É um dos meios mais correctos; Porám, aos analphabetos Não livra do Precipicio.

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Procuremos um indicio Do Remedio Radical, Armemonos contra o Mal, - Causa de tantos revezes – Derruindo Estados burguezes, P’ra esmagar o Capital!31 Em 1907 Avelino de Sousa publica uma colecção de fados intitulada A Canção Nacional, onde se insere este texto cujo mote ele próprio voltará a citar cinco anos mais tarde em O Fado e os seus Censores. Os propósitos revolucionários são genericamente os mesmos dos textos anteriores, mas é significativa a referência expressa à República, causa que neste momento ganhava uma popularidade crescente, como uma meta necessária mas insuficiente para a mudança social profunda desejada ( o “remédio radical”, na expressão do autor). Antecipa-se assim, já no plano político-ideológico mais geral, o que virá, de facto, a ser o divórcio gradual entre o movimento operário e o republicanismo institucionalizado, independentemente dos vários cambiantes internos que virão a caracterizar o novo regime logo a partir da sua instauração. As referências políticas não são agora já aos socialistas portugueses, Fontana e Quental, mas sim aos nomes-chave do Anarquismo internacional, Kropotkine, Nordau e a própria figura de reformador místico de Tolstoi. Kropotkine e Tolstoi são de resto igualmente mencionados num outro fado, este anónimo, da colecção Os Mais Lindos Fados e Canções: A Sciencia humanitaria Símbolo do altruismo Tem por base condenar Deus, Patria e militarismo. Com a minha rustidade Meu espírito mal define, O grande Kropotkine Cáustico da sociedade, A grande intelectualidade Do Tolstoi, que feito um paria No mundo, metralha vária Do pensamento, espalhou. Sacrificando-se mostrou A Sciencia humanitaria. Esses vultos eminentes, Sóes rutilantes do mundo. Num gesto grave e profundo,

31 Avelino de Sousa, A Canção Nacional: Trovas ao Fado, Lisboa: Inst. Coop. De Preducção, 1907, p. 23. O mote deste fado é igualmente citado por Avelino de Sousa em 1912 em O Fado e os seus Censores.

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Ao burgo aguçam os dentes. Príncipes e Reis trementes Demonstram com seu cynismo Terem medo ao anarquismo. Fazem-lhe sangrenta guerra Pois sabem que ele é, na terra Symbolo do altruísmo. Inda o mundo há-de assistir Aos pobres livres do jugo Espesinharem o verdugo Da burguezia a surgir. E depois quando existir O Idial que vem dar Resplendor e bem-estar Incitar patriotismo. A miseria o Anarquismo Tem por base condenar. Mas o povo socegado Esfacela-se, sofre tortura Quando seu mal tinha cura No Idial desejado! Quer viver martyrisado Nas garras do servilismo. Vai alargando o abysmo A fanatica humanidade Pois fia-se nesta trindade – Deus, Patria, e militarismo.32 A corrente anarco-sindicalista tem de facto um peso crescente no movimento operário português na viragem para o século XX, e o Fado reflecte esse predomínio. Assinale-se, por outro lado, a evidência de literacia activa que se depreende destes e de outros poemas de muitos dos intelectuais operários ligados ao circuito do Fado no final do século XIX, resultado de um esforço intenso de alfabetização que o movimento associativo popular promove através das suas colectividades de base e da circulação regular de literatura de referência, quer de formação política, pura e dura, quer de enriquecimento cultural genérico. Não é por acaso que serão precisamente muitos destes poetas do Fado ligados ao movimento operário os responsáveis, ao mesmo tempo, pelo

32

Os Mais Lindos Fados, p. 68.

A Portugueza. Marcha - Piano Letra de Henrique Lopes de Mendonça Música de Alfredo Keil Neuparth & Carneiro Editores, s/d Colecção José Pracana

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alargamento das convenções poéticas do género, introduzindo-lhe gradualmente, nas duas primeiras décadas do século XX novas métricas como os decassílabos e os alexandrinos, novas formas estróficas como as quintilhas e as sextilhas, e novos processos como o uso do versículo acrescentado aos versos em redondilha maior.33 7. – “O sublime ideal”: a radicalização anarco-sindicalista O enigmático “Sezuirosa”, que já tive ocasião de citar a propósito da definição expressa da concepção militante do Fado por parte dos intelectuais operários do final do século XIX, não disfarça a sua opção clara pelo Anarco-Sindicalismo, e os poemas do seu Fado Livre ou Racional não se preocupam sequer com a relativa solidez de argumentação política que encontramos nos de Avelino de Sousa ou em vários dos anónimos que aqui mencionei. Trata-se de apelos muito básicos e muito directos à causa libertária, reduzida à sua expressão mais elementar e apresentada em termos primários inequívocos. Vejamos, a este respeito, alguns dos motes dos seus fados: Fado livre, oh!... belo fado, Emancipa a Umanidade, Viva o povo emancipado Em completa liberdade.34 Lutais, povo, com prestijio Pela vossa autonomia, Para toda a Umanidade Comunismo e anarkia.35 Proletario universal Conquistae a autonomia Repelindo todo o mal Só direis: viva Anarkia!36

33

Cf. Paulo Lima, op. cit., e Rui Vieira Nery, Para uma História do Fado, pp. 166-177.

34

Fado Livre ou Racional, p. 3.

35

Id., p. 5.

36

Id., p. 6.

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A Anarkia é Liberdade, A Igualdade é Comunismo; A Anarkia contradiz Privilejio e egoísmo.37 Comunismo e Anarkia Verdadeiro Socialismo? Eu aceito entuziasmado Contra todo o despotismo.38 Há evidentemente nestes versos de Sezuirosa um jogo de conceitos declaradamente simplista e um conjunto de rimas limitado e previsível, que lhes dão uma proximidade nítida com a prática poética improvisatória então ainda corrente no campo do Fado. Ao contrário do que sucede em Avelino de Sousa e noutros intelectuais operários, em quem se sente a vontade da legitimação do género pela apropriação e incorporação de códigos e processos literários até então exclusivos da poesia erudita, o poeta anarquista aposta numa comunicação directa e imediata com os seus destinatários populares, de mensagem política concentrada, panfletária e inequívoca e recorrendo a fórmulas poéticas transparentes e de fácil descodificação. O registo escrito não é aqui encarado como um instrumento de afirmação das ideias progressistas num campo literário que se pretende conquistar e ao qual se quer dar acesso às massas populares, mas apenas como um suporte mnemónico e divulgador de um discurso poético militante ainda marcado, antes de mais, pela oralidade. 37

Id., p. 9.

38

Id., p. 10.

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ALGUNS ESTUDOS DE CASO: O IDEAL REPUBLICANO A crítica à Monarquia, quer ponha em causa frontalmente o próprio regime quer se limite a censurar os privilégios da nobreza e os abusos e escândalos das elites do rotativismo constitucional, é um tema recorrente no repertório poético do Fado quase desde os seus primeiros registos escritos. 1. - “Que importa que fosse nobre’”: a denúncia do privilégio aristocrático O conde de Camaride (Por dispensar o cocheiro) Morreu desastrosamente... Sem ser pintor, nem pedreiro! Na Rua Nova do Almada (Mesmo junto à Boa Hora) Deu-se a cena aterradora, Que jaz na mente gravada. Não só a pobreza honrada Destroi a mundana lide; Como a sorte é quem decide De tudo quanto é mortal, Quis destruir afinal O conde de Camaride. Que importa que fosse nobre, Que tivesse ouro a valer? Não pôde deixar de ter A mesma sorte que o pobre. Se, de finados o dobre, Lhe coube por ter dinheiro, Não teve a glória do obreiro, Que morre ao som do martelo: nem por isso foi mais belo Por dispensar o cocheiro. Se guiava o tal cavalo Que lhe concorreu p’r’a morte, Não partilhava da sorte Dos que tinham de tratá-lo; Sómente por um regalo Governava o tal vivente,

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Sem sentir o que se sente Quando o trabalho é forçado: Todavia o desgraçado Morreu desastrosamente. O seu famoso corcel (Apesar da fina raça) Foi o motor da desgraça Que lhe deu cabo da pele. Se gozava o doce mel De, no carrinho ligeiro, Ter o lugar sobranceiro Que tanto dava nas vistas, Teve a sorte dos artistas, Sem ser pintor, nem pedreiro.39 Será Alberto Pimentel a publicar em 1903 este poema oitocentista não datado, que poderá hipoteticamente referir-se à morte do último herdeiro do título de Conde de Camarido, Bernardim Freire de Andrade e Castro (1810-1867).40 Independentemente de estarmos perante uma identificação específica do titular visado ou, em alternativa, da eventual opção por um título nobiliárquico imaginário como alvo genérico da crítica social implícita no poema, o que nos importa sublinhar é a forma como, a par com o aspecto estritamente noticioso da pequena reportagem de um desastre mortal na via pública, susceptível de despertar a curiosidade voyeurística do público destinatário, os versos se concentram, até em boa parte a despropósito do evento concreto narrado, na crítica ao privilégio aristocrático. O conde não é, de facto, censurado por facetas individuais do seu carácter ou do seu comportamento, mas pelo estatuto familiar de distinção e fortuna que nele precede o seu próprio perfil humano pessoal: o facto de pelo berço ter “ouro a valer”, viver “na mundana lide”, poder ocupar-se ele próprio, “somente por regalo”, da condução da carruagem em que tem “lugar sobranceiro” e gozar, afinal, do “doce mel” da vida, não tendo assim “a mesma sorte que o pobre”, esse que é condenado pelo nascimento à “pobreza honrada”, que ao “trabalho é forçado” e que “morre ao som do martelo”. 2.- “Cruzes nos ladrões”: a crítica à oligarquia liberal Pinto de Carvalho regista algumas das quadras cantadas por Cesária, a fadista de Alcântara que nos inícios da Regeneração se converte num dos primeiros grandes ícones femininos da memória do Fado nas gerações seguintes à da Severa. Entre estas há duas com um significado de crítica social evidente, ainda que num registo satírico sem referências políticas explícitas:

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Alberto Pimentel, A Triste Canção do Sul, pp. 115-116.

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Nunca existiu o título de Conde de “Camaride”, pelo que é de admitir que estejamos perante uma deturpação de uso popular do título de Conde de Camarido. Para uma discussão da identificação do titular visado neste poema, cf. Rui Vieira Nery, Para uma História do Fado, pp. 94-94, e Afonso Eduardo Martins Zúquete, dir., Nobreza de Portugal. Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1960, Vol. II., p 469.

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Portugal sente-se ufano, Tem bom dinheiro cunhado, Mas quem o tem chama-lhe seu Ou herdou ou tem roubado. No tempo das barb’ras nações Pregavam os ladrões nas cruzes, Hoje no século das luzes, Pregam as cruzes nos ladrões. 41 Tinop dá-nos, a este respeito, uma informação suplementar interessante: muito embora estes versos sejam anónimos, eles fazem parte de um repertório muito vasto que Cesária, como outros fadistas destacados, encomendava e pagava, através do seu amante Cesário, a poetas populares do seu tempo, chegando a pagar-lhes a quantia extraordinária de dez libras (o cronista menciona entre eles Ernesto Marecos, o barbeiro António Viana, o tipógrafo F. A. Correia e ainda José Adrião, Boaventura Henriques de Carvalho, Carmo e Sousa, Luís de Araújo e José Inácio de Azevedo). Trata-se de uma prática que se manterá em pleno vigor no circuito fadista ao longo de uma boa parte do século XX, em particular na época áurea dos poetas populares do género, como Henrique Rego, Francisco Radamanto, João Linhares Barbosa, Carlos Conde ou Frederico de Brito. Ter de memória um elevado número destes poemas de vários autores, cuja identificação específica naturalmente se perdia através da mediação da intérprete, valia a Cesária, por sinal, a reputação de possuir, na gíria do fado da sua época, “muita livraria”. Mais uma vez nos deparamos no campo do Fado, desde os seus alvores, da permanente zona de indefinição entre a autoria individual e a passagem ao anonimato ou à atribuição do poema ao seu intérprete mais reconhecido, bem como entre o registo escrito e a transmissão oral. É precisamente de um desses “fornecedores” regulares de poesia a Cesária, Luís de Araújo, que encontramos na 4ª edição antológica42 dos seus Cem Fados, de 1904, um poema que desenvolve o conceito central da segunda das quadras citadas, sob o título “Mercês Honoríficas”: O gato do meu visinho, Olhem que isto é verdadeiro, Sahiu ontem, no Diario, Que foi feito conselheiro. Em viagem de recreio, Por conselhos d’uns matutos, Fui vêr o reino dos brutos, 41

Pinto de Carvalho, História do Fado, pp. 180-181.

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Apesar de todos os esforços não consegui localizar nenhum exemplar das três primeiras edições, ou sequer verificar as respectivas datas de publicação.

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E gostei do tal passeio. Vi um bode nuito feio, Morando num chalésinho, Tinha cavallo e carrinho, E disse-me, haja attenção, Que ia ser feito barão O gato do meu visinho. Ora barão, ora maltez, Só em reino de animaes! Mas escutem ainda mais: Vi um boi, soberba rez, - Parece d’um entremez, Mas o boi era matreiro, Tinha casado em Janeiro, E a esposa, não s’esconde, Poude fazel-o visconde, Olhem que isto é verdadeiro. Um burro russo, valente, Enorme cavalgadura, Tambem esta creatura Teve graça por presente. Certo camello influente, Em politica muito vario, Andou em louco fadário, Até que o burro citado, Viu-se feito deputado… Sahiu ontem, no Diario. Um peru todo entufado, De negra e brilhante côr, Requ’reu ser commendador E foi logo despachado. Um urso, tambem inchado, Senhor de muito dinheiro, Que já era cavalleiro, Diz a gazeta da terra, Que não mente, que não erra, Que foi feito conselheiro.43 43

Luís de Araújo, Cem Fados. Lisboa: Arnaldo Bordalo, 1904, .p. 101.

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Multiplicam-se pois no repertório fadista estas referências mordazes aos privilégios de uma burguesia ascendente que começa, sobretudo a partir do reinado de D. Luís, a ascender às dignidades públicas mais elevadas, incluindo altas condecorações e títulos de nobreza. O olhar popular expresso pelas letras de Fado desconfia da legitimidade das fortunas assim acumuladas e troça das honrarias concedidas aos parvenus do fontismo, mesmo que essa crítica não seja feita sempre no quadro de uma contestação política aberta ao regime monárquico no seu todo. Refira-se, aliás, que Luís de Araújo não é propriamente um pensador político radical e tem até, inclusive, no repertório da sua autoria poemas de censura ao movimento operário, e designadamente ao recurso à greve. A crítica aos abusos da oligarquia é pois, por assim dizer, de “banda larga” político-ideológica no contexto da fase final da Regeneração, e manifesta-se assim em todas as correntes de opinião que têm repercussão no universo da cultura e do quotidiano populares, sejam elas ainda apenas de censura aos abusos sectoriais, sem questionarem o conjunto do sistema político vigente, sejam já de contestação aberta à ordem estabelecida no seu todo. 3 – “El-rei vai caçar”: a censura directa ao soberano Lá vão os pobres soldados Cumprir a missão honrosa Enquanto el-rei vae caçar Feliz p’ra Villa Viçoza. Affrontar p’rigos de morte, Dando ao inimigo batalha Ante o fogo da metralha, Expõe o soldado a sua sorte. Deixa os filhos e a conbsorte Em triste p’ranto banhados, Infelizes, contristados, Temendo pela sua vida… Combater p’la Patria qu’rida Lá vão os pobres soldados. Ao troar da artelharia Ao estrépito do canhão Os pobres militares vão, Exporem-se á fuzilaria! Na metrópole, em folia, Fica a corte donairosa, Na festa mais descuidosa, Na qual o rei sobresae… Emquanto o soldado vae Cumprir a missão honrosa.

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Emquanto o militar sente, O silvo agudo das ballas Nas mais luxuosas salas Diverte-se el-rei, contente! O official intelligente, Manda a columna formar P’ró inimigo derrotar Com fogo que tudo aterra… Morre o soldado na guerra Emquanto el-rei vae caçar! Porém, á Patria voltando O exercito, com fama, O povo, então, o acclama Seus irmãos victoriando! Mas com isto contrastando, Do rei, a vida, é faustosa E na paz mais criminosa - Se hade ir os heroes esp’rar Descuidado vae viajar Feliz p’ra Villa Viçosa.44 É de novo a Avelino de Sousa, na sua colectânea de fados de 1907, que devemos este poema, que replica na esfera popular a imagem pejorativa do Rei D. Carlos difundida pela propaganda republicana, sobretudo a partir do Ultimatum inglês de 1890: o monarca que não teria sido capaz de enfrentar a agressão britânica, que teria deixado humilhar o orgulho nacional, e que nem sequer seria solidário com os soldados portugueses que vão defender em África a soberania colonial portuguesa; o soberano que viveria cercado de luxo e alheio ao sofrimento do seu povo. É afinal a imagem do “caçador Simão” de Guerra Junqueiro, popularizada pelo Finis Patriae de 1890, de imensa repercussão popular. Papagaio real, diz-me quem passa? É el-rei D. Simão que vai à caça.45 4. – “Destruir a Monarquia”: à espera da República Destruir a monarquia Haver no mundo igualdade, 44

Avelino de Sousa, Fados, p. 18.

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Guerra Junqueiro,“O Caçador Simão”, Finis Patriae, in Obras de Guerra Junqueiro (Poesia)- 2ª ed./Porto: Lello & Irmão, 1974, pp. 491-492.

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São dois pontos sublimes Por que pugna a sociedade. De que serve à pátria o rei, Toda a imbecil nobreza, Que p’la força da riqueza E p’la posição são a lei? O poder que ao vil darei À desordem e à anarquia, A vileza e a tirania. Tudo isso deve acabar, Cumpre ao povo sem esperar, Destruir a monarquia. Destruída, tereis então De cumprir sérios preceitos, Gozareis de os direitos De um povo livre em acção; Quem ama a sua nação Odeia a cruel majestade, Realeza – nulidade, A dizer há quem se atreve, P’ra nossa ventura deve Haver no mundo igualdade. Reis, príncipes e rainhas, Duques, marqueses, barões, Medalhas, comendas, brasões, D’estado régias gracinhas; Oh Povo, que isto tinhas, Eras um réu de vis crimes, Domaste-te como os vimes, A tal caterva singular, Porque o roubar e o matar São dois pontos sublimes.

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Pinto de Carvalho (Tinop) História do Fado Lisboa, Empreza da História de Portugal, 1903 Colecção Francisco Mendes


O rei vive ocioso, C’roado de louro e carvalho. À sombra só do Trabalho, Do pobre laborioso; Descei do trono ditoso, Ó germen da ociosidade! O povo é rei, e há-de Não cessar contra a súplica, Dando vivas à república Por que pugna a sociedade46. Em 1903 Pinto de Carvalho publica na sua História do Fado esta violenta catilinária anti-monárquica, atribuindo a sua autoria ao fadista José Augusto, e esclarecendo, no entanto, que se trataria de um texto de juventude e que o autor teria entretanto evoluído para “monarchico e ordeiro”. Seja ou não verídica essa posterior “curva na estrada” do poeta, o texto não deixa margem para equívocos e condensa exemplarmente o ideário republicano, tal como este circula nas décadas finais do século XIX, em particular após a crise do Ultimatum de 1890. Este programa republicano, que retoma as mensagens propagandísticas do rei que “vive ocioso” e do privilégio imerecido de “barões, medalhas, comendas, brasões”, invoca os interesses do “pobre laborioso” como legitimação principal da necessidade do derrube da Monarquia, mas ao mesmo tempo propõe-se, por outro lado, pôr fim “á Desordem, á Anarquia”, que associa ao regime monárquico, o que revela bem que neste caso estamos perante mais um ideólogo da ruptura republicana, mas não de filiação anarquista, ou sequer assumidamente socialista. A República de José Augusto, tal como é anunciada neste fado, reclama “no Mundo igualdade” mas não associa esse conceito a um projecto explícito de ruptura do modelo social vigente, a não ser no que toca à abolição dos privilégios do soberano e da nobreza. Há, pois, uma diferença de conteúdo evidente entre este Fado republicano e o Fado operário e socialista a que atrás me referi. 5. – “A Pátria enfim respirou”: o triunfo da República Viva a Pátria Portugueza Que a República salvou, De morrer na indigência A que a monarquia a deitou. Nobre pátria sem igual, Berço de navegadores E de heróis libertadores, 46

Pinto de Carvalho, História do Fado, pp. 199-200

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Grande e nobre Portugal. Ia tendo por seu mal Quem a levasse à vileza Mas derrotou-se a nobreza Pelo pendão verde-rubro, Viva o dia 5 d’Outubro Viva a Pátria Portugueza. Ao sentir-se a derrocada Da extinta monarquia, A Pátria sucumbiria Por estar mal governada, Mas a turba ignorada A que a gloria a levou, Na Rotunda vincou Patriotismo sem igual, Pois foi o velho Portugal Que a República salvou. Imperava o cinismo Governando a nação, Mandava a preversão E o vil jesuitismo, Mas o povo com civismo Com tacto e inteligência, Não consentiu a demência D’um rei novato e banal, Evitando Portugal De morrer na indigência. Homens de raro valor Como Costa e outros mais, Usam processos leais E à Pátria dão vigor Brilha já a rubra côr Da bandeira que a salvou, E a Pátria enfim respirou Ao ser expulso, o mal, o vício, Está livre do precipício A que a monarquia a deitou.47

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As Mais Lindos Fados e Canções, p. 91.

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Fado Republicano (para piano) Música de Reynaldo Varella 10 de Outubro 1910 Edição Tipografia Ed. Rosa Colecção Michel de Roubaix


Os Mais Lindos Fados e Canções celebram assim em tom exultante o triunfo da República, saudado como momento de regeneração patriótica e moral da Nação. Afonso Costa, os líderes republicanos e os heróis da Rotunda são celebrados com entusiasmo, com um capital de esperança ainda difuso, que não remete expressamente para a agenda social. O momento é de festa e o Fado de Lisboa participa nela com convicção, como antes participou na promoção activa da causa republicana. Afinal, como Avelino de Sousa escreveria em 1912: “Quanta propaganda, nos saraus das associações, na rua, na sala, na taberna, fez o humilde trovador em prol da Republica que hoje nos rege! E o povo rude, o povo operário, quedava-se recolhido a ouvi-lo, entendendo talvez melhor esses pobres versos – muitas vezes sem metrica – do que os mirabolantes discursos dos oradores de comícios!” “É que, talvez valha mais a palavra cantada, suggestiva e simples, afflorando aos labios rudes do rude productor, do que a palavra vibrante do histórico Mirabeau!... este vendeu o talento e a loquella por um milhão de francos à vacillante monarchia dos Capetos; e aquelle – o productor rude e simples – aluga o braço, mas não vende a consciência!”48 Este parágrafo final – em que é curioso constatarmos a forma como Avelino de Sousa retoma, mais de um século depois, a velha crítica do jacobinismo radical à suposta “traição” dos girondinos – é no entanto o indício claro do que será a fase seguinte deste processo, quando a República se for manifestando gradualmente incapaz de corresponder em pleno às aspirações de igualdade e justiça social que alimentou nas classes populares. O Fado acompanhará este processo pari passu, comentando com mordacidade a carestia, a instabilidade política, os episódios de repressão policial, o trauma da entrada na guerra, e o entusiasmo celebratório inicial em torno do novo regime dará pouco a pouco lugar na lírica fadista a um programa político mais radical de contestação social generalizada. 6. – “A República não basta”: o movimento operário rompe com o novo regime Poderíamos aqui remeter mais uma vez para o dístico emblemático com que fecha o mote de um dos fados fado atrás citados a propósito do movimento operário: A República não basta P’r esmagar o Capital. É bem significativa esta referência expressa à República como uma meta necessária mas insuficiente para a mudança social profunda desejada ( o “remédio radical”, na expressão do autor). Antecipa-se assim, já no plano político-ideológico mais geral, o que virá, de facto, a ser o divórcio gradual entre o movimento operário e o republicanismo institucionalizado, independentemente das várias etapas internas que virão a caracterizar o novo regime logo a partir da sua instauração. A colectânea Os Mais Lindos Fados mais uma vez nos deixa transparecer esse sentimento de desilusão com o novo regime, num mote que assinala precisamente a percepção popular do facto de a elite dirigente republicana não parecer distinguir-se afinal, na essência, da sua antecessora monárquica:

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Avelino de Sousa, O Fado e os seus Censores, Lisboa: ed. do Autor, 1912, p. 8.

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Derrubou-se a monarquia, Essa coorte indecente, Foram-se uns, outros ficaram, Pois é tudo a mesma gente49. Mais uma vez é em Avelino de Sousa que encontramos a formulação mais acabada desta postura de desencanto face às promessas democráticas não cumpridas da República, em três fados cujos poemas terá escrito logo em Outubro de 1912 mas que só publicará na colectânea A Minha Guitarra, sete anos mais tarde. Note-se, no plano formal, a habitual utilização, também neste caso, da quadra de mote glosada em quatro décimas, mas recorrendo agora ao alexandrino em vez de à redondilha maior, o que mais uma vez dá testemunho da maneira como nesta geração da viragem para o século XX se verifica no Fado popular de Lisboa uma incorporação crescente de métricas eruditas, muitas vezes, como neste caso, pela pena de autores com posturas ideológicas radicais de alteração social, económica e política da ordem vigente. Não deixa de ser curiosa esta tentativa convicta de apropriação, pelos intelectuais afectos ao movimento operário, dos códigos literários e estéticos da mesma elite cujo estatuto de privilégio se pretende abater, de algum modo como uma afirmação simbólica de tomada do Poder estabelecido pela colectivização do discurso erudito que constituíra até então seu capital cultural exclusivo e um dos seus mais relevantes signos externos de distinção. LIBERDADE Liberdade; Egualdade, e, mais, Fraternidade Formam excelsa divisa e nobre trilogia! - Mas nada resta já d’ essa augusta Trindade Que a Republica outr’ ora ao povo prometia! O pateta do Zé, o eterno grama-tudo, Vivendo de ilusões, com os olhos vendados, Armou em voluntário e brincou aos soldados Como em tempos fizera em batalhões de Entrudo! Foi policia amador, e – vejam que canudo! – Deixou-se de odiai policias de verdade… Tomou gosto e prendeu, talvez meia cidade, Farejando e espiando em constante pesquiza! Assim se praticava a altruísta divisa: Liberdade, Egualdade, e, mais, Fraternidade. E fosse alguém dizer: - “Não sou republicano”! Logo ouvia gritar: - “Ah! Sim? Tu és thalasa?

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Os Mais Lindos Fados, p. 93.


Então, prepara o lombo!” - E a tôrva populaça, Desancava o infeliz chamando-lhe tirano! - Um anno se passou, mais outro e outro anno, E assim, já lá vão três, que após a monarquia, A gente ouve gritar p’r’áhi, de noite e de dia: - “Liberdade sem fim! Abaixo as leis tiranas!” Visto que a Liberdade e as suas duas manas Formam excelsa divisa e nobre trilogia. Analisemos, pois, porque se tornou ‘scassa A Liberdade ideal que gosta de amplidão: Porque vive algemada em vetusta prisão, A Ordem liberal, prendeu-a por thalassa! Prender a Liberdade, é coisa que tem graça… Mas, se ella conspirou contra a Auctoridade, Foi bem presa!... E inventou-se a falsa liberdade Que se vende p’r’áhi qual outra bacchanal! - Falou-se em liberal, egual e fraternal Mas nada resta já d’essa augusta Trindade. A liberdade, agora, algema o Pensamento, Atira p’r’ás prisões trabalhador’s ruraes; A liberdade agora, aprehende os jornaes, Fecha as associações, prohibe o movimento! A liberdade, agora, é só no parlamento Onde a três mil e tal engorda a Burguezia!... A liberdade, emfim, chama-se Tirania, Irmã da Opressão e irmã da Iniquidade! E aqui ‘está como deu em droga a Liberdade Qu a Republica outr’ora ao povo prometia! EGUALDADE Eis a segunda mana, altiva e mentirosa Tal como a falsa irmã – a deusa liberdade! -A Egualdade na Terra, é esp’rança enganosa, É uma alcunha posta á vil desegualdade! Quando nos governava a velha monarquia, Os dirigentes de hoje, em plena praça publica, Gritavam: - “que uma vez implantada a Republica,

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A divisa Egualdade, augusta, surgiria”! Tres annos tem de vida a tal democracia Sem que eu lograsse vêr essa deusa formosa… Mas, vejo em seu logar, a figura orgulhosa Do Posso, Quero e mando, que hoje apresento aqui! - Egual á liberdade, a que já me ref ’ri. Eis a segunda mana altiva e mentirosa. A autentica Egualdade – eu por supor, registro – Enojada de vêr manchada a nobre imagem, Suicidou-se, talvez, debaixo da carruagem D’um Arreda qualquer que se sagrou ministro! Sobre o cadaver quente, algum côrvo sinistro Roubou-lhe a fórma branca, e, com auctoridade, Favorecendo os seus, gritou: - “Sou a Egualdade” A deusa mais gentil a mais nobre e perfeita!” - Mas a imitação, faliu por ser mal feita, Tal como a falsa irmã – a deusa liberdade. Enquanto houver no mundo escravos e senhores, Presidentes e reis, ministros e usurarios, Soldados, generaes, patrões e operarios, E leis p’ra amordaçar os pobres productores, - emquanto houver, emfim, camadas sup’riores Que vivem do suor da turba laboriosa, Emquanto a Auctoridade infame e crapulosa, Opuzer ao Direito, a força deleteria. Emquanto houver o Luxo a esmagar a Miseria, A Egualdade na Terra é esp’rança enganosa! Esse sonho que fez Jesus Christo sofrer, E os cerebros cançou a Marx e Kropotkine, Político nenhum o percebe ou define, Nem é qualquer doutor que o sabe conprehender! É preciso chorar, amar e padecer, É preciso ter fome e sêde de Verdade, P’ra saber discernir – da actual falsidade – A Egualdade que é p´ra todos nós egual? - Tudo o que não for isto, é grosseiro e banal, É uma alcunha posta á vil desegualdade.

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FRATERNIDADE Ás três manas só falta um trecho da Gran-Via P’ra podel-as cantar com musica fagueira… - Liberdade, Egualdade, e mais Fraternidade Formam a mais completa e pura chuchadeira! Em rima pobre e chã, ao velho Portugal, Propuz-me demonstrar em nome da Razão: Que a Liberdade só simboliza prisão E a Egualdade tem sido apenas desegual. Cabe a vêz á terceira: a mâna fraternal, E que de modo algum ofusca a trilogia… Antes pelo contrario, impõe-se á simpatia Das mânas que afinal, arranham como as gatas! - P’ra fazel-as dançar, tal como nas tres ratas, Das tres mânas, só falta um trecho da Gran-via. Esta Fraternidade, é assaz meiga e terna, Pela fórma gentil com que só faz desordem! E, quando vem p’r’á Rua, acompanhando a Ordem, Sempre nos deita abaixo um braço ou uma perna! Na rua, nos salões, no teatro ou na taberna, Onde quer que apareça essa deusa altaneira, Ha bôdo fraternal de socos na lombeira Do Zé, que p’ra os levar nunca o ensejo perde… - Quem me dera o saber de Chueca e de Valverde, P’ra podel-as cantar com musica fagueira. Até no parlamento, ou mesmo na tourada, N’um gesto fraternal, a deusa faz banzé A tiro, a dinamite, a murro, a pontapé, Ou com a mais fraterna e meiga bengalada! Ao Zé serve ella sempre o bello peixe-espada, Em nome, já se vê, da mâna liberdade… E p’ra dar brilho á festa, a celebre Egualdade, Egualitariamente acode p’lo mais forte. - Mas chamem-lhe, em logar de Prisão, Força e Morte. Liberdade, Egualdade, e mais Fraternidade!

