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Ser Inteiro

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2015 2016

2015 2016

Sara Pereira

Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive1

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Fernando Pessoa, 1933

Toda a retrospectiva procura conter, dentro de limites inevitavelmente estreitos, a presença inteira que os transcende. José Pracana é consensualmente reconhecido como uma das grandes figuras da história do Fado. Músico, intérprete, imitador, colecionador e investigador, José Pracana foi, seguramente, uma das personalidades mais completas que o Fado conheceu. Mesmo cientes de que o seu vasto património humano dificilmente caberá na pequena geografia de uma exposição, este exercício, para lá de imperioso, é pretexto de celebração da admirável existência de alguém que soube ser grande e inteiro em tudo o que fez.

Assumindo-se como amador até ao final, tal estatuto nunca o impediu de acompanhar e de conviver com os grandes pilares da tradição fadista – de Amália Rodrigues a Maria Teresa de Noronha, de Alfredo Marceneiro a João Ferreira-Rosa - de actuar em concertos nos vários palcos do mundo ou de nos ajudar a compreendermos colectivamente a história do Fado e a consolidarmos os nossos conhecimentos sobre uma tradição popular, tão profundamente enraizada na nossa sociedade.

A sua biografia artística acompanhou um período de importantes transformações no Fado, desde a segunda metade do século XX até às primeiras décadas do século XXI. Espírito livre e autêntico, cultivou, por opção e convicção, o estatuto de amador, no sentido mais literal da palavra: José Pracana amou profundamente uma tradição para se lhe entregar, abnegada e generosamente. Foi, seguramente, o amador mais distinto que a história do Fado conheceu. Ao longo de décadas sucessivas, tal estatuto nunca o impediu de testemunhar, de contribuir e de protagonizar alguns episódios do maior significado para a história do Fado.

Profundamente exigente consigo-mesmo, José Pracana pôs exigência em tudo o que fez. Essa exigência, artística e ética, foi nele, o outro nome da integridade. Fundada na exigência e no rigor, a sua biografia artística foi também a história de um amor profundo pelo Fado tradicional que abraçou e elevou a um tom maior. Nele se combinaram autenticidade humana e artística, em perfeita simbiose.

A sua aproximação ao universo do Fado fez-se no circuito privilegiado de ligação à tradição fadista mais legítima, rodeado das grandes figuras de referência, de Alfredo Marceneiro a José Nunes, Fernando Freitas ou Raul Nery. Do convívio quotidiano com os grandes pilares do Fado do século XX, José Pracana colheu um conhecimento, tão sólido, quanto profundo, da matriz tradicional. Esse entendimento, transbordante de respeito e gratidão, fez dele o mais generoso e o mais feliz dos Mestres, para quem a partilha de conhecimentos e referências foi sempre motivo do maior entusiasmo. Aventurando-se na história do Fado, o seu encantamento crescia à medida que se adensavam os mistérios: a identificação das melodias do fado tradicional, o estudo do repertório, a pequena história da criação de cada fado, as histórias de vida dos seus criadores, a identificação dos executantes nas gravações dos alvores do século XX, foram apenas alguns do vastíssimo inventário de temas que constituíam para José Pracana, matéria de inesgotável curiosidade e fascínio.

Às mais jovens gerações de intérpretes e músicos, ensinou os segredos de fazer da repetição uma permanente reinvenção, a verdade que tem de transparecer em cada palavra, em cada frase musical. Com ele, todos passámos a compreender melhor a dimensão do legado de Alfredo Duarte Marceneiro, Armando Augusto Freire, Frederico Valério ou José António Sabrosa, entre tantas outras figuras cujo legado enalteceu ininterruptamente.

Capaz de uma entrega absoluta à narrativa intrínseca de cada tema cantado, as suas interpretações, bem distantes de uma mera exibição de malabarismo vocal, correspondiam sempre a um exercício de expressão autêntica. Mais tarde, o seu talento artístico viria a consagrar-se também na guitarra portuguesa, que dedilhava com uma expressão inigualável. Dotado de uma invulgar versatilidade e conhecendo como ninguém a sonoridade dos grandes mestres da guitarra portuguesa, toda uma luz interior se acendia quando ilustrava, na perfeição, o som da guitarra de Raul Nery, de José Nunes, Jaime Santos ou Fernando Freitas.

Esta empatia profunda com o outro, a extraordinária capacidade de sair de si, cimentou nele o raríssimo dom da heteronímia. Como se todas as vozes e todas as sonoridades da guitarra habitassem nele. Uma inteligência emocional apurada, uma notável capacidade de observação e o talento incomum para, saindo de si e entregar-se a cada tema, cantado ou tocado, foram alguns dos ingredientes mágicos desta sua arte de ser toda a gente, que o seu grande amigo, João Braga, tão bem descreve nas páginas deste catálogo. Como imitador, Pracana arrebatou plateias e fez as delícias das audiências televisivas.

Conhecedor profundo da história do Fado, dirigiu séries televisivas consagradas ao género, colaborou em variadíssimas edições de livros e de antologias discográficas. Não lhe devemos apenas a preservação de um legado musical do maior significado para a nossa identidade cultural mas também o seu justo reconhecimento como Património Cultural Imaterial da Humanidade, pela UNESCO, candidatura à qual deu um contributo inestimável.

Ao longo da vida reuniu uma vasta colecção de testemunhos artísticos fundamentais para ilustrar a história do Fado, que cuidadosamente dispôs nas paredes da sua casa em Ponta Delgada onde criou um retiro para receber os amigos.

Homem de cultura, de permanente abertura ao outro, movia-o o calor do convívio. O convívio da taberna ou do salão. A sua humanidade contagiou, da mesma forma, o coração de príncipes e de plebeus. Desembainhando a espada do seu sentido de humor, José Pracana desafiou o mundo à gargalhada, ciente, tal como Almada, de que a alegria é a coisa mais séria da vida.

Capaz das graças mais inusitadas, a sua crónica espirituosa do quotidiano devolvia-nos o mundo num espelho onde nos revíamos, inevitavelmente, mais felizes. Observador astuto e atento, tudo em seu redor inspirava o seu sentido de humor, que tinha tanto de inesgotável como de desarmante.

Tive a honra da amizade de José Pracana. A mais singela memória do seu convívio deita por terra o velho adágio de que não existem pessoas insubstituíveis. Existem, sim. Para ele, todos os aplausos. Para nós, em todos nós que com ele convivemos, permanece a insubstituível memória de uma presença tão absoluta que era capaz de ser toda a gente e ninguém para que, aquilo que nos dava, de mais pessoal, pudesse ser afinal pertença de todos.

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