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Cantar, Sentir ----e Saber o Fado: Memória --do Zé Pracana

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2015 2016

2015 2016

RUI VIEIRA NERY

Reza o velho ditado que “tão fadista é quem canta o Fado como quem o sente” – e eu atrever-me-ia a acrescentar-lhe ainda “e como quem o sabe”. Se assim é, o meu Amigo Zé Pracana, na sua tripla condição de intérprete inspirado, de amador fervoroso do Fado, e de conhecedor profundo da sua prática e da sua História, e pela forma como estas três facetas nele interagiam de forma inseparável e inimitável, terá sido por certo um dos grandes fadistas que eu conheci.

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Do seu talento de fadista ficaram-nos, infelizmente, poucas gravações que possam atestar a quem não teve o privilégio de o ouvir ao vivo o que era a sedução do seu canto: alguns discos de 45 rotações – muito poucos – e uma meia dúzia de vídeos que se podem ainda encontrar no YouTube. Destes, deixem-me recomendar-vos o de A Lenda das Rosas, acompanhado pelo grande Fontes Rocha, numa magnífica noite de fados que julgo ter sido captada em 1976 em Pintéus, em casa do João Ferreira-Rosa, e de que sobraram também outros momentos fabulosos com Alfredo Marceneiro e com o próprio anfitrião1 . Ou então o de Um Fadista Já Cansado, com outro Mestre da guitarra portuguesa, José Nunes2 . Em ambos vemos e ouvimos um fado intenso mas sereno, sentido com sinceridade mas sempre elegante no seu desenho, com uma dicção e uma compreensão perfeitas do texto, e com uma arte de estilar que consegue ir variando subtilmente a melodia de estrofe em estrofe, mas ao mesmo tempo ir construindo do princípio ao fim uma narrativa eficaz, com uma curva exemplar em que há um princípio, um clímax emocional e uma conclusão. Não sei quantos fadistas conseguem hoje cantar-nos/contar-nos assim um fado, mergulhando nas raízes mais remotas do género, em que o fadista era, precisamente, e antes de mais, um contador de histórias.

1 - youtube.com/watch?v=ljstEoVHcy0

2 - youtube.com/watch?bv=H89yy0Tuqlk

O Zé Pracana tinha, de resto, em relação ao Fado, duas atitudes muito claras. Por um lado uma humildade de princípio, enquanto intérprete, para com a nobreza essencial que reconhecia no Fado, o que excluía à partida, da sua parte, qualquer truque fácil de expressão que não fosse estritamente decorrente da sua compreensão do poema e da música que estava a cantar. Cantar o Fado era para ele, acima de tudo, servi-lo. Por outro lado, e talvez como consequência da primeira destas posturas, um fortíssimo sentido de tradição, que o fazia ver-se, enquanto fadista, como um mero elo adicional numa cadeia de transmissão de um repertório canónico e de uma prática interpretativa consagrados. Cantar o Fado era também, para ele, respeitá-lo religiosamente nas características que considerava fazerem parte de um núcleo duro definitório do próprio género, passado de geração em geração.

Isso não implicava, de modo algum, que a sua relação com o Fado fosse de algum modo tristonha ou acabrunhada. O Zé Pracana tinha um profundo sentido de humor e uma capacidade inesgotável de brincar com as coisas e as pessoas que mais amava. Os seus dotes de imitador eram únicos, e num serão entre amigos o auge da festa era, invariavelmente, uma série interminável de imitações suas de grandes fadistas que, mesmo quando não podiam produzir sonoridades absolutamente idênticas às dos visados, lhes conseguiam captar com a finura de um grande caricaturista os traços mais característicos de colocação vocal e de expressão interpretativa. Mais uma vez vos sugiro uma visita ao Youtube, para uma pequeníssima amostra, no palco do Casino do Estoril, em 1987, de algumas das suas imitações de Vicente da Câmara, Manuel de Almeida ou Alfredo Marceneiro, entre outros – acompanhado, já agora, por outro grande Senhor da guitarra, desta vez Raul Nery 3

Não sei bem por que razão o Zé Pracana decidiu a um dado momento deixar de cantar, primeiro como fadista “sério”, depois até no que toca às suas imitações. A razão que ele invocava era a de uma súbita anomalia nas cordas vocais que lhe teria dificultado o canto, e é evidente que não tenho motivo para questionar essa justificação. Mas não deixo de pensar que, no fundo, terá havido da sua parte, nesta decisão, essa mesma humildade a que já me referi, e, por conseguinte, um excesso de autocrítica que o terá porventura levado, face ao termo de comparação dos fadistas que mais admirava, a não querer contrapor-lhes o seu canto, que considerava menor.