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E o Povo, livremente, ingressa nas prisões Se grita e se revolta, e brada, ou se protesta! D’um modo egualitario ha musicas e festa, Quando o povo tem fome e sofre privações. Se grita, gosa então confraternizações. Porque a Fraternidade aperta-o de maniera Que lhe deixa ficar a penas a caveira… Pois vão-se a carne e a vida em tão fraterno abraço! - E assim, as tres irmãs unidas n’um só laço, Formam a mais completa e pura chuchadeira. Partindo com ironia ácida dos três grandes pilares simbólicos do ideal republicano já desde a Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – Avelino traça nesta trilogia um quadro duro daquilo que vê de incoerência com estes três princípios na actuação dos Governos republicanos logo nos seus dois primeiros anos de gestão: as limitações aos direitos, garantias e liberdades fundamentais consagrados formalmente pela Constituição, o fecho de jornais, a repressão do movimento operário, as prisões de grevistas e sindicalistas, a pretexto das medidas de excepção previstas para o combate aos “talassas” monárquicos, a persistência da distribuição desigual da propriedade. Neste libelo acusatório, para lá das referências concretas a estas questões precisas da realidade política quotidiana da República, há algumas alusões gerais que vale a pena salientar, sendo a primeira sem dúvida a da filiação expressa do pensamento político do autor num conjunto inesperadamente eclético de inspirações matriciais. A igualdade seria, assim, o “sônho que fez Jesus Christo sofrer”, um entrosamento interessante da legitimação teórica da causa libertária na figura humanizada de um Cristo despido da divindade e convertido antes num libertador idealista de carne e osso e num mártir precursor do ideal progressista, o que permite apelar à reacção subconsciente, por parte dos destinatários potenciais, da empatia de um sentimento religioso que continua bem presente ao habitus cultural popular, apesar de toda a pedagogia laicizante do movimento operário e republicano nas últimas décadas. Por outro lado, para o autor esse é o mesmo sonho que “os cerebros cançou a Marx e Kropotkine”, associação que parece sugerir que apesar do predomínio genérico da referência anarquista que se pressente em muitos dos textos citados, o debate e a cisão entre a corrente marxista, favorável à constituição de um partido de vanguarda do proletariado como condição do sucesso da Revolução, e a tendência anarco-sindicalista, que privilegiava a livre organização sindical de base dos trabalhadores, não seria ainda sentidos com uma intensidade fracturante no seio do movimento operário português. Vale a pena também descodificarmos nestes poemas duas referências que poderiam ser obscuras para um leitor actual, começando logo pela menção, hoje aparentemente enigmática, da “carruagem d’um Arreda qualquer” . Trata-se de uma alusão, que seria então evidente para o púbico da época, ao Infante D. Afonso, irmão de D. Carlos e tio de D. Manuel II, que nos últimos anos da Monarquia era conhecido em Lisboa pela sua paixão pelo automobilismo, guiando pelas ruas da capital, a grande velocidade, alguns dos primeiros carros que entraram no País, mandando afastar à sua frente os populares sobressaltados aos gritos de “Arreda! Arreda!”, e sendo assim precisamente alcunhado de “O Arreda”. A propaganda republicana depressa transformou esta figura do príncipe estouvado que pelo amor da velocidade assim assustava os transeuntes, como se nada lhe importasse a segurança dos lisboetas, num símbolo do que considerava ser uma postura de indiferença geral da Casa Real para como seu povo, e é pois significativo que Avelino identifique agora com essa imagem

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do desprezo pelos seus concidadãos populares atribuído ao Infante a figura genérica de um “qualquer que se sagrou ministro” já na nova ordem republicana. Por último, importa desvendar igualmente a referência ao “trecho da Gran-Via” e à “musica fagueira” de Chueca e de Valverde. Estreada a 2 de Julho de 1886 no Teatro Felipe de Madrid, a zarzuela La Gran Vía, dos compositores Federico Chueca e Joaquín Valverde, depressa ultrapassou fronteiras e definiu tanto no plano interno como no internacional o cânone deste género músico-teatral espanhol de imensa popularidade. Portugal não escapou a este fenómeno, sendo a obra encenada por várias vezes em teatros de todo o País e circulando igualmente os seus números mais aclamados através de variadíssimos arranjos que podiam ir da voz e piano à banda filarmónica, pelo que eram extremamente familiares ao circuito popular lisboeta. Tratava-se de uma comédia dos costumes madrilenos, com uma representação satírica de tipos humanos e sociais característicos da capital espanhola, e entre estes surgiam os personagens dos “três ratas”, pequenos delinquentes de rua que roubavam alegremente as carteiras dos transeuntes e se gabavam, despreocupados, de conseguirem sempre iludir a vigilância da polícia. Para Avelino de Sousa, esta equação dos três valores simbólicos da República – Liberdade, Igualdade e Fraternidade – aos três meliantes da zarzuela, transformando assim a respectiva invocação hipócrita pelo novo regime numa fantochada de comédia ligeira que não se poderia levar a sério (“a mais completa e pura chuchadeira”), é deste modo expressa de uma forma que pode ser facilmente absorvida pelo público-alvo a que se destina. 7. – “Essa bendita cruzada”: do Sidonismo à Ditadura Militar Se as múltiplas colecções de letras de Fado impressas entre a década de 1870 e a de 1920 não se limitam à intervenção política e também abordam em paralelo, como já vimos, muitas outras temáticas ligadas ao quotidiano popular de Lisboa, não restam dúvidas de que quando essa intervenção tem lugar é feita, numa percentagem esmagadora dos casos, numa perspectiva de apoio empenhado às causas da justiça social, da redistribuição da riqueza e dos meios de produção, da abolição dos privilégios da nobreza, da liberdade política e da alteração clara do sistema de governo. Nos fados políticos pode haver um ou outro texto de crítica aos excessos do movimento grevista, por exemplo, mas não conheço um único, do vasto repertório que já tive ocasião de examinar, que faça a defesa expressa da Monarquia. E tampouco há sequer nestas letras qualquer expressão de afecto pelo Rei ou pela Família Real, apesar de serem, pelo contrário, numerosos os indícios da simpatia pessoal de D. Carlos pelo Fado – designadamente o facto de este, ainda Príncipe herdeiro, ter chegado a receber, ao que parece, aulas de guitarra portuguesa de João Maria dos Anjos, e de ter convidado o cantador Fortunato Coimbra a actuar no iate real Amélia e o guitarrista Luís Carlos da Silva (“Petrolino”) a tocar para Eduardo VII de Inglaterra quando da sua visita oficial a Portugal. O sentimento popular expresso pelo Fado de Lisboa nos seus textos de conotação política directa ao longo do período em causa é, pois, sem qualquer dúvida, abertamente hostil à Coroa e apoia quase sem reservas uma gama de alternativas inequívocas à Monarquia, da simples proclamação da República a projectos mais radicais de alteração da ordem sócioeconómica, que podem ir do Socialismo moderado à utopia anarquista mais extrema. Poderíamos acompanhar passo a passo a forma como os acontecimentos políticos da I República vão sendo tratados por este olhar crescentemente crítico dos letristas do terreno, cada vez numa postura de maior distanciação em relação àquilo que vêem como a frustração no terreno das promessas de justiça social do ideal republicano. Procurei já fazê-lo eu

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próprio em outro trabalho, a título paradigmático, no que respeita à evolução do sentimento popular face à participação portuguesa na I Grande Guerra tal como este foi sendo expresso na lírica fadista50 nas suas diversas fases. E bastará citar, por todos, como exemplo da percepção pela população em geral do clima de agitação política permanente do novo regime o celebérrimo Fado do 31, cantado por Maria Vitória na revista O 31, de 1913, em que a memória do 31 de Janeiro de 1891 como símbolo de balbúrdia e violência nas ruas é evocada a pretexto dos pequenos conflitos partidários que estalam diariamente entre as várias facções republicanas desavindas. O Fado político, que de um modo geral anunciara e saudara o novo regime, trata agora a sua evolução com um desapego que se vai agravando até se converter numa hostilidade latente. E se esse sentimento se expressa maioritariamente por uma postura de crítica de esquerda, ligada de forma mais ou menos orgânica ao movimento socialista, anarquista e, num segundo momento, também comunista (em Dezembro de 1923 Armandinho e Georgino de Sousa tocarão, por exemplo, para o delegado da III Internacional ao Primeiro Congresso do recém-fundado Partido Comunista Português, Jules Humbert-Droz), ao longo da década de 1920 começamos a encontrar expressões de um descontentamento que aposta, pelo contrário, na opção por um projecto autoritário que se proponha restaurar pela força a ordem e as finanças públicas. Será o caso da inegável corrente de forte apoio popular à experiência ditatorial populista do Sidonismo, que em 1922 encontrará, por exemplo, eco pela pena inesperada de um poeta que até há pouco tempo fora muito próximo de Avelino de Sousa e do movimento operário, Artur Arriegas: O Doutor Sidonio Pais, Que morreu qual Nazareno, “Foi homem grande demais P’ra um país tão pequeno!” Com um rasgo de energia Fez uma revolução, Foi um herói da Nação Por demonstrar valentia! Com alma, com ousadia, Fez prodígios divinais! Ao ver famintos mortais Socorria-os com presteza; Foi pai de toda a pobreza O Doutor Sidonio Pais. Porem, uma turba irada Não o deixou continuar, Não o quiz acompanhar N’essa bendita cruzada. Ele, afrontando a cambada,

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Cf. Nota 14.


Pálido, altivo, sereno, Nunca perdeu o terreno E a crença do Redentor; Foi um mártir sofredor Que morreu qual Nazareno! Belo espelho de bondade, Um génio proeminente, Foi o grande Presidente Vítima da Humanidade! Quem é que chorar não há-de Ouvindo nas catedrais, Tristonhos dobres finais Que nos fazem confranger? Até parecem dizer: Foi homem grande demais! Também nós, os que cantamos O triste fado corrido, Com o peito confrangido, Seu triste fim lastimamos! É facil que não o esqueçamos, Cantando um fadinho ameno, Já que a Vida é um veneno, Em que a nossa alma se expande; O Fado, também é grande P’ra um país tão pequeno.51

Esta noção de “bendita cruzada” do “pai da pobreza”, “afrontando a cambada” em defesa dos “famintos mortais” representa de forma bem reveladora um sentimento de insatisfação popular que em boa parte tende agora a deslocar-se da contestação revolucionária socializante para a esperança numa alternativa populista autoritária que capitalize no refúgio simbólico em valores conservadores de natureza nacionalista ou religiosa. O sucesso de movimentos político-ideológicos de fundo de grande impacte nacional como a Cruzada Nun’Álvares, o entusiasmo popular inegável que vemos envolver o avanço das tropas golpistas do 28 de Maio em direcção a Lisboa, e o movimento de massas criado, na sua primeira fase de fervor ideológico mais assumidamente fascizante, pela implantação do Estado Novo vão beber a esse estado de espírito cuja penetração no imaginário popular o Fado, mais uma vez, não deixará de deixar transparecer.

51

Artur Arriegas, A Trova Portuguesa. Lisboa: Barateira, 1922, p. 65.

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A Trova Portugueza : Fados e Canções, Artur Arriegas Lisboa, Livraria Barateira, 1922 Colecção Francisco Mendes

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Mas entretanto a legislação da Ditadura Militar, logo em 1926-27, com a imposição da Censura prévia obrigatória de todos os textos cantados, a obrigatoriedade do licenciamento profissional dos intérpretes, a regulamentação estrita dos espaços performativos e a perseguição policial severa a todos os sinais de resistência ao novo regime, terá um impacte completamente reformatador da tradição lírica do Fado e da sua função de veículo livre de uma ideologia política popular expressamente assumida. 52O género não deixará por certo de saber encontrar novas modalidades de expressão dessa postura de crítica política, mas agora já num registo necessariamente discreto, cauteloso, disfarçado, insinuante e por vezes malicioso, recorrendo ao duplo sentido e à sugestão encapotada. Para trás fica uma herança de mais de meio século de “propaganda pela trova” cuja memória se tentou apagar pelo silêncio da censura e da mitificação histórica retrospectiva mas cujo reconhecimento, levantamento e estudo têm de ser hoje condições essenciais para a compreensão não só da história do movimento operário e do ideal republicano, no seu todo, mas também da própria história do Fado.

52

Cf. Rui Vieira Nery, Para uma Histórida do Fado, “O impacte normativo da Ditadura”, pp. 188-194.

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Ilustração de Luís Carvalhal (pormenor)


O MAIS PORTUGUÊS DOS QUADROS A ÓLEO Sara Pereira

Não abandone a sua rebeca porque creio, mais que nunca, que é a arte que muitas vezes nos suaviza esta vida tão cheia de contrariedades. José Malhoa, 16 de Abril de 19001

1

- José Malhoa cit. por LEANDRO, Sandra, José Malhoa, (Direcção de Lourenço Pereira Coutinho) Bolonha, Itália, Arting, Editores, FMR, 2008, p. 33.


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O Fado, 1909 José Malhoa Óleo sobre tela 86 x 107 cm Colecção Particular

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Illustração Portugueza 7 de Março de 1910 Hemeroteca Municipal de Lisboa

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Nos alvores do século XX o fado irrompe na pintura pela mão de José Malhoa fixando um modelo popular, urbano e marialva que, consolidando a via mais naturalista de tratamento do tema, desde logo assumiu um lugar de absoluta centralidade na iconografia do género. A extensa fortuna crítica de José Malhoa tornou sobejamente conhecidas as peripécias que pontuaram a produção da obra O Fado, que envolveu a colaboração de modelos reais - o fadista Amâncio e a Adelaide da Facada – com quem Malhoa terá discutido particularidades iconográficas e consentimentos de poses2- e que acabariam, ainda que fortuitamente, por participar, com mestre Malhoa, pintor fino e consagrado, na fundação de uma identidade imagética do fado. Retomando o pensamento de Richard Leppert3, a representação visual da música enquanto actividade socializada permitirá iluminar contextos de criação e fruição, nomeadamente no que concerne à percepção, consciente ou inconsciente, que um grupo ou sociedade tem do estatuto cultural da música e dos valores intrínsecos ao seu consumo. Neste sentido, através da obra de arte, entendendo-a conceptualmente como testemunho aberto e global, dotado de perene contemporaneidade e sempre capaz de suscitar inúmeras dimensões de leitura, poderemos iluminar mentalidades, construções ideológicas elaboradas em torno da canção urbana, programas imagéticos, contextos de produção artística, comportamentos de mercado e hábitos de consumo, motivações e constrangimentos de ordem ideológica, simbólica e estética. Paralelamente e à luz da representação visual do Fado, poderemos destrinçar o percurso de evolução e disseminação da canção urbana, desde a sua consagração popular, em meados do século XIX, na esfera de um primeiro enraizamento bairrista4, até aos nossos dias. Fruto da consagração popular do fado, a representação plástica do tema sucedeu no quadro de uma vincada diversidade de disciplinas artísticas, dimensionando-se num volumoso e multifacetado corpus artístico de representações do tema, integrando obras de fulgor académico bem como trabalhos de carácter mais periférico, tantas vezes precursores de uma gramática plástica legitimadora do próprio género performativo5. No decurso desta viagem das formas e atentando especificamente nas retomas iconográficas e sonoras presentes no diálogo aberto que se desenhou entre a arte performativa e as artes visuais ao longo do Século XX, a obra de José Malhoa ocupa indiscutivelmente um lugar central na construção de uma identidade imagética do fado na sua dimensão transmemorial6. Desde a Geração de 707, fixavam-se, na nossa literatura, alguns dos posicionamentos críticos do fado que haveriam de consolidar-se, ao longo da primeira metade do século XX, num denominador comum de hostilidade à canção urbana de Lisboa, transversal aos diferentes sectores ideológicos e que a literatura e as artes plásticas tantas vezes partilharam. Dimensionando-se em diferentes momentos da história do fado, estes discursos críticos estruturaram-se a partir de

SILVA, Raquel Henriques, “O Fado em Pintura”, Lion, Maurice, Pallu, Franceses tipicamente Portugueses, Lisboa, Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, 2003, pp. 145-162.

2

LEPPERT, Richard, Music and Image: Domesticity, Ideology and Socio-cultural Formation in the Eighteenth-Century England, Cambridge University Press, 1989. Veja-se a fina periodização de Rui Vieira Nery, no fundamental estudo Para Uma História do Fado, Lisboa, Público, Corda Seca, 2004, pp. 62-96.

3 4

5 Cfr. PEREIRA, Sara, “Ecos do Silêncio: Para um Estudo Iconológico do Fado”, in Aprendizes de Feiticeiro, Investigações de Doutoramento dos cursos do Instituto de História da Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 8 e 9 de Maio de 2008, Lisboa, Edições Colibri, 2009, pp. 223-238. Sobre a representação do fado nas artes visuais veja-se ainda o pioneiro levantamento de Ruben de Carvalho em Um Século de Fado, Alfragide, Ediclube, 1999; as publicações Humores ao Fado e à Guitarra (Coordenação Osvaldo Sousa), Lisboa, Museu do Fado, 2001; O Fado por Stuart Carvalhais (Coordenação Sara Pereira), Museu do Fado, Lisboa, 2005. 6

SERRÃO, Vítor, A Trans-Memória das Imagens. Estudos Iconológicos de Pintura Portuguesa (Sécs XVI-XVIII), Lisboa, Cosmos, 2007.

7

Veja-se o minucioso levantamento de Rui Vieira Nery, em Para Uma História do Fado, Lisboa, Público, Corda Seca, 2004, pp. 140-145.

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motivações diversas, quer, formulando, num primeiro momento, um distanciamento crítico da marginalidade associada aos contextos de performação fadista – posicionamento profusamente ilustrado, entre outros, por Eça de Queiroz, Fialho de Almeida ou Ramalho Ortigão8 – quer por força de constrangimentos de ordem ideológica que se prolongam durante todo o século XX – dos quais constituem bons exemplos o repto de António Arroio9, em 1909, as célebres palestras de Luiz Moita difundidas em 1936, na Emissora Nacional e logo compiladas no livro “O Fado, Canção de Vencidos” ou os posicionamentos críticos de António Osório em 197410. Entretecida num diálogo estreito com a evolução da cidade que o viu nascer, a história do fado é também a história de todos aqueles que o recriaram noutros domínios da criação artística e que nos legaram testemunhos plenos de valor memorial. Quiseram os fados que José Malhoa, o mais português dos pintores fundasse, nos alvores do século XX, uma identidade imagética até hoje indissociável da canção urbana de Lisboa. José Vital Branco Malhoa11 nasce a 28 de Abril de 1855 na Travessa de S. Sebastião, nas Caldas da Rainha, segundo filho de Ana Clemência e de Joaquim Malhoa. Entre 1870 e 1873 frequenta a Real Academia de Belas Artes, aprendendo designadamente, Desenho Antigo com Victor Bastos, Pintura de Paisagem com Tomás de Anunciação e Desenho de Modelo ao Vivo com Miguel Ângelo Lupi. Recusada a sua candidatura a uma bolsa no estrangeiro para Pintura de Paisagem por dois anos consecutivos (em 1874 e 1875) acabaria por empregar-se como caixeiro na loja de confecções do irmão Joaquim, na Rua Nova do Almada, em Lisboa. Daquele estabelecimento só sairia em 1881, mediante a crítica da clientela que alegava o desperdício do talento do pintor na actividade de caixeiro. José Malhoa passaria desde então, a dedicar-se exclusivamente à criação artística, obtendo amplo reconhecimento com a exposição da obra Seara Invadida em Madrid. Já em 1879 porém, um dos seus primeiros quadros de costumes - Quer a Sorte? Vendedeira de Cautelas - era premiado com a Medalha de Prata na Exposição Portuguesa no Rio de Janeiro, cedo anunciando um trajecto de consagração. Em 1881 realizava para a revista O Ocidente uma série de dez desenhos sobre a inundação da Ribeira de Santarém encomenda consensualmente reconhecida pelos seus biógrafos como o primeiro dos trabalhos remunerados de José Malhoa12. Registando documentalmente o ocorrido, cumpria-se a credibilidade do relato junto do público, na linha das práticas mais correntes da imprensa do século XIX, onde artistas e gravadores procuravam registar com a maior verosimilhança os factos que constituíam a notícia. Sobre este talento peculiar de Malhoa para captar um instantâneo do quotidiano haveria de reconhecer um crítico, anos passados sobre a publicação em Portugal, pela casa Emílio Biel, dos álbuns de fotografias de monumentos, costumes e paisagens: Com todos os segredos da paleta e uma importante prática do difícil desenho, elle fixa o typo observado com a naturalidade surpreendida. É como se kodackizasse…13 8 “Porque se não prendem os fadistas todos?” indagava Ramalho Ortigão em 1878; Veja-se “O fadista”, As Farpas. O País e a Sociedade Portuguesa, Tomo VII; Lisboa, Livraria Clássica, 1948, p. 173. 9 Referimo-nos ao apelo, sobejamente conhecido, “Rapazes, não cantem o fado!” de António Arroio, em 1909; Veja-se O Canto Coral e sua Função Social, Coimbra, França Amado, 1909, pp. 58. 10

António Osório, A Mitologia Fadista, Livros Horizonte, Lisboa, 1974.

11

Da extensa fortuna crítica do pintor, veja-se o abrangente levantamento de Paulo Henriques, “José Malhoa”, Colecção Pintura Portuguesa do Séc. XIX, Direcção de Raquel Henriques da Silva, Edições INAPA, Lisboa, 2002 12

Idem, p. 9.

13

Idem, pp. 18-19

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Membro fundador do Grupo do Leão, Malhoa participaria no mesmo ano com Cristino da Silva, Moura Girão, Cipriano Martins, Henrique Pinto, António Ramalho, Silva Porto, João Vaz e Rodrigues Vieira na Iª Exposição de Quadros Modernos, realizada na Sociedade de Geografia de Lisboa. Inaugurava-se então um percurso de consagração e reconhecimento consensual da arte de Malhoa, constante ao longo dos diferentes ciclos políticos nacionais, desde o final agonizante do Regime Monárquico, passando pelo eclodir da República, até à afirmação do Estado Novo, como bem salientou Paulo Henriques. Iniciando-se na pintura decorativa de espaços públicos como o Real Conservatório de Lisboa ou o Museu Militar, passando pela arte do retrato - em encomendas sucessivas não só da Casa Real e da nobreza mas também as decorrentes da afirmação de novas classes sociais que emergiram durante a República - fixando os costumes populares numa iconografia do quotidiano, Malhoa consolidaria uma imagética popular numa urgência sentida em Portugal nas últimas décadas do século XIX de definir uma pintura nacional e de criar necessárias e sólidas referências à nossa cultura artística. 14 A primeira incursão da figura do fadista nas artes visuais ficou a dever-se a Raphael Bordallo Pinheiro em 1872, numa litografia15 representando dois fadistas, logo reproduzida no jornal El Mundo Cómico16 e publicada no álbum A Gravura de Madeira em Portugal de J. Pedrozo. No último quartel do século XIX, época em que surge pela primeira vez nas artes visuais, o fado ocupava ainda uma condição marginal, assumindo-se gradualmente como um importante veículo de memória e cidadania fundamental à consolidação do movimento operário - pela consciencialização social intrínseca aos repertórios cantados – ou mesmo pela propagação do ideário republicano emergente num processo que Rui Vieira Nery nestas páginas classificou já de Propaganda pela Trova. Manipulado pela caricatura e pelo humor gráfico, o fado será neste contexto, eficazmente politizado, correspondendo a este período as utilizações recorrentes da figura da mítica cantadeira Maria Severa Onofriana (1820-1846), do mendigo cego tocador, ou da manipulação desajeitada da guitarra portuguesa pelo Zé Povinho que Raphael Bordallo Pinheiro trazia à estampa em 1875. De facto, e para além de um corpus imagético que poderá rastrear os antecedentes musicais e coreográficos do fado – com incidência na ilustração dos relatos de viajantes dos séculos XVIII e XIX – ou das referências iconográficas documentando a execução da guitarra portuguesa – e onde se incluem, designadamente, as telas dos alvores oitocentistas da autoria de Morgado de Setúbal ou os desenhos aguarelados, mais tardios, de E. J. Maia - os testemunhos mais significativos num recenseamento imagético do fado nas artes visuais do século XIX apontam para a preponderância das ilustrações no universo editorial, particularmente para a utilização do fado pela caricatura e pelo humor gráfico. Com génese no início do século XIX, será sobretudo a partir de 1847, através do “Suplemento Burlesco” do jornal O Patriota que o humor gráfico se desenvolverá, de modo mais sistemático, entre nós, testemunhando e parodiando o quotidiano político, social, cultural e artístico.

14

Idem, p. 167.

15

Typos de Lisboa – Os Fadistas, colecção do Museu Rafael Bordalo Pinheiro, com o Invº Nº. MRBP GRA 0230, actualmente em exposição no Museu do Fado.

16

El Mundo Cómico, 2ª série, nº 48 de 1872.

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Typos de Lisboa – Os Fadistas, 1872 Raphael Bordallo Pinheiro Gravura 260 x 210 mm Colecção Museu Rafael Bordalo Pinheiro Câmara Municipal de Lisboa

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Na gravura a buril de 1872 Bordallo Pinheiro registou documentalmente a pose e os trejeitos das figuras do tocador e do cantador como aliás o atesta a descrição de Pinto de Carvalho da farpela do fadista a partir de 1860. Ali reencontramos a jaqueta de alamares, a gravata com as pontas caídas, a cinta, para além de outros pormenores corroborando a pose e o traje das figuras de Bordallo: Alguns traziam a jaqueta ao ombro esquerdo, a fim de terem livre o braço direito e poderem defender-se e aparar os golpes com ela. A moda era o chapéu redondo ou o barrete. Uns estilavam o cabelo cortado até ao meio da cabeça e crescido adiante para fazer belezas; outros estilavam-no apertado à banda, rapado no pescoço e com belezas na testa. 17 Acompanhando um período de gradual consagração do fado, em círculos sociais cada vez mais diversificados, o legado de Bordallo Pinheiro integraria um assinalável conjunto de representações alusivas ao tema – quer através de retrato naturalista dos fadistas do seu tempo, quer manipulando o género para parodiar diferentes episódios da conturbada vida política nacional. Na impossibilidade de rastrearmos a totalidades destes testemunhos nestas páginas atentaremos, ainda que sumariamente, em alguns destes trabalhos. Em 1876 no seu Album de Caricaturas Bordallo consagrava ao fadista uma página própria intitulada “Phrases e Anexins da Língua Portugueza” exemplificando diferentes anexins da língua: Largar uma piada; Dois pobres a uma porta; Dá Deus nozes a quem não tem dentes; A mulher de bom recato, enche a casa até ao telhado; Também aqui a verosimilhança do traje do fadista é corroborada pela versão fidedigna de Tinop quando revela: o último Petrónio do fadistismo trajava jaqueta de alamares, calças de quadradinhos brancos e pretos estranguladas no joelho.18 Em 1880, Bordallo retomaria o tema numa magnífica caricatura intitulada “No Bairro Alto da Política - Scena de sedução”19 recorrendo ao fado para parodiar o contexto político e social, designadamente através de um diálogo ficcionado entre os progressistas de Mariano de Carvalho e o rei D. Luís: Torradas e mais torradas, Por cima café limão, Nós vimos aqui senhor, Orar sim, pedir perdão. -Ora viva lá, seu gajo Você tem lérias em barda, Se eu aceito os seus conselhos, Inda hoje usava albarda - De tantas descomposturas Nossas desculpas aceite Torradas e mais torradas, 17

CARVALHO, Pinto de (Tinop) História do Fado, Publicações D. Quixote, Col. Portugal de Perto, Lisboa, 2004, pp. 58-59.

18

CARVALHO, Pinto de (Tinop) História do Fado, Publicações D. Quixote, Col. Portugal de Perto, Lisboa, 2004, p. 58.

19

António Maria de 7 de Janeiro de 1880

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Por cima, café com leite. - Por cima café limão, Com você vae tudo raso Enquanto assim me defendem Eu vou amolando o caso De novo em 1882, Bordallo recorrerá ao fado para fazer sátira em “A Attitude do Dono da Casa”20 numa alusão às diferentes facções liberais e ao contributo destas para a agonia gradual do regime monárquico. Pela primeira vez, o Zé Povinho figurava executando a guitarra portuguesa - a partitura do Hymno da Restauração - na sua natural passividade. A um canto, muitas outras partituras disponíveis - Pescarias do Algarve, Patuleia, Pinos Puentes, O Fandango, Campanha da Península - reiteravam a sátira à instrumentalização popular pelo poder político.

20

António Maria de 17 de Dezembro de 1882

No Bairro Alto da Política Raphael Bordallo Pinheiro António Maria, 1 de Julho de 1880

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Em 1883, porém, a voz crítica de Bordallo assumia maior contundência numa composição em que os dignatários da política nacional se vestiam como fadistas. No trabalho intitulado “O Fado da Política”21 vemos Mariano de Carvalho, Fontes Pereira de Melo e Anselmo José Braancamp batendo o corridinho ou o rigoroso com o Zé enquanto a inscrição vem ampliar, o tom satírico: Toda a gente bate o fado, Todos fazem escovinhas, Mas é sempre o Zé, coitado, Quem apanha as pancadinhas… Num outro trabalho22 Bordallo manifestava a sua preferência pelas guitarradas parodiando a carestia dos ingressos para assistir à apresentação de uma cantora lírica: Toma lá dez libras para ires ouvir a Patti e eu cá fico com dez réis para ouvir o Gaspar da Viola. Também Columbano e Tinop haveriam de imortalizar a figura do popular músico amador, o primeiro num desenho a carvão e o segundo referenciando-o nos anais da história do fado: Os guitarristas trovadores, vagueando à la buena de Dios pelas ruas de Lisboa, são antigos (…) o último desses cantadores afamados das ruas lisboetas foi o Gaspar da Viola, um virtuose da mendicidade...23 Em 1894 - atestando a consagração popular do género à medida que se aproximava o dealbar do século - Raphael retomaria o tema do fado no programa artístico dos azulejos da Tabacaria Mónaco, integrando na composição um conjunto de rãs, de feição antropomórfica, em pose de grande expressividade fadista. Numa alusão à apropriação do fado pela comunidade estudantil de Coimbra também Leal da Câmara, numa obra intitulada A rua24, parodiava: Capa, guitarra, tuna, pândega … E a lógica que vá para o Diabo que a carregue… A pretexto da publicação do romance A Severa de Júlio Dantas, em 1901 – obra que condicionaria decisivamente a mitologia elaborada em torno da figura da cantadeira meretriz Maria Severa Onofriana - Raphael Bordallo Pinheiro opera um pastiche da figura da cantadeira que aqui representa a Constituição, num curioso trabalho onde pode ler-se: Chorae fadistas chorae que a Severa já morreu!25 Sobre Bordallo diz-nos Saavedra Machado no jornal A Guitarra de Portugal26: o fadista podia, como tantos maus políticos, viver de meros expedientes, embora não tivesse onde cair morto; podia carpir os desalentos dum vegetar desgraçado; expandir as suas dores em cantos dolentes e apaixonados; mas o seu trajo, o seu tipo, toda a sua bamboleante exterioridade, enfim amedrontavam e afastavam os burgueses cheios de preconceitos (…) Bordallo, porém, não viu apenas no fadista – como poderá julgar-se por alguns croquis em que o apresenta munido de uma navalha - um desordeiro, um criminoso vulgar, um madraço, ou um furioso desalentado. Mais frequentemente, e até nos melhores trabalhos que sobre o fado publicou, desenhava-o de preferência a tocar, a cantar, a dançar. Viu nele, assim, também o homem do povo que a fatalidade marcou talvez impiedosamente, mas que sabia suavizar as suas mágoas cantando ao som das cordas duma guitarra; viu nele uma alma algo sensível de poeta e scismador... 21

António Maria de 5 de Abril de 1883

22

“Zé Povinho ao Capitalista Machucho”, Pontos nos ii de 1 de Abril de 1886

23

CARVALHO, Pinto de (Tinop) História do Fado, Publicações D. Quixote, Colecção Portugal de Perto, Lisboa, 2004, p.251.

