Coleção à brasileira:
uma visita à colecionadora-diarista
A exposição Coleção à brasileira: uma visita à colecionadora-diarista, de Everton Leite, é formada por uma instalação que reúne um arquivo de objetos e memórias que a mãe do artista acumulou durante sua carreira como diarista – em sua maioria, “presentes” de seus patrões. Para a mostra, a coleção é ampliada com objetos, entrevistas e memórias de outras quatro empregadas domésticas, para assim formar uma grande coleção de uma classe que é constantemente invisibilizada.
Ao evocar objetos que perpassam por sua história, Everton constrói relações e investigações sobre o processo de formação de coleções. Em especial, ao trazer esta exposição para o espaço do museu, o artista observa como as coleções museais, em sua maioria, são formadas por objetos de famílias tidas como importantes dentro da história de cidades, estados e países. Assim, a exposição vem em contraponto a estas coleções – ela não se volta a objetos raros, de destaque ou de alto valor monetário, mas foca no olhar da “colecionadora-diarista”, personagem criada para representar as histórias dessas mulheres, para os objetos tidos como comuns, descartáveis e de fácil reposição, como: vasos, potes, roupas, eletrônicos, utensílios de cozinha, quadros decorativos, etc.
A personagem desta exposição, “colecionadora-diarista”, caminha em uma linha entre ficção e realidade. Apesar da unidade “a diarista”, a personagem assume uma voz plural, formada por cinco mulheres que dedicam as suas vidas a zelar pelas casas dos outros, que junto ao artista reapresentam ao mundo os objetos ganhados e compartilham suas memórias no esforço de organizar uma coleção de ex-objetos de patrões.
No trabalho doméstico remunerado na atualidade, persiste uma herança histórica, social e cultural de práticas de desigualdade da realidade brasileira que o artista pretende apontar, através do descarte, das relações de desejo, do consumo de objetos. Realidades díspares que se refletem
na vida dessas mulheres, que vivem a ordenar a vida de outras pessoas que, por vezes, não compreendem as lutas de classes e as desigualdades sociais. A Coleção à brasileira organiza um museu de objetos, (des)ordenado e dedicado a pensar sobre os modos de vida, as heterogeneidades e as relações entre o processo de concepção e fomento de uma exposição que anseia que esta coleção seja o primeiro museu de patrões do Brasil organizado por uma diarista.
Juliana Crispe Curadora da exposiçãoNascida no interior do estado do Paraná, em uma família humilde, desde pequena se interessava em organizar coleções. Mas foi aos 19 anos, quando se mudou para Curitiba, que começou a atuar como colecionadora-diarista. A “Coleção à brasileira” é um memorial das casas e patroas para a qual trabalhou e que reúne diversos itens, objetos de decoração, utensílios domésticos, eletrônicos, entre outros, ao longo de 35 anos. Esta entrevista foi realizada em Almirante Tamandaré (PR), em outubro de 2022, por Everton Leite.
Everton Leite: Como começou sua carreira como diarista e quando ela se fundiu à de colecionadora?
Colecionadora-diarista: Bom, com meus 18 anos, meus pais resolveram acompanhar o movimento de meus irmãos mais velhos e sair do sítio, em Ortigueira (PR), para trabalhar na cidade de Curitiba. Meu pai veio primeiro para comprar nossa casa e organizar a mudança. Em seguida, eu e minha mãe chegamos com as poucas coisas que acumulamos no sítio. O primeiro ano foi de várias adaptações, tanto na rotina quanto na casa comprada na região metropolitana de Curitiba, na qual eu vivo até hoje. Com meus 19 anos e devido a dificuldades financeiras, minha cunhada me arranjou meu primeiro trabalho como diarista, trabalhando para duas freiras que moravam no centro da cidade. O trabalho era bem penoso, mas nada do que eu já não estava acostumada. Na casa, as patroas eram muito rígidas com a limpeza, mas, como sempre fui muito cuidadosa, não tive grandes problemas.
Comecei a montar a minha coleção desde a minha primeira diária, na qual eu ganhei um vaso de flores, mas foi depois de cinco anos trabalhando e trazendo objetos que ganhava de patroas que comecei a organizar a coleção.