3 - youtube.com/watch?v=m4K6wB7NMHI

Continuou, contudo, até ao fim da vida, a tocar guitarra, faceta em que talvez se sentisse mais seguro de si próprio. E como guitarrista era mais uma vez evidente o seu conhecimento das técnicas e dos motivos de acompanhamento instrumental tradicionais, remontando aos exemplos remotos das gravações de Luís Petrolino, de José Marques Piscalarete ou – muito em particular – do grande Armandinho. Era um acompanhador seguro, e como tal não só tinha um élan rítmico sólido, que dava total apoio e confiança ao fadista, como sabia exactamente quando devia recuar para deixar sobressair a voz e quando lhe podia responder, entre os versos do poema, com um motivo instrumental adequado à expressão emocional do momento. Para lá de, também neste aspeto, ter um domínio técnico da guitarra que lhe permitia imitar na perfeição a sonoridade e a técnica dos grandes guitarristas que tinha conhecido: Nery, Nunes, Fontes, Casimiro Ramos, Jaime Santos, Camarinha, ou Carvalhinho. Fadista autêntico como intérprete, era-o também – regressemos ao provérbio inicial – pela forma como sentia o Fado em todas as suas manifestações. Chegado a Lisboa aos dezoito anos, em 1964, vindo da sua querida São Miguel natal, com o propósito de ingressar na Universidade, depressa mergulhou, em vez disso, no circuito fadista de raiz da capital, onde, cumpridos todos os passos da iniciação tradicional de qualquer meio desconfiado do universo exterior, foi aceite de pleno direito. Tornou-se amigo de figuras icónicas da boémia fadista, como o poeta Hermano Sobral, foi quase que adoptado como mais um filho por Alfredo Marceneiro, a quem muitas vezes acabaria por acompanhar a casa de manhãzinha, no final dessa ronda das casas de Fado que constituía a rotina do velho patriarca no final da vida, partilhou copos e amores com fadistas maiores e menores. Circulava com o mesmo à-vontade, a mesma elegância e a mesma naturalidade pelas tabernas do Bairro Alto ou pelos salões aristocráticos, e dessa vivência intensa foi absorvendo experiências, confidências, histórias e memórias.

Daí lhe veio a terceira faceta do ditado. O Zé Pracana sabia, como poucos, o que eram o Fado e os fadistas. Conheceu os mais velhos, que vinham ainda da era do início da profissionalização do género, na viragem para a década de trinta, como o próprio Marceneiro, conviveu com todos os das sua geração, aproximadamente, que integraram os elencos da rede de casas de Fado a partir dos anos 50, na época de ouro deste circuito, mas foi também íntimo de grandes figuras cuja carreira, por diferentes razões, se processou fora desse contexto, como Amália ou Maria Teresa de Noronha. Dessa rede extensa de amizades e cumplicidades nasceu o projecto da casa de Fado que ele próprio chegou a abrir em Cascais, o Arreda, por onde, entre 1969 e 1972, passavam informalmente os maiores nomes do Fado da época, por vezes em sessões improvisadas que se prolongavam, fechadas já as portas para cumprimento do horário oficial e com um público exclusivo de amigos, até altas horas da madrugada.

De todos eles foi aprendendo, de todos foi registando episódios pessoais e artísticos, acumulando uma sabedoria que era unanimemente respeitada, dentro e fora do meio fadista. Poucos, como ele, por exemplo, podiam dizer com segurança quem era o autor original de cada melodia de fado, ou quais de entre os fadistas o tinham cantado de forma mais emblemática e como o tinham feito, exemplificando-o logo com a voz ou com a guitarra. Escusado será dizer que essas memórias, evocadas com um brilhozinho nos olhos, vinham acompanhadas quase sempre de pequenos episódios picarescos divertidíssimos, ainda que na sua maioria impublicáveis… E ao património imaterial desta sua sabedoria ia-se juntando a recolha de uma coleção pessoal riquíssima de fontes materiais em alguns casos únicas: fotografias, cartazes e programas de concertos, instrumentos, cartas, adereços pessoais e uma infinidade de peças depositadas com carinho na sua casa de Ponta Delgada.

O seu papel como transmissor para as novas gerações de um legado de conhecimento ímpar sobre a prática fadista tradicional foi decisivo. Nunca me esquecerei da lição que lhe vi dar em Agosto de 2009 a uma jovem estrela então em ascensão no panorama fadista das novas gerações, durante um dos “Cruzeiros de Fado” promovidos a bordo do paquete Funchal. Quando o Zé Pracana começou à guitarra o acompanhamento característico do Fado Corrido e a menina em causa lhe pediu que mudasse de tom para a tonalidade em que estava habituada a cantar, a resposta, num tom de autoridade paternal simultaneamente reconfortante e inapelável, foi: “Não, agora a minha amiga, em vez de repetir as voltinhas que está habituada a dar, vai estilar de improviso a melodia dentro deste tom!”. E logo a seguir começou ele mesmo a ensinar-lhe como se fazia – de resto, devo dizer, com excelentes resultados imediatos de aprendizagem por parte desta aluna inesperada, ainda que porventura de pouca permanência a longo prazo...