24

D. Quixote, a 4 de Agosto de 1896

25

A Paródia de 8 de Fevereiro de 1901

26

A Guitarra de Portugal, Ano V, nº 109, 12 de Março de 1927

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O Fado da Política Raphael Bordallo Pinheiro António Maria, 5 de Abril de 1883

Se a Geração de 70, como vimos, desde logo manifestou uma certa iconoclastia em relação ao fado, o contexto artístico das décadas seguintes assistiria à emergência do naturalismo pictórico, que romperia definitivamente com a simbólica convencional de inspiração greco-latina à medida que promovia uma arte para a classe média, facultando, no contexto da sua recepção crítica, uma identificação imediata do significado intrínseco de cada obra. Estendendo-se também ao campo literário, o naturalismo potenciava o efeito de realismo pictórico, consagrando a pintura de género e a composição paisagística de Norte a Sul do País, à semelhança do que sucedia em Inglaterra, França ou Alemanha, num processo que Eric Hobsbawm caracterizou como o da Invenção da Tradição27. De facto para a Geração de 1890 - de onde sairiam os lideres da Republica - as “ideias modernas” faziam-se acompanhar do pressuposto da existência de uma “realidade portuguesa” uma forma de vida que correspondia exactamente ao modo de ser dos portugueses e que se perdera quando estes começaram a imitar os outros burgueses europeus.28 Espelho deste posicionamento é o repto lançado aos artistas por Alberto Oliveira em 1894, aterrado pela possibilidade, mais ou menos remota, de uma eventual perda da identidade nacional: Amanhã, de aqui a dez ou cinquenta anos, talvez já as serranias da Beira estejam povoadas de hotéis ingleses e as altivas florestas portuguesas cheias de árvores veneradas como velhos frades, se achem terraplanados e penteados bosques de chaminés e fábricas 29 Paralelamente, e desde a década de 1880 desdobrava-se a atenção consagrada aos Museus Nacionais: o Museu de BelasArtes e Arqueologia, actual Museu de Arte Antiga, abria portas em 1884 - depois de alterações estruturais profundas - o 27

Veja-se o capítulo “Inventing Tradition” em HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence, The Invention of Tradition, Cambridge University Press, 1992, pp. 1-14.

28

Cfr. RAMOS, Rui, “A Segunda Fundação (1890-1926)”, História de Portugal (Direcção de José Mattoso), Volume VI, Círculo de Leitores, 1994, Lisboa, pp. 574 e seguintes.

29

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OLIVEIRA, Alberto, “Palavras Loucas”, França Amado Editor, 1894, p.214.


Museu Etnográfico em 1893, o Museu Militar em 1895, o Museu de Arte Sacra de S. Roque e o Museu dos Coches Reais em 1905. Anos mais tarde, seria a República a multiplicar os Museus pelo País, ciente do papel central da arte na educação dos meios populares. Nas artes plásticas, por influência de Silva Porto, o líder do “Grupo do Leão”, que se deixara contaminar em Paris pela pintura naturalista, crescia o gosto pela pintura paisagística de Norte a Sul do País, que constituía motivo de procura crescente entre a Família Real e a burguesia de Lisboa e do Porto: Em 1893 Silva Porto vende uma grande tela por 700 mil reis. Para o público com menos posses trabalhava formatos médios (35 a 70 mil réis) e pequenos (15 a 30 mil reis) Era uma pequena indústria. Porto repetia as telas mais procuradas, consagradas e celebrizadas pelas reproduções em jornais e revistas.30 A partir da figura tutelar de Silva Porto impunha-se então um novo programa artístico através de instituições como o Grémio Artístico (1891) ou a Sociedade Nacional de Belas Artes (1901). O entendimento imediato das obras suscitado pela nova ortodoxia pictórica – despojada das referências eruditas da pintura clássica – ditou o seu consumo alargado por toda uma classe média e também pelo universo de amadores que a podiam praticar sobretudo através da aguarela, um meio técnica e financeiramente mais acessível do que o óleo. Esta nova gramática plástica seria ainda largamente propagada, nas décadas seguintes, pelos discípulos de Porto, Reis e Malhoa, agrupados em 1911 no Grupo Ar Livre e em 1927 no Grupo Silva Porto. É neste contexto que o fado irrompe na pintura pelo traço de José Malhoa, em 1909 naquela que se assumiria como a mais emblemática representação do tema no contexto da arte portuguesa. A partir da representação de modelos reais encontrados na Mouraria, a que correspondem um fadista de nome Amâncio e a sua companheira Adelaide da Facada se fundaria um modelo iconográfico ao qual a canção lisboeta se associaria definitivamente. Efectivamente e como veremos, esta obra seria manipulada, até aos nossos dias, por artistas diversos, sobretudo pela caricatura e humor gráfico, numa primeira fase, que a utilizariam de forma recorrente em obras de vincado pendor satírico. A obra O Fado é seguramente a mais recorrente peça do imaginário iconográfico fadista e também aquela que maior número de apropriações sofreu ao longo da história da arte portuguesa, desde a caricatura de imprensa do primeiro quartel do séc. XX, aos nossos dias. O historiador Rui Ramos31 desvendou as peripécias que envolveram a génese do quadro, nas palavras de José Malhoa: por uma tarde parada, como esta, de olhos semicerrados, pensava eu no meu atelier, em planos vagos a realizar. Uma guitarra sobre uma banca, fez-me meditar nisto: quem teria feito o primeiro fado? Embevecido nesse sonho, fazendo passar ante meus olhos todas as Severas, de cigarro na boca e perna traçada, cantando a melancólica canção das perdidas. Feitos os primeiros esboços, Malhoa andou durante quatro meses pelos bairros populares de Alfama, Bairro Alto e Mouraria vendo aquela vida que tão necessária era para o meu trabalho e depois atirei-me ao quadro. Trabalhou ainda com modelos profissionais porém, como o próprio confessaria: esses modelos não me davam nada do que eu sentia e via no natural. O amigo e fotógrafo Júlio Novais prontificou-se a introduzi-lo na boémia fadista e, na Tendinha do Rossio, entre os cocheiros da Praça, Malhoa viria a conhecer um fadista a valer: o Amâncio. Ao fadista Amâncio, confessava Malhoa, em 1915, devo eu o ter pintado o meu quadro.

30

Veja-se RAMOS, Rui, “A Segunda Fundação (1890-1926)”, História de Portugal (Direcção de José Mattoso), Volume VI, Círculo de Leitores, 1994, Lisboa, pp. 574 e seguintes.

31

Idem, pp. 574 e seguintes; Tomamos as citações do autor de uma entrevista de José Malhoa ao jornal A Luta, de 20 de Março de 1915.

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Adelaide (estudo para O Fado) José Malhoa Óleo sobre tela 34 x 44 cm Colecção Particular

Adelaide (estudo para O Fado) José Malhoa Óleo sobre tela 49 x 65 cm Colecção Particular 78


Estudo para O Fado, 1908 José Malhoa Óleo sobre madeira 22 x 26 cm Colecção Particular 79


Criticando as primeiras versões trabalhadas com modelos profissionais Amâncio ter-lhe-ia explicado:isso não é um fadista. Nós cá usamos o cabelo cortado à meia-laranja; o atacador é até à bica e quando cantamos, sem olhar para quem, é preciso que disfarçadamente se veja, no bolso da calça da perna esquerda, o cabo da navalha. Depois, arranjou-lhe outro modelo: a Adelaide da Facada quinté parece uma Severa. Terá sido assim na companhia de Amâncio, a quem se atribuía o cognome de o pintor que Malhoa fez as primeiras incursões na Rua do Capelão, rua tão notória que Malhoa, completamente deslocado na paisagem, foi imediatamente interceptado pelo polícia de ronda, a quem teve de explicar que não era o deboche, mas a arte que lá o levava. No albergue de Adelaide uma bela mulher, de seio rijo, braços esculturais, rosto interessante, desfeado apenas na face esquerda pelo traço de uma grande facada, da orelha à boca Malhoa trabalhou durante trinta e cinco dias examinando detidamente esse interior: a meia cómoda com a sua toalha de ramagem vermelha, e por cima o clássico croché; os santinhos na parede; o vaso de manjerico com o seu cravo de papel; a bola suja de pó de arroz, o pequeno toucador do espelho com a gaveta aberta e sobre ele o pente de alisar, os cigarros, a garrafa de vinho32. Era então apelidado pelas gentes do bairro como o pintor fino em oposição ao fadistão Amâncio, cuja actividade marginal lhe valera o epíteto de o pintor. Amâncio recebia 6 vinténs por sessão, garantindo assim a presença de Adelaide. Porém, logo que se encontravam a sós as agressões culminavam numa detenção no Governo Civil onde Malhoa se deslocava frequentemente para libertar os seus modelos. Findos os primeiros estudos, Amâncio levou a Adelaide às Avenidas Novas para ver o primeiro carvão do quadro: Amâncio, aquilo já parece quando a gente estava lá em casa na paródia. Malhoa passou ainda cerca de onze meses a trabalhar no quadro, mas ficou satisfeito como confessaria em entrevista: Não há nessa tela apenas um fadista e uma rameira. Há ali uma mulher encantada ao ouvir o seu melhor afecto, que lhe canta ao coração33. Está por cumprir um recenseamento exaustivo dos estudos prévios que presidiram à criação da obra O Fado. Para além dos estudos em exposição, há notícia no catálogo das leiloeiras Palácio do Correio Velho e Leiria e Nascimento da licitação de vários estudos das figuras de Amâncio e Adelaide34, que não foi possível localizar para a presente exposição. A génese da obra pode rastrear-se até 1908, data de um pioneiro estudo a óleo sobre madeira35, onde pode verificar-se a introdução de uma terceira figura na composição, porventura uma alcoviteira. Sandra Leandro avança com a probabilidade intencional de criação de um fado mais longo: um tríptico passando pelas fases de sedução, alcouce e desenlace.36 No estudo prévio de 1908, Malhoa pintou Adelaide com a alça caída e a saia branca. Nas versões definitivas (1909 e 1910) o seio cobriu-se e o traje branco foi substituído por uma saia vermelha. Na versão de 1909 verifica-se uma maior vivaci-

32

Idem, pp. 574 e seguintes;

33

Idem, pp. 574 e seguintes;

34

Vejam-se os catálogos das leiloeiras Palácio do Correio Velho e Leiria e Nascimento: Amâncio, óleo sobre tela, 59 x 48 cm, pela Leiloeira Palácio do Correio Velho, a 14 de Dezembro de 2000; Adelaide, óleo sobre tela, 50, 5 x 65, 5 cm, pela Leiloeira Leiria e Nascimento, a 15 de Maio de 2001; Amâncio, óleo sobre tela colada sobre madeira, 42 x 32, 5 cm pela Leiloeira Leiria e Nascimento a 13 de Dezembro de 2005; No verso deste último estudo consta a seguinte inscrição: “Exmo Senhor envio a cabeça de estudo para “O Fado” que tem a curiosidade de o adquirir. Indicando a guitarra tapei a tecla que ainda se via e parece-me que a cabeça ganhou. Manifestando-lhe mais uma vez os meus agradecimentos (….) com a mais alta consideração, José Malhoa, Lisboa, 9 de Fevereiro de 1916.”A datação deste estudo foi provavelmente inscrita aquando da venda do mesmo. Veja-se ainda o fundamental catálogo José Malhoa, (Direcção de Lourenço Pereira Coutinho) Bolonha, Itália, Arting Editores, FMR, 2008.

35

Estudo para O Fado, 1908, óleo sobre madeira, 22 x 26 cm, colecção particular.

36

LEANDRO, Sandra, socorrendo-se dos estudos de Manuel de Sousa Pinto e Mathilde Tomaz do Couto, op.cit., p.86.

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dade do pincel de Malhoa – desde logo na figura de Amâncio - bem como uma profusão de elementos pintados, nomeadamente, nos braços de Adelaide - que ostentam várias tatuagens - e nos laçarotes coloridos que compõem a blusa. Ainda na versão datada de 1909, Adelaide ostenta no braço esquerdo a tatuagem de dois A’s entrelaçados (Adelaide e Amâncio) junto a dois corações e o decote é mais generoso. O exame radiográfico promovido pelo Instituto Português de Conservação e Restauro37 permitiu perceber que este arrojo foi corrigido na conclusão da segunda versão. Em ambas as versões porém, é possível observar a tatuagem criminal dos cinco pontos na mão direita de Adelaide. Vale a pena determo-nos na profusão de elementos decorativos neste instantâneo do albergue de Adelaide: o toucador com o espelho partido – atributo clássico da iconografia representando a virtude perdida – e onde podemos descobrir o reflexo de uma cadeira junto à janela; o napperon de crochet sobre uma toalha de ramagens cobrindo a cómoda; as gravuras na parede, nomeadamente a imagem do Senhor dos Passos da Graça – então venerado em procissão nesta zona da cidade –de S. Lázaro – protegendo da peste, da fome e da guerra – e ainda a imagem de um toureiro sobreposta a um leque encimado por duas bandarilhas; o vaso de mangerico com um cravo e uma quadra; o candeeiro a petróleo, as beatas espalhadas pelo chão, a garrafa de vinho e outros elementos reiterando a dimensão de intimidade, já sugerida na pose e na languidez de Adelaide: o pente, a borla de pó de arroz, a gaveta do toucador aberta, o lavatório sobre o qual pende uma toalha e finalmente a cortina vermelha levantada deixando antever o quarto de Adelaide. Diz-nos Sandra Leandro que o candeeiro de lata, comprado a Emília Rato, uma vizinha de Adelaide e a cortina vermelha do quarto, que o pintor adquiriu na Rua da Regueira, em Alfama, foram os únicos objectos que não se encontravam cenário que era a casa e a sina da mulher desgraçada.38 Testemunho verista, O Fado ilude-nos na sua planimetria, transportando-nos para o interior do albergue de Adelaide onde a cena se desenrola ao nível do nosso olhar. Em ambas as versões, os eixos, as diagonais e os ortogonais da tela, se cruzam junto ao cotovelo de Adelaide, esquecido sobre a mesa. A luz naturalista que banha o corpo de Adelaide vai escurecendo à medida que nos aproximamos do lado direito da composição, sobretudo na versão de 1910, que denota um maior tratamento fisionómico das figuras. De facto, também o tratamento lumínico vem consolidar, sobretudo na versão de 1910, um realismo de feição mimética – diferença assinalável entre ambas as versões, nomeadamente na representação anatómica ou na figuração da guitarra portuguesa - reiterando o foro de verdade social39 aos fados de Amâncio e Adelaide. Quando terminou o quadro José Malhoa convidou os moradores da Rua do Capelão para irem ver o quadro no atelier Lar-Oficina Pró-Arte para onde se mudara em 1905 na então designada Avenida António Maria Avelar.40 Ali se conjugavam o espaço de habitação no piso térreo e o atelier do artista no primeiro andar, abrindo-se ao exterior num imenso janelão.

37

Instituto Português de Conservação e Restauro, Relatório – Estudo Comparativo “Fado” e “CML – Fado”, Lisboa, 2002.

38

LEANDRO; Sandra, op. cit, p. 91.

39

Retomando a expressão de Paulo Henriques, op. cit., p. 167.

40 Actual Casa Museu Anastácio Gonçalves no nº 6-8 da actual Avenida 5 de Outubro. Malhoa encomendou a construção em 1904 e ali viveu até à morte da mulher em 1919. O projecto, da autoria do arquitecto Norte Júnior, recebeu o Premio Valmor.

81


O Fado, 1909 José Malhoa Óleo sobre tela 86 x 107 cm Colecção Particular

82


O Fado, 1910 José Malhoa Óleo sobre tela 151 x 186 cm Colecção Museu da Cidade Câmara Municipal de Lisboa

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Embora escandalizando mentalidades à época, o convite dirigido aos habitantes da Mouraria, não terá sido alheio ao consensual reconhecimento d’ O Fado no seio das camadas populares, familiarizadas também com o conjunto de peripécias que envolveu a produção do quadro. Esse terá sido seguramente um factor de mediação decisivo relativamente a um sector importante do público lisboeta entusiasta de O Fado: ... findo o quadro Mestre Malhoa convidou os amadores da Rua do Capelão para irem ver o quadro à Avenida 5 de Outubro, onde foi apreciado por um verdadeiro cortejo de rameiras e fadistas. O Fadista tocava guitarra e manejava a navalha como poucos. Era ciumento e brigão. Foi o Amâncio, assim se chamava, quem apresentou ao pintor o outro modelo, a Adelaide. Era conhecida por «Adelaide da Facada» devido a um golpe profundo na face esquerda. Tinha um gato, cego de um olho e mau, o «Escamado», mas que não foi possível obrigar à pose.41 Efectivamente, O Fado obteve cedo consagração popular não sendo, porém, abrangido pelo gosto consensual da crítica que se distanciava sobretudo da natureza do tema representado. Com efeito, mais do que qualquer outra obra de Malhoa, O Fado suscitou uma multiplicidade de leituras indissociáveis dos contextos de recepção crítica que o acolheram. José Malhoa terminou a obra nos primeiros meses de 1910. A Ilustração Portuguesa dedica-lhe uma página, com reprodução fotográfica de Benoliel, qualificando-a de obra-prima não só pela execução soberba, mas também pelo seu pitoresco assunto (...) São as baixas camadas sociais tentando o pincel de Malhoa, num período em que o livro e o teatro as desdenha.42 Ainda em 1910, O Fado é apresentado na Exposição Internacional de Arte do Centenário da República da Argentina, em Buenos Aires, com o título Bajo el Encanto. Em 1912 integra a exposição José Malhoa, organizada pelo seu grande amigo e discípulo Augusto Gama, na cidade do Porto. Em 1912 integra o Salão de Outono em Paris, com a designação Sous le charme e posteriormente seguia para Liverpool, com o título The Native Song. Em 1915 era-lhe atribuído o Grand Prize na Panamá Pacific International Exhibition, evento realizado em S. Francisco por ocasião do Canal do Panamá. Em Lisboa O Fado seria exposto a 1 de Maio de 1917, no 14º Salão da Sociedade Nacional de Belas Artes, embora usufruísse já de ampla divulgação, como o atestam as referências sistemáticas na imprensa, as ilustrações da brochura alusiva a Malhoa publicada em 1914 por Cruz Magalhães ou a peça homónima de Bento Mântua, publicada em 1915 e levada à cena no S. Carlos. Na sequência da sua exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, a Câmara Municipal de Lisboa, ainda em 1917, adquire O Fado pela quantia de 4.000$00 - verba anualmente destinada à aquisição de estatuária para ornamentação dos jardins da cidade – destinando-o para o Museu Municipal, já criado mas ainda não instalado. A demora nessa instalação levou à sua exposição na sala do Presidente, facto que motivou algumas objecções na imprensa, incidindo na inadequação do tema do quadro face à nobreza do espaço43. Com efeito, se a Ilustração Portuguesa defendia que Malhoa fez vibrar o público com o seu quadro saído do convencionalismo (...) o pintor não receava tratar a vida portuguesa, mesmo num dos seus mais baixos aspectos44, bem diferente é a opinião expressa por Álvaro Maia45 relativamente a um assunto que não prima, nem pela beleza, nem pela moral ou por Hermano 41

Cfr. João Serra Variações sobre O Fado, in “Revista dedicada ao pintor José Malhoa”, suplemento da Gazeta das Caldas, Caldas da Rainha, 1983, p. 26.

42

Ilustração Portuguesa, 7 de Março de 1910.

43

Cfr. João Serra, “Variações sobre O Fado”, Revista dedicada ao pintor José Malhoa, suplemento da Gazeta das Caldas, Caldas da Rainha, 1983. p. 27. Durante largos anos exposto no salão nobre dos Paços do Concelho O Fado (1910) aí permaneceu até à sua transferência para o Palácio da Mitra, para integrar a exposição permanente do Museu da Cidade, aí instalado entre 1942 e 1979. 44

Ilustração Portuguesa, 13 e 20 de Junho de 1910.

45

Álvaro Maia no Diário Nacional de 4 de Maio de 1917.

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Neves que discorda dos que chamam ao Fado do sr. Malhoa a dignificação e a apoteose do vício. É uma composição realista, chocante mesmo46 Para Humberto Pelágio, Malhoa terá sido vítima da popularidade de O Fado que fez apagar outros temas dominantes da sua obra, que melhor justificariam a consagração, e atirado ao baixo público sendo um pouco vítima desse quadro que, criando-lhe entre a plebe e a burguesia uma auréola de consagrado intérprete da fatalidade nacional esbateu, ofuscou47 a restante obra, bem mais meritória, no seu entender. Na década de 1960 também Reinaldo dos Santos atribuiria o sucesso da obra a “uma época e um meio de deficiente cultura artística48 Menos reticentes foram Fernando Pamplona, Augusto de Castro ou Egas Moniz, cujo testemunho valerá a pena transcrever: Há quem não goste do Fado por isso talvez critique essa obra-prima do genial Mestre, o mais castiço pintor que teve Portugal. As gerações passam e, digam o que disserem, a canção fica. Nesta hora continua a ser apreciada por nacionais e estrangeiros nas salas que lhes dedicam os entusiastas do Bairro Alto. «O Fado» de Malhoa é documento que perdurará, mesmo que o entusiasmo do presente pela canção popular esmoreça com o rodar dos anos que tudo consome e destrói. Os que repelem a música que a maioria ama e sente, não renegarão a obra de Malhoa que é, inegavelmente um dos melhores quadros pela verdade e pela técnica, obra excelsa da pintura portuguesa.49 Já no Estado Novo consagrava-se Malhoa logo em 1928 com homenagens nacionais ao artista e, mais tarde, com a criação do Museu com o seu nome em 1933. Na exposição inaugurada na Sociedade Nacional de Belas Artes a 16 de Junho, em torno da obra O Fado como de Os Bêbados ou de A volta da Romaria, os contempladores eram como moscas atraídas por uma doçura.50 A angustiante permanência deste gosto naturalista e romântico rapidamente suscita no ambiente dos artistas do modernismo, a ironia e a sátira em torno desta obra emblemática. Com efeito, a primeira geração de pintores modernos do séc. XX português, parodiou o mais mítico dos artistas oitocentistas que, nesse tempo, era um dos símbolos da permanência e o sucesso de uma ordem estética a abater. Para a geração do modernismo português Malhoa era um bota de elástico, presunçoso e antiquado, que vendia tudo quanto produzia, personalidade ilustre e bem admirada, embora se limitasse a pintar sempre o mesmo, um povo boçal, resignado e analfabeto. A sua obra O Fado não foi tanto um acontecimento, mas um fantasma, símbolo de um gosto naturalista e romântico que procurou coarctar a primeira geração do modernismo.51 Efectivamente, este afastamento a que se ditaram os artistas do seu tempo ficou porventura também a dever-se ao facto de Malhoa ter usufruído sempre, em vida, de amplo reconhecimento oficial, ao contrário dos modernistas do seu tempo, cujas iniciativas inovadoras o naturalismo instalado sempre limitou. Um século corrido sobre a criação d’O Fado, a obra, como veremos, continua a ser alvo de apropriações diversificadas pelas artes plásticas portuguesas, que assim perpetuam a sua inscrição num conjunto de provocações. Com efeito, a 46

A Capital, 5 de Maio de 1917.

47

Humberto Pelágio, José Malhoa (Pintor), Lisboa, 1928.

48

Reinaldo dos Santos, Oito Séculos de Arte Portuguesa, História e Espírito, Lisboa, 1963, Vol. I.

49

Egas Moniz, A Folia e a Dor na Obra de José Malhoa, separata do Boletim da Academia das Ciências de Lisboa, Vol. XXVII, Abril-Maio de 1955, pp. 11-12.

50

Cfr. Manuel de Sousa Pinto “Conferência” in Livro da homenagem ao grande pintor José Malhoa realizada, com a exposição das suas obras na Sociedade Nacional de Belas Artes em Junho de 1928”, Lisboa, 1928. 51

Raquel Henriques da Silva in João Vieira, Fado Portuguez, Catálogo da Exposição, Galeria Valbom, 2005.

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paródia em torno do quadro de Malhoa tem-se assumido, na arte portuguesa, como um ritual de rememoriações em cadeia52, iniciado pelo traço humorístico da época e com continuidade até aos nossos dias. A partir d’ O Fado de Malhoa se inspiraram renovadas criações artísticas, na caricatura na pintura, no teatro e no cinema ou mesmo nos repertórios fadistas. Neste sentido, parece ténue a fronteira entre o destino d’O Fado de Malhoa e o próprio destino da canção urbana. De facto os seus contextos de recepção parecem coincidir, tal como os públicos, sociologicamente considerados, que neles se reconheciam.

52

Cfr. SILVA, Raquel Henriques, em Fado Portuguez, Lisboa, Galeria Valbom, 2005, pp. 5-7.

Colecção de Fados e Canções, Maria Victória Lisboa, Empreza Litteraria Universal, 1915 Colecção José Pracana

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Sempre Fixe 24 de Julho de 1941 Hemeroteca Municipal de Lisboa


E se a atitude dos públicos de Malhoa se dividia entre a tranquila redenção de uma ortodoxia pictórica e a sua mais frontal recusa - ao reconhecer nesta pintura a perpetuação de um gosto exclusivista, coarctando qualquer afirmação de modernidade -também os públicos do fado se dividiram, entre a apologia frenética e o aviltamento crítico face a uma mitologia fadista que se dimensionara a partir do século XIX e que O Fado de Malhoa sintetizava. Muitos houve, entusiastas da restante obra do artista, que não aceitaram esta sua incursão num domínio que uma certa moral burguesa preferia ignorar. Aqui residirá, porventura, o motivo pelo qual existiu um período de 7 anos entre a conclusão da obra e a sua primeira exposição em Lisboa, tal como interrogava Norberto de Araújo: Coisas de entendidos em arte! Quem sabe que consagração lhe está guardada por parte do grande público?53 Curiosamente, cerca de três décadas passadas sobre a sua morte, em 1941 numa conferência proferida na Sociedade Nacional de Belas Artes, a propósito de Malhoa e o Grupo do Leão, um dos mais paradigmáticos representantes do modernismo em Portugal, José de Almada Negreiros54, haveria de referir-se a ele com reverência: Ele tem de pintar por toda a gente! Ele tem de dizer a pintar o que não sabem dizer aqueles que ele pinta! Já não é só de pintura que se trata (...) É uma linguagem que existe dentro daqueles que não sabem dizê-las! Talvez que a isso se chame arte. Mas porque não teriam pensado nisto há mais tempo? (...) Malhoa é o conspirador da Grande Conspiração para pôr a Arte a servir, a servir quem deve, a servir os vivos. (...) Por cima da pintura de Malhoa, por cima da sua própria vida de homem, o destino escolheu-o para meter mãos à obra de ligar outros destinos desencontrados da vida e da Arte. O seu caso na vida portuguesa e na Arte ultrapassa os factos e entra na verdadeira Poesia da História. De facto, a consagração d’O Fado sucedeu mais eficazmente no universo de admiradores da canção urbana e não tardaríamos a encontrar reproduções da obra na imprensa consagrada ao universo fadista que vem a lume a partir de 1910, citações na caricatura de imprensa, integrando as decorações de recintos profissionais, ou mesmo inspirando repertórios fadistas como o célebre Fado Malhoa, em 1947, para a série de curtas metragens que Amália Rodrigues protagonizou com realização de Augusto Fraga. Fado Malhoa (José Galhardo/Frederico Valério) Alguém que Deus já lá tem Pintor Consagrado Que foi bem grande e nos dói Já ser do passado Pintou uma tela Com arte e com vida A trova mais bela Da terra mais querida Subiu a um quarto que viu À luz do petróleo 53

Norberto de Araújo em A Manhã, 1 de Maio de 1917.

54

Cfr. Almada Negreiros, Malhoa e o Grupo do Leão, Letras e Artes, 20 de Julho de 1941.

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E fez o mais português Dos Quadros a óleo Um Zé de samarra, Com a amante a seu lado Com os dedos agarra Percorre a guitarra E ali vê-se o Fado Faz rir a ideia de ouvir Com os olhos, senhores? Fará, mas não quem Já o viu, mas em cores! Há vozes de Alfama Naquela pintura E a banza derrama Canções de amargura Dali vos digo que ouvi A voz que se esmera Boçal do faia, banal Cantando a Severa Aquilo é bairrista Aquilo é Lisboa Boémia e fadista Aquilo é de artista Aquilo é Malhoa

O Fado Filme Mudo Maurice Mauriaud, 1923

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Na impossibilidade de procedermos, nestas breves páginas, a uma inventariação sistemática destas variações sobre O Fado, atentemos sumariamente em alguns casos que testemunham, afinal, a popularidade e consagração da tela, como a peça de Bento Mântua intitulada O Fado episódio em 1 acto (1918) uma espécie de interpretação dramática da representação pictural, ou o filme mudo, homónimo, do realizador francês Maurice Mauriaud de 1923, operando um mimetismo de todos os detalhes iconográficos da composição, desde os adereços decorativos à caracterização das personagens. Na sequência da estreia do filme no Verão de 1923 - e numa época em que os periódicos de fado assumiam já uma intenção reiterada de legitimação do género face à propagação dos discursos de distanciamento crítico que, como vimos, se dimensionavam desde o ultimo quartel do século XIX - o jornal A Guitarra de Portugal publica um testemunho censório do filme de Mauriaud - extensível ainda a Malhoa – numa resposta do universo fadista àquilo que entende serem retratos pouco edificantes do fado: …foi em uma visita a casa do pintor Malhôa que o Sr. Maurice ante o quadro “O Fado” pensou na execução do seu filme (…) O Sr. Mauriuad é francês. Tem centenares de peças suas em cinema, interpretadas por artistas franceses. Em Portugal também já muito lhe deve a “arte do silêncio”. Todavia, a arte que defendemos e propagamos é imprecisamente tratada. O Sr. Mauriaud enfermou tal como enfermam todos os que não vivem nos meios onde mais tarde buscam motivos para as suas obras d’arte… O distinto técnico foi vagamente informado sobre o que se passa com o fado. Esta canção do povo, sr. Mauriaud, não vive só nos meios devassos e taciturnos da nossa gente; é verdade que o dedilhar do fado na rua do capelão é lúgubre e marca a distância que vai da virtude ao vício (…) A canção é pura como a neve dos Alpes. Quem a macula são os degenerados. O ilustre homem de cinema confunde o fado Destino com o Fado Canção. O primeiro é universal, o segundo é puramente português. O Sr. Mauriaud em nada dignificou a canção, toada embaladora dos nossos navegantes, a mais embaladora que conhecemos… Lamentamos que João Ferreiro (Soveral) a não cante, porque na vida real cantam-na e adoram-na porque ela é bem um hino do trabalho. Os nossos poetas trabalhadores e heróicos, teem-na como uma oração que os faz sonhar. Na sua película só se escuta o fado canção no bordel lamacento cantado por faquistas e rameiras, atraindo simplesmente gente de baixa moral e na vida portuguesa que o Sr. Mauriaud conhece tão vagamente ele atrai desde a costureirita simples e modesta, ao operário honrado e digno à escritora Maria de Carvalho e ao ilustre clínico Dr. Borges de Sousa. Fere-nos o vermos a guitarra pegada por mãos de crime (…) Como a nossa canção é comprometida! Se o sr. Maurice nos dissesse qual é a canção que tantos degenerados faz na sua terra natal tão prenhe de prostituição?! Enfim a arte do silêncio poderá ficar devendo bastante ao Sr. Mauriaud, mas a nossa canção só lhe ficara devendo algo de descrédito. Malhôas, Mantuas, Mariares poderão ter feito grandes obras para a arte da cor e das atitudes mas a arte do sentimento, do coração, só se poderá sentir traída. Como vimos, o contexto artístico europeu dos alvores do século XX constituiu um momento de reflexão e sondagem, a um tempo lúcida e inquieta, pelo aparecimento de vanguardas estéticas que se manifestaram por impulsos de ruptura face às perspectivas académicas institucionais. Promovendo-se uma dinâmica de autonomia crescente da arte pelo exercício individual das energias criadoras, presidiram a estes novos movimentos os valores associados a uma ética de experimentalismo formal e plástico, numa aventura heurística de redescoberta do mundo através de uma renovada linguagem estética. A geografia destas vanguardas artísticas organizou-se a partir de Paris, cidade onde se ensaiavam as grandes linhas de reflexão no domínio da criação e dos critérios subjacentes à recepção crítica da obra de arte. Em Portugal, os ecos do modernismo eram então timidamente introduzidos pela geração congregada em torno da revista Orpheu (1915) que integrava as figuras de Almada Negreiros (1893-1970), Fernando Pessoa (1988-1935), Mário de SáCarneiro (1890-1916), Santa-Rita (1889-1918) e Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918).