EL: Qual é o método que você usa para organizar a coleção?
CD: No começo não tinha nenhum método específico. Eu ia ganhando as coisas e dava um jeitinho de colocar dentro de casa. Eu nunca digo não para a patroa quando ela quer me dar coisas, mesmo quando o oferecido vem com algum defeito. Mas, como hoje tenho muitos itens, escrevo tudo em cadernos e agendas para não me perder, sempre anotando o nome do objeto, o nome da patroa e o ano da doação. E quando algum objeto é doado para outra casa, também anoto, mas em outro caderno, para eu não me confundir.
EL: Como você expõe esses objetos?
CD: Onde as coisas se encaixarem melhor. O que dá para usar eu uso, e o que não está funcionando ou é um objeto de decoração vou colocando no meu arquivo, um quartinho nos fundos da casa. Vou pendurando, ajustando nas prateleiras ou em cabides, para que tudo fique bem organizado e para facilitar visitas dos curiosos na coleção.
EL: Nesses anos trabalhando e montando a coleção, alguma patroa pediu alguma coisa de volta?
CD: Sim, várias. Uma vez uma patroa ficou crente que o marido ia dar para ela um micro-ondas novo de aniversário. Então, um dia antes da festa, ela me deu de presente o antigo para dar espaço para o novo. Mas acontece que meu patrão esqueceu do aniversário e do micro-ondas. No outro dia cedinho ela me ligou toda envergonhada, contando a tragédia e justificando a devolução do micro-ondas. Eu falei que essas coisas acontecem, mas que para devolver precisava que ela viesse buscar ou pagasse um táxi, pois trouxe no ônibus e o “bendito” era muito pesado.
EL: Você sempre traz os objetos de ônibus?
CD: Quando é coisa leve ou que cabe na sacola eu trago no ônibus mesmo. Você consegue identificar a diarista no ônibus de longe – é só procurar alguma mulher que está com sacola que não combina com o objeto e certeza que é presente de patroa. Na pressa, antes que a patroa se arrependa de dar as coisas, a gente pega a primeira sacolinha que vê, daí acabamos carregando bule em sacola de loja de produtos de beleza, panela em sacola sem estampa etc. E quando o objeto é grande eu peço para algum vizinho ou parente ir buscar. Mas tem patroa que oferece de trazer aqui em casa. Eu acho que é só para dar uma olhada na coleção e ver se estou cuidando bem dos outros presentes.
EL: Você comentou que começou sua vida profissional como diarista, mas você já pensou em mudar de profissão?
CD: Na verdade, como nasci na roça, comecei trabalhando nas plantações. Adulta e na cidade grande, comecei como diarista, mas já trabalhei de babá, zeladora e porteira. Quando fico sem diária, sempre pego o trabalho que cai no colo. Mas meu sonho de menina era trabalhar de professora. Sempre gostei de estudar, apesar de meu pai ter me tirado da escola na quarta série. Tentei durante alguns anos voltar a estudar, mas casei, logo vieram meus meninos e hoje estou muito velha para encarar a sala de aula. Prefiro cuidar da minha coleção.
EL: Há algum objeto da coleção que seja seu preferido? Ou que te marcou durante a carreira?
CD: Sim, muitos. Tá vendo aquela camiseta pendurada ali na parede? Ganhei no dia em que a filha da minha patroa passou na universidade – eu acho uma graça, linda demais, os detalhes em rosa. Mas foi merecido, a coitadinha passou seis anos tentando o vestibular, não desistiu e conseguiu. A patroa mandou fazer camiseta para a família toda
e, como eu era parte da família, também ganhei. A menina, além de camiseta, ganhou um carro e uma festona. Sobrou comida até para levar para os meninos em casa, para comemorar que o meu caçula também tinha entrado na universidade.
EL: Por que você guarda a camiseta pendurada assim na sala para todos verem?
CD: Ah, eu tentei usar outro dia no serviço, depois da festa, e a patroa falou que era lembrança, que não era para eu ficar usando, era para guardar e lembrar daquele dia marcante. Daí coloquei numa moldura e coloquei aqui para lembrar da conquista da menina.
