FINALMENTE, MUSEU! 2021 CLUBE
I. Resiliência ou a capacidade de identificar oportunidades Foi em 2018 que participamos, sem sucesso, de um concurso nacional de estudantes cujas prerrogativas eram apenas materiais. Haveria de se projetar um edifício com três dos mais triviais insumos da construção civil mundial: o concreto, o aço e o vidro. A esse edifício mineral não foram destinados programas ou localização, tudo isso estava a cargo dos participantes. Ou seja, nos era exigido uma atitude resiliente, uma capacidade de identificar oportunidades. Determinamos, então, que os 17,3 km2 da rede paulistana de piscinões do Córrego Rincão1 seriam compreendidos como um ecossistema per se e, por consequência, matéria da nossa intervenção. Contemplaria o projeto para o PBPR — Parque Botânico Piscinão do Rincão —, cujo objetivo não seria apenas a produção de um artefato técnico mas relacionar os espaços livres da cidade aos usos que a cultura e o conhecimento convocam2. No nosso entendimento, o uso efetivo e corrente de paisagens involuntárias, como aquelas da atual Pista Piscinão do Rincão3, apontava para um novo eixo de transformação ambiental, social e recreativa da cidade. Também em rede, a metodologia aplicada àquele projeto concordava e expandia experiências exemplares, como a do Parque Ecológico do Tietê.
II. Natural-artifical
Localizado ao longo da linha férrea e do sistema fluvial paulistano, aquele projeto para o PBPR expunha a gênese da cidade na medida em que reinterpretava repetidas tentativas e erros de controle e transformação da paisagem pelo homem. Aquele fragmento isolado, um buraco inóspito! Deveria ser ocupado com um laboratório que conduzisse experimentos avançados. A produção desenvolvida naquele laboratório seria difundida enquanto literatura específica, pesquisa local e trabalho de campo, cujos resultados residiriam, pouco a pouco, dentro e fora do edifício. A inserção do conjunto em um ambiente hostil sublinhava a necessidade de recuperação do sistema hídrico de São Paulo. Essa decisão apontava para um desenvolvimento urbano sustentável, ao mesmo tempo em que destacava, de maneira cíclica, o caráter fictício da paisagem e do programa: tratava-se da construção de estruturas artificiais que se opunham à mimésis da natureza.
III. Os caminhos entre a selva e a pedra Os principais acessos do público ao PBPR seriam as estações Penha e Vila Matilde da Linha-3 Vermelha do Metrô, a mais carregada do sistema4. A densidade dos fluxos e os pressupostos ambientais justificariam que o PBPR interferisse em todos os 1.300 metros que conectam essas duas estações. O redesenho do córrego do Rincão — o redimensionamento das suas margens, a reposição da sua mata ciliar –, além do alargamento das calçadas e a instalação de um mobiliário urbano em seu entorno imediato, garantiriam uma nova frente ao complexo e possibilitariam o replantio de 39.000 m2 de flora local. Uma rua interna ao parque, a Mirandinha, direcionaria os visitantes, funcionários e transeuntes ao edifício-sede. Essa rua configuraria uma via de carga e descarga ao atravessar o edifício sob um pórtico de entrada, e manteria o caráter recreativo, contemplativo e esportivo da já existente Pista Piscinão do Rincão, com suas ciclovias e faixas de caminhada — com as devidas distinções dos modais. Uma passarela metálica em semicírculo completaria o circuito e redistribuiria os usuários para a outra margem do piscinão, que contaria com a transposição completa do eixo norte-sul com a implementação de uma segunda passarela. Em nível, essa última conectaria a Vila Aricanduva à Vila Carlos de Campos, ambas pertencentes à Vila Matilde, com acessos à ciclovia e ao edifício-sede do PBPR. .
IV. A pedra
O edifício-sede do PBPR foi concebido a partir da intersecção de duas formas simples, em planta: um quadrado com 30 metros de lado e um retângulo com 15 metros de largura por 150 metros de comprimento. Os planos verticais estabeleceriam uma lógica tripartite: embasamento de concreto, desenvolvimento natural (vegetação e águas) e coroamento em aço e vidro. Situado em um contexto urbano de qualidades ambíguas5, o edifício tentava ser, ao mesmo tempo, sutil e apropriado, contundente e urbano. Sua fachada nordeste continuaria a escala do cotidiano ao apresentar às casinhas as atividades de trabalho triviais desenvolvidas em seu interior, enquanto uma lanterna em toda a fachada sudoeste do edifício o exibiria generosamente à metrópole, como uma vitrine ou um gabinete de curiosidades. O primeiro volume cúbico comunicaria6 ao bairro eventos e programação do PBPR e abrigaria as funções públicas, administrativas e pedagógicas7. O segundo volume receberia as áreas científicas e de exibição das estufas. Esse corpo seria dividido por duas faixas. A mais estreita, no térreo, contemplaria áreas burocráticas e de armazenamento8. A outra, no nível inferior, conteria fragmentos da paisagem brasileira, em diferentes escalas, organizados em uma sucessão de sete salas9, que variariam em dimensão (10x10 metros ou 10x20 metros) e programa10.