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Em Lisboa, ainda em 1928, a cristalização do imagético de oitocentos, constituía um receituário de fácil digestão pelo grande público. Com efeito, a vida artística oficiosa não ofereceu, ao longo da década de 20, hipótese de permeabilidade aos novos modernistas, anões modernos aos ombros de gigantes antigos55 aos quais cerravam portas o Museu de Arte Contemporânea – então dirigido por Columbano – e a Sociedade Nacional de Belas Artes – que, em 1921, excluía Eduardo Viana do Salão. Face às restrições do mercado restava a criação de espaços de exposição alternativos, como A Brasileira – que a partir de 1925 expunha alguns trabalhos de Viana, Almada, Bernardo Marques, António Soares, Jorge Barradas e Stuart de Carvalhais – ou o Bristol-Club que, no ano seguinte, adquiria obras de Almada, Viana, Stuart, Soares e Barradas56. A geração de criadores que introduziram o modernismo em Portugal, na década de 10 do séc. XX, caracterizou-se, nas palavras de Rui Mário Gonçalves, por várias atitudes automarginalizantes, entre as quais podemos salientar duas: a obsessão pela originalidade e a passagem do humor fútil aos actos provocatórios futuristas57. Observando especificamente os programas culturais e artísticos que presidiram à criação das obras e sua fruição por sucessivas gerações, contextualizando as motivações e constrangimentos de ordem simbólica, estética, social e ideológica, num processo ao longo do qual, pensamos, a literatura e as artes plásticas tantas vezes espelharam posicionamentos similares, analisaremos a produção plástica com representações do fado que atravessa, desde 1870 aproximadamente, todo o século XX, num processo ao longo do qual se vão cruzando as perspectivas académicas com as de uma gramática plástica essencialmente legitimadora do fado. Exemplos desta representação apologética da prática performativa, ou, se preferirmos, do ponto de vista do fado constituem os trabalhos realizados pelo universo editorial, laboratório central de pesquisa e experimentação artística do modernismo português. Seria efectivamente o domínio editorial o principal suporte das narrativas do discurso plástico de autores como Stuart Carvalhais, Bernardo Marques, Armindo, Júlio de Sousa, Telles Machado, Carlos Botelho, Américo Amarelhe, Almada Negreiros, entre outros, cujos trabalhos de ilustração de periódicos, partituras de fado, discos e livros, integram parte significativa do corpus de representação do tema nas artes visuais portuguesas da primeira metade do século XX, consolidando definitivamente uma gramática plástica de legitimação do género. Neste sentido, também os modernistas aproveitaram os temas e objectos populares introduzidos no contexto do reaportuguesamento de Portugal58 e mesmo o autor do fulgurante Manifesto Anti-Dantas – visando um proeminente cultor do fado na viragem do século – não deixou de produzir alguns importantes testemunhos pictóricos do fado. Com efeito, se na obra Fadistas59 sobressai a ironia subjacente ao traço caricatural, nos desenhos Marinheiro e Rapariga60, Homem tocando Guitarra61 ou Marinheiro tocando Guitarra62 a representação do universo fadista faz-se associar à faina marítima, temática de resto já ilustrada em obras oitocentistas de de Jorge Bekerster Joubert e E.J. Maia ou no célebre Marinheiro, 55

Retomando a expressão de Matei Calinescu, em “Five Faces of Modernity”, Duke University Press, 1977.

56

Veja-se Raquel Henriques da Silva, Sinais de Ruptura, Livres e Humoristas in “História da Arte Portuguesa”, dir. Paulo Pereira, Vol. III, Círculo de Leitores, 1995.

57

Rui Mário Gonçalves, Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.5.

58

RAMOS, Rui,”A Segunda Fundação 1890-1926”, História de Portugal (Direcção de José Mattoso), Vol. VI, Círculo de Leitores, 1994, pp. 574 e seguintes.

59

José de Almada Negreiros, Fadistas, s/d, lápis, 40,5 x 62, 5 cm, colecção particular;

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José de Almada Negreiros, Marinheiro e Rapariga, s/d, lápis s/ papel, 40,5 x 62, 5 cm, FCG/CAMJAP

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José de Almada Negreiros, Homem Tocando Guitarra, Biarritz, 1919, lápis s/ papel 26 x 36 cm, colecção particular;

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José de Almada Negreiros, Marinheiro Tocando Guitarra, 1923, lápis s/ papel 25 x 32,5 cm, colecção Jorge de Brito

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que Constantino Fernandes concluíra em 1913. Consagrando-se progressivamente como ícone pátrio, referencial identitário da portugalidade, terá sido sobretudo pelo seu sentido alegórico que a guitarra portuguesa integrou algumas obras dos primeiros modernistas, assumindo-se posteriormente, como motivo de inspiração formal nos trabalhos de Viana ou do casal Delaunay. Atestando a presença da guitarra no ambiente boémio do atelier, fenómeno que estimamos ter tido alguma constância nas primeiras décadas do século XX, José Malhoa foi autor de uma outra incursão pelo universo do fado como o documenta aliás a surpreendente Peccata Nostra de, de 1920.63 A presença dos instrumentos musicais nos ateliers é ainda corroborada pelos célebres K4 Quadrado Azul e Guitarra Minhota de Eduardo Viana, ou mesmo pela célebre fotografia em pose fadista de Amadeu, inspirando uma renovada dimensão onírica na tela que Nikias Skapinakis lhe consagrou na série Quartos Imaginários em 200464. Regressando, porém, a Malhoa e atestando a sua apropriação até aos nossos dias, valerá a pena atentar numa das mais interessantes reflexões operada na pintura, sobre a imagética convencional do fado, da autoria de João Vieira, na exposição Fado Portuguez65, centrada em torno dos ecos de O Fado, junto da primeira geração do modernismo português. Em O Mais Português dos Quadros a Óleo (2005) lemos uma paródia colectiva ao quadro original de Malhoa. Com a colaboração dos Homeostéticos66, João Vieira apropria-se d’O Fado de Malhoa, para o reinventar mais livre, ao longo de três narrativas plenas de humor e para uma das quais concorre a cumplicidade de artistas como Manuel Vieira no pormenor Mamalhoas, Pedro Portugal, em Luz Explicadista, Pedro Proença, no renovado Leque e Fernando Brito, com Espelho Quebrado.Aqui, a paródia amplifica-se nos pormenores do quadro: em Mamalhoas o detalhe dos seios da figura feminina surge associado a um registo humorístico em torno do nome do autor original; em Luz Explicadista desafiam-se as convenções da iconografia popular do fado - ou do Fadismo, palavra inscrita entre a expressão Desonestidade e Fraude - em Espelho Quebrado apresentando uma versão conceptual do ícone original – e finalmente no Leque parodiando os símbolos nacionais, através da colocação de uma minúscula bandeira nacional em cima de um leque ao lado do qual figura uma corda entrelaçada em jeito de forca. Citando o verso original de José Galhardo no título da obra O Mais Português dos Quadros a Óleo João Vieira assume o ajuste de contas da geração do modernismo português perante o oficioso Malhoa67, ao logo de duas outras obras: Fado Vieira68 - onde faz inscrever o nome de Souza Cardoso, Viana, Santa-Rita Pintor e Almada - e Fado Vadio69, uma estilização dos nus de Adelaide e Amâncio. A paródia estende-se à própria Ilustração Portugueza mimetizando escrupulosamente o figurino do original, João Vieira introduz a fotografia de Fado Vieira e parodia o texto original alusivo à obra de José Malhoa, cujo nome é naturalmente substituído pelo seu - O quadro de Vieira foi enviado ao Salon onde receberá sem dúvida a consagração bem devida a essa obra-prima do illustre pintor portuguez. Como o próprio João Vieira avisara, na abertura

63

José Malhoa, Pecatta Nostra, 1920, pastel, 39 x 60 cm, Embaixada do Brasil, Lisboa.

64

SKAPINAKIS, Nikias, Quartos Imaginários, Lisboa, Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, 2006.

65

Veja-se Fado Portuguez, Catálogo da Exposição, Lisboa, Galeria Valbom, 2005.

66

Manuel Vieira, Pedro Portugal, Pedro Proença e Fernando Brito. Os pintores Manuel Vieira, Pedro Portugal, Pedro Proença e Fernando Brito na obra O Mais Português dos Quadros a Óleo, painéis lenticulares, 300 x 365 cm.. 67

Veja-se o texto introdutório de SILVA, Raquel Henriques, em Fado Portuguez, Lisboa, Galeria Valbom, 2005.

68

Fado Vieira, óleo sobre tela, 180 x 200 cm, 2005, colecção particular.

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Fado Vadio, óleo sobre Tela, 180 x 200 cm, 2005, colecção particular.

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Peccata Nostra, 1920 José Malhoa Pastel 39 x 60 cm Colecção Embaixada do Brasil, Lisboa

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do catálogo: Pelo caminho, dou uma boa rabecada (ou guitarrada?) no fado do Malhoa. Que está cada vez mais caro.70 Atentando nas diferentes narrativas plásticas que compõem o portfolio da representação visual do fado, vislumbramos o reflexo destes posicionamentos no discursos intrínsecos de cada obra, no quadro de uma diversidade plástica que, ora representa figurativamente71, ora se inquieta, a partir do modernismo português72 para resistir73, já durante o Estado Novo, à estetização da política cultural, à qual responderá com a politização do discurso plástico.74 E se na década de 80 do século XX assistimos uma reconciliação da intelectualidade portuguesa em relação ao fado, nomeadamente através da inauguração de estudos académicos consagrados ao tema, também nas artes plásticas, com Júlio Pomar ou Leonel Moura, vislumbramos como que uma celebração e um reconhecimento do lugar do fado na nossa matriz identitária. Metáfora da arte portuguesa – laboratório formal e plástico onde tímida e tardiamente se ensaiaram as vanguardas artísticas – a representação plástica do Fado sucedeu no quadro de uma vincada diversidade de disciplinas artísticas, 70

VIEIRA, João, O Fado Portuguez, Lisboa, Galeria Valbom, 2005, p.4.

71

Vejam-se os tributos de Bordallo Pinheiro, Malhoa ou Constantino Fernandes.

72

Vejam-se por exemplo os casos de Almada Negreiros, Amadeo, Eduardo Viana, Bernardo Marques ou Stuart Carvalhais.

73

Veja-se o volumoso conjunto de trabalhos de Cândido da Costa Pinto dos quais a tela Anti-fadismo (1963) consolida a mais crítica visão do tema nas artes plásticas ou a ironia de João Abel Manta nas Caricaturas Portuguesas do Tempo de Salazar já em 1974.

74

Retomando a conceptualização de Walter Benjamin, presente na tradução portuguesa Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, Lisboa, Relógio d´Água, 1992.

Fado Vieira João Vieira Óleo sobre tela 180 x 200 cm Colecção Particular

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dimensionando-se num volumoso e multifacetado corpus artístico de representações do tema, integrando obras de fulgor académico – de que o emblemático Malhoa constitui paradigma – bem como trabalhos de carácter mais periférico, tantas vezes precursores de uma gramática plástica legitimadora do próprio género performativo. Neste diálogo entre o fado e as artes visuais, quis o destino que as audiências do mais português dos pintores e da própria arte performativa se aproximassem naquilo que melhor as caracterizou ao longo da história do século XX: uma divisão entre a apologia e a recusa liminar, entre uma redenção absoluta e o aviltamento crítico. Mas, como salienta Raquel Henriques da Silva o olhar de Malhoa sobre a nossa cultura popular não é o dos estrangeirados da Geração de 70 que contemplavam Lisboa do seu íntimo desgosto por ela não ser Paris. É o da cumplicidade de quem recria por dentro, do lugar equívoco da expressão de raízes, sonhos e crenças próprios75. E se, como afirmava Emília Nadal na abertura do presente catálogo, a história recente pôs cobro ao eclipse sobre a obra de Malhoa, também o fado, desde a década de 1980 até hoje como demonstrou Rui Vieira Nery constitui, nos nossos dias, um campo de estudos de legitimação incontestada.76

75

SILVA, Raquel Henriques, em HENRIQUES, Paulo, José Malhoa, op. cit., p.7

76

NERY, Rui Vieira, Para Uma História do Fado, PUBLICO, Corda Seca, 2004, pp. 273-283. Veja-se o texto do presente catálogo Propaganda pela Trova: Movimento Operário e Ideal Republicano no Fado de Lisboa até à Ditadura;

Fado Vadio João Vieira Óleo sobre tela 180 x 200 cm Colecção Particular

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O Fado, 1910 José Malhoa Óleo sobre tela 151 x 186 cm Colecção Museu da Cidade Câmara Municipal de Lisboa 97


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O Mais Português dos Quadros a Óleo, 2005 João Vieira Painel Lenticular 300 x 365 cm Colecção Museu da Cidade Câmara Municipal de Lisboa

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Alfredo Marceneiro e Maria do Carmo 1934 Espólio de Alfredo Marceneiro Oferta de Aida Duarte Inv. nº 1921 Colecção Museu do Fado Arranjo gráfico de Luis Carvalhal


VOZES DO FADO NO PERÍODO DA REPÚBLICA Sofia Bicho

(…) a voz para cantar o Fado é uma voz inclassificável, sui generis, com modulações e inflexões não sujeitas ao jugo tirânico dos métodos de canto, uma vez que não se subordina aos ditames catedráticos dos professores do Conservatório (…)1

1

Pinto de Carvalho (1982 [1903]), História do Fado, Lisboa: Publicações D. Quixote, p. 97.


Bairro Alto, Avelino de Sousa Lisboa, Livraria Popular de Francisco Franco, 1944 Colecção Francisco Mendes

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Nestas palavras de Pinto de Carvalho revelamos a interpretação sentimental que sempre esteve associada ao fado como “canto da alma”. Uma qualificação unânime entre intérpretes e apreciadores ao longo de toda a História do Fado. Polémicas ou mutações intercaladas com permanências é o que iremos encontrar ao debruçar-nos sobre outros aspectos da interpretação do fado, no caso desta abordagem nos trajectos biográficos das figuras que consideramos incontornáveis para o estudo do fado no período republicano. Essas serão neste âmbito as “Vozes do Fado”. Na relação entre as realidades vivenciais dos fadistas e a sua época, verificamos que o chamado “Fado Republicano” remonta à passagem do século XIX para o XX e, como resultado directo da Implantação da República Portuguesa, podemos apenas intuir que o afastamento da Corte e o desaparecimento da posição privilegiada da classe aristocrática terá afectado a regular contratação dos fadistas mais consagrados para as casas da aristocracia de Lisboa, que nas últimas décadas do século XIX tinha gerado um dinâmico circuito de actividade para estes intérpretes2. Data de 5 de Outubro de 1910 o fim do regime monárquico, tornando-se Portugal numa das primeiras Repúblicas da Europa. Esta Implantação, caracterizada pela instabilidade governamental3, será no contexto fadista protagonizada por um conjunto de poetas cantadores que se focam na interpretação de poemas como veículo de consciencialização social e de propaganda para os ideiais republicanos, socialistas e anarquistas, muitas vezes integrado num movimento de actuações espontâneas e amadoras, localizadas nos retiros da cidade. Alguns fadistas deste período republicano concebem as suas actuações num percurso que se aproxima crescentemente do conceito de profissional, mas na generalidade continuam a ser socialmente integrados na classe popular lisboeta, embora numa caracterização cada vez mais afastada dos ambientes marginais e mais directamente relacionada com uma classe operária, para a qual o fado não é ainda uma carreira que possibilite gerar sustentabilidade económica. A excepção a esta conjuntura faz-se entre o conjunto de protagonistas do fado que começam nesta altura a pautar-se por um estatuto algo excepcional e já profissionalizado: as cantadeiras ligadas ao Teatro de Revista. No entanto apenas um número muito restrito de intérpretes integra este enquadramento. Entre 1910 e 1925 o contexto espacial para a interpretação do fado alarga-se exponencialmente (mesmo se tivermos em consideração a já referida diminuição dos espaços de actuação das casas aristocráticas), centrado especialmente no crescente aumento de cafés e retiros da cidade, que vão tomando consciência que a presença dos fadistas é sinónimo de maior rentabilidade, e ainda na cada vez maior integração de fadistas nos palcos do teatro. Também durante a 1ª República os fadistas associam-se aos primeiros passos dados no registo discográfico de intérpretes, um mercado fortemente selectivo e naturalmente em directa relação com a popularidade de determinados temas e intérpretes. Meio privilegiado para a nossa abordagem às vivências dos intérpretes do fado no período republicano, é o estabeleci-

2

Nery, Rui Vieira (2004), Para Uma História do Fado, Lisboa: Público/Corda Seca, p. 152.

3

Segundo António da Costa Pinto a estabilidade eleitoral e a instabilidade governamental caracterizaram todo o período republicano. Entre 1910 e 1926 Portugal teve 45 governos (Pinto, António Costa (coord.) (2004), Portugal Contemporâneo, Lisboa: Dom Quixote; p. 18).

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mento de uma imprensa especializada exclusivamente dedicada a este tema4. Logo em 1910 são editados três jornais: O Fado (16 de Abril), A Alma do Fado (Julho) e O Fadinho (28 de Julho). Seguem-se as publicações O Fado Republicano: publicação mensal de trovas do fado (Maio de 1912), A Canção de Portugal (1 de Abril de 1916), O Faduncho (1 de Outubro de 1917), A Trova Popular (25 de Março de 1919), A Canção Portuguesa (16 de Janeiro de 1921), Guitarra de Portugal (15 de Julho de 1922), Canção do Sul (1 de Abril de 1923)5, O Fado (22 de Abril de 1923), A Alma de Portugal: do fado e para o fado (2ª quinzena de 1924) e A Canção do Povo: quinzenário propagador da lidima canção o fado (26 de Setembro de 1926). Para além de esta imprensa ser reflexo do interesse crescente por este género musical, contribui decisivamente para a divulgação do fado e dos seus intérpretes, pela inclusão de notícias, entrevistas, biografias, artigos de opinião, acompanhados de inúmeros poemas. 1. Os Protagonistas da Consciencialização Social Através do Fado Pinto de Carvalho, em artigo datado de 1907, identifica como primeiro fado político um poema moldado sobre o fado da Severa, de título Fado do José dos Conegos, que seria um echo morrediço dos clamores revolucionários da Maria da Fonte, datado de 1848, e ao qual se seguem outros que veiculam o mesmo tipo de mensagem de contextualização política6. Apesar de não ser novidade a introdução de temas políticos no fado, desde o final do século XIX que um conjunto de poetas populares alimenta esta vertente interventiva com inúmeras produções poéticas. Podemos detectar na viragem do século um movimento, com vários elementos percursores, de assumpção do fado como veículo propagador e de consciencialização social para uma população que vive em condições sociais extremamente precárias, que se insere num fenómeno crescente de associativismo popular7, onde o analfabetismo se estende à grande maioria. Como palcos privilegiados de difusão do “fado republicano”podemos considerar as cegadas8 e as deslocações de fadistas pelo País, a que Eduardo Sucena chama “cantigas ao domicílio”9. Na leitura de um artigo de João Oliveira Vidal10 testemunhamos o quanto as cegadas foram no período republicano espaço de crítica social nos meios populares dos bairros lisboetas, começando a sobrepor-se a todos os outros temas, apresentando em cena ásperas críticas à família rial, foi dramatisada a vida dos regicidas, o próprio regicídio, e a figura da República, incarnada em qualquer cégante, aparecia como uma deusa, espalhando bénesses para o povo, acarinhando os humildes. Reforce-se que este tipo de apresentações, onde o fado se integrava naturalmente, se assumiu nas suas temáticas sociais como um dos mais valiosos baluartes para a pro4

Ainda no século XIX surgiram algumas publicações periódicas dedicadas ao fado, centradas na edição de versos, de que são exemplo: Lira do Fado; Fado Novo e A Lyra do Fadinho. Para um conhecimento mais aprofundado das publicações existentes veja-se Alberto Pimentel (1989 [1904]), A Triste Canção do Sul, Lisboa: Publicações D. Quixote, pp. 68-71.

5 A Guitarra de Portugal, estende-se até 1947 (com uma interrupção entre 1940 e 1944) e A Canção do Sul, até 1949. O jornal Guitarra de Portugal será, em 1948, transformado no Ecos de Portugal e, ao mesmo nível de regularidade editorial só voltará a surgir o jornal A Voz de Portugal, entre 1954 e 1969. 6

Carvalho, Pinto de (1907), “Triste Fado”, in Illustração Portuguesa, III volume, 11 de Fevereiro.

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Nery, Rui Vieira (2004), Para Uma História do Fado, Lisboa: Público/Corda Seca, p.131.

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As cegadas são representações teatrais de carácter amador e popular, que na generalidade eram representadas por homens em apresentações nas ruas, em associações e colectividades. Por alguns dos seus textos conterem mensagens de crítica social, a censura prévia estabelecida com o regime de 1926 irá contribuir para a sua quase total extinção. O carnaval lisboeta era a altura do ano mais propícia a este tipo de actuações, mas as cegadas não se limitavam a este período.

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Sucena, Eduardo (1999), Lisboa, o Fado e os Fadistas, Lisboa: Vega, p. 64. Vidal, João Oliveira (1933), “Cégadas e Cégantes”, in Guitarra de Portugal, 16 de Março.


paganda republicana. Apesar de o fado se popularizar nesta época nas vozes de algumas fadistas que se transformarão em figuras “míticas” da tradição deste género, temos de referir que esta vertente de intervenção social se desenvolve essencialmente no masculino. Neste âmbito destacamos Carlos Harrington, João Black e Avelino de Sousa, os quais terão um papel fundamental na caracterização do “fado republicano”, nomeadamente nos aspectos de evolução poética, de divulgação à classe popular do fado e em defesa do mesmo que, conforme refere Paulo Lima, são aspectos característicos de todo o período da Primeira República11. As publicações periódicas que surgem nesta altura não se concentram na apresentação de ideais políticos de forma directa, mas são espaço para a defesa do fado como veículo de mensagem social, particularmente por terem como directores e colaboradores inúmeras figuras destacáveis desse processo12. A 16 de Abril de 1910 surge a pioneira destas edições de regularidade semanal ou quinzenal, o jornal O Fado, que apesar de ter uma curta duração em termos de publicações, o último número sairá em Julho do mesmo ano, marca o início de uma nova fase divulgativa do fado. Este jornal foi fundado e dirigido pelo “poeta-improvisador” Carlos Harrington. Carlos Jorge de Paiva de Andrade e Castro Miranda Harrington nasceu em Lisboa a 5 de Julho de 1870, filho de um casamento entre um industrial irlandês e uma portuguesa. Talvez tenha sido por influência de sua mãe, uma poetisa muito apreciável, que Carlos Harrington se tenha dedicado às artes da escrita poética desde muito jovem13. Intérprete amador de fado, Carlos Harrington marcou a sua presença nas noites de boémia fadista da viragem do século na companhia de ilustres personalidades da cultura portuguesa como o engenheiro dramaturgo João da Câmara, o jornalista e também dramaturgo Lopes de Mendonça ou o poeta e jornalista Gomes Leal. 11

Lima, Paulo (2004), O Fado Operário no Alentejo, Vila Verde: Tradisom, p. 64.

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Exemplos deste universo de colaboradores são: Martinho d’ Assunção (15-10-1880 / 26-02-1958) e José Bacalhau (1880-1935). Martinho d’ Assunção acompanhou a viragem do século como poeta e cantador. Encontra espaço como colaborador em vários destes jornais, casos de A Canção de Portugal e Guitarra de Portugal, mas também em publicações operárias como as Revolta, Bandeira Vermelha e mesmo o jornal da sociedade Voz do Operário. Muitas vezes apelidado de poeta vermelho, foi um dos fundadores do Partido Comunista Português e delegado ao seu I Congresso (cf. Guinot, Maria, Ruben de Carvalho e José Manuel Osório, Histórias do Fado, Amadora: Ediclube, pp. 368). Martinho d’Assunção deixará nas páginas destes periódicos inúmeros poemas, muitos deles demonstrativos da sentida necessidade de elevar a poesia fadista a novos patamares, mas também sendo um aliado da tendência que caracteriza este período de associar a interpretação do fado espontânea e amadora ao ideal educativo. Durante o seu percurso foi muito acarinhado pela comunidade fadista sendo alvo de várias homenagens, como a realizada a 28 de Fevereiro de 1924, no Teatro Gil Vicente (Guitarra de Portugal, 15 de Fevereiro de 1924). José António da Silva, que ficou conhecido por José Bacalhau trabalhou como impressor litográfico, profissão que mais tarde trocou pela de taberneiro em Alcântara. Cantou numa associação de amigos, com versos oferecidos por Joaquim Rial, e ao terminar os aplausos ecoaram tão vibrantemente, foram tão frenéticas as aclamações (cf. O Fado, 8 de Junho de 1923), que foi contratado, como cantador, para actuar em vários cafés e espaços do país, casas aristocráticas ou teatros públicos. Em 1927 o próprio definia-se como cantador e taberneiro nos anúncios ao seu restaurante, na última página das edições do jornal Canção de Portugal de 1927 e 1928. Para além de em 1923 ser editor do jornal O Fado, José Bacalhau foi autor de uma alteração métrica que deu origem a um novo tipo de Fado, denominado Fado Bacalhau. Esta inovação atribuída a José António da Silva consiste na sextilha, que terá sido introduzida no Fado pouco antes de 1920 e, segundo Paulo Lima, vai permitir a possibilidade dos poemas passarem de dísticos para trísticos, ou seja para grupos de três versos, diversificando os textos cantados pelos fadistas. Até 1918 eram todos redutíveis a quartetos, logo a dísticos (cf. Lima, Paulo (2004), O Fado operário no Alentejo, Vila Verde: Tradisom, p. 59). José Bacalhau morre em 1935, mas a sua marca na história da poesia do fado permanecerá, apesar de, especialmente com o advento radiofónico e das gravações discográficas este tipo de fado cair em desuso, fruto da necessidade temporal exigida pelo espaço de gravação. Ainda assim o próprio fadista e alguns outros deixaram-nos exemplos de registos discográficos com este fado. 13

Guitarra de Portugal, 15 de Maio de 1946.

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Apelidado de Bocage do Fado por improvisar com facilidade extrema e n’um soberbo requinte de inspiração verdadeiramente bocageana14. No glosamento de décimas e rápido improviso para interpretação ao despique, Carlos Harrington foi dos mais conceituados repentistas, personalidade destacada na defesa do fado e do seu carácter instrutivo, por falar à alma desse mesmo povo, em versos simples, despretenciosos15. A sua construção poética era de tal forma marcada por esta vertente que num cartaz alusivo a um espectáculo de fado, realizado a 5 de Agosto de 1906, anunciava-se os eminentes improvisadores de fado Carlos Harrington e Jorge (Cadeireiro), fazer-se-ão ouvir nos seus correctos improvisos demonstrando as modificações dos fados16. Presidente do Grupo dos Desgraçados, nome criado a partir do restaurante onde um grupo se reunia com jantares semanais ao sábado, Carlos Harrington aparecia sempre com a sua cadelinha Pérola, de quem era inseparável. O restaurante chamado Desgraça, ficava situado nas Escadinhas de Santa Justa e pertencia a António Ribas. As reuniões do grupo estendiam-se muitas vezes à adega Floresta, e foram de tal forma representativas da boémia fadista que deixaram na gíria lisboeta a expressão «deixa lá, é tudo p’ra desgraça» para significar despesas ou excessos em patuscadas17. Figura marcante da transição evolutiva do fado do século XIX para o XX, Carlos Harrington, apesar de ter falecido muito prematuramente, a 31 de Outubro de 1916, com apenas 46 anos, foi relembrado e homenageado por muitos dos cultores do fado, continuando a ser recordado com regularidade na imprensa fadista, no decorrer de várias décadas18. Apesar da sua profícua produção poética denunciada, por exemplo, em relato de Artur Arriegas ao jornal A Trova Popular (1 de Junho de 1919), que afirma que nos seus encontros mostrava a enorme papelada que trazia nas algibeiras, e começava a lêr versos, muitos versos da sua lavra, cantigas ao fado, algumas com os mesmos motes, glosadas de formas diferentes19, a intensa produtividade de Carlos Harrington na criação de letras era na generalidade improvisada e, lamentavelmente, grande parte dessa autoria não foi registada20. Ainda assim, por influência e incentivo do seu grande amigo Gomes Leal, Carlos Harrington publica, em 1892, o livro Improvisos (Fados), uma obra com produções [que] nasceram de inspiração instantanea, sendo reproduzidas a lapis, em pequenos pedaços de papel, no fim de alegres, e intimas reuniões21. Posteriormente serão também publicados Versos de Carlos Harrington para guitarra, orchestra ou piano (1907, Lisboa: Imprensa Lucas) e Espinhos do monte... (1915, Lisboa:

14

Testemunho de Avelino de Sousa para o jornal A Trova Popular, 1 de Junho de 1919.

15

A Trova Popular, 1 de Junho de 1919.

16

Cartaz de um Certamen de Fados (Colecção de José Pracana), onde se exalta ser esta a primeira festa do género, realizada no Pátio do Carrasco (ao Poço dos Negros), às 4 da tarde do Domingo, 5 de Agosto de 1906. 17

Canção do Sul, 20 de Abril de 1923; Guinot, Maria, Ruben de Carvalho e José Manuel Osório (1999), Histórias do Fado, Amadora: Ediclube, p. 296.

18

Veja-se por exemplo a edição de 1 de Junho de 1919 do jornal A Trova Popular, quase inteiramente consagrado ao fadista, ou a evocação de Júlio Guimarães no jornal Guitarra de Portugal, datado de 15 de Maio de 1946, 30 anos após a morte do fadista. 19

A Trova Popular, 1 de Junho de 1919.

20

Na obra Histórias do Fado, editada em 1999, pela Ediclube, afirma-se mesmo que muitos dos seus poemas e letras foram mesmo atribuídas a outros autores (cf. Guinot, Maria, Ruben de Carvalho e José Manuel Osório, p. 296).

21

106

Harrington, Carlos (1892), Improvisos (Fados), Lisboa: Tipografia Costa Braga & Cª, p.1.


Tip. Comércio e Indústria)22. Quer pela sua visão pioneira de fundar e dirigir um jornal (O Fado) especificamente centrado nos mais abrangentes temas fadistas, quer pela importância que lhe atribuiam os seus pares, Carlos Harrington foi certamente uma das personalidades que marcou o período republicano do fado na sua vertente ideológica operária. Outra personalidade intimamente ligada aos movimentos operários, figura carismática do fado republicano foi sem dúvida João Black.

22

Júlio Guimarães refere ainda a publicação das obras Saudades e Martírios e Lira do Campo (Guitarra de Portugal, 15 de Maio de 1946).