EL: Eu vi que você tem uma vasta coleção de pratos...
CD: São meu xodó. Cada prato é de uma casa em que trabalhei. Tem patrão que gosta de separar os utensílios domésticos dos empregados do resto da família. Daí, sempre que acabo um serviço, peço o prato para levar para a coleção. Inclusive, teve um par de pratos que mandei gravar “prato de empregada” e “prato de patroa”, que a família me deu logo que a minha patroa faleceu, então, para não misturar, mandei gravar.
EL: Quais são os seus planos para o futuro da sua coleção?
CD: O plano, meu filho, é continuar trabalhando, já que a aposentadoria vai demorar. Depois, quero organizar bonitinho tudo no computador e um dia ver meus filhos e meu neto cuidando da coleção. Quem sabe um dia não vira museu? Esses dias assisti no Fantástico que é assim que começa. Seria o primeiro museu de patroa do Brasil organizado por uma diarista, pois museu de patroa organizado por outras patroas já tem muito por aí.
Coleção à brasileira: a visit to the collector-housecleaner
The exhibition Coleção à brasileira (Brazilian style collection, in translation): a visit to the collectorhousecleaner, by Everton Leite, consists of an installation that gathers an archive of objects and memories that the artist's mother accumulated during her career as a housecleaner – mostly “gifts” from her employers. For the exhibition, the collection is expanded with objects, interviews, and memoirs of four other housecleaners, thus forming an extensive collection of a constantly invisible class. Everton builds relationships and investigations into the process of forming collections by evoking objects that permeate its history. In particular, by bringing this exhibition to the museum space, the artist observes how museum collections, for the most part, are formed by objects from families considered important within the history of cities, states, and countries. Thus, the exhibition comes in counterpoint to these collections – it does not turn to rare, outstanding or high monetary value objects but focuses on the look of the “collector-housecleaner”, a character created to represent the stories of these women, for the things considered common, disposable and easily replaced, such as vases, pots, clothes, electronics, kitchen utensils, decorative pictures, etc.
The character of this exhibition, “collectorhousecleaner”, walks a line between fiction and reality. Despite the "housecleaner" unit, the character assumes a plural voice, formed by five women who dedicate their lives to taking care of the homes of others, who, together with the artist, reintroduce to the world the objects they have won and share their memories in an effort to organize a collection of former employers' objects.
In today's paid domestic work, there is still a historical, social and cultural heritage of practices of
inequality in the Brazilian reality that the artist intends to point out, through discarding, the relations of desire, the consumption of objects. Disparate realities are reflected in these women's lives, who live to order the lives of other people who sometimes do not understand class struggles and social inequalities. The Coleção à brasileira organizes a museum of objects, (dis)ordered and dedicated to thinking about ways of life, heterogeneities, and the relationships between the process of designing and promoting an exhibition that hopes that this collection will be the first museum of employers of Brazil organized by a housecleaner.
Juliana Crispe Exhibition curatorThe collector
Born in the interior of the state of Paraná in a humble family, she was interested in organizing collections from an early age. But at the age of 19, when she moved to Curitiba, she started working as a collector-housecleaner. The “Coleção à brasileira” (Brazilian style collection, in translation) is a memorial of the houses and employers she worked with that gathers various items, decorative objects, household items, and electronics, among others, throughout 35 years.
Everton Leite conducted this interview in Almirante Tamandaré (PR) in October 2022.
Everton Leite: How did your career as a housecleaner begin, and when did it merge with that of a collector?
Collector-housecleaner: Well, when I was 18 years old, my parents decided to follow my older brothers and leave their farm, in Ortigueira (PR), to work in Curitiba. My father came first to buy our house and organize the relocation. Then my mother and I arrived with the few things we had accumulated on the farm. The first year
was one of many adaptations, both in the routine and in the house bought in the metropolitan region of Curitiba, in which I still live today. At the age of 19 and due to financial difficulties, my sister-in-law found me my first job as a housecleaner, working for two nuns who lived in the city’s center. The work was quite hard, but nothing I wasn't used to. At the house, the employers were very strict with cleanliness, but I didn't have any major problems as I was always meticulous.