V. A pedra na água
Como um pôlder, o edifício-sede seria sustentado por um robusto embasamento de concreto construído com estacas-prancha definitivas11. Esse método, aplicado em terminais portuários, forma uma contenção impermeável, de maneira a se aproveitar toda aquela porção de terra e concreto durante os períodos de cheias e de estiagem. O caráter defensivo do edifício-sede, resistente às enchentes, representaria uma postura em relação à cidade contemporânea. A austeridade seria também identificada em seus fundamentos estruturais. O primeiro volume da caixa seria sustentado por treliças metálicas em seu perímetro que, travadas pelas torres de concreto centrais de circulação e hidráulica, descarregariam seus esforços no pódio de concreto. Apoiado no mesmo embasamento, o corpo linear se desenvolveria a partir de uma modulação transversal baseada em componentes industriais. Uma sucessão de pórticos, construídos com perfis metálicos que variariam entre seis e doze metros, sustentaria o nível térreo e a cobertura. Um pequeno balanço penduraria a circulação da ala de pesquisa e completaria o sistema. A solução pragmática reiteraria a busca pelo dinamismo e possibilidade de replicação desse edifício — como se atos de reparação pudessem ser possíveis ao longo das margens dos rios das cidades brasileiras.
VI. O mundo afogado
Dois anos mais tarde, quando convocados a refletir sobre os sinais dos tempos, lançamos a hipótese desse projeto de cultura e conhecimento em um cenário de colapso total, como em um romance do J. G. Ballard. O contexto? Com pouco mais de um ano no poder, o atual governo recrudescia suas políticas de devastação — ambientais, urbanas e humanas. Em fevereiro de 2020, faltavam dias (minutos?) para uma pandemia estourar no país. Eis que, a partir dos deslocamentos territoriais e deformações de escala aqui propostos, o Museu Paranaense passou a conter um outro museu. Esta vitrine, diante dos nossos olhos, tornou-se uma piscina, um aquário. Mobilizado pela produção crítica de um grupo de arquitetos, artistas e intelectuais da década de 1960 em São Paulo12, um amigo, professor e curador de arte nos alertou para um certo caráter “simplista” dessa “atitude subjetivista”, que talvez fizesse pouco mais do que resguardar "o sôssego [sic] da neutralidade incentivando o confôrto [sic] heróico-masoquista dos dramas pessoais" (IMPÉRIO, 1965). Por isso, foi preciso que nada de especial houvesse aqui: nem monumental, nem oficial; nem refinado, nem caro. Apenas pedra. O museu que, numa atitude sacrificial, tudo guarda, tudo protege e tudo mostra, é feito de pedra e água — com todos os efeitos, positivos e negativos, que dessa mistura podem incorrer.
FINALMENTE MUSEU! No interior dessa atordoante pseudotemporalidade material, que se modifica sem parar à nossa volta, também existem momentos de rara, de deslumbrante beleza: 'estações ferroviárias abrem-se como borboletas de ferro, aeroportos brilham como gotas de orvalho ciclópicas, pontes freqüentemente atravessam bancos desprezíveis como versões grotescamente ampliadas de uma harpa. Para cada riacho seu próprio Calatrava.' Mas tais momentos são insuficientes para compensar o pesadelo, ou fazer valer à pena as alucinações. O cyberpunk parece ser a referência a apreendermos aqui, o qual — como Koolhaas, apenas ambiguamente cínico — parece positivamente revelar em seu próprio excesso (e no do seu mundo). Mas na realidade o cyberpunk não é apocalíptico, e penso que a melhor coordenada é Ballard, o Ballard dos múltiplos 'fins do mundo', sem a melancolia de Byron, o rico pessimismo orquestral e a weltschmerz. — There are also, in this churning pseudo-temporality of matter ceaselessly mutating all around us, moments of rare, of breathtaking beauty: ‘railway stations unfold like iron butterflies, airports glisten like cyclopic dewdrops, bridges span often negligible banks like grotesquely enlarged versions of the harp. To each rivulet its own Calatrava’. But such moments are scarcely enough to compensate for the nightmare, or to make the hallucinations all worthwhile. Cyberpunk seems to be a reference to grasp at here, which— like Koolhaas, only ambiguously cynical—seems positively to revel in its own (and its world’s) excess. But cyberpunk is not really apocalyptic, and I think the better coordinate is Ballard, the Ballard of the multiple ‘end-of-the-worlds’, minus the Byronic melancholy and the rich orchestral pessimism and Weltschmerz.