107


Nasceu João Salustiano Monteiro, em Almada, no dia 28 de Setembro de 1872. Cresceu no seio de uma família pobre e a educação que tem deve-a si mesmo; fez-se artista das artes gráficas, fez-se orador nas associações de classe defendendo os oprimidos com a sua palavra eloquente23. A família vivia em condições precárias e graças à generosidade de Alexandre Black, para quem o seu pai trabalhava, frequentou a escola até ao 2º ano do Liceu do Carmo. Numa sentida homenagem ao seu benfeitor resolveu adoptar como pseudónimo o seu apelido24. A sua carreira profissional iniciou-se n’ O Puritano, publicação de Almada, onde começou como tipógrafo, passando depois a redactor, a secretário e a acumular todo o tipo de funções (1888 a 1889). Em 1892 entrou para a redacção do jornal O Século onde esteve durante vários anos e, mais tarde, passou a ser funcionário da Sociedade Voz do Operário, desempenhando funções de gráfico no jornal da instituição. Foi na publicação A Voz do Operário que teve a seu cargo uma secção de título Carteira do Operário que durou entre 1905 e 1920 e, na qual foram publicados inúmeros textos de poetas amadores com temáticas de cariz social, e naturalmente textos que o próprio João Black escreveu para essa coluna25. A ligação de João Black com o fado começa por volta do ano de 1883, quando na infância começa a cantar. Apenas cinco anos mais tarde já percorria as sociedades recreativas para ouvir e interpretar os seus fados. Posteriormente começa a procurar utilizar os versos cantados para transmitir ideais de carácter político-ideológico. Em entrevista ao jornal Guitarra de Portugal, em 1923, o próprio João Black relata episódios da sua vivência fadista da viragem do século e revela a formação de um terceto com dois outros grandes nomes do universo fadista, Avelino de Sousa e António Rosa, que se apresentava em clubes e associações. Nas palavras do próprio identificamos um propósito bem definido desta vertente de abordagem ao fado que temos vindo a retratar: Conhecia-mos a indole do nosso povo e sabendo-o falho de educação, mas muito inclinado ao fado, resolvemos fazer pelo verso cantado uma intensa propaganda de sociologia26. João Black fez também uma “peregrinação” pelo Alentejo, acompanhado por Júlio Janota, ambos cantando as mensagens de justiça social e de ataque ao regime monárquico27. Segundo relato de Eduardo Sucena28, o poeta e cantador era frequentador habitual de uma casa de comidas chamada Pancão, existente na Rua Capitão Leitão em Almada, onde se reunia a boémia fadista da outra margem. E de tal forma o poeta sobressaía nas suas interpretações que o dono da casa, José Simões Pancão, em homenagem às suas apreciadas actuações, terá atribuído o seu nome a uma das salas de refeição. Posteriormente e, ainda segundo o mesmo autor, o seu local de peregrinação para noites de boémia e fadistagem será, já em Lisboa, o clube Sempre Unidos. O seu envolvimento com as temáticas fadistas manteve-se ao longo de toda a sua vida, fazendo parte de comissões de homenagens, como a realizada para o guitarrista Luís Carlos da Silva (Petrolino)29, em 1931, ou em festas de beneficiência. 23

Rosa, António, “João Black”, in Trova Popular, 13 de Abril de 1919, pp.1.

24

Nogueira, César, “Palavras de Saudade”, in A Voz do Operário, 1 de Fevereiro de 1956, pp.3.

25

Idem.

26

Guitarra de Portugal, 24 de Fevereiro de 1923.

27

Guinot, Maria, Ruben de Carvalho e José Manuel Osório (1999), Histórias do Fado, Amadora: Ediclube, pp. 327.

28

Sucena, Eduardo (1992), Lisboa, o Fado e os Fadistas, Lisboa: Vega, pp. 64.

29

V. Nota 57.

108


Em Julho de 1943 foi também ele objecto de uma sentida homenagem, na qual Avelino de Sousa o presenteou com estes versos: Quando o Fado não era um “ganha pão”, Mas um terno motivo espiritual, - Hóstia de Luz, na doce comunhão, Do Povo, com a Alma nacional...

De entre os nomes mais altos da Canção Mais popular em tôdo o Portugal, Um houve que, de forma mais real, Se destacou e teve vibração.

Um nome de poeta consagrado E trovador que soube honrar o Fado Em verso de divino sentimento!

E êsse Nome que mer’ceu um tal destaque, Foi o teu, camarada João black, Que o conquistaste a golpes de Talento!30

Em Novembro de 1954, na edição do dia 30 do jornal A Voz de Portugal anunciava-se que João Black estava doente. Viria a falecer um ano mais tarde, no dia 18 de Dezembro de 1955, em Lisboa, com 83 anos. João Black publicou inúmeros poemas em jornais e folhetos, escrevendo sobre ideais de igualdade e luta social, mas também sobre o amor ou exaltação de associações como a Voz do Operário. O período mais profícuo da sua carreira é paralelo a todo o movimento ideológico de viragem do século, e durante a sua vida e mesmo após a sua morte foi relembrado como figura emblemática e representativa do fado como veículo de mensagens temáticas ideológicas de cariz socialista. A terminar o conjunto de perfis de vozes fadistas mais significativos quando estudamos o fado republicano debruçamonos sobre o poeta, cantador e dramaturgo mais evocado e identificado com as características reveladas anteriormente - Avelino de Sousa. Operário de tipografia e bibliotecário a par de poeta, cantador e escritor de peças teatrais e romances, Avelino de Sousa é dos mais destacados representantes da poesia ligada às causas sociais cuja vasta obra escrita, no universo fadista, é dos mais extraordinários casos de sucesso e popularidade. Avelino Ferreira de Sousa nasceu a 6 de Abril de 1880, em Lisboa, filho de João e Emília Ferreira de Sousa, e foi baptizado na Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Encarnação, a mesma onde os seus pais haviam casado em 1879. A família era ainda composta por Laura, filha de um anterior relacionamento do pai.

30

Folheto de homenagem, Julho de 1943 (Colecção José Manuel Osório).

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Canção do Sul Ano I – nº 5 29 de Abril 1923 Espólio de Armando Neves Oferta de Alexandra Paula Hora Neves Inv. nº 12615

110

A Canção de Portugal Ano 1 – Nº 19 06 de Agosto 1916 Colecção Museu do Fado Inv. nº 8738


Canções ao Fado, Avelino de Sousa Lisboa, Livraria Popular Francisco Franco, s/d Colecção Francisco Mendes

…Cantem todos (150 quadras), Avelino de Sousa Lisboa, Henrique Torres Editor, 1940 Colecção Francisco Mendes

111


Com 5 anos foi para o colégio da Câmara, a escola 17, instalada na Rua das Gáveas e, mais tarde, transferida para a Rua da Barroca. Dois anos mais tarde a sua mãe faleceu tísica com apenas 31 anos de idade, conforme o próprio relata no jornal Guitarra de Portugal31. O pai colocou-o numa loja da Rua Nova da Trindade para ser aprendiz de estofador, actividade para a qual Avelino de Sousa, então com 11 anos, não sentia a menor vocação. Ainda assim, permaneceu vários anos nessa loja, até se empregar como caixeiro na livraria Guimarães & Cª. e mais tarde vir a integrar o quadro de trabalhadores do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Avelino de Sousa começou a cantar fado em 1896, com 16 anos, quando um dia foi assistir a um ensaio de uma cegada escrita por José Corado. Apercebendo-se que um dos intérpretes não conseguia acompanhar a música em tempo certo, pediu para demonstrar no intuito de ensinar o intérprete, mas acabou por ser forçado a participar na referida cegada. Passou depois a cantar os seus próprios poemas, sendo um dos autores mais cotados das cegadas e parodias carnavalescas, tornado-se célebres as que escreveu e ensaiou sob o título de “Portugal assaloiado”, revista carnavalesca que durante anos sucessivos percorreu as ruas de Lisboa32. Avelino de Sousa esteve bastante ligado às cegadas lisboetas, um dos ambientes mais propícios à veiculação deste género de fados, conforme referimos anteriormente. Autor de uma vasta produção poética, publicada nos livros Canções ao Fado (s/d.), Lira de Prata (s/d.), A Canção Nacional (1907), O Fado das Mulheres (1909) ou Cincoenta Sonetos (1921), Avelino de Sousa também desenvolveu uma extensa colaboração com diversos jornais como o República Social ou A Voz do Operário, mas salientamos particularmente a presença dos seus escritos de temática fadista, nas páginas dos jornais A Canção de Portugal, O Fado, A Alma de Portugal ou a Guitarra de Portugal. A obra O Fado e os seus Censores, reunião de artigos em defesa do fado, primeiramente publicados no jornal A Voz do Operário, e depois em livro, no ano de 1912, destaca-se não só pelo sucesso que representou na data do seu lançamento, mas por ser ainda hoje um livro fundamental para a contextualização da História do Fado. É de facto esta vertente defensora e de assumpção desta forma musical como veículo educador que melhor caracteriza as intenções de Avelino de Sousa, como o próprio revela em entrevista a João Linhares Barbosa, em 1922: Adoro a canção popular sob o ponto de vista sentimental e, principalmente, como trova de educação social, disseminadora – em versos simples que o povo entenda sem grande ginástica de espírito – de todos os nobres ideiais. Diligenciei sempre produzir na minha obra para o Fado, - além dos versos que cantam o Amor e a Saudade – trovas que tradusissem os mais elevados sentimentos consentâneos com os mais sãos princípios da Solidariedade Humana, pugnando pela emancipação da mulher em especial e da Humanidade em geral33.

31 A partir de 12 de Fevereiro de 1925 e ao longo de todo esse ano, Avelino de Sousa publicou no jornal Guitarra de Portugal, uma coluna de título Gente Do Meu Tempo (Apontamentos para um livro de memórias), onde apresenta um aglomerado de apontamentos ligeiros de carácter biográfico. 32

Alves, Fernando, “Poetas Populares. V – Avelino de Sousa”, in Guitarra de Portugal, 31 de Janeiro de 1924.

33

Guitarra de Portugal, 19 de Agosto de 1922.

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Ao iniciar a década de 1920 já Avelino de Sousa se assumia, também, como escritor dramático34, deixando quase completamente a interpretação de fados. Entre as suas muitas obras para teatro destacamos naturalmente as peças mais centradas na retratação imagética do fado, a opereta Bairro Alto, estreada no Teatro São Luiz em Abril de 1927, recebida com tal entusiasmo pelo público e celebrada nos dois jornais de temática fadista mais representativos35, que Avelino de 34

A sua primeira peça foi um drama em dois actos, a que deu o título Rodrigo, o Serralheiro, parodiando uma peça de grande sucesso popular Gaspar, o Serralheiro. A peça subiu ao palco do Teatro Thepsicore, espaço de actores amadores, na Praça das Flores, e, posteriormente escreveu vários monólogos e cançonetas, igualmente interpretadas por conhecidos amadores (cf. Alves, Fernando “Poetas Populares. V – Avelino de Sousa”, in Guitarra de Portugal, 31 de Janeiro de 1924, pp. 6). Em 1911, Avelino de Sousa alargou o âmbito da sua escrita estreando-se como autor da peça Perdeu a Fala, no Teatro Moderno. Continuou depois nesta linha produtiva com as peças: Guerra aos homens, Braga por um canudo, Aqui d’el-Rei, Pé de dança, Sem pés nem cabeça ou Phantasia no País do Sol, estreada no Teatro Eden em 1916. Com várias peças representadas não só em Portugal, mas também no Brasil, representando a companhia do Teatro Trindade percorreu o Rio de Janeiro, São Paulo e Santos e escreveu peças para companhias teatrais brasileiras. A sua ligação ao teatro fez-se também por artigos no Jornal dos Teatros, onde ao longo de vários anos, desde 1917, escreveu Os subsísdios para a história do teatro (cf. Alves, Fernando “Poetas Populares. V – Avelino de Sousa”, in Guitarra de Portugal, 15 e 27 de Fevereiro de 1924), e os dois primeiros volumes da publicação Album Teatral (1915), onde escreveu biografias de figuras desta área, em prosa e em verso.

35 A este respeito vejam-se os jornais Canção do Sul, 24 de Abril de 1927 e Guitarra de Portugal, 16, 21 e 30 de Abril de 1927. Na publicação de 21 de Abril apresentam-se os actores e o descritivo dos 6 quadros da peça.

Fotografia de grupo com Alfredo Duarte Marceneiro, João David, Joaquim Caperta, Manuel Marques da Silva, Miguel Quintas, Adelino Santos, Avelino de Sousa e Raul d’ Oliveira Lisboa, 22 Maio1932 Espólio de Alfredo Marceneiro Inv. nº 16585 Colecção Museu do Fado

113


Sousa publicou posteriormente em romance (edição da Livraria Popular, 1944) e, mais tarde, a História do Fado, com estreia no Teatro Maria Vitória em 1930. Avelino de Sousa foi glorificado pelo sucesso das suas obras e também alvo de várias homenagens36. Faleceu a 18 de Junho de 1946, na mesma cidade que o viu nascer, deixando um legado insubstituível de produção teatral e poética e obras de referência no âmbito do “fado republicano”, nas quais evidencia opiniões muito sentimentais sobre o que achava ser o fado e a defesa da sua importância no contexto nacional: (...) a canção nacional é a trova de propaganda social, que não canta só o amor e a saudade; é, também, e primordialmente, o escalpello com que se dissecam as infamias da vida; o latego com que se castiga o Rei Milhão; o chicote com que os poetas populares fustigam a mentira do patriotismo, o embuste da religião, a selvageria das touradas, as incoherencias mercantis do jornalismo, e todas as orthodoxias archaicas e sensualidades dissolventes!37

36

A 30 de Dezembro de 1924 realizou-se um banquete de homenagem a Avelino de Sousa e Custónio Nunes, com organização a cargo do jornal Guitarra de Portugal. Alguns meses depois, a 10 de Maio de 1925, realizou-se um espectáculo de matinée em sua homenagem no Teatro São Luiz, com um vasto programa que incluía: representação de uma peça do autor, actuação de artistas do teatro de Revista, recitação de sonetos, acto de variedades e ainda leituras (cf. Guitarra de Portugal, 9 de Maio de 1925).

37 Sousa, Avelino (1912), O Fado e os seus Censores, Lisboa: edição de autor, pp. 35 (excerto de artigo dirigido ao Dr. Albino Forjaz de Sampaio).

114

Discos de 78 rpm Colecção Museu do Fado


2. Outras Vozes do Fado no Período Republicano Paralelamente à intensa actividade desenvolvida por este conjunto de poetas-cantadores, na difusão e estruturação de uma conjuntura que tem na defesa do fado, como arma de luta social, o seu objectivo principal, a nossa reflexão sobre as “vozes do fado” neste período centra-se também naqueles para quem o primordial objectivo do fado se centrou essencialmente na sua interpretação. Naturalmente que a dignificação dos praticantes, o crescimento da popularidade do género e a sua directa relação com o aumento do número de espaços onde o público podia usufruir deste género musical, contribuiu para uma modificação da imagem dos intérpretes, maioritariamente referidos como cantadores e cantadeiras, uma vez que a palavra fadista parece ter ainda nesta altura uma conotação muito próxima da marginalidade. Nos trajectos biográficos dos intérpretes mais popularizados no período republicanos podemos detectar características de persistência nas interpretações amadoras, espontâneas e de ligação do fado com os locais de boémia da cidade de Lisboa, intercaladas com elementos que tendem para a consideração do fado, senão como profissão, como meio de obtenção de remunerações cada vez mais frequentes, em particular nas actuações e na gravação de discos. Território mais favorável para o delineamento de um percurso de profissionalização é o da celebrização de fadistas nos palcos do teatro de revista, um género em ascensão onde o fado é crescentemente integrado. •

Trajectos Biográficos no Caminho da Profissionalização

Entre um vasto conjunto de intérpretes que percorrem os anos de 1910 a 1925, Júlia Florista é sem dúvida uma das figuras mais popularizadas. Transportada desde o início do século até aos nossos dias por uma caracterização de cariz bairrista e boémio, cuja tipificação foi registada posteriormente neste fado de autoria de Joaquim Pimentel: A Júlia Florista Boémia e fadista - Diz a tradição – Foi nesta Lisboa Figura de proa Da nossa canção. Figura bizarra Que ao som da guitarra O fado viveu Vendia flores, Mas os seus amores Jamais os vendeu. Ó Júlia Florista Tua linda história O tempo marcou Na nossa memória; Ó Júlia Florista, Tua voz ecoa Nas noites bairristas, Boémias, fadistas 115


Da nossa Lisboa. (...) Júlia de Oliveira nasceu em Lisboa, no Hospital de S. José, em 1883. Desempenhou desde criança a profissão de vendedora de flores, de onde lhe veio o nome e, segundo as descrições foi possuidora de dotes vocais tais que foi celebrizada em scintilantes crónicas de D. João da Câmara, Júlio Mardel de Arriaga, Dr. Júlio Dantas, Paulo Barreto, Malheiro Dias, etc., que nela sintetisaram um tipo popular lisboeta38. Um dos locais onde a cantadeira de Lisboa, a cigarra do Ribatejo39 se deslocava muitas vezes era à Praça de Touros do Campo Pequeno, para vender as suas flores e era aí naturalmente que mantinha contacto com os grandes nomes da aristocracia portuguesa. De tal forma era esse o seu espaço que, em homenagem póstuma, em Dezembro de 1937, se diz que não havia espera de touros ou toirada em que a Júlia não aparecesse com o seu açafate repleto de flores que muitas das vezes eram com entusiasmo atiradas para o redondel das praças a premiar o garbo dos artistas e a nobreza das feras40. Júlia Florista actuou como fadista espontânea, não remunerada, pelas ruas, em tabernas e também em casas aristocráticas e quando D. Caetano de Bragança, (...), organizou uma festa no antigo Casino de Paris, para recordar a figura de Severa, foi a Júlia a cantadora escolhida para interpretar o vulto clássico da cigarra fadista, utilizando até a guitarra que pertencera à musa célebre da Rua do Capelão41. Esta festa realizou-se a 21 de Novembro de 1907. Apesar de nas suas interpretações se acompanhar a si mesma à guitarra, os fados que interpretava não eram da sua autoria, sendo referidos como temas do seu repertório o Fado da Paixão, o Corridinho, de Manuel Serrano, ou o Fado dos Passarinhos42. Ainda que seja considerada amadora Júlia Florista inclui-se no restrito número de intérpretes que tiveram acesso à gravação discográfica logo nas primeiras décadas do século, conhecendo-se-lhe dois discos de 78 rpm da etiqueta Odeon, com as faixas Fado Paixão, Fado dos Cantadores, Fado dos Pintassilgos e O Velho Fado da Mouraria. Júlia Florista faleceu com apenas 32 anos a 10 de Junho de 1925, vítima de ataque cardíaco, e, apesar de figura emblemática da canção nacional, apenas doze pessoas acompanharam o seu funeral no cemitério do Alto de S. João no dia seguinte43. Será mais tarde efusivamente lembrada, em particular durante o Estado Novo, quando o fado apresenta como traço dominante do repertório, (...) um regresso – implicitamente encorajado pela própria estratégia da Censura – aos temas do passado. A imagem mítica de Júlia Florista irá juntar-se, neste âmbito, às da Severa e da Cesária44. Exemplo desta fórmula é a referida homenagem póstuma, a realizar no salão Mondego no dia 6 de Dezembro de 1937, às trez grandes e saudosas

38

Guitarra de Portugal, 10 de Dezembro de 1926.

39

Guitarra de Portugal, 30 de Junho de 1925.

40

Guitarra de Portugal, Dezembro de 1937, Número Fac-Simile.

41

Segundo o texto de João Fernandes esta guitarra da Severa estaria na posse de D. Caetano de Bragança, Guitarra de Portugal, 30 de Junho de 1925. Mais tarde, em artigo de José Luiz Ribeiro no mesmo jornal, rectifica-se esta informação, afirmando-se que a guitarra não seria da Severa, Guitarra de Portugal, 10 de Dezembro de 1926. 42

Guitarra de Portugal, 30 de Junho de 1925.

43

Idem.

44

Nery, Rui Vieira (2004), Para uma História do Fado, Lisboa: Público/Corda Seca, p. 193.

116


figuras do fado Hilário, Júlia Florista e António Ginguinha45. Nesta ocasião anuncia-se ainda o descerramento de 3 lápides alusivas aos fadistas no salão Mondego, sendo a de Júlia Florista descerrada pela fadista Maria do Carmo. A permanência do amadorismo é muitas vezes associada a uma caracterização de profunda inspiração pela prática fadista e maior genuinidade, mas na verdade não seria fácil a sustentabilidade económica com base nesta carreira no período em questão. O fadista João Maria dos Anjos afirma em entrevista ao jornal Guitarra de Portugal, de 27 de Julho de 1930, que recebeu retribuições monetárias com o fado, nomeadamente através da gravação de discos, mas as intensas contratações para recintos específicos de fado só viriam a surgir no final da década de 1920, altura em que optou por não mudar de profissão. O percurso profissional de João Maria dos Anjos foi passado na Imprensa Nacional, onde entrou como aprendiz de fundição e evoluiu até funcionário de Secretaria. E, no que diz respeito ao fado, tal como Júlia Florista, nunca se profissionalizou como intérprete. João Maria dos Anjos nasceu em Alcântara a 21 de Março de 1891. Começou por tocar viola na tuna 11 de Março, na Fonte Santa, zona onde morava. Depois trocou a viola pela guitarra e começou a acompanhar alguns cantadores, até começar também a cantar. Fundou no seu local de trabalho, a Imprensa Nacional, um agrupamento que ele próprio dirigia e ensaiava. Por insistência de Carlos Harrington, cantou pela primeira vez o fado ao desafio no restaurante João da Ermida, onde se deslocava para assistir às noites de fadistagem, tinha então 17 anos46.

45

Guitarra de Portugal, Dezembro de 1937, Número Fac-Simile.

46

Guitarra de Portugal, 27 de Julho de 1930; Canção Nacional, 15 de Janeiro de 1928.

Guitarra de Portugal Número Fac-Simile Lisboa, Dezembro de 1937 Espólio de Leonor Fialho Oferta de Fernando Caeiro Diniz Inv. nº 10041 Colecção Museu do Fado 117


Júlia Florista Guitarra de Portugal, 10 de Dezembro de 1926 Espólio de Armando Neves / Oferta de Alexandra Neves / Inv. nº 12800 João Maria dos Anjos Guitarra de Portugal, 27 de Julho de 1930 Espólio de Armando Neves / Oferta de Alexandra Neves / Inv. nº 12921 Maria do Carmo Pormenor de fotografia, 1934 Espólio de Alfredo Marceneiro / Oferta de Aida Duarte / Inv. nº 1921 Colecção Museu do Fado

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Alfredo Marceneiro s/d Espólio de Alfredo Marceneiro / Oferta de Aida Duarte / Inv. nº 1917 Júlia Mendes Guitarra de Portugal, 12 de Novembro de 1924 Espólio de Armando Neves / Oferta de Alexandra Neves / Inv. nº 12749 Maria Vitória Pormenor da partitura Dois Fados Oferta de Luís de Castro / Inv. nº 578 Adelina Fernandes O Notícias Ilustrado, 14 de Abril de 1929 Oferta de Júlio Lino Couto / Inv. nº 16274 Colecção Museu do Fado 119


A passagem pelos retiros tornou-se regular, acompanhando outros cantadores (nomeadamente os referidos na primeira parte desta exposição) em improvisos ou fados ao desafio. Foram lugares que frequentou não só o referido João da Ermida, mas também os Tia Iria e José dos Pacatos, e, depois, Ferro de Engomar, Pedralvas, Charquinho, Caliça, Perna de Pau, António da Rosa e Quinta da Montanha. João Maria dos Anjos aceitou ainda cantar em algumas casas aristocráticas, como as dos Condes da Guarda, da Ribeira ou da Arrochela, e percorreu os palcos dos teatros Luís de Camões, Étoile, Trinas, Salão dos Anjos, Moderno, Coliseu, São Luís, Eden, Apolo e Gimnásio47. Poeta popular de tendência ideológica socialista, João Maria dos Anjos foi autor de muitas das suas criações, mas incluiu também no seu repertório obras de outros poetas, em especial as de autoria de Avelino de Sousa48. Obteve também sucesso com algumas músicas que compôs, casos dos fados O Ceguinho, Fado Marcha, Fado Corrido n.1, Fado Corrido n.2, A Minha Aldeia e Fado Alexandrino, deixando pelo menos registado em edição discográfica as faixas Cor dos Olhos e O Ceguinho da etiqueta Brunswick. As suas composições musicais e poéticas foram pouco interpretadas após o seu falecimento, a 8 de Junho de 1956, naturalmente por serem criações para o seu próprio repertório. O trajecto biográfico de João Maria dos Anjos, apesar de amador, foi seguido durante várias décadas pelos jornais específicos de fado49, sendo inclusive alvo de uma homenagem no Salão Júlia Mendes a 6 de Maio de 1948, e integrando-se no conjunto de personalidades consideradas das mais dignificantes para o estatuto que se pretendia na prática desta canção. A completar este conjunto de trajectórias fadistas debruçamo-nos sobre dois intérpretes com uma longa e frutífera carreira, iniciada no período republicano, mas apenas assumidamente profissional nas décadas seguintes – Maria do Carmo e Alfredo Duarte (Marceneiro). Estas duas figuras maiores da História do Fado estão directamente identificadas com os intérpretes da classe popular operária, embora os seus trajectos registem um tal alcance de popularidade que ambos contribuem decisivamente para o estabelecimento de uma base regular de actuações, durante o período republicano, que nas décadas seguintes à Primeira República, resultará numa rápida ascensão à profissionalização. Alfredo Rodrigo Duarte, que ficou conhecido por Alfredo Marceneiro, dada a sua profissão, nasceu em Lisboa, no dia 29 de Fevereiro de 1891, embora o seu bilhete de identidade referisse o seu nascimento a 25 de Fevereiro de 1891. Em 1905, quando tinha apenas 13 anos, o seu pai faleceu e Alfredo Duarte abandonou os estudos para ir trabalhar. O seu primeiro emprego foi o de aprendiz de encadernador. Alfredo Marceneiro tomou contacto com o fado ao assistir às cegadas de rua, onde conheceu Júlio Janota, que o encaminhou para ser aprendiz numa oficina de marcenaria em Campo de Ourique, profissão que ficaria para sempre associada ao seu nome. Começou por cantar fado nos bailes populares que frequentava, entre os 14 e os 17 anos. Nesta altura, 1908, faz a sua estreia na cegada do poeta Henrique Lageosa, inspirada no argumento do filme mudo O Duque de Guise, onde interpreta o papel da amante do Duque. A este propósito importa salientar que se a componente de 47

Machado, A. Victor (1937), Ídolos do Fado – Biografias, Comentários, Antologia, Lisboa, Tipografia Gonçalves, p. 112.

48

Sucena, Eduardo (1992), Lisboa, o Fado e os Fadistas, Lisboa: Vega, p. 61.

49

A título de exemplo vejam-se as publicações Canção Nacional de 15 de Janeiro de 1928; Guitarra de Portugal de 27 de Julho de 1930 e 1 de Outubro de 1946; ou Ecos de Portugal de 1 de Maio de 1948, jornais onde o fadista merece destaque como tema de capa.

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transmissão de uma mensagem social no fado era realizada essencialmente por intérpretes masculinos, o mesmo se verificava nas cegadas, com homens a assumir travestidos os papéis femininos das peças. Verificamos ainda que o fadista cruza muito cedo os espaços mais directamente relacionados com a difusão da mensagem republicana, onde as cegadas têm um papel evidenciado, como já referimos. A chegada de Maria do Carmo ao universo do fado regista-se de outra forma. Nasce em Moura, no Alentejo, a 11 de Janeiro de 1894. Os seus pais, Francisco e Madalena Páscoa eram lavradores, mas em 1897 decidem ir para Lisboa, ficando na altura a residir no Campo de Sant’Ana e, pouco tempo depois, mudam-se para a Travessa de Gertrudes, na Estrela. Com apenas sete anos, durante um passeio a Algés com a sua família, Maria do Carmo ouviu um cego tocar guitarra e como a própria relata: com todo o descaramento me coloquei à frente dos ceguinhos e, muito senhora de mim, cantei as quadras que costumava cantar nas rodas, nos bailaricos. Pode dizer-se que foi assim que comecei a minha vida fadista50. Mais tarde, em 1905 é admitida como aprendiza na casa Ramiro Leão, especializada em camisas de homem. Nesta altura começa a frequentar os retiros onde era escutada religiosamente51. Faz a sua primeira exibição em público no restaurante Águia Roxa, em Sacavém. Posteriormente, no início da década de 1920, canta em todos os retiros e restaurantes da época: Caliça, Pedralvas, Charquinho, e ainda em Espanha e no Brasil52. Apesar do enorme sucesso, a fadista continuou a manter a profissão de camiseira, nesta altura já tendo o seu próprio atelier, no 5º andar do nº 166 da Rua da Prata. Também Alfredo Marceneiro manteve a sua profissão, até à década de 1930 nas oficinas de Diamantino Tojal e, posteriormente, nas Construções Navais do Arsenal do Alfeite (depois administradas pela C.U.F.), e só em 1946 se dedicou exclusivamente ao fado como profissional. No início da sua vasta carreira, Alfredo Marceneiro, para além de participar nas cegadas, onde desenvolve o seu método de dizer bem e dividir as orações, começa a cantar em diversas festas de solidariedade e retiros e é precisamente no 14, situado no Largo do Rato, que se torna mais conhecido. Depois é contratado para exibições em casas como o Clube Olímpia, onde esteve com Armandinho, Júlio Proença e Filipe Pinto, e em outras casas típicas como as Boémia, Ferro de Engomar, Castelo dos Mouros, Solar da Alegria, ou Júlio das Farturas, onde cantou durante um ano. No decorrer das décadas posteriores à República a sua carreira prossegue com grande sucesso53 e chega mesmo a ter a sua própria casa, o Solar do Marceneiro, no final da década de 1940, mas sendo um espírito irrequieto não consegue cingir-se a cantar diariamente nesse espaço.

50

Carmo, Maria do (1964), Memórias de uma Fadista, Lisboa: edição de autora, p. 7

51

Machado, A. Victor (1937), Ídolos do Fado – Biografias, Comentários, Antologia, Lisboa, Tipografia Gonçalves, p. 166.

52

Mata, João da (1936), Azes do Fado, Ano I, nº 1, 1 de Fevereiro, p. 6; Guitarra de Portugal, 15 de Agosto de 1923.

53

Como exemplo dos momentos mais evidentes da admiração e fama que adquiriu durante a sua longa carreira salientamos: a organização de uma festa artística, em 1933 no Júlio das Farturas do Parque Mayer; a 10 de Maio de 1941 um outro espectáculo denominado Festa Artística de Alfredo Marceneiro, desta feita no Solar da Alegria; ou, ainda, a consagração como “Rei do Fado”, no Café Luso, a 3 de Janeiro de 1948. Em 1939, com a conhecida cantadeira Berta Cardoso, grava actuações no Teatro Variedades e no Retiro Colete Encarnado, que serão apresentadas no filme Feitiço do Império, de António Lopes Ribeiro. Lamentavelmente, a película existente na Cinemateca Portuguesa apresenta-se bastante deteriorada.

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Apesar do sucesso da sua carreira nunca saiu de Portugal para actuações e raramente deixou Lisboa, embora na década de 1930 tivesse integrado alguns espectáculos de grupos criados para efectuar tournées por Portugal, caso da Troupe Guitarra de Portugal, com Ercília Costa, Rosa Costa, Alberto Costa, João Fernandes (guitarra) e Santos Moreira (viola); ou da Troup Artística de Fados Armandinho, com Armandinho, Georgino Gonçalves, Cecília d’ Almeida, Filipe Pinto e José Porfírio. No caso de Maria do Carmo, a fadista cedo alargou o âmbito das suas actuações ao Brasil, partindo no início da década de 1920, para se dedicar ao ramo hoteleiro num espaço chamado Pensão Familiar. Regressou a Portugal passados dois anos e em 1926 tirou a carteira profissional como fadista. Nesse mesmo ano voltou ao Brasil, mas desta vez contratada para actuar no Cinema Central do Rio de Janeiro e, no seu regresso, em 1928, torna-se sócia do retiro Ferro de Engomar54. Acabará por deixar este espaço e continuar a cantar nos elencos de várias das casas de Lisboa e também em digressões 54

Machado, A. Victor (1937), Ídolos do Fado – Biografias, Comentários, Antologia, Lisboa, Tipografia Gonçalves, pp. 166 e 168.