I started building my collection on my first day on the job when I got a vase of flowers, but after five years of working and bringing objects that I got from my employers, I started organizing the collection.
EL: Which method do you use to organize the collection?
CH: In the beginning, there was no specific method. I used to get things and find a way to put them inside the house. I never say no to the employer when she wants to give me things, even when what is offered comes with some defect. But, as I have many items today, I write everything in notebooks and diaries so I don't get lost, always writing down the name of the object, the name of the employer, and the year of donation. And when an object is donated to another house, I also write it down, but in another notebook, so I don't get confused.
EL: How do you exhibit these objects?
CH: Where things fit best. What I can use, I use, and what is not working or is a decoration object, I put in my archive, a little room at the back of the house. I hang it, adjusting it on the shelves or hangers so that everything is well organized and to facilitate visits by people curious about the collection.
EL: Has any employer ever asked for something back in these years working and building the collection?
CH: Yes, several. Once, an employer believed that her husband would give her a new microwave oven for her birthday. So, the day before the party, she gifted me the
old one to make room for the new one. But it turns out her husband forgot her birthday and the microwave oven. Early the next day, she called me all embarrassed, telling me about the tragedy and justifying the return of the microwave oven. I said that these things happen, but that to return it, I needed her to come and get it or pay for a taxi because I brought it on the bus and the “blessed thing” was very heavy.
EL: Do you always bring the objects by bus?
CH: When it's something light or something that fits in a bag, I bring it on the bus. You can identify the housecleaner on the bus from afar – look for some woman who has a bag that doesn't match the object, and sure it's a gift from her employer. In a hurry, before the employer regrets giving things away, we grab the first little bag we see, then we end up carrying a teapot in a bag from a beauty products store, a pot in a bag with no print, etc. And when the object is big, I ask a neighbor or relative to pick it up. But some employers offer to bring it here at home. I guess it's just to look over the collection and see if I'm taking good care of the other gifts.
EL: You commented that you started your professional life as a housecleaner, but have you ever thought about changing your profession?
CH: In fact, as I was born in the countryside, I started out working on the plantations. Adult and in the big city, I started as a housecleaner, but I've already worked as a nanny, janitor, and doorwoman. I always take the job that pops up when I have no work. But my childhood dream was to work as a teacher. Even though my dad pulled me out of school in the fourth grade, I always liked to study. I tried for a few years to go back to school, but I got married, then my kids came, and today I'm too old to face the classroom. I prefer to take care of my collection.
EL: Is there an object from the collection that is your favorite? Or that marked you during your career?
CH: Yes, many of them. See that shirt hanging over there on the wall? I got it the day my employer's daughter was accepted into college - I think it's cute, too cute, the pink details. But she deserved it. The poor girl spent six years trying to take the entrance exam, but she didn't give up and succeeded. The employer had a T-shirt made for the whole family and, as I was part of the family, I also got one. In addition to a T-shirt, the girl won a car and a big party. There was even food left to take home to the kids to celebrate that my youngest had also entered university.
EL: Why do you keep the shirt hanging like that in the living room for everyone to see?
CH: Oh, I tried to use it the other day at work, after the party, and the employer said it was a souvenir, that I wasn't supposed to keep using it, it was to keep and remember that important day. Then I fixed it in a frame and put it here to remember the girl's achievement.
EL: I saw that you have a vast collection of dishes...
CH: They are my love. Each dish is from a house I've worked. Some employers like to separate the domestic utensils of the employees from the rest of the family. Then, whenever I finish a job, I ask for the dish to take back to the collection. I even had a couple of plates that I had engraved "maid's plate" and "employer's plate", which the family gave me when my employer passed away. So to avoid mixing them up, I had them engraved.
EL: What are your plans for the future of your collection?
CH: The plan, my son, is to keep working, as retirement will take time. Later, I want to organize everything nicely on the computer and one day see my children and grandson taking care of the collection. Who knows, one day, it will become a museum. Recently I saw on Fantástico that this is how it starts. It would be the first employer museum in Brazil organized by a housecleaner because there are already many museums organized by other employers.