, 2003
E, 2021 Situated on the right bank of the Aricanduva river, a tributary of the Tietê. 1
2 Insofar as the act of occupying a space encourages new ways of negotiating its possible uses, it can also be seen as responsible for the reification of public dominion over a particular region. 3 A roadway that runs parallel to Alvinópolis street, an artery that allows the flow of traffic to the Vila Matilde district, and offers some sports equipment as well as toilets and bicycle racks.
4 In June of 2018, this subway line transported approximately 1.2 million passengers, serving the 4 million residents of the city’s Zona Leste (Eastern district). 5
ear small buildings, on the one hand, and, on the other, facing the intense subway and expressway traffic.
Localizado na margem direita do rio Aricanduva, afluente do rio Tietê.
1
2 Se o ato de ocupar um espaço estimula novas formas de negociação em relação aos seus usos possíveis, ele é responsável, portanto, pela reificação do domínio público sobre determinada região. 3 Pista que acompanha paralelamente a rua Alvinópolis, via arterial que distribui o fluxo da Radial Leste para o distrito da Vila Matilde, amparada por alguns equipamentos esportivos e de apoio como banheiros e bicicletários.
Em junho de 2018 essa linha transportou aproximadamente 1,2 milhão de passageiros e atendeu os 4 milhões de residentes da Zona Leste.
4
5 Por um lado, próximo a edificações de pequena escala e, pelo outro, ante o intenso tráfego metroviário e as vias expressas.
Through a luminous panel installed at the main entrance.
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Ticket booths, lockers, offices, cafeteria, store, bathrooms and an ample lobby on the ground floor; solarium, library, auditorium, meeting and reading rooms on the floor above. Both floors enjoy a panoramic view of the city.
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8 Offices, classrooms, laboratories, greenhouses, herbariums, seedbeeds and deposits.
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The rooms would be separated by technical partitions that would climatize to guarantee differences in temperature, humidity and planting height. An elevated walkway would cross all of them, and in addition to serving visitors, would space out irrigation ducts, fuel, air conditioning equipment and electrical generators.
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Por meio de um painel luminoso instalado no acesso principal.
Bilheterias, guardavolumes, secretaria e escritórios, cafeteria, loja, sanitários e um amplo salão de acolhimento no nível térreo, enquanto solário, biblioteca, auditório, salas de reunião e leitura encontrar-seiam no nível superior. Ambos os níveis seriam privilegiados com ampla vista para a cidade. Escritórios, salas de aula, laboratórios, câmaras de cultivo, herbários, sementeiras e depósitos.
As salas seriam separadas por divisórias técnicas que condicionariam e garantiriam as diferenças de temperatura, umidade e altura de plantio. Todas elas seriam atravessadas por uma passarela elevada que, além de conduzir os visitantes, distribuiria os dutos de irrigação, combustíveis, equipamentos de climatização e geradores elétricos.
10 Five of them were to exhibit the country’s major biomes, while two would be devoted to temporary exhibits.
10 Cinco delas exibiriam os principais biomas nacionais enquanto as outras duas serviriam a mostras temporárias.
ontainment curtains made of metal stakes, juxtaposed and driven into the ground.
11
, Flávio. Cf. Notas sobre Arquitetura. In: Revista Acrópole, no 319, Year 27 – July 1965, p. 23. Available at <http:// www.acropole.fau.usp.br/ edicao/319>. Accessed on July 30th 2021. 12
Cortinas de contenção formadas por perfis metálicos, justapostos e cravados no solo.
Cf. , Flávio. Notas sobre Arquitetura. In: Revista Acrópole, no 319, Ano 27 – jul. 1965, p. 23. Disponível em: <http:// www.acropole.fau.usp. br/edicao/319>. Acesso em: 30 de julho de 2021.
12
Esta exposição está localizada na sala 9, andar térreo com abertura em 9 de agosto de 2021. This exhibition is located on room 9 on the groud with opening for August 9, 2021. Terça a domingo 10h—17h30 Tuesday to Sunday 10am—5h30pm Entrada gratuita Free admission
MUSEU PARANAENSE Rua Kellers 289 Alto São Francisco Curitiba, Paraná, Brasil +55 41 3304 3300 museupr@seec.pr.gov.br museuparanaense.pr.gov.br museuparanaense museuparanaense
museu paranaense