Guitarra de Portugal, 20 de Julho de 1935 Espólio de Duarte Pais Oferta de Cipriano de Sobreda Inv. nº 10301 Colecção Museu do Fado

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pelo país. As suas passagens pelo teatro incluem as operetas História do Fado e Mouraria, a primeira estreada em 1930, no Teatro Maria Vitória, e a segunda, onde interpretou o papel de Cesária, estreou-se no ano seguinte no Coliseu dos Recreios. Também Alfredo Marceneiro cantou no teatro55, estreando-se na opereta História do Fado, de autoria de Avelino de Sousa. As gravações discográficas da obra de Alfredo Marceneiro não são muitas, especialmente se tivermos em conta que para os apreciadores, intérpretes e amigos continua a ser considerado, ainda hoje, um dos mais consagrados fadistas do século XX, seguido como um modelo na forma de dividir os versos cantados. Gravou o seu primeiro disco para a Casa Cardoso em 1930, com os temas Remorso e Natal do Criminoso, após o que se tornou artista privativo da Valentim de Carvalho, onde gravou várias faixas registadas em 78 rpm, a que se seguiram apenas quatro LP’s e três EP’s, o último, Fabuloso Marceneiro, gravado aos 70 anos. Maria do Carmo deixou registos discográficos em 78rpm, gravados pelas etiquetas Columbia e Odeon, em Lisboa nos anos de 1929, 1934 e 1936 e, no Rio de Janeiro, em 1935. Os fados Perdidas, Ais, Saudades, Os beijos são como as rosas, Desgarrada, Neste caminho de terra, O chaile de minha mãe ou Amor humilde, são alguns dos temas de maior sucesso do seu repertório. Alfredo Marceneiro considerava-se um estilista e nesta criação de estilos acabou por ser autor de composições que são hoje consideradas fados tradicionais. A sua primeira composição foi a Marcha do Alfredo Marceneiro, mas seguiram-se muitas outras como: Fado Laranjeira, Lembro-me de ti, Fado Bailado, Fado Bailarico, Fado Balada, Fado Cabaré, Fado Cravo, Fado CUF, Fado Louco, Mocita dos Caracóis, Fado Pagem, Fado Pierrot, Bêbado Pintor e Fado Aida. Com a ajuda de Armando Augusto Freire (Armandinho), que lhe passou as músicas para pauta, o fadista registou as suas composições na Sociedade de Escritores e Autores Teatrais Portugueses. Alfredo Marceneiro reformou-se em 1963, realizando-se a 25 de Maio desse ano, no Teatro S. Luiz, a festa A Madrugada do Fado - Consagração e despedida do Grande Artista Alfredo Duarte Marceneiro. Na verdade esta não foi uma despedida, Alfredo Marceneiro continuou a cantar durante quase mais duas décadas. Em 23 de Junho de 1980, numa cerimónia realizada no Teatro São Luiz, é-lhe entregue a “Medalha de Ouro de Mérito da Cidade de Lisboa”, pelo Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Eng.º Krus Abecassis. Faleceu a 26 de Junho de 198256. Em 1955 Maria do Carmo adoeceu. Faleceu em 1964, mas antes publicou, em edição de autor, a sua autobiografia, de título Memórias de uma Fadista, obra redigida com a colaboração da secretária do poeta Adriano dos Reis (autor de grande parte do seu repertório).

55

As suas interpretações em palcos de teatros incluíram também o São Luiz, o Avenida, o Apolo, o Éden - Teatro, o Capitólio, o Politeama, o Maria Vitória, e outros.

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Foi ainda alvo de várias homenagens póstumas, como a “Comenda da Ordem do Infante D. Henrique”, atribuída a 10 de Junho de 1984 pelo Presidente da República General Ramalho Eanes; a atribuição do seu nome a uma rua do bairro de Chelas, pela Câmara Municipal de Lisboa; e, em 1991, a comemoração do centenário de nascimento do fadista, onde, entre outros eventos, foi lançado o duplo álbum O Melhor de Alfredo Marceneiro (EMI-Valentim de Carvalho) e foi exibido na RTP o documentário Alfredo Marceneiro é só Fado.

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Armando Augusto Freire (Armandinho) – Percurso de um Guitarrista

São vários os intérpretes do fado, que iniciam a sua ligação a este género musical no período republicano, que se acompanham a si próprios a tocar guitarra. No entanto, desde a segunda metade do século XIX que se assiste a um desenvolvimento, cada vez mais qualificado pela elaboração de métodos, da arte interpretativa da guitarra portuguesa. Um movimento especialmente centrado na figura do guitarrista João Maria dos Anjos. Sentimos necessidade de alargar um pouco o âmbito das vozes do fado a Armando Augusto Freire (Armandinho) na medida em que este guitarrista exibia uma técnica adaptada aos fadistas que acompanhava, criando uma espécie de diálogo que evidenciava as particularidades interpretativas dos cantadores e que lhe permitia assumir uma posição de igualdade com os fadistas e não a subalternização até então muito vulgarizada. Armando Augusto Salgado Freire, que ficou conhecido por Armandinho nasceu em Lisboa, no Pátio do Quintalinho, perto da Rua das Escolas Gerais, em Alfama, a 11 de Outubro de 1891. Com o pai aprende a tocar bandolim mas, aos dez anos, começa a interessar-se pela guitarra portuguesa e quatro anos depois, em 1905 faz a sua primeira actuação em público, no Teatro das Trinas, iniciando desta forma a sua carreira como instrumentista. A sua carreira é impulsionada quando, em 1914, conhece o mais famoso guitarrista da época - Luis Carlos da Silva, conhecido por Luis Petrolino57, e se torna seu discípulo. Ainda assim, manterá diversas profissões seja como meio-oficial de sapateiro, moço de bordo, operário da Companhia Nacional de Fósforos, servente do Casão Militar ou fiscal do Mercado da Ribeira. Durante a Primeira República faz sua estreia como guitarrista profissional no Olímpia Club, situado na Rua dos Condes, acompanhado à viola por João da Mata Gonçalves. Em 1925 acompanha cantadores e cantadeiras no Solar da Alegria, local de culto dos amantes do Fado, que ali se deslocam para se deliciarem com as suas improvisações ou ouvi-lo interpretar as composições do seu mestre, Luis Petrolino. Em 1926 Armando Freire faz a primeira gravação em Portugal em microfone de bobine eléctrica móvel. Grava seis composições, acompanhado na viola por Georgino de Sousa, para a His Master’s Voice, que em Portugal é financiada e vendida pela Valentim de Carvalho. Dois anos depois, em 1928, também acompanhado por Georgino de Sousa, Armandinho

57

Luís Carlos da Silva nasceu em Setúbal a 16 de Abril de 1859. Com 3 anos a sua família veio para Lisboa e instalou-se nas Escadinhas de São Cristovão. O nome Petrolino surgiu porque quando era rapaz gostava muito de andar com um gorro que os vendedores de petrolio usavam (Guitarra de Portugal, 29 de Março de 1928). Muito jovem, com apenas 8 anos iniciou-se na aprendizagem da guitarra portuguesa com o consagrado João Maria dos Anjos, e no ano seguinte já fazia a sua estreia ao lado do seu professor no Teatro Príncipe Real, percorrendo depois com ele toda a província (Canção do Sul, 1 de Abril de 1923).Em Lisboa actuou nos cafés Colon, Inferno e Café Martins, acompanhando diversos fadistas. Em 1899 foi contratado com a Troupe Gounod para uma deslocação à Rússia, onde actuaram durante seis meses, em vários teatros de S. Petersburgo, num dos quais esteve presente o Grã-Duque, tio do Csar. Luís Petrolino acabou por permanecer 14 anos naquele País. Também com a Troupe Gounod teve espectáculos em Berlim, Paris e Bordéus. Em 1914 em consequência de algumas dificuldades económicas vai trabalhar como contínuo na Escola Veiga Beirão, na Costa do Castelo, onde também habitou até final da sua vida. Continua a tocar e a ensinar guitarra portuguesa e é frequentemente chamado para concertos solistas (Guinot, Maria, Ruben de Carvalho e José Manuel Osório (1999), Histórias do Fado, Amadora: Ediclube, pp. 346 e 350). Teve como díscipulos Armandinho e José Marques Piscalarete que seguiram o seu estilo admirável e tocavam como números obrigatórios dos seus repertórios as composições do seu mestre, nomeadamente as Variações em Ré Maior e Menor (Sucena, Eduardo (1992), Lisboa, o Fado e os Fadistas, Lisboa: Vega, p. 82). A 1 de Abril de 1928 foi-lhe prestada uma grande homenagem no restaurante Ferro de Engomar, em Benfica, com a presença e actuação de vários intérpretes, nomeadamente Alberto Costa, Maria do Carmo ou Armandinho. A 3 de Outubro de 1931 o guitarrista será objecto de mais uma sincera homenagem pelos seus pares. Faleceu em 1933.

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Armandinho Fado do Estoril/Fado em Mi Menor 78 rpm Ed, “His Master’s Voice” E.Q. 166 – 7-69333/ 7-69334 Inv. nº 16586 Colecção Museu do Fado


grava em duas sessões no Teatro S. Luís, um conjunto de Fados, variações em tons diferentes uma marcha, mais uma vez editados no formato de 78 rpm. Estas faixas serão reeditadas em CD pela editora Heritage, em 1994. Armandinho foi um dos primeiros guitarristas a realizar digressões artísticas fora do continente português. Em 1922 anuncia a sua ida a Espanha e a Inglaterra com João da Mata Gonçalves58. Entre 1932 e 1933 desloca-se em tournée pelas Ilhas portuguesas, e por Angola e Moçambique, acompanhado pelo mesmo violista e por Martinho d’Assunção, Ercília Costa, Berta Cardoso e Madalena de Melo. Músico autodidacta, toca de ouvido e, para além de um excelente executante, é também compositor de grandes melodias. Autor de muitos Fados e variações que sobrevivem até aos dias de hoje criou temas que se tornaram “clássicos”, casos de Fado Armandinho, Fado de S. Miguel, Fado do Cívico, Fado Mayer, Fado do Ciúme, Fado Estoril, Variações em Ré Menor, Variações em Ré Maior, Ciganita, Fado Fontalva, Fado Conde da Anadia, entre muitos outros. O guitarrista afirma que a sua primeira composição foi o Fado Armandinho e, para o teatro, foi o Fado do Cívico, cantada por Estêvão Amarante na revista Torre de Babel, levada à cena no Teatro Apolo em 1917. Depois, também para teatro, com58

Guitarra de Portugal, 4 de Novembro de 1922.

Armando Augusto Freire (Armandinho) s/d Colecção de José Manuel Osório

Azes do Fado Ano I, nº 2, 15 de Fevereiro de 1936 Espólio de Alfredo Marceneiro Oferta de Aida Duarte Inv. nº 1838 Colecção Museu do Fado 125


Discos de 78 rpm Colecção Museu do Fado

pôs o Fado do Bacalhau, interpretado também por Estevão Amarante na personagem de José Bacalhau, a que se seguiram numerosas colaborações. Armandinho actuou nas mais emblemáticas casas de fado de Lisboa, e, em 1930, tornou-se empresário, quando abriu o seu próprio espaço no Parque Mayer, o Salão Artístico de Fados, onde actuou durante alguns anos, mas depressa tomou consciência de que teria de se repartir por digressões e espectáculos pelo que abandonou este projecto. Actuou, ainda, em inúmeras casas particulares, especialmente nas casas da fidalguia como, por exemplo, nas das famílias Burnay, Fontalva e Castelo Melhor. As suas interpretações são suaves e subtis, incluem pianinhos que retirava da guitarra tocando com as suas próprias unhas e, para determinados efeitos tímbricos, recurria à surdina. Armandinho revelou-se um marco na execução da guitarra portuguesa, criando “escola” onde se filiaram outros grandes nomes como Carvalhinho, José Nunes, Jaime Santos, Raul Nery ou Fontes Rocha, entre outros. Faleceu a 21 de Dezembro de 1946 na sua casa situada na Travessa das Flores, em Lisboa, deixando o Fadode luto como escreveu na sua capa o jornal Guitarra de Portugal, datado de 1 de Janeiro de 1947. Destaque-se ainda que Armando Augusto Freire foi um dos membros fundadores da Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses, em 1927. Desta forma assumiu-se como responsável pela recolha de muitas melodias de fado e pelo registo dos seus autores naquela sociedade, facto que nos permite o conhecimento actual de muitas destas melodias.

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Ascensão dos Fadistas nos Palcos do Teatro de Revista

Os vários autores consideram que a profissionalização do fadista ocorre no final da década de 1920 e princípio da seguinte, em virtude das condicionantes sociais e culturais ocorridas após o golpe militar de 1926, mas a evolução ocorrida nas primeiras duas décadas do século XX, traduz já modificações fundamentais para essa passagem dos intérpretes do Fado a artistas profissionais. Luís Moita fala-nos da importância do Teatro de Revista como novo sustentáculo da canção lisboeta, já menos exclusiva dos bairros e das ruas onde se exibiam públicas desgraças, onde se choravam tristes Fados... Cada revista aparecia com seu Fado triunfante, com sua cantadeira de maior ou menor consagração59. Ao crescente número de espaços, englobando os teatros considerados de primeira categoria e os que Luiz Francisco Rebello denomina “teatros de periferia”, alia-se a grande produtividade na subida à cena de revistas, conforme referência do mesmo autor, contabilizam-se 32 revistas apresentadas em 1911, 45 para o ano seguinte, 34 no ano de 1913 e 24 em 191460. Os fadistas integram os palcos da Revista não apenas enquanto actores – cantores (...) mas como artistas-convidados, artistas que teriam conquistado público em actuações anteriores por palcos teatrais ou colectividades, ou em espectáculos promovidos por empresários61, que actuam numa rede crescente de cafés e cervejarias da cidade de Lisboa e, alguns deles, já com início no registo discográfico dos seus repertórios. Neste início do século XX, os perfis que mais se destacaram enquanto intérpretes de fado no teatro são numa primeira fase Júlia Mendes e Maria Vitória, com actividade destacada nos palcos da revista e da comédia musical, onde serão as 59

Moita, Luís (1936), O Fado Canção de Vencidos, Lisboa, Empresa do Anuário Comercia, p. 140.

60

Rebello, Luiz Francisco (1985), História do Teatro de Revista em Portugal, Vol. 2, Lisboa: Publicações D. Quixote, pp. 57 e 60.

61

Carvalho, Ruben (1999), Um Século de Fado, Amadora: Ediclube, p. 130.

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primeiras cantadeiras autênticas a ser convidadas a apresentar-se e onde conquistarão ambas um sucesso popular imenso62. Os trajectos biográficos de Júlia Mendes e Maria Vitória apresentam muitas semelhanças na vivência da boémia lisboeta, no rápido êxito atingido e lamentavelmente no destino trágico de mortes prematuras, certamente contributos fundamentais para a posterior glorificação de ambas na memória fadista. Júlia Mendes nasceu em Lisboa em 1885. A sua infância foi de extrema pobreza, a cantar pelas ruas de Lisboa. Ao estrear-se no teatro adquiriu rapidamente sucesso, passando do circuito dos teatros de feira para os grandes teatros da cidade, participando em revistas como P’ra Frente, em 1906 e Ó da Guarda, no ano seguinte. A respeito desta última peça, destaca-se uma das primeiras abordagens ao cinema sonoro, que em Portugal só viria a concretizar-se em 1931, com o filme A Severa, realizado por Leitão de Barros. Júlia Mendes filmou num pátio da Rua da Palma um registo para esta revista, onde a sua voz era gravada por um fonógrafo sincronizado com a filmagem63. Em 1908 actua na revista ABC com tal sucesso que a sua fotografia é a capa da conceituada publicação Illustração Portuguesa de 17 de Agosto desse ano. Mas papel mais memorável foi o de Severa, na ópera cómica de 1909, sobre a mítica fadista, onde Júlia Mendes interpretava os temas acompanhando-se a si própria na guitarra. Dos seus inúmeros sucessos em palco, apesar da curta carreira, Júlia Mendes deixou registados em gravações discográficas muitos temas, dos quais destacamos: Fado da Severa, Fado Corridinho, Fado dos Passarinhos ou Linda Flor. Representante de uma vida boémia (a que alude precisamente o conhecido fado Saudades da Júlia Mendes), acabou por falecer prematuramente, vítima de tuberculose com apenas 26 anos, a 2 de Fevereiro de 1911. A sua popularidade levou a que o Teatro Chalet, fundado em 1904 no recinto da Feira de Agosto (futuro Parque Eduardo VII), passasse a chamar-se Teatro Júlia Mendes após a sua morte64. Maria Vitória nasceu em Málaga, Espanha, a 13 de Março de 1888, filha de um casal espanhol. Era muito pequena quando veio com a sua mãe para Lisboa. Na biografia que Avelino de Sousa redigiu para o jornal Guitarra de Portugal, de 1 de Outubro de 1946, o autor afirma que Maria Vitória se estreou no teatro no Casino de Santos, embora já há muito tempo cantasse o fado pelos vários cafés e retiros da cidade, sendo uma presença habitual nas noites de boémia lisboeta. Se Júlia Mendes se celebrizou no papel de Severa, Maria Vitória conquistou estrondosa fama com a revista O 31, que subiu ao palco do Teatro Avenida em 1913. Nesta peça a fadista interpretava vários números, sendo o Fado do 31 o mais famoso um tema continuamente interpretado no decorrer do século XX. Dois anos mais tarde acaba por falecer, também vitima de tuberculose, a 30 de Abril de 1915, na sua casa em Lisboa. Como homenagem ao seu talento o seu nome é atribuído a um teatro no Parque Mayer, inaugurado em 1922.

62

Nery, Rui Vieira (2004), Para uma História do Fado, Lisboa: Público/Corda Seca, p. 137.

63

Illustração Portuguesa, 16 de Julho de 1930, pp.33-34.

64

Rebello, Luiz Francisco (1985), História do Teatro de Revista em Portugal, Vol. 2, Lisboa: Publicações D. Quixote, p. 21.

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A fechar o conjunto de personalidades que se destacaram na interpretação de fados em peças teatrais centramonos numa intérprete cujo trajecto profissional faz dela uma referência obrigatória no tema em questão - Adelina Fernandes. Adelina Laura Fernandes nasceu em Lisboa a 26 de Janeiro de 1896. Realizou os seus estudos no Asilo de Santo António, onde teve lições de canto e fez as suas primeiras apresentações nas récitas escolares. Segundo Vítor Machado65 após terminar os estudos Adelina Fernandes ingressou no teatro, tomando parte nas operêtas Casta Suzana, Mercado das donzelas, e nas revistas, Aqui d’El-Rei!, Secretário dos Amantes, e outras, nas quais obteve sempre grandes êxitos. Mas a sua primeira apresentação dedicada ao fado realizou-se em 1919, no Teatro Apolo, onde foi acompanhada pelo ilustre guitarrista Luis Carlos da Silva (Petrolino)66. Adelina Fernandes foi de seguida contratada para a companhia desse mesmo teatro, subindo ao palco com as revistas O burro em pé (1920), onde interpretava o Fado do Teatro, e, dois anos mais tarde passou a integrar o elenco da revista Pau de 2 bicos, exibida no Éden Teatro. Nesta peça a fadista destacou-se na interpretação de Canção das Perdidas. Tal foi o êxito destes temas do seu repertório que Adelina Fernandes gravou-os posteriormente, em edições discográficas da etiqueta Columbia. Neste percurso maioritariamente ligado aos palcos do teatro temos de destacar a presença de Adelina Fernandes na opereta Mouraria, estreada em 1926 no Teatro Apolo. Esta peça teve especiais elogios entre a comunidade fadista67. A sua interpretação da mítica figura da fadista Cesária foi também glorificada e aplaudida, levando-a mais uma vez a gravar em disco temas como o Elogio do chaile, que eram interpretados nesta opereta. Facto é que Adelina Fernandes foi criadora de tal número de sucessos que era constantemente solicitada para gravações discográficas, deixando mais de 50 temas registados para várias editoras como a Columbia, a Odeon ou a His Master’s Voice. Registe-se ainda que faixas como as Dois Véus, Fado Penim, Ser Fadista, Quem Canta ou Misérias foram reeditadas em formato digital pela editora Heritage, em 1994. Para além de realizar digressões ao Brasil, Argentina, Uruguai e África, fez também algumas aparições no cinema, nos filmes Os Fidalgos da Casa Mourisca, realizado por Georges Pallu em 1921, e Lisboa, Crónica Anedótica, realizado por Leitão de Barros em 1930. Adelina Fernandes retirou-se completamente da vida artística em 1939. Viria a falecer muitas décadas mais tarde, a 12 de Março de 1983. Num contexto onde a maioria dos intérpretes assume uma trajectória profissional onde o fado não é senão uma segunda actividade, Adelina Fernandes marcou a História deste género musical como uma das primeiras fadistas a assumir contratos que a fidelizaram a determinadas actuações, com o consequente afastamento do registo de improvisação que ocorria naturalmente na forma espontânea de cantar o fado e, ainda, deixando um número invulgar de faixas gravadas em disco.

65

Machado, A. Victor (1937), Ídolos do Fado – Biografias, Comentários, Antologia, Lisboa, Tipografia Gonçalves, pp. 39-40.

66

V. Nota 57.

67

A título de exemplo veja-se a edição de 30 de Novembro de 1926, do jornal Guitarra de Portugal.

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O 31 Fado da Revista O 31 Letra de Pereira Coelho Música de Alves Coelho Sassetti & Cª, 8ª ed., Lisboa, s/d Colecção Nuno Siqueira

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Caixa de Fonógrafo Thomas A. Edison, c. 1912 Edison Triumph Phonograph Serial Number 88921, Model E Campânula Exterior Music Master, S&V Makers, 1908, CYGNET Patd Colecção Nuno Siqueira Fotografia e arranjo gráfico de Luis Carvalhal


“AO FADO MUITO SE DEVE A IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA”1 Pedro Félix

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Fortunato Coimbra ao jornal A Canção do Sul, nº 131, 1935.


Guitarra de Portugal Ano II – Nº 45 26 de Junho de 1924 Espólio de Armando Neves Oferta de Alexandra Paula Hora Neves Inv. nº 12742 Colecção Museu do Fado

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Destruir a Monarquia Haver no mundo igualdade, são dois pontos sublimes por que pugna a sociedade. (…) O rei vive ocioso, C’roado de louro e carvalho, À sombra só do Trabalho, Do pobre laborioso; Descei do trono ditoso, Ó germen da ociosidade! O povo é rei, e há-de Não cessar contra a súplica, Dando vivas à república Por que pugna a sociedade2 (autor: José Augusto)

No ano da implantação da República, 1910, José Malhoa concluiu o “mais português de todos os quadros”3: O Fado. O quadro só seria exposto em 1917, mas viria a ser adquirido pela Câmara Municipal de Lisboa numa decisão tomada por unanimidade. Perante o cenário naturalista do quadro de Malhoa, rapidamente se mitificou a biografia das figuras retratadas. Facadas na face, ciúmes, passagens pelo Aljube… todo o universo simbólico do fado foi projectado naquela tela. Eventualmente uma pergunta nunca foi feita: numa altura tão conturbada historicamente, que fado Amâncio estaria a cantar?

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Carvalho, Pinto de (1982 [1903]), História do Fado, Lisboa: Dom Quixote, pp. 220-221.

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Verso do Fado Malhoa de autoria de José Galhardo.

Illustração Portugueza Nº 279, 26 de Junho de 1911 Hemeroteca Municipal de Lisboa

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O fado, é uma prática musical viva. Como tal, muito pouco das suas características são (foram ou serão) cristalizadas, logo, qualquer discurso pode ser elaborado em torno do fado. Ao longo dos últimos 150 anos em que esta prática aparece regularmente documentada, o fado tem servido as mais diversas apropriações, umas positivas, outras negativas, umas tradicionalistas, outras progressistas, umas amadoras, outras profissionais, umas emancipadoras, outras conservadoras. No “terreno” do fado, posicionaram-se os mais díspares grupos de interesse, com as mais diversas geometrias ideológicas: de autores conotados com o pensamento socialista, a elementos próximos das políticas do Estado Novo, monárquicos e republicanos, todos olharam para o fado e com ele (ou sobre ele) produziram discursos onde as combinatórias dos símbolos primaram pela plasticidade. Interessa aqui abrir a ferida: a dimensão ideológica das práticas do fado (e dos discursos em torno delas). Ao longo do século XIX, a prática musical a que viemos a chamar “fado” foi-se formando na cidade de Lisboa entre as comunidades trabalhadoras nos bairros operários. Na transição para o século XX, o “fado” praticava-se em espaços de sociabilidade popular da capital, em particular nas tabernas dos bairros de Alcântara, Madragoa, Bica, Bairro Alto, Mouraria, Alfama, e nos chamados “retiros”, um circuito de casas de pasto da periferia da capital, onde uma população proletária urbana (autóctone ou deslocada do interior do País ou mesmo das “Colónias”) se cruzava com grupos ligados à tauromaquia e à boémia aristocrática ou intelectual. A industrialização incipiente, a decomposição de uma monarquia constitucional que praticava um rotativismo político, a decadência do próprio Estado como consumidor de recursos do País (para sustentar a sumptuária Casa Real), a inoperância internacional do país perante o Ultimato inglês, a fraca capacidade de todas as estruturas existentes para lidar com a tensão social inerente às massas populacionais que se deslocam para a cidade, a censura de todo o tipo de opiniões com o inevitável controlo policial, foram focos geradores de insustentabilidade para o regime vigente. As comemorações centenárias de Camões constituíram a primeira grande oportunidade de manifestação pública de que o regime não estava para durar. Por esta altura, as camadas operárias começavam a sindicalizar-se ou a organizar-se em centros republicanos, associações de socorro mútuo, colectividades, núcleos de fomento da instrução de adultos, de protecção da infância, educação popular, montepios, organizações que formavam uma rede por onde circulavam partidários dos movimentos ideológicos socialistas, internacionalistas, anarco-sindicalistas nas vertentes de Proudhon a Bakunine4. A instauração da República foi vista como o ponto final de um longo regime opressor, uma solução utópica para a emancipação dos trabalhadores e a afirmação da liberdade e igualdade que decorreria da radical reforma da sociedade. A “santa excitação” (Valente 1999: 142) utópica que viu cair Rei, Militares, Igreja, fundamentava uma fé absoluta na justiça social. Que fado era cantado neste período? A produção historiográfica e principalmente a memória da “comunidade fadista” invocam um corpus poético que chamam “fado republicano”, “fado de contraste”, ou mais específico “fado anarco-sindicalista”. Sendo o Fado uma prática musical, podemos ter como fontes as narrativas da época (em monografia, ou nos periódicos) e os fonogramas que re4

Em 1910 existiam em Portugal 119 sindicatos em actividade com 23237 membros, 33 dos sindicatos estavam sediados em Lisboa contando com 7570 membros. Um dos maiores sindicatos era a Associação de Classe dos Operários Têxteis de Lisboa. Em 1911, já existiam 356 sindicatos no País com particular incidência no sul. Destas organizações, as maiores e mais mobilizadas eram as conotadas com o ideário anarco-sindicalista que em 1913, num congresso organizado em Lisboa, reuniram 35000 membros de 91 sindicatos. O movimento grevista também assistiu a um impressionante crescimento: 14 greves em 1908, 17 em 1909, 19 em 1910; nos últimos dias de Outubro de 1910 ocorreram 21 greves, e nos 10 meses seguintes 236 greves! (Dados fornecidos por Valente 1999: 143-146). Para uma análise do movimento associativo como espaço e instituição de resistência ver Costa e Guerreiro 1984, em especial as pag. 77-85.

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gistam sonoramente a prática. Mas ao cruzar o repertório publicado em jornais da época e reflectidos em textos como os de Tinop (Carvalho 1994 [1903]) ou Avelino de Sousa (1912) com o repertório gravado, observando os intérpretes que participam nas gravações com os inventariados nas páginas de jornais da época, parece-me mais apropriado falar em dois grandes tipos de repertório: um repertório “operário” e um repertório “dos palcos”. Estas duas tipologias, a verificar-se a sua pertinência, não devem ser tidas como campos absolutamente demarcados. No entanto, julgo que sintetizam dois campos de produção distintos no meio das práticas musicais urbanas nas primeiras década do século XX. Para perceber estas tipologias e as suas diferenças, é necessário atender às práticas de gravação de fonogramas. Nas primeiras décadas do século XX, a gravação de um “disco” é um processo caro e logisticamente complexo. Em Portugal não existia tecnologia necessária à gravação de som, por isso, actuavam técnicos e tecnologia importada da Inglaterra, da França e da Alemanha que procediam ao registo de repertório local5. No país, as companhias estrangeiras estabeleciam uma rede de agentes locais que comercializavam os seus fonogramas (e aparelhos de reprodução) a par de bicicletas, máquinas de costura e equipamento fotográfico, ou seja, toda uma série de produtos tidos por curiosidades tecnológicas, emblemas da modernidade6. As limitações técnicas do processo de produção de um fonograma exigiam que quem gravava tivesse uma grande capacidade de projecção da voz, com grande volume sonoro, uma dicção clara, uma performação formatada pelos hábitos dos palcos, e cuja apreciação era feita segundo os valores próprios dos intérpretes de repertório erudito7. Para accionar a membrana onde estava montada a agulha que iria “registar”, “gravar” as diferenças de pressão de ar no cilindro ou “disco” era necessário que os intérpretes possuíssem uma voz treinada. Cantores com essas características encontravam-se no teatro. Nas gravações surgem acompanhados por conjuntos instrumentais de maior dimensão que incluíam instrumentos de tuna (Bandolins, Bandolas, etc.) e piano (muitas vezes dobrando a guitarra, dadas as características acústicas daqueles instrumentos, concretamente o reduzido volume do instrumento de corda). Nos “discos” é interpretado um repertório estrófico suportado por melodias específicas a cada letra, constituindo assim letra e acompanhamento instrumental uma unidade, que já haviam feito carreira nos teatros. Desse modo, o fado gravado -seja nas primeiras décadas, seja, em boa verdade, ao longo de todo o século XX - foi sempre protagonizado por “artistas”, intérpretes das várias indústrias do espectáculo, no caso, do “teatro de revista” (como mais tarde serão dos concertos e das casas de fado). Poucos intérpretes amadores, se alguns houveram, terão gravado. Este “fado dos palcos” era cantado por actores de “teatro de revista”: Isabel Costa, Júlia Mendes, Maria Vitória, Corina Freire, Duarte Silva, Alberto Costa, Estevão Amarante. Uma vez feita a gravação, esta era levada para a “sede” da empresa (em Inglaterra, França, ou na Alemanha) onde se faziam os masters que serviam para testes de prensagem que eram, de novo, enviados para audição e avaliação por parte dos agentes locais que indicavam às companhias estrangeiras as suas selecções, com indicação dos couplets (reunião de dois “números”, “duas canções ”, num mesmo fonograma), e os pedidos de impressão de cópias. Todo o processo era complexo, o que justificava o cuidado na selecção de intérpretes e repertório que iria alimentar um mercado urbano burguês que tinha a curiosidade pela nova tecnologia de reprodução de som e a capacidade económica para adquirir os gramofones e os “discos”. Por tudo isto era inevitável que o repertório gravado correspondesse aos números popularizados nos palcos, fossem eles “canções”, “excêntricos” (gravações com a declamação de textos cómicos), 5 Por exemplo, Odeon, Gramophone, Homophon, Homokord, Beka ou as locais Discos Simplex, Chiadophone e Luzophone. Desde 1904 a Companhia Franceza de Gramophone tinha locais de venda dos seus fonogramas em Lisboa, com agentes no Porto e em Braga. As principais empresas internacionais possuíam prefixos ao número de catálogo específicos para identificar os fonogramas de repertório nacional. 6

Só mais tarde, na década de 20, os fonogramas e os gramofones começam a ser comercializados em lojas especificamente dedicadas ao mercado da música.

