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O Meu Primo--Zé

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2015 2016

2015 2016

Clara Pracana

Falar do meu primo Zé é um pouco como falar de mim própria, sobretudo da minha adolescência. Até lá, o Zé esteve grande parte do tempo em Moçambique e pouco o vi, excepto na infância.

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Partilhávamos um amor desmedido pelo nosso avô, personagem rara porque conseguia ser, ao mesmo tempo, muito carinhoso e muito autoritário.

Lembro-de passear de mão dadas com um dos meus primeiros namorados (que já morreu), debaixo do olhar paternalista do Zé e da sua namorada, ambos já “crescidos”. Assim, a figura do Zé foi-se confundido com a do meu avô, o que provavelmente não terá sido alheio à minha própria história, nem à dele.

Foi com o Zé que tive o meu primeiro contacto com o fado, fatal experiência que me deixou marcas para toda a vida. Ainda hoje tenho sempre comigo no carro os dois CDs intitulados “Biografia do Fado”, uma excelente selecção que ele dirigiu. Tenho oferecido vários exemplares a amigos estrangeiros, seduzidos por esta música dolente e dolorosa, aqui e ali salpicada de vida e mesmo de picaresco.

Com o Zé conheci o chamado fado das hortas. É que o fado não tem de ser necessariamente uma música para ser tocada e cantada a altas horas da noite, como muita gente pensa. Era muitas vezes cantada aos domingos à tarde, às vezes fora de Lisboa, em casa deste ou de aquele. Eram tardes longas, por vezes debaixo de uma parreira - até parece letra de fado! Às tantas, alguém puxava de uma guitarra, outro levantava-se para cantar, limpando a garganta, puxando pela alma.

As memórias são tantas que tenho dificuldade em enumerar, mas talvez uma das mais curiosas tenha sido uma visita a casa do Tio Alfredo (Marceneiro), um velhote mal disposto, mas com um inigualável talento. Lembro de me surpreender com a solicitude do Zé para com ele - o Zé não era propriamente um homem solícito - e de me perguntar em que medida teria aquilo a ver com o nosso avô. Hoje, sei que tinha tudo a ver.

Com o Zé, além de ter aprendido o quer era o bom fado, e de ter percebido que nem sempre o melhor cantor era o melhor fadista, e vice-versa, compreendi também o infinito poder da guitarra, esse instrumento que sempre foi para mim um mistério e também fonte de estremecimento e jubilação.

Com o Zé conheci muitos fadistas, quase todos os que estavam vivos, a começar por esse génio que era a Amália Rodrigues. E mais nomes não refiro, para não ofender ninguém. Apreciar uma voz no fado é algo de muito subjectivo, tenho as minhas preferências, sobretudo entre as vozes masculinas, mas prefiro mantê-las para mim.

A guitarra do Zé era uma coisa, o humor dele outra. Julgo que ele próprio fazia essa distinção, porque nunca vi ninguém levar tão a sério o seu métier. Métier e mestre têm a mesma raiz, e o Zé era um mestre. O seu entusiasmo pela guitarra e pelo fado eram contagiantes e não acredito que alguém, que o tenha conhecido bem, possa não gostar de fado.

O Zé em novo também cantava - ainda hoje adoro ouvir a “Lenda das rosas”, poema neogótico de Linhares Barbosa, que na voz do Zé, com o seu ligeiro sotaque micaelense, resulta uma verdadeira delícia. O “Fadista já cansado” é outro fado comovente, que nunca me canso de ouvir.

No meio da sua enorme sensibilidade artística, o Zé era o maior gozão que alguma vez conheci. Gozava com tudo e todos e - coisa espantosa! - os visados nunca pareciam ofender-se. Eu, que fui vítima das suas constantes piadas toda a vida, sou a primeira a reconhecê-lo: até era bom ser gozada pelo Zé. Era, por estranho que isto possa parecer, um privilégio ser gozado pelo Zé - e quem me conhece sabe que eu não sou masoquista.

Tinha uma graça indescritível, inenarrável, difícil de imaginar para quem nunca o conheceu. Com ele, passavam-se horas a rir, até a barriga doer. Às vezes até me doíam os maxilares, de tanto gargalhar. Era uma festa contínua.

Como ele conseguia manter um tal sentido de humor no meio das maiores provações, nunca consegui perceber. Sobretudo no últimos anos de vida e já muito doente, era uma surpresa e um encantamento vê-lo conseguir pôr a rir toda a gente, incluindo as enfermeiras e os médicos do hospital em Boston, onde tanto tempo passou. Até não sei se não estaria a dizer alguma piada quando lhe rebentaram as carótidas, uma fase particularmente difícil da sua doença.

Por circunstâncias que têm a ver com essa horrível doença chamada cancro, coincidimos por duas vezes em tratamentos nos hospitais, em Boston. O meu marido, que também já partiu, estava a fazer um agressivo tratamento para o cancro, o Zé também lá estava, por idênticas razões. Pode parecer difícil de acreditar, mas os nossos encontros no hospital (o Zé e a Natália, o Carlos e eu) eram mais uma ocasião para piadas e gargalhadas. Nunca vi o Carlos rir tanto e com tanto gosto, como quando estava com o Zé.

Punha toda a gente a rir enquanto viveu, partiu deixando-nos um riso amargo e muita tristeza e saudade. Não haverá outro como ele. Como homem, como guitarrista, como amante e conhecedor do fado.

O Zé partiu, deixando-nos a todos mais tristes. Ficou o mundo mais triste. Quase sem graça. E por mais piadas que nós, os da família, tentemos dizer, parece que ficamos sempre sem jeito, como se faltasse qualquer coisa.

Falta ele.

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