Para grande pena minha, que constantemente o espicacei para que o fizesse e não deixasse perder esse conhecimento precioso, nunca quis – tanto quanto sei – passá-lo a escrito. Mas estava sempre disposto a partilhá-lo com quem lho pedisse, e quando o fazia os seus conselhos e sugestões eram sempre precisos e enriquecedores. Foi o que sucedeu quando escrevi o meu primeiro ensaio de fundo sobre a História do Fado, para a entrada-âncora sobre este tema destinada à Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, dirigida pela minha Colega Salwa Castelo Branco 4 , e lhe enviei o primeiro esboço do meu texto, que muito beneficiou, tanto das suas recomendações como do seu encorajamento. Como consolação pela obra escrita que não nos quis deixar, ficaram-nos os programas televisivos que realizou sobre o Fado para a RTP (Vamos aos Fados, em 1976, e Silêncio que se Vai Contar o Fado, em 1992, esta para a RTP Açores).

Também por essa competência que lhe era reconhecida, o Zé Pracana foi repetidamente chamado a colaborar como consultor em projectos patrimoniais de reedição de discografia clássica do Fado, como sucedeu na edição da série Biografia do Fado, lançada em 1999 pela Ediclube, com a disponibilização, pela primeira vez, de um extenso acervo de livros, discos e vídeos essenciais para a História do mesmo ocorreu com a reedição das gravações históricas da colecção Biografias do Fado, lançada pela Valentim de Carvalho a partir de 2004, com a série de CDs Todos os Fados, editada com a revista Visão em 2005, ou com a avaliação do fundo discográfico do colecionador inglês Bruce Bastin, para efeitos da sua aquisição pelo Ministério da Cultura e pela Câmara Municipal de Lisboa. Por sua vez, quando em 2009 a RTP decidiu produzir a série documental Trovas Antigas, Saudade Louca, sobre guião original da minha autoria, e nos convidou – ao Carlos do Carmo, à Sara Pereira e a mim – para a sua conceção final, não tivemos qualquer dúvida de que esta nossa equipa precisava de o integrar também, e o seu contributo para o nosso trabalho foi essencial na primeira fase de definição do alinhamento do programa. Foi nesse preciso momento que se identificou a doença terrível que o haveria de matar em 2016, num processo tragicamente lento e doloroso, em que a cada momento de aparente recuperação se sucedia uma nova recaída, perante a raiva impotente de todos os que o amavam. Mas durante toda essa saga de esperanças frustradas e de sofrimento, o Zé Pracana mantinha o seu senso de humor de sempre, o gosto de estar com os amigos, a alegria de participar em tertúlias informais de Fado sempre que as forças lho permitiam, com o sorriso e o olhar luminosos que faziam da sua companhia uma fonte constante de alegria para os que estavam à sua volta.

A última vez que nos encontrámos foi em Março de 2015, quando fiz na Brown University, em Providence, a Vasco da Gama Lecture anual da Cátedra de Estudos Portugueses daquela Universidade, para a qual tinha escolhido como tema, precisamente, a História do Fado. Só no final da conferência o vi avançar direito a mim, sorridente, apoiado numa bengala e no braço cúmplice da Maria Natália. Estava a sair de um longo período de internamento e terapêutica num hospital ali perto, tinha claramente recuperado peso e agilidade, e tinha feito questão de estar ali presente, sabendo que aquele era para mim um momento importante da minha carreira académica. Abraçámo-nos longamente, felizes com o reencontro e com as perspectivas aparentes de uma regressão da doença. Mas quando voltei a falar com ele, pelo telefone, algum tempo depois, o próprio som da sua voz já não deixava dúvidas sobre o desfecho inevitável deste combate condenado.

A História tem destas injustiças de produzir por vezes protagonistas fundamentais, que marcaram profundamente o seu tempo e o seu espaço, mas dos quais não nos deixa depois testemunhos materiais relevantes. Do Zé Pracana ficaram-nos, a este nível, poucos discos, poucos registos filmados, quase nada escrito e um acervo de recordações reunidas na sua coleção pessoal. Nada que chegue para, por si só, atestar suficientemente o que foram o seu papel decisivo no circuito do Fado do seu tempo, o impacto da sua voz e da sua guitarra nos que o puderam ouvir, a relevância do conhecimento sobre a História e a prática do género que ao longo da sua vida sempre soube recolher e partilhar. É por isso que esta exposição, em boa hora promovida pelo Museu do Fado, tem o mérito de ajudar a fixar de forma indelével na memória colectiva da comunidade fadista o testemunho de homenagem e de gratidão de todos os que o admirámos, que com ele aprendemos, e que o amámos.

Rui Vieira Nery

José Pracana, José Nunes, Alfredo Marceneiro, Vítor Duarte e Rodrigo, gravação do disco

Uma Noite de Fado em Cascais, O Arreda, Cascais, 1972. Colecção Museu do Fado

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