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É importante notar que Tomás Alcaide, reconhecido intérprete operático, gravou vários fonogramas com repertório não erudito. Do mesmo modo, as características interpretativas da canção de Coimbra, pela próximidade a uma forma de interpretar erudita, serviram de modelo para a interpretação de fado.

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ou “marchas”. Para informação do comprador, além da indicação do intérprete e da canção gravada eram fornecidas indicações descritivas como “fado”, “fado-canção”, ”fado-slow”, “fado quick step”, “canção popular”. O teatro, os fonogramas, as transcrições para piano das melodias, formavam as diversas facetas de um mercado mais atraído pela tecnologia do que pelo conteúdo8. Mas sobre o repertório que interessa aqui, o tal “fado republicano”, sendo um repertório informal e amadoristicamente interpretado, passou totalmente à margem da gravação, e por isso, pouco podemos saber em termos sonoros. As descrições literárias informam-nos que os cantores eram acompanhados por um conjunto instrumental tipo mais reduzido e recorrente no fado (guitarra portuguesa e viola), que fornecia o suporte musical improvisado a partir de um conjunto de esboços melódico-rítmicos e padrões harmónicos hoje identificados como fados “tradicionais” (do Mouraria ao Bacalhau) adequados à métrica dos versos (normalmente com a forma de quadra glosada em décimas), também eles muitas vezes improvisados (algo particularmente valorizado pelo universo fadista) e com os quais o intérprete “criava” a sua melodia (“estilava”). O conhecimento do repertório do “fado operário” limita-se pois a letras imprensas e publicadas em folhas volantes, “jornais de fado” ou pequenos opúsculos como profusamente ilustra Rui Vieira Nery no texto incluído na presente publicação. Mas o actual desconhecimento não decorre de um menor impacte desse fado. Sabemos por relatos da época que este repertório era “(…) muito apreciado nas recitas operárias e humanitárias” (Manuel Ribeiro citado em Lima 2004: 61). Este corpus poético ilustra uma vontade de “destruir os velhos moldes do fado dos bordéis, dando aos nossos versos um cunho de honestidade, acabando com a pornografia que por desgraça nossa há muitos anos se amancebou com o fado” (Avelino de Sousa, Guitarra de Portugal, 17 Janeiro 1922). Ou seja, tendo por base um repertório que circulava informalmente em contextos amadores e operários, os autores que o promoviam pretendiam distanciar-se, por um lado, do repertório gravado, próprio dos palcos, mas também necessariamente demarcar-se de uma imagem recorrentemente associada ao universo do fado - bairros de má-fama, marginais, prostíbulos, bairros pobres -, defendendo letras capazes de elevar a consciência pela educação dos “trabalhadores”. Estes textos cantados serviam essencialmente de veículos de transmissão de notícias, de informação, de ideologia, letras nas quais se debatiam os grandes temas da sociedade (da guerra dos Boers à revolução bolchevique) ou narrativas hiper-românticas de um trágico individual, mas sempre com um propósito educativo, mobilizador, formador da consciência de classe entre as camadas operárias. Essencialmente o “fado operário” estava associado a grupos sindicalizados de tipógrafos. Avelino de Sousa, João Black, José Carlos Rates, Carlos Harrington, são hoje os mais reconhecidos intervenientes neste meio (reconhecimento que se deve precisamente à sua ligação ao meio da imprensa, na qualidade de fundadores e directores de jornais, actividade que levavam a cabo juntamente com a sua profissão de tipógrafos — este facto assegurou-lhes a imortalidade das suas acções, palavras e as opiniões em páginas de “folhas volantes” e periódicos de fado), autores de repertório fadista que a maior parte das vezes não tinha uma ideologia específica, mas que congregava a população urbana contra aqueles que acreditavam deter o poder: “o rico”, “o capitalista”, “o rei”, “o político”, “o poderoso”… um “eles” que se opunha diametralmente a um “nós” que representavam como “pobre”, “injustiçado”, “explorado”, “triste”, “operário”, “inseguro” e tantas vezes incapaz de alterar o destino da sua condição. 8

O conhecimento da prática da gravação de som na primeira metade do século XX, em Portugal, só é possível graças ao esforço de inventariação levado a cabo no âmbito do processo de elaboração da Candidatura do Fado à Lista Representativa do Património da UNESCO, processo conduzido pela EGEAC/Museu do Fado em parceria científica com o INET-MD.

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O apoio dado pelo “fado operário” ao movimento Republicano não se deve ao movimento político em si, mas antes à imensa expectativa de mudança radical que a substituição do regime poderia vir a trazer. Em muito do movimento fadista associado ao repertório de motivação ideológica, não há propriamente um programa político, mas uma forma de “igualitarismo subanarquista”, em que nenhuma solução parece positiva (Costa e Guerreiro 1984: 182). O “fado operário” tomava a canção como ferramenta para a propagação da ideia de Progresso, para a educação popular, para instruir, contribuindo para a reforma social pela elevação “do povo”, veiculava as ideias modernas que energicamente despertavam as massas “para a conquista dos amanhãs que brilham”. A voz de Avelino de Sousa, peça fundamental para a compreensão deste universo poético, descreve vivamente: “quanta propaganda, nos saraus das associações, na rua, na sala, na taberna, fez o humilde trovador em prol da Republica que hoje nos rege! E o povo rude, o povo operário, quedava-se recolhido a ouvi-lo, entendendo talvez melhor esses pobres versos - muitas vezes sem métrica - do que os mirabolantes discursos dos oradores de comicios! (…) Porque os humildes filhos do povo, após terem transitado do azul e branco para o verde e vermelho, retemperaram o espirito, abriram os olhos - os que os tinham fechados, que não todos - e já hoje cantam ao som do Fado (…)” (1912: 8). Para Paulo Lima a relação entre o regime republicano e o fado é clara: “Não só durante a 1ª República se editaram mais de uma vintena de jornais dedicados exclusivamente ao fado, como em todos eles é referido o significado desta trova para o despertar da consciência operária, social” (2004: 49). O fado torna-se, mais do que um mero instrumento de propagação do ideal republicano9, uma ferramenta determinante para a mobilização da população urbana para que aspire a uma “nova realidade”, contribuindo assim para o alargamento das bases de apoio do movimento republicano (Nery 2004: 123).

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Nos seus mais variados matizes, estrita ou genericamente republicano, socialista, sindical, anarquista, comunista.

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O Fado, 1910 (pormenor) José Malhoa Óleo sobre tela 151 x 186 cm Colecção Museu da Cidade Câmara Municipal de Lisboa

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Fado Republicano (para piano) Música de Reynaldo Varella 10 de Outubro 1910 Edição Tipografia Ed. Rosa Colecção Michel de Roubaix

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Por isso, por não haver uma relação unívoca entre o ideário republicano e o fado, os textos assumem essencialmente uma vertente de intervenção política-social e mesmo de propaganda revolucionária, seja ela anti-monárquica, anti-capitalista ou anti-clerical, mas quase sempre de cariz mais ou menos radical conforme os casos, com um objectivo claro: iluminar pela exposição de factos considerados taxativos, polarizados, a difícil condição “popular”, e assim “illustra[r] o povo e que lhe abr[a] os olhos no meio da analphabetice em que chafurdeia (…)” (José Maior, O fado, 23 de Abril de 1910). Este “fado de novíssimo género, o fado socialista” de que fala Tinop (Carvalho 1994 [1903]: 285-6) era a representação musical desta realidade e, ao mesmo tempo, um apelo à acção directa:

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Discos de 78 rpm Colecção Museu do Fado


Abaixo o militarismo, Que também é retrocesso, Trabalhadores do progresso, Defensores do socialismo! Um belo positivismo Mostrai à vil sociedade, Que a terra é da humanidade. Que é de todos quanto encerra, Que não pode haver na terra Fronteiras e propriedade! (Carvalho 1994 [1903]: 286)

Tinop (Carvalho 1994 [1903]), Alberto Pimentel (1989 [1904]), as páginas dos jornais O Fado (dir. Carlos Harrington), A Alma do Fado (dir. Raul de Oliveira) ambos fundados em 1910, O Fadinho (dir. José Carlos Rates), Avelino de Sousa (1912), os jornais A Canção de Portugal - o Fado (dir. Artur Arriegas e Jorge Gonçalves) e Guitarra de Portugal (dir. Linhares Barbosa) fundados em 1922, eram os porta-estandartes da defesa instruída do fado.

Mas do outro lado, existiria um fado reconhecidamente defensor da monarquia? Do outro lado da barricada — metáfora belicista que é bem adequada a este debate — António Arroyo postulava fundacionalmente: “O fado para mim exprime o estado de inércia e de inferioridade sentimental em que o nosso país está mergulhado há muitos anos e do qual urge que saia. Portugal é positivamente um doente moral e o fado basta para se formar o diagnóstico da doença” (1909), uma “patologia nacional” que já era publicitada nos discursos de cariz romântico por parte de autores estabelecidos como aqueles que viriam a ser apelidados de “Geração de 70”: “[O fado] tem uma orquestra de guitarras e uma iluminação de cigarros. Está mobilada com uma enxerga. A cena final é no hospital e na enxovia. O pano de fundo é uma mortalha” (Queiroz 2001 [1903]: 190)10. No discurso destes autores o fado consubstancia tudo o que de pior existe na nação. O fado é a prova mais perfeita da decadência moral do País, a crítica ao fado rima com o apelo à regeneração nacional, uma regeneração que também não passa pela manutenção, ainda que reformada, da monarquia. Os operadores desta regeneração tomavam por modelo, não o “povo urbano” - esse lumpem proletário -, mas antes as populações rurais, “gentes” impolutas pela decadência da tasca, do cigarro, da prostituição, do biscate nos limites da legalidade, da “naifa”. Estes arautos da Nação, marcados pelo romantismo oitocentista, eram intelectuais que se sentiram impelidos

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Para um desenvolvimento desta questão v. Rafael 2010.

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a realizar recolhas de práticas musicais rurais (o símbolo oposto do teatro de revista e do fado bairrista), a promoção do coralismo com carácter de cura moral da sociedade. “Do que nós precisamos é que nos infiltrem todas as energias moraes e que nos disciplinem o espirito, levando-nos a respeitar as coisas serias do mundo e a necessitar de ellas; carecemos de esforço idealisante na nossa vida, de banir por completo o imprevisto que lhe faz a actual trama, e de approveitar o bello país que nos coube em sorte, de forma a merecê-lo. Emquanto cantarmos o Fado, de cigarro ao canto da boca, olhos em alvo e paixão a arrebentar o peito, não passamos de um povo inferior, incapaz de comprehender a vida moderna das nações avançadas. Por isso repito aos rapazes: Não cantem o fado!” (Arroyo 1909). Ao citado Arroyo, podemos juntar um César das Neves, um Teófilo Braga, um Leite Vasconcelos e mais tarde um Luís Moita. Autores que propagandeiam uma apologia do que é são nos campos como alternativa á decadência chorosa afadistada de Lisboa. O que de mais próximo podemos encontrar a um discurso monárquico no meio do fado estará sempre associado aos discursos (e à poesia) ligados à defesa nostálgica da tradição, resultante da acção de intelectuais de molde nacionalista que promoviam uma perspectiva historicisante que ligava o fado ao repertório renascentista, à tradição árabe-andaluz, a uma simbólica sebastianista, cortando com a sua origem profanizada do bordel e do bairro popular, num esforço ideológico de legitimar a prática pela sua “purificação” simbólica. Acompanhando estes intelectuais, figuras da aristocracia - muitas delas ligadas ao meio tauromáquico e boémio -, promoveram activamente a prática deste género musical11. Esta linha de pensamento nunca se sentiu absolutamente confortável, tendo sido quase sempre marginal, tal como virá a ser a relação do Estado Novo com os meios monárquicos, relação tão dúbia como inconsequente.

Mas em poucos anos a euforia esperançosa que a instauração da República trouxe aos meios urbanos, deu lugar à desilusão face à dificuldade de efectivar as mudanças programáticas republicanas. A subida de preços, o desemprego, a paralisia da vida económica, a manutenção de salários baixos, rapidamente confrontaram a população trabalhadora assalariada para a dura realidade que marcaria os primeiros anos da República. O caos social e institucional fazia parecer que o país era governado por um Estado “de papel”, facilmente amarfanhado, rasgado, “derrubável”. A tensão social em todos os locais da cidade, em todos os espaços públicos, chocava violentamente com a dolência rural e fomentava facilmente uma nostalgia por um Estado forte, sentimento que viria a ser aproveitado pela demagogia salazarista. O espectro político era pouco variado e coeso. Por um lado, posicionavam-se as organizações anarco-sindicalistas radicalmente apologistas da ruptura total e absoluta com o status quo. Mais politicamente orientadas, as organizações socialistas procuravam ser formalmente conduzidas a uma oposição aos republicanos históricos. Do outro lado, os católicos conservadores também se mobilizavam. O fado adaptou-se rapidamente a estes novos tempos, surgiram “fados de guerra”, fados de apelo à raça, fados de cariz religioso, fados de apoio sidonista, repertório que começou a ocupar o espaço dos fados socialistas, anti-clericais, anti-capitalistas e anti-militaristas12. Numa frase Vasco Pulido Valente introduz uma vinheta que ilustra perfeitamente o estado de espírito vigente na 1ª República: “Em Janeiro de 1911, o Governo Provisório decidiu promover uma onda de histeria colectiva contra a agitação sindical. A imprensa de Lisboa elevou o tom dos seus ataques aos anarco-sindicalistas e sobretudo aos «agentes monárquicos», que supostamente os manipulavam” (1999: 155-156). Come11 Carvalho 1999: 79-80 argumenta longamente em torno desta interpretação no que chama de “cultura marialva” que descreve como ruralista, conservadora, tradicional, ultramontana, que critica fortemente a instabilidade do Estado e defende a afirmação da “raça” e defende toda a tradição que contrarie o abastardamento da “alma nacional”. 12

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Este repertório está profusamente ilustrado em Nery 2004: 159-166.


çava rapidamente a dissolver-se a relação entre a elite republicana e a classe trabalhadora. O ideal projectado na jovem República ficava, naquela altura, sob ameaça de uma nova mudança radical, deixando por cumprir todo o seu projecto. A participação na 1ª Guerra Mundial, o esforço financeiro para suportar tal missão militar, a permanente instabilidade dos sucessivos governos da 1ª República, os golpes e os contra-golpes, a incerteza e a instabilidade daqueles anos, foram razões determinantes para que o movimento republicano utópico que mobilizou tantos personagens do meio do fado viesse a sucumbir. As “aparições de Fátima” foram o momento central para o derrube da 1ª República e dos seus princípios laicos. O pensamento republicano ficou ferido mortalmente no flanco mais fraco: as questões de fé. Em 1926, a censura e a profissionalização exigida aos intérpretes, a centralidade que o registo fonográfico ganhou no seio da prática musical, a rádio, o controlo policial dos espaços de performação regulados, tudo isto conduziu, num primeiro momento, à marginalização da prática (improvisação) e do repertório (“fado operário” performado em contexto informal amador), e, com o tempo, a um progressivo esquecimento. A maioria dos textos que lhes estavam associados desapareceram da prática quotidiana do fado. O “trabalhador” invocado nas letras de “fado operário” deixou de ser o arauto da nova consciência política progressista para passar a ser o exemplo da tragédia humana. O intérprete deixou de ser o amador para ser o profissional (seja por imposição política com a instituição da carteira profissional e submissão de repertório cantado à censura, seja pelos surgimento de espaços comerciais para explorar apresentações de fado). Por isso, neste fluxo histórico da prática musical do fado, mais do que uma mudança, o 5 de Outubro de 1910 foi o momento que mais claramente materializou a mais profunda controvérsia que atravessa o fado: será esta canção uma canção de vencidos, ou uma canção de vencedores? Será uma canção fatalista que anula o ímpeto para a mudança pela superação das condicionantes históricas e biográficas, ou será uma canção que educa as massas, as gentes trabalhadoras? Aliena ou instrui? Desde que o fado se constitui como material participante nas formulações identitárias nacionais ou locais, está subjacente esta controvérsia. De cada um dos lados arregimentaram-se as vozes e os actores — cantores, poetas, ideologias, jornalistas, poemas, movimentos políticos, organizações, jornais — em que o fado é visto como tradição ou progresso, como alienante ou educador, como prática enraizadamente popular ou aristocrática, própria das tascas ou dos palcos e salões, fascista ou subversiva, decadente ou exultante, reaccionária ou progressista, desmoralizadora ou mobilizadora… ou a tensão silenciosa entre o “fado tradicional” tido por autentico e o “fado do palco” tido como representação apalhaçada de si próprio. Actores que flutuam com facilidade entre uma posição e o seu oposto: o fado progressista, o fado marialva, o fado e a boémia, o fado como desgraça nacional, o fado como farol do trabalhador, fado como canção do povo, canção de vencidos, canção de vencedores, canção de nobres decadentes, de operários, de gente desgraçada… Ao mesmo tempo que os integralistas lusitanos clamam que o fado é o primeiro agente na desmoralização nacional, os opositores de esquerda olham para o fado como representante do que há de mais reaccionário, conservador e alienante. Um único padrão parece surgir nesta controvérsia: as elites (independentemente da sua matriz ideológica) colocam-se regularmente contra o fado. Sobre esta controvérsia, o cantor Armando Santos resume: “hoje dizem que o fado é fascista. O fado nunca foi fascista. A maior parte das letras que se cantavam nas tabernas eram letras de contraste. Era o rico e o pobre, era sempre o rico e o pobre e tinham sempre um fundo moral. (…) Eram tudo letras objectivas. E as pessoas tinham de andar escondidas a cantar nas tabernas e tudo. Porque era proibido. Depois é que apareceu este fado comercial e eles começaram a dar autorização ao fado. (…) Mas quando, antes do 25 de Abril, no tempo do fascismo, o turismo começou a interessar, então o fado começou a levar uma linha mais indirecta. Quer dizer, era o beijinho nos olhos, nos ouvidos, «eu amo-te», «e deixaste-me», «e sinto ciúme». E então é que as pessoas começaram a gostar de ouvir isso. (…) Eles não deixavam escrever doutra maneira” (Costa e Guerreiro 1984: 98-99). Será preciso dizer mais?

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Podemos perceber que, ao longo de todo o século XX, o fado mais não foi do que o veículo para todo o tipo de ideologia, sendo o conteúdo transmitido mais decorrente de acontecimentos quotidianos do que de noções abstractas, o que explica a quase pacífica coexistência de ideais “monárquicos” e “operários”, revolucionários e nacionalistas, tradicionalistas e internacionalistas… Neste processo, as elites intelectuais apartar-se-ão do fado e só haverá uma reconciliação, não com Amália a cantar - polémica - Camões, mas quando David Mourão-Ferreira se lhe associa operando pela sua acção como letrista, uma revolução que o próprio escritor viveu intensamente, mas que nunca se resolveu, se não vejamos: “depois do 25 de Abril também houve uma certa liberdade e apareceram então os fadistas revolucionários com letras revolucionárias. Há também os fados revolucionários antigos, que na época eram proibidos pela PIDE, e hoje dizem que também são fascistas” (Manuel Coelho citado em Costa e Guerreiro 1984: 166), uma genealogia tão próxima que o cantor “Sérgio” apresenta como sinónima: “fados de combate, do tempo do fascismo (e da República)” (idem: 169). Na verdade, os acontecimentos do século XX trouxeram o fado do contexto operário e dos movimentos republicanos utópicos para o terceiro elemento da trindade “Fátima, Futebol e Fado”. Tal como em 1910 entre monarcas e republicanos, conservadores e socialistas; em 1928 entre internacionalistas e fascistas; em 1945 entre a promoção internacional de fadistas na qualidade de “embaixadores” nacionais e a condenação da sua inclusão nessas representações em detrimento do folclore; em 1974 entre uma Amália no Teatro de S. Luiz a cantar a Grândola e as acusações de ser a imagem representante do fascismo; o fado foi sempre mal amado, foi sempre bem-amado, tantas vezes pelas mesmas pessoas em curtos espaços de tempo13. Em todos os momentos históricos em que se opera uma mudança, a controvérsia em torno da dimensão política do fado volta a estar presente e a ser actualizada. Desde 1994, muito devido ao impulso dado pela exposição Fado - Vozes e Sombras, exposição que teve um impacte público e institucional que hoje compreendemos bem melhor, e definitivamente com a criação, quatro anos depois, da Casa do Fado e da Guitarra Portuguesa (hoje Museu do Fado), este género musical parece ter entrado definitiva e inquestionavelmente no Olimpo da “Cultura”. Em 2010, quando o país anseia pela Candidatura do Fado a Património Imaterial da Humanidade/ UNESCO, não restam dúvidas relativamente ao ponto a que nos levou os últimos 100 anos de Fado. No entanto, esta institucionalização do fado não retirou espaço àquela controvérsia e hoje o fado pode ser tudo. É certo que não passa de retórica fácil inquirir que fado estaria Amâncio a cantar no mais português dos quadros a óleo. Mas acho que é legítimo sugerir qual o fado que Amâncio canta na revisão de João Vieira O Mais Português dos Quadros a Óleo (2005)14, pois ao olhar para o Leque de Pedro Proença e para a Luz Explicadista de Pedro Portugal — integrados no trabalho de Vieira—, temos de ficar convencidos que o fado seria, no mínimo, “revolucionário”.

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Não podemos deixar de incluir neste “nojo” institucional relativamente ao fado o desprezo que o meio académico sempre revelou face a este universo. Só demasiado recentemente se tornou alvo da atenção da comunidade académica e rapidamente se transformou em alvo apetecível para qualquer estudo que almeje impacte público fácil.

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Este trabalho, datado de 2005, integra participações de outros artistas plásticos associados ao movimento Homestético, Manuel João Vieira participa com Mamalhoas, Pedro Portugal com Luz Explicadista, Pedro Proença com Leque e Fernando Brito com Espelho Quebrado. V. Reproduções nas páginas do presente catálogo.

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Numa velha habitação Vi há pouco um grande drama Que muito me impressionou. Abraçados à mãezinha Choram quatro criancinhas Pelo pai que não voltou. Foram prendê-lo de noite Porque assinara um artigo No jornal revolucionário. Teve chiufas o açoite Quando foi para o seu calvário, Quanto foi para o seu castigo. Riram á sua passagem O burguês e o mendigo. Ante aquela humilhação Sentiu-se mais revoltado E a caminho da prisão Pareceu-lhe ir entre judeus. Fora preso e algemado. Mesmo ao pé dos filhos seus Numa velha habitação (…) Apóst’lo dum novo escol Chamaram o anarquista. Toda a gente o acusou, Sem ver que ele insuflou, D’um ideal que inflama Redenção, o mundo bélico (…)15 (autor: Linhares Barbosa)

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Carvalho, Ruben (1999), Um Século de Fado, Amadora: Ediclube, p. 89.

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Bibliografia Arroyo, A. (1909) O Canto Coral e a sua Função Social. Coimbra: França Amado; Carvalho, P. De (Tinop) (1994 [1903]) História do Fado. Lisboa: Publicações D. Quixote; Carvalho, R. (1999) Um Século de Fado. Mem Martins: Ediclube; Costa, A. F. da; Guerreiro, M. Das D. (1984) O Trágico e o Contraste. O Fado no Bairro de Alfama. Lisboa: Publicações D. Quixote; Lima, P. (2004) O Fado Operário no Alentejo. Séculos XIX - XX. O contexto do profanista Manuel José Santinhos. Vila Verde: Tradisom; Nery, R. V. (2004) Para uma História do Fado. Lisboa: Público, Comunicação Social; Corda Seca, Edições de Arte; Pereira, Sara (Coord.) (2008) Museu do Fado 1998-2008. Lisboa: Museu do Fado/ EGEAC; Pimentel, A. (1989 [1904]) A Triste Canção do Sul. Subsídios para a História do Fado. Lisboa: Publicações D. Quixote; Queiroz, J. M. E. de (2001 [1903]) Prosas bárbaras. Lisboa: Livros do Brasil; Rafael, U. (2010) Sociedade do Delírio: Boémia e Literatura Portuguesa no Século XIX. Coimbra: Oficina do CES (nº 341); Sousa, A. (1912) O Fado e os seus Censores. Lisboa: ed. Autor; Valente, V. P. (1999) O Poder e o Povo. A Revolução de 1910. Lisboa: Gradiva.

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Ilustração de Luís Carvalhal (pormenor)


A METRIFICAÇÃO NO CANTO DO FADO NAS VÉSPERAS DA IMPLANTAÇÃO DA REPÚBLICA Paulo Lima

A José Inácio Horta, corifeu do mundo, sobrinho de um «primo»; a João Rato, poeta, dizedor e mestre de versos galegos. Amigos que partiram há muito.


O Fado, 1910 (pormenor) José Malhoa Óleo sobre tela 151 x 186 cm Colecção Museu da Cidade Câmara Municipal de Lisboa

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1. Apresentação Na Biblioteca Nacional de Portugal guarda-se um Objecto impresso, sem autor, datado de 1907, cujo conteúdo se destina a fornecer aos cantadores de Canções de Fado noções básicas de versificação. A importância deste documento é muito grande para a história do Canto do Fado, já que nos data, com alguma precisão, o início de profundas alterações estróficas e métricas, assim como representa o culminar de um profundo trabalho por parte das classes operárias no estudo e divulgação do Fado como canto libertário. Tem por título Metrificação e Composição das Canções de Fado. Infelizmente, não me foi possível identificar o autor mas o discurso e os conteúdos editados mostram que existe uma partilha dos valores da classe operária que no aro de Lisboa pretendem, através do Canto do Fado, catequizar politicamente as classes trabalhadoras, contribuindo assim para a sua dignificação. O Canto do Fado terá um papel fundamental na difusão das ideias libertárias em Portugal. Folhetos como aquele que aqui se transcreve são fundamentais para se perceber o amor e dedicação que um grupo de homens — hoje em muito ignorados ou esquecidos — deu a este canto urbano, operário e libertário, contribuindo para a implantação da República em Portugal em Outubro de 1910.

2. Canto libertário O Canto do Fado emerge, documentalmente, na cidade de Lisboa, no segundo quartel do Século XIX, fortemente ancorado na palavra poética improvisada, logo dialogal, e também em determinado tipo de coreografias. No início da segunda metade do mesmo século, transforma-se num canto libertário, solto já de qualquer coreografia, participando no amplo movimento ibero-americano de criação dos cantos libertários, suportados pela décima — improvisada ou memorialista — e cuja origem terá que ser encontrada na industrialização e na catequética operária de espírito internacionalista. Assim, o Canto do Fado é, antes de mais, um canto produto da impressa e da industrialização. O Canto do Fado que se pratica em 1910 é um canto engajado na luta política, fazendo parte de uma grande família de práticas de cariz industrial, com uma geografia que vai de Lisboa a Buenos Aires, de Múrcia a Havana, e que utilizaram a mesma estrofe e melodias populares locais ou regionais para transmitir conhecimentos e internacionalizar uma noção de classe, em muito suportadas por um discurso de paz, que este provérbio levantino muito bem caracteriza: Quem afia versos, não afia navalhas.

3. Fadista e Fado Até ao primeiro quartel do Século XX, as designações de fadista e fado não estão associadas. Fadista significa alguém, independente do sexo e género, que vive uma vida dissoluta. Fado, canto do fado ou canção de fado, significa um texto sobre determinado tema. A sua associação será, em muito, devedora da Severa de Júlio Dantas e da reinvenção posterior, erudita, em torno de uma prostituta de 2.ª ordem, Maria Onofriana, que a sua peça de teatro construiu.

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No Século XVIII, viver no fadário significava levar uma vida dissoluta, e será nesta acepção que o devemos entender ao longo do século seguinte. Todas as referências que temos ao longo destes dois séculos, não se referem a cantadores e bailadores de fado, nem a vidas movimentadas ou trabalhosas, mas apenas a gente que vive uma vida marginal, desonrada. As fadistas referidas no folheto de cordel, Queixumes das pequenas…, de 1838, ou o jovem Eduardo assinalado nos Mistérios do Limoeiro, de 1849, são indivíduos marginais ou que envergam peças de roupa características destes. Aliás, estes dois clássicos da história do Fado têm sido mal interpretados. O segundo fala de um casal de irmãos, separados pela desgraça, e o primeiro é um libelo contra as políticas higienistas que obrigaram as prostitutas a acantonar-se em determinadas áreas da cidade. Cinco folhetos fundamentais, debaixo do título de 1838, fundamentais para se compreender a biografia de Severa, cujas deslocações na cidade não se devem aos amores com o Conde de Vimioso, mas apenas a esta política de gestão urbana: Madragoa para o Bairro Alto, e deste para a Mouraria. Fado é uma designação fluida sobre temáticas textuais, e que ocorre em Portugal e no Brasil. Não é claro do porquê da designação de fado a textos de verso galego, recolhidos em 1893 no Cancioneiro de Músicas Populares, mas o entendimento de D.ª Carolina Michaёlis de Vasconcellos não é musical, pois quando diz nas notas ao seu Cancioneiro da Ajuda, de 1904, que os fados já existiam no Século XVI, significa que a estrutura poética já era praticada nesse período. De qualquer forma, não repugna assumir que a palavra fado seja uma expressão antiga e que apenas significa tema, ou o fundamento, sobre o qual se canta de improviso, já que as referências mais antigas que temos em Portugal sobre este canto o associam sempre a um canto de improviso. Assim, o núcleo de muitas explicações lexicais e filológicas de diverso cariz parece estar certo. Mas devemos ter o cuidado de não confundir tempos e circunstâncias. Importa não deixar na sombra referências, circa de 1840, que se reportam apenas à música, tocada em sinos de igrejas, em Lisboa, ou em viola/guitarra numa feira do Alentejo. Mas esta última é já muito tardia, circa de 1860, embora se refira a uma feira de 1830.

4. Contexto O Canto do Fado surge na cidade de Lisboa, com alguma certeza, um pouco antes de 1840, tendo por introdutores — ou por mais antigos praticantes — os saloios, habitantes do termo de Lisboa ou da área peri-urbana desta cidade. Devemos entender por fado um canto imperial, como muito bem o definiu Diogo Rego, fruto de um sincretismo cultural entre a Metrópole, a África e a América. O seu surgimento não em Lisboa, mas antes no termo e na sua região envolvente, tem origem provavelmente nas grandes obras que entre os inícios do Século XVIII e a primeira metade do Século XIX, vão existir em toda esta região, obrigando a que grandes massas de trabalhadores se desloquem de todo o país, para além da grande circulação de matérias-primas e bens. Mercê destas grandes campanhas, esta região vai ser povoada e muitas localidades vão emergir à beira do sistema viário ou junto à rede de aquedutos. Estas grandes massas de trabalhadores, formadas por diversos tipos de mesteres, ou gente indiferenciada laboralmente, obrigam à criação de urbanismos efémeros, onde a prostituição e a marginalidade tem um lugar primacial. Importa não esquecer que na Real Obra de Mafra, nalguns momentos das primeiras décadas de

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Setecentos, chegaram a trabalhar cerca de 50 000 operários. É também na segunda metade do Século XVIII que chegam às praias de Lisboa os ciganos do mar, designação pejorativa dada aos habitantes das praias da região de Ovar, cuja permanência na cidade e na região se revelou muito importante ao nível do abastecimento do peixe, através da «revolucionária» arte da xávega. Estes vão construir espaços de vivência fechados dentro da área urbana de Lisboa, como é o caso de Alfama que, por volta de 1840, apenas tinha um local de prostituição. A mulher representada no quadro O Fado, de José Malhoa, enverga uma entre-saia ovarina, onde se vêem com facilidade as ilhozes de atar. É nesta deslocação de população, no contexto das grandes obras como o Convento de Mafra, o Aqueduto das Águas Livres e todo o sistema de adução aos chafarizes, assim como a reconstrução da cidade entre 1755 e meados do Século XIX, que podemos encontrar a origem do fado, um canto e uma dança de forte expressão agressiva, onde é notório o seu uso como canto pacificador, característica dos modelos de improviso poético, e é aqui que deverá ser encontrado a sua adopção a partir dos meados do século XIX pelos operários do aro de Lisboa. Não se pode também esquecer que a perda da componente coreográfica não é característica do Fado; apenas mostra uma prática plural. Este fenómeno também aconteceu no Século XX com um canto e baile a sul de Lisboa, o Ladrão do Sado, que nos alvores do século passado era um canto de trabalho, um canto com coreografia e um canto de taberna sem dança, e que hoje, popularmente, só sobrevive na componente de canto improvisado.

5. Métrica e estrofes Os mais antigos textos associados de certeza ao fado são já da década de ’40 do Século XIX e mostram modelos popularizados vindos do Século XVIII, onde uma rima emparelhada se associa a um metro maior (A B B A). Importa abrir aqui uma nota explicativa para o entendimento da existência de romances nos corpora textuais fadistas: o Hino dos Marinheiros ou Vida do Marujo, construído em versos galegos, e a Nau Catarineta. Estes dois romances, que ao longo do Século XIX vão surgir soltos, fariam parte de uma Chegança ou Marujada, combates entre mouros e cristãos, onde uma contradança se associava a um auto que se levantaria nos círios da cidade à Senhora do Cabo, e que parece evocar a tragédia da nau Conceição, ocorrida por volta de 1620 ao largo da Ericeira, nau atacada por piratas argelinos, o que resultou na captura da tripulação. Auto velho que se perderia no pós-terramoto e onde estes dois romances estariam incrustados. A sua designação por fados deve apenas ser entendida do ponto de vista do texto, e veiculada por uma certa tradição oral, que aqui vê, no primeiro romance, o arquétipo do corrido. A razão desta afirmação deve prender-se, cremos, ao esforço de ligar um determinado canto a uma determinada gesta marinheira. Quando Alberto Pimentel e Pinto de Carvalho fixam esta tradição, havia alguns anos — não devemos esquecer — que o Hino dos Marinheiros tinha sido publicado no primeiro volume do Cancioneiro de músicas populares (1893). Fechando o parêntesis, importa referir que o modelo em versos galegos não se encontra no Canto do Fado deste período ou em momentos posteriores. Na década de ’40 de Oitocentos, a quadra emparelhada desaparece, embora continue a existir em algumas franjas marginais da população de Lisboa, em particular ovarinos e vendedores de fruta da Banda de Lá, e é substituída por quadras

Caixa de Música Colecção Nuno Siqueira 155


de rima interpolada (A B A B ou, mais vulgar, A B C B). O Fado da desgraçadinha, cuja designação terá uma longa vida, e originando muitas confusões, constitui-se como um dos textos mais antigos neste modelo estrófico e rimático. Na década de ’50 de oitocentos, a décima espineliana surge no fado, desenvolvendo motes de um ou dois versos, a chamada colcheia. Na década seguinte, começam a surgir fados compostos por quatro décimas, que glosam motes em quadra. Esta será a composição de maior êxito até à implantação da Ditadura de Salazar, já nos inícios do segundo quartel do Século XX. A sua explosão, por volta de 1870, não é dissociável dos objectos impressos editados por um grupo de pequenos editores e autores de teatro, que começam a responder a uma procura e a fomentá-la. Muitos destes autores e editores, alguns com quiosques no centro de Lisboa, ainda vão estar activos no início do Século XX. Estes autores e editores, que ainda não foram alvo de estudo, são fundamentais na história deste canto urbano. É em finais de 1860, e ao longo da década seguinte, que os operários começam a utilizar o Fado, enquanto canto de improviso, para expressar uma cultura da lágrima e do riso, assim como a usá-lo como veículo de transmissão de esperanças. E em breve, estes homens vão sair de Lisboa, ou dos arredores, em direcção ao Alentejo, região fortemente ligada a esta cidade, e de que é a capital económica, sendo o porto dessa vasta região histórica, por onde a carne de porco, a cortiça e os cereais se exportam. É a partir de 1890, e muito devido à descoberta da figura e da obra de Luís de Camões, e a um certo neo-trovadorismo associado, que no Canto do Fado vão surgir formas exóticas de versificação (rimas complexas, metros de 16 sílabas, etc.), resultado também da reinterpretação de determinados cantadores dos modelos aprendidos. Assim, embora possamos encontrar já algumas alterações textuais na décima, elas só começam a tornar-se fortemente evidentes por volta de 1900. É nessa altura que os operários começam a experimentar e transportar para a décima não só modelos eruditos, como a inventar formas de grande complexidade. Estas novas formas, perfeitamente assumidas por volta de 1910, vão ser divulgadas através do periodismo ligado ao fado, explodindo na primavera desse ano, e que só terminará por volta de 1920, mercê dos limites poéticos atingidos e também devido à divulgação da gravação em disco, que impossibilitava o tempo necessário para as cantar (por vezes quase 20 minutos). É nesta encruzilhada social, de transformações urbanas e de estratégias editoriais, que o Canto do Fado se vai tornar o canto catequético dos operários e das classes trabalhadoras. Não se pode apreender o fenómeno de explosão deste canto dissociando-o, pois, do uso da imprensa nem do papel desta na alteração profunda das sociabilidades das classes trabalhadoras. Nem — e é muito importante — o sentido internacional que os operário têm incorporado.

6. Os cantos libertários O Canto do Fado tem por características constituir um canto da marginalidade plural emergente numa cidade em reconstrução e em crescimento, ser um texto de improviso e utilizar a décima espineliana. E, a partir de 1860/1870, apresentarse como um canto fortemente enraizado na luta politico-social.

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Este fenómeno não é singular. Ocorre por toda a Ibero-América e com características muito similares. Na cuenca minera de Múrcia (Espanha), Jose Marín cria por volta de 1870, a partir de um canto de improviso tradicional, o trovo murciano, dentro da descoberta do neo-trovadorismo; na Argentina, a décima é adoptada como texto improvisado para cantar a revolta, circulando através do circo e da voz dos payadores, fenómeno idêntico nos lados oriental e ocidental do Rio da Prata, e também no Rio Grande do Sul, onde a pajada ocupa também determinado espaço social e político; em Cuba, em palavras de José Martí, jornalista e político revolucionário, ou nas décimas de Cuculambé, adoptadas e reinventadas, num forte influxo com as Canárias, e onde durante a revolução de Fidel Castro a décima será poesia revolucionária; por volta de 1900, e ao longo deste século, nas minas de cobre do Chile, vão circular jornais com décimas revolucionárias, e no México, nos alvores do Século XX, a par do uso da décima espineliana vulgar, os improvisadores vão introduzir alterações, em particular no metro, com 12 sílabas. Esta ampla geografia mostra modelos muito similares, em cronologias comuns. Entre 1870 e 1920, um grupo de homens transformam velhos textos popularizados, suportados musicalmente por formas antigas, em estrofes perfeitas ao nível da versificação. Estes textos recorrem sempre à décima espineliana, que sofre vastas transformações. O improviso é dominante em toda a geografia assinalada. Assumem-se como trovadores dos tempos modernos e constroem uma nova teoria poética a partir da bibliografia existente, muitas vezes decalcada de vulgatas sobre poesia medieval. Desde muito cedo, o Objecto impresso é um aliado fundamental em toda esta estratégia. Primeiro como folha solta ou em conjunto de textos impressos; mais tarde, em jornais e livros. Estes cantares vão mais tarde tornar-se populares e tradicionais das regiões e dos países em questão. De alguma forma, a décima e o improviso na Ibero-América é, para as classes trabalhadoras e operárias, uma espécie de esperanto poético, hoje fácil de apreender numa determinada geografia, mas cuja difusão levanta questões muito complexas e de difícil solução.

7. Conclusão O Canto do Fado, prática musical que emerge na cidade de Lisboa por volta de 1830/’40, é uma prática cuja história importa entender na sua multiplicidade. A sua história não se padece de uma evolução simples; antes é feita de muitas histórias e de muitos caminhos. Integrá-lo nos cantos libertários emergentes da Ibero-América dos finais do Século XIX/ princípios do Século XX é uma das chaves para a sua compreensão. Este ramo é fundamental para a construção de uma história mais vasta: a do improviso e da décima, não só em Portugal, mas antes em todo o mundo Ibero-americano. E é também o seu carácter libertário que nos permite entender o Canto do Fado como a nossa única warsong, presente na Primeira Grande Guerra e na Guerra Colonial, e também como canto da oposição clandestina à Ditadura Salazarista. Para lá da discussão sobre a origem deste cantar, importa situá-lo num amplo movimento que tentou, depois de 1860/’70, através da criação da palavra poética, dar dignidade às classes trabalhadoras (e oprimidas) de uma vasta região do globo, onde a exploração construída pela Revolução Industrial e pelo colonialismo foi terrível. Numa quarta-feira de Outubro de 1910, os operários que se encontravam na Feira de Agosto, abaixo da Rotunda, uniramse aos revoltosos. Afinal eram «primos». Um fado registou a memória desse dia

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A República muito deve A esses bravos operários Que deixaram esposa e filhos So p’ra ser revolucionários Ao grito da liberdade Dado na Feira de Agosto Tudo correu ao seu posto Na melhor fraternidade Pugnando p’la igualdade Seu valor não se descreve Numa cantiga tão breve Mas sim em largos artigos A essa ordem de amigos A República muito deve Escravos de um ideal Prontos todos a combater Pensando em engrandecer O seu querido Portugal Com ardor sem igual Correram co’os salafrários Esmagaram os argentários Numa bendita romagem Num preito de homenagem A esses bravos operários Na Rotunda com valor Sem receio ter à tropa Mostraram è velha Europa

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Quanto vale o seu ardor Tendo à República amor E seguindo novos trilhos Venceram com grandes brilhos Do rei os seus partidários Honrai pois os operários Que deixaram esposa e filhos A Monarquia morreu Neste abençoado solo E o País de pólo a pólo Assim logo o concebeu A República venceu Devido aos esforços vários Desses homens temerários Que o mundo deixaram mudo E abandonando tudo So p’ra ser revolucionários

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[Transcrição do Objecto impresso com a cota BNP: L. 6896//15 V.]1

Capa

\Grupo “LYRA NOVA” — II Numero

Metrificação e Composição das Canções de Fado

Meio fácil de aprender a fazer correctamente toda a qualidade de canções de fado

1907 Officina Typographica Calçada do Cabra, 7 LISBOA 1

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Transcrição integral do texto original. O arranjo gráfico não corresponde a uma versão facsmilada da obra.


\INTRODUCÇÃO

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Se o fado foi sempre o divertimento do povo e por elle tem sido empregado com mais ou menos correcção, lembrando algumas leviandades bacchanaes, é ao povo que pertence apagar essa má impressão que elle ainda causa em certos criticos, que muitas vezes pensam em sciencias extranhas á sua posição. Se na historia do povo podesse estar gravado o que elle tem por essência: O allivio d’um lamento triste ou o desabafo d’um pensamento, fundir-se-hia a critica na propria critica. Com se sabe a historia do povo não é este ou aquelle livro, mais ou menos phantasiado; a sua phantasia está na pagina que o vento sopra dia a dia e dividida no proprio povo, porque elle infelizmente, se chora, lamenta a sua dor, e se ri, conta a sua alegria e nunca escreve, para que esse sentimento possa chegar ao seu extranho. Emquanto o povo não souber escrever é sempre aquelle vulto de pouca importancia , o rafeiro; elle, que é o braço movel de toda a evolução, sem se conhecer sendo rebaixado por uns e lisongeado por outros, conforme a conveniencia, porque não sabe cumprir a sua missão como vivente. Porque é que vivem em nosso espirito alguns filhos do povo, fallecidos? Porque em vida nos deixaram a sua lembrança. É por isto, que a Lyra nova, intende que o povo, aquelle que muitas vezes dá o seu sentimento pelas canções de fado, deve instruir[-]se para que as suas producções, impulsadas pelo sentimento, possa erguer a sua historia occulta, até á historia das nações e caminhar com ella par a par como direito e dever. Portanto eu fallando pelo sentimento do fado, vejo que a historia das nações lhe servirá de ajuda ao seu começo como material da sua obra, e a metrica a util ferramenta para a construir. Por isso, o povo que intender o fado como o devido elemento do seu esforço, veja no metro a medida principal da sua architectura. Para facilitar a construcção das canções de fado é indespensavel saber medir versos e é este o maior defeito d’estas canções. Se a grande parte dos cantadores de fado, soubessem medir versos, não eram esquecidos tão facilmente milhares de bons sentidos que se teem formado, se não fosse a disregrada construcção. As canções mal medidas ou sem metrica, são tambem um suplicio para o cantador que as não pode suster sob um mesmo estylo, pois que se o verso for comprido terá que metter n’uma só nota do estylo duas ou mais syllabas, assim como sendo curto, terá que metter n’uma só syllaba duas ou mais notas

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e, tanto d’uma forma como doutra não só produz um effeito desagradavel como cançam o cantador que se vê obrigado a fazer com a bocca o que pertence á garganta e com a garganta o que pertence á bocca. Para fazer comprehender as formas das varias canções que o fado emprega, tenho, primeiramente a explicar um pouco a regra metrica ou seja 2\a metrificação necessaria para as dictas canções, para tal, farei da forma mais comprehensivel que souber, cingindo-me pelos bons auctores poetas.

METRIFICAÇÃO Falla Castilho: «O metrificador não conta as syllabas pelo que ellas são grammaticalmente mas só pelos tempos em que pronuncia.» «Todas as vogaes que em uma ou em diversas palavras se pronunciam, ou se podem pronunciar, como em um só tempo, são para o metrificador uma só syllaba. O metrificador em alguns casos tem a obrigação de elidir as vogaes, em outros a faculdade de elidir ou não; em outros a impossibilidade de as elidir: Obrigação como em muito amor que fará sempre muit’amor: Liberdade com em saudade que pode ser sa-u-da-de ou sau-da-de: Prohibição como em ma alma que por modo algum fará malma, posto que similhantes exemplos se encontrem em antigos e até modernos. O regulador é o ouvido, pois as regras só por elle foram dictadas.» É em saber fundir as voages (a e i o u) que está a confusão de medir os versos. Verso: é o que vulgarmente chamamos linha. Por exemplo, uma quadra ou um mote, tem quatro linhas que são: quatro versos; portanto, uma linha é um verso. As syllabas do verso, só se contam até ao accento predominante da ultima palavra. Por exemplo: O fado nasceu do povo — Ora n’este verso contamos 7 syllabas porque o accento predominante está em pô da palavra povo, porque grammaticamente contariamos 8 syllabas. O accento predominante das palavras, é por exemplo: a primeira syllaba da palavra cântico; a segunda de Cantádo e a terceira de Cantadôr, que é a syllaba em que nos carregamos ao dizel-a. Outro exemplo: Eu vou dedicar um cântico. — Este verso tem 9 syllabas mas no entanto só tem 7, porque, repito, as syllabas métricas só se contam até ao accento predominante da ultima palavra do verso. A palavra que tem o accento na ultima syllaba como cantador, chama-se aguda; a que tem o accento na penúltima como cantádo, chama-se grave e a que tem o accento na antepenultima como cântico, chama-se esdruxula. O verso que acabar com uma palavra aguda, chama-se agudo; o que acabar com

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uma grave, chama-se grave; o que acabar com palavra esdrúxula, chama-se esdruxulo. Para se contar as syllabas além da sugeição da palavra final do verso, o que já expliquei, ha o saber fundir as vogaes. Vamos a exemplos: Saudade eterna. Se nós apagarmos o e de saudade, não deixamos de dizer da mesma forma aquellas duas palavras;

e contamos 4 syllabas ou 5 porque podemos dizer

1.ª 2.ª 3.ª 4.ª

Saudad eterna; 1.ª 2.ª 3.ª 4.ª 5.ª

Sa-u-da-d e terna.

Para supprimir a vogal do fim d’uma palavra, é preciso que ella não seja accentuada, porque não se póde. Por exemplo, se nós lermos: Fulano mostrará o sentido. N’este verbo mostrará, mudar-se-hia o 3\tempo, porque ficava: mostrara. Num substantivo, soffria uma grande transformação, porque lendo nós: A manhã é bella, supprimindo o ultimo a da bella, o que fazia d’aquella palavra, outra muito differente. O que tenta medir versos sem saber, tem muitos pontos em que fica embaraçado pela razão de não saber ou pela falat d’uma pequena explicação. Por exemplo: Encontrando tres ou quatro vogaes todas seguidas, a forma como as dividir? — Ahi vae uma explicação dictada por Castilho: «Limitação. — A absorpção de quatro vogaes em uma só syllaba, seria ainda possível, rigorosamente fallando, mas deve sempre evitar-se. Por exemplo: quem fizesse de gloria e amor — gloramor cometteria um barbarismo, ainda que não um erro». Eu fallando para os cantadores de fado que ainda não tiveram o poder de aprender a metrica, lembro-me explicar-lhes a forma de não cahir no barbarismo. Por exemplo: Sorria a alma do povo. Este verso lê[-]se da forma seguinte 1.ª 2.ª 3.ª 4.ª 5.ª

6.ª

7.ª

So-ri aa al-ma do povo, Porque os dois aa que fazem a terceira syllaba, não se pódem supprimir, e, não se devem fundir nas outras vogaes. Em qualquer dos casos contrarios líamos sempre: Sorri alma do povo. Outro exemplo: Eu sentia o ar tão frio, etc… N’este verso funde-se o a da palavra sentia no pronome o e contam-se as syllabas do seguinte modo: Eu-senti ti-ao ar tão frio.

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= Voages mais ou menos difficeis de absorver: Há vogaes mais ou menos duras: em geral, o o é o mais duro que o a, o a que o i, o i mais que o e. Uma vogal será tanto mais fácil de absorver na seguinte, quanto fôr menos forte de sua natureza, menos accentuada e menos pausada. As mais abertas, mais accentuadas e mais pausadas, não se elidem sem violencia, violencia que terá sempre um defeito, e às vezes um erro imperdoavel.

Escala dos nomes dos Versos

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Quantidade de Syllabas

Collocação dos accentos

Nomes

2

Não tem

Não tem.

3

3.ª

Quebrada da redondilha menor.

4

4.ª

Quebrada da redondilha menor.

5

5.ª

Redondilha menor.

6

6.ª

Quebrada do heroico.

7

7.ª

Redondilha maior.

8

Não tem

Não tem.

9

3.ª, 6.ª e 9.ª

Gregorio de Mattos.

10

4.ª, 8.ª e 10.ª

Saphicos.

10

6.ª e 10.ª

Heroicos.

11

5.ª e 11.ª

Arte maior.

12

4.ª, 6.ª e 12.ª

Heroicos Francezes, ou Alexandrinos.

12

3.ª, 6.ª, 9.ª e 12.ª

Rigorosamente francezes(sic) ou Alexandrinos.

12

6.ª e 12.ª

Alexandrinos.


4 \Os versos Alexandrinos com os accentos na 6.ª e 12.ª teem a suggeição de, se, na 6.ª syllaba a palavra fôr grave ter que se fundir a vogal final com a outra que se lhe segue; o mais facil é metter-se-lhe uma palavra aguda, por isso é pouco admissível, e nunca se poderá pôr uma palavra esdrúxula.

Os versos de treze syllabas teem o accento na 6.ª e 13.ª e não teem nome proprio. Eu lembrei[-]me pôr aqui a escala completa dos nomes, dos versos não que seja precisa para o fim d’este pequeno livro, mas para melhor fazer comprehender que qualquer pessoa que se afaste dos metros, sem que seja n’uma syllaba, cae n’um erro, porque esse afastamento dá-lhe ao verso um outro nome — Vamos ao fim. As differentes composições de canções de fado são singelas; de rimas dobradas; de rimas triplicadas; de verso quebrado, e furiosamente no difficil verso Alexandrino. Singelas: são as canções formadas de uma quadra mote, com as quatro decimas sugeitas, rimando estas: o 1.º verso com o 4.º e 5.º, o 2.º com 3.º, o 6.º e o 7. São a sugeição do mote e o 8.º com o 9.º. É esta a canção que o fado escolheu para si e é d’esta que derivam todas as mais canções que o fado alcunha. Sua medida é redondilha maior (7 syllabas). De rimas dobradas: — São formadas com versos em redondilha maior (7 syllabas) como as cantigas singelas, apenas seguidos da quebrada da redondilha menor. (3 syllabas). A sua construção é egual as das cantigas singelas = um mote e quatro decimas. Sendo o mesmo que acrescentar uma rima a cada verso d’uma cantiga singela. De rimas triplicadas, são as que tem a mesma formação das singelas, apena acrescentando aos versos impares (1.ª, 3.ª, 5.ª, 7.ª, 9.ª, etc) duas quebradas que por si farão ou contarão 7 syllabas. De verso quebrado ou fado do outro mundo: — Composição nova e por isso pouco conhecida, mas harmoniosa. Tem a mesma formação das singelas, sendo unicamente quebrado o 4.º verso do mote, bem como o 4.º e 10.º das glosas. Trova Alexandrina: — Tem a mesma formação das singelas, apenas é ser composta com versos Alexandrinos. Estes versos já foram explicados na escala dos nomes dos versos, tendo a advertir que para esta trova se tornar facil na dicção é conveniente, além da sugeição da sexta syllaba, ser accentuada a segunda, bem como a oitava ou decima.

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5

\EXEMPLOS DE CANÇÕES

Singela Mote Para lhes dar simples trovas Deu-me vida o soffrimento, Tenho os livros por meus mestres Da-me o canto o pensamento. 1.ª Se quando eu era creança, Era-me o viver um sonho, Porque vivia risonho Sem cuidados na lembrança; Em tudo via bonança Com que lhes dou serias provas E nas minhas crenças novas Julgava a infancia infinda, Porque não vivia ainda Para lhes dar simples trovas. 2.ª Veio então a adolescencia Já de espinhos rodeada Com as silvas da cilada Despertar[-]me a consciencia; Logo após sem condolencia

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Dão-me os amor’s tormento Onde eu a todo o momento Sentia a dor e o pranto. Assim p’ra este meu canto Deu-me vida o soffrimento. 3.ª E como ao sentir movido Cantou-me a muza seu hymno, Marcando assim o destino Como lhes dou meu sentido, Agora busco eu o olvïdo N’estas estancias campestres, Fugindo ás horas silvestres Que me deram as paixões, É p’ra dar minhas canções Tenho os livros por meus mestres. 4.ª Eu hoje esquecido ao chôro Já sorriu á juventude, E ao som do alaude Canto co’as aves um coro; Tenho os campos por namoro A elles dou meu lamento Elles me dão o alento Para assim poder fruir,

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Deu[-] a paixão o sentir, Dá-me o canto pensamento. M. Raiuis

De rimas dobradas Mote Eu amo do camponez | A rudez Nos campos a trabalhar, | A lavrar, Mas não quando p’ra soldado | É chamado Com a rudez militar | A matar. 1.ª Eu amo esse bando alado | Pelo prado Voejando doidamente | Mui contente Eu amo a canção ardente | E dolente Do pastor enamorado | Descuidado; Amo esse campo lavrado | Ao arado, N’essa tão vasta nudez | E aridez Onde a voz do montanhez | Se desfez Pela longa ribanceira | da(sic) ribeira, Eu amo a terna ceifeira | Tão fagueira Eu amo do camponez | A rudez. 2.ª Amo a frágil mariposa | Setinosa

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Quando beija a debil flôr | Com amôr, Amo da brisa o frescôr | E o odôr Que espalha da flôr mimosa | Como a rosa; Eu amo essa paz dictosa | Que se gosa No campo onde vou ‘spalhar | Meu penar E fico-me a meditar | No frio lar D’essa gente endurecida | Denegrida Que vive feliz na lida | D’essa vida, Nos campos a trabalhar, | A lavrar. \3.ª

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Tambem amo a singeleza | E a belleza Que traz na simplicidade | A bondade, Odeio na humanidade | A vaidade Aonde impera a villeza | Com presteza; Eu amo da Camponeza | A pobreza Mais que na dama o rendado | Já vexado Amo o cavador honrado | Callejado Que n’um sorrir de bondoso | Nos dá goso É talvez concencioso | E amoroso Mas não quando p’ra soldado | É chamado. 4.ª Torna-se um ente immoral | E banal Na caserna embrutecido | E vendido, Esquece o lar ‘stremecido, | Opprimido N’essa lei profissional | Tão brutal;

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Escutando a voz do mal | Na moral Que o moço timido, alvar | Faz jurar O seu sangue derramar | P’ra salvar Um outro conselheiro | Bandoleiro E que o faz um vil sendeiro | Traiçoeiro Com a rudez militar | A matar. J. R. S.

De rimas tripplicadas Mote Não é na vida um mysterio | O caso serio | E funerio De toda a vaidade humana, É um vicio de loucura | Em que a figura | Impostura Com o nada que a engana. 1.ª Eu não levanto contenda | Pela fazenda | Ou p’la renda Que enfeita qualquer vestido Nem pelo modo atrevido | D’um guarnecido | Estendido Por muito que elle se estenda; Tambem não censuro a venda | Que recommenda | A emmenda D’um baixo ou alto critério, Eu emprego o meu cauterio | Que mesmo ethereo | Ou siderio A certo modo de usar Porque a moda de trajar | Irregular | Ou vulgar

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Não é na vida um mysterio. 2.ª O espartilho deu brado | Com desagrado | É fallado Contra as damas caprichosas Que por qu’rerem ser mimosas | Mesmo airosas | As vaidosas Trazem o corpo apertado Se o corpo querem delgado | Noutro lado | Enxumaçado Por muito o corpo se empana Não fallo só da mundana | Mas da leviana | Que ufana Tem o corpo contrafeito Quando as ancas e o peito | São o defeito | Perfeito De toda a vaidade humana. 3.ª A que é magra é de suppor, | P’ra se propor | Ao amor Tem de se mostrar moldada E p’ra tapar a ossada | Descarnada | E espetada Alguma coisa ha-de pôr; Alem de ser um horror | O estupor | Do furor \Da que tem carne e gordura

7

E que quer fazer cintura | Com ligadura | Bem dura A salientar-lhe regaços, E pôr no peito e nos braços | Uns pedaços | De chumaços É um vicio de loucura. 4.ª

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Se não se desculpa isto | Mais se tem visto | E previsto Na fronte das descaradas Andarem todas pintadas | Caiadas | E acarminadas Por esse mundo de Christo; Muitas coisas registo | Se resisto | No que allisto Na femea raça tyranna Que com tanta barbatana | Se espavana | Se se abana Para os homens agradar, Só para um enganar | Sem pensar | Que vae casar Com o nada que a engana. M. Raiuis.

De verso quebrado Mote A vida do meu amor É quasi um amor sem vida Porque morre e logo nasce | Mas desfaz-se Apetecida. 1.ª Contendo vários desejos Lembra agora logo esquece, Pois os beijos apetece | Aborrece Após os beijos; São incertos os manejos

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Ora alegre ora em horror, Ora tem frio ou calor, Satisfeita ou aborrecida, Em mysteriors envolvida, | É a vida Do meu amor. 2.ª Por ella tenho ciumes Umas vezes, outras não, Umas vezes com paixão | Deixo em vão Os seus queixumes; Se calha ter azedumes São brandos e de seguida, Tem momentos de atrevida Que não quer nada por base Mas quando muda de phase | É quasi Um amor sem vida. 3.ª Ella é de neve e tem fogo Trepida e fica tranquilla, Se tenta fugir desfilla, | Mas vacilla E pára logo; Tem por vezes desafogo, Mas á caricias afaz-se E logo n’ella renasce O genio que pára e corre

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E a mil visões occorre | Porque morre E logo nasce. 4.ª Se está longe tem saudade, Se perto, o aborrecimento É perfeito catavento | Com alento E sem vontade; É paixão sem amizade É subida e é descida, É achada e é perdida, Tanto ao bom com ao máo faz-se, Porque ella no goso nasce, | Mas desfaz-se Apetecida. M. Raiuis. \Trova alexandrina

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Mote Nas hortas ou no campo o mesmo na taberna O som d’uma guitarra a tilintar o fado, Se impelle a mocidade ao goso da orgia, Recorda á velha guarda o tempo já passado. 1.ª O som é divinal e o dom de encantar Quer seja velho ou novo, a todo o auditório,

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Assim como a cantiga em verso mais simplorio, Ao povo sempre faz o gosto de agradar; Se o povo é quem o fado tenta dedilhar, É delle que se escuta a trova mais moderna, E n’uma canção triste o peito se consterna Ouvindo em tom dolente, um coração maguado, Por isso bem o mal é sempre ouvido o fado, Nas hortas ou no campo o mesmo na taberna. 2.ª Quem tem sempre a pungir-lhe a voz do sentimento Escuta d’onde venha o som que lhe conforte A alma esperançada embora que na morte, Porque esse som vibrado abranda o soffrimento; Ha sons que nos vem f’rir, se acaso torbolento O cantador inspira, ás notas, desregrado, A magua do sentir infunde o desagrado E deixa em vão seguir á nota mais ‘spressiva Que sempre nos confunde e sempre nos captiva O som d’uma guitarra a tilintar o fado. 3.ª Se o fado tem ainda a fama criminosa, Segundo Brederode impóz á sua critica, Que, fraca no sentir, só forte na politica, A sua causa extranha eu julgo duvidosa; Se o fado convocou a scena vergonosa,

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Foi scena que morreu em noites de magia Porque hoje a difamada e pobre melodia Se vê ser acolhida em muito lar modesto, E como pode n’ella haver o tom infesto Se impelle a mocidade ao gozo da orgia. 4.ª E quem é que não ama o goso das vestaes, Isto é atribuindo á louca mocidade, Elle mesmo um dever de toda a humanidade Se a propria Natureza induz os animaes; Por isso não é crime, afora os bacchanaes Que teem no sentir o genio depravado; Usar estas canções embora apaixonado Já basta por saudade ou outro sentimento, A prova do sentir é que elle n’um momento Recorda á velha guarda o tempo já passado. M. Raiuis.

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PROJECTO MUSEOGRร FICO

Antรณnio Viana


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O Mais Português dos Quadros a Óleo, 2005 (pormenor) João Vieira Painel Lenticular 300 x 365 cm Colecção Museu da Cidade Câmara Municipal de Lisboa

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FICHA TÉCNICA Uma produção EGEAC EEM/Museu do Fado Conselho de Administração:

Miguel Honrado Lucinda Lopes Paulo Braga

Comissariado: Sara Pereira Consultoria Científica: Rui Vieira Nery Concepção Plástica e Realização: António Viana

Assistente de Realização: Miguel Costa

Textos:

Emília Nadal Miguel Honrado Paulo Lima Pedro Félix Rui Vieira Nery Sara Pereira Sofia Bicho Produção executiva: Cristina Almeida Documentação/Catalogação: Ana Gonçalves, Sofia Bicho, Susana Costa Comunicação: Rita Oliveira Luminotecnia: Vítor Vajão Construção: F. Costa, Oficina de Museus Videogramas: Luís Carvalhal Seguros: Corbroker Design Gráfico do Catalogo: Luís Carvalhal Ilustração de capa: Luís Carvalhal Impressão: RPO Depósito Legal: 313142/10

ISBN: 978-989-96629-1-9 Agradecimentos:

Agradecemos aos coleccionadores particulares que viabilizaram esta exposição Agradecemos ainda ao Museu José Malhoa, ao Museu Militar de Lisboa e à Galeria Antiks Um agradecimento particular a Emília Nadal, Vasco Pereira Coutinho, Lourenço Pereira Coutinho, Carlos Barbosa, Nuno Siqueira, Francisco Mendes, José Pracana, José Manuel Osório, António Silva, Matilde Tomaz do Couto e Carlos Coutinho, Maria Amélia Santos Almeida, Maria José Almeida e Paula Almeida.

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