HELLBOY - ESTRANHAS MISSÕES

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Uma Mãe Chora

à

Meia-Noite

Philip Nutman

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le me olhava com expressão triste por sobre a xícara fumegante de café, e percebi como o peso terrível da responsabilidade tinha esmagado o seu espírito. Em vez de ter esperança e vivacidade, em vez de salvar vidas, ele tinha dado à luz a força mais destrutiva conhecida pela humanidade. Não houve ironia quando, conforme a Fat Man explodia, ele disse: “Eu me torno a Morte, o destruidor de mundos”. Durante oito anos, ele teve de lidar com tal conhecimento. — Como vão as coisas no Bureau? — perguntou meu amigo J. Robert Oppenheimer, tirando o cachimbo do bolso. — Como está o Trevor? — Bem. Ele me pediu para enviar seus cumprimentos — respondi, observando-o preencher o cachimbo com um tabaco de Balkan Sobrane feito de uma pungente erva rasteira. A garçonete olhou com desconfiança para a mesa de fundo em que nos sentávamos. Não por causa da nuvem densa e adocicada que pairava sobre a cabeça de Robert, mas sim pela minha presença, que a fazia se sentir desconfortável. Mesmo estando apenas a poucos quilômetros de Roswell, no Novo México, e ainda que, desde 1947, pouco depois de eu ter me mudado, os moradores tenham se acostumado a ter estranhas visões e acontecimentos ainda mais estranhos, ter uma enorme criatura rubra sentada à mesa do

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jantar certamente era incomum. Havia prendido minha cauda por debaixo do sobretudo para impedir que ela aparecesse. Descobri que, com frequência, a cauda é mais do que muitas mulheres são capazes de lidar. — Tiraram a minha autorização. Sou uma persona non grata — ele me disse. — Mas não posso mais fazer parte daquilo. Eles não vão parar. As bombas são cada vez maiores e melhores. E não me querem como sua consciência. Minhas opiniões não são levadas em consideração. Suas feições retas estavam crispadas. Não era preciso ser um cientista de foguetes para ver que ele estava sofrendo. — Mas não foi por isso que pedi para que viesse… estou agindo como intermediário. Você se lembra de Jamie MacDougal? Assenti. Eu me lembrava bem dele. Um cientista norte-americano de ascendência escocesa, MacDougal e Trevor Bruttenholm tinham passado muitas noites jogando xadrez durante o ano que vivemos em Roswell. Da mesma forma que vim a enxergar Bruttenholm como meu pai, na época, Jamie MacDougal era como se fosse um tio. — Ele está aqui, designado para Los Alamos. Muito na surdina. Agora que sou considerado um risco, não posso ter contato com ele, mas, de alguma maneira, ele conseguiu me enviar um bilhete, pedindo-me que o contatasse. Robert deu uma tragada demorada, saboreando o aroma. — Estou aqui. Qual o problema? — O filho dele desapareceu.

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ma lua crescente estava alta no céu como uma moeda cortada, enquanto eu caminhava ao longo do riacho que corria em paralelo com a estrada, onde o jovem Malcolm MacDougal tinha sido avistado pela última vez. Eu estava a sete quilômetros de distância de Los Alamos, indo na direção sudoeste, para a base das montanhas Jemez. Procurava por uma corrente, na esperança de encontrar uma mulher que me levaria até o garoto. — Acreditam que ele esteja morto — Jamie MacDougal me dissera mais cedo, naquela noite. — Ele sumiu há uma semana. Cancelaram as buscas na segunda, dizendo que era desperdício de efetivo, e que ele devia ter perecido, já que nenhum moleque de sete anos conseguiria sobreviver às temperaturas noturnas. — Mas eu sei — ele prosseguiu, servindo a si próprio uma dose generosa de uísque single malt. — Eu sou seu pai e sei aqui no fundo que ele ainda está vivo. Eu não via Jamie há quase oito anos, e o rio do tempo humano tinha erodido sua cabeleira ruiva, outrora cheia, e remodelado sua fisionomia como a de uma estátua lavada pela chuva. Ele parecia mais ter 60 anos do que seus quase 47. Faria aniversário na semana

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seguinte, lembrei-me no caminho de Los Alamos para Roswell. Robert tinha estacionado o carro nos arredores de Santo Domingo Pueblo para que eu pudesse comprar uma prenda. O pote Anasazi descansava na mesa de jantar de Jamie, bem entre nós dois. — Vá devagar, meu amigo — disse. — Comece do início. Jamie deu um gole profundo em seu uísque e suspirou. — A mãe dele, Lucy, morreu um ano atrás. Acidente de carro. Falta quase um mês para o dia — ele acrescentou, olhando para o drinque com saudades. — Então, a base nos deu uma arrumadeira… um tipo de babá, que pudesse tomar conta dele. O nome dela era Dona. Moça local, de origem zuni. Mas é claro que o garoto sentiu. Nós dois sentimos. Um menino de sete anos de idade quer ficar com a mãe, não com uma estranha. Ele estava certo. Todo garoto precisa da mãe. Mesmo um garoto vindo do inferno. Eu, contudo, não tenho lembranças de uma mãe ou de um pai. Ou de qualquer coisa que venha antes de ter aparecido na velha igreja, em East Bromwich, na Inglaterra, dez anos atrás. — Sim — disse. — Prossiga. — Dona é boazinha. Toma conta dele muito bem… ou tomava, até o deixar vagar por aí. Os últimos meses têm sido bem difíceis, com o aniversário se aproximando e eu trabalhando tanto no laboratório. Eu devia ter estado lá por ele — Jamie disse repentinamente, batendo a mão firme na mesa, quase derramando seu drinque e derrubando o meu pote. Demorou um pouco de tempo e mais um drinque para que se acalmasse. Descobri que Malcolm começara a andar longe da base com frequência nos últimos meses. Não havia nada de estranho nisso. Garotos são garotos e, com tantas ruínas para explorar, a paisagem beijada pelo verão que cerca as casas frias e nada convidativas de estilo militar poderia ser um local de infinitas maravilhas para a imaginação ativa de um garoto de sete anos. Mas, agora, o verão se fora, varrido por um outono precoce e rigoroso, e, com ele, as noites haviam ficado frias e brutais. Mas Los Alamos era uma cidade segura, talvez a mais segura dos Estados Unidos por conta da natureza secreta do trabalho de seus habitantes, e Dona achara que não havia nada de errado em permitir que o garoto brincasse lá fora após o Sol se pôr. Mas tudo isso mudou quando ele conheceu a mulher. Há um bom motivo para o Novo México ser chamado de Terra do Encanto, pois existem energias arcanas aqui, um poder que desafia explicações racionais. Foi coincidência Los Alamos ter se tornado a Cidade Secreta, local de nascimento da bomba atômica, daquela explosão da Fat Man, em Trinity? Por que não Nevada ou algum outro estado deserto, com ainda mais lugares ermos? Por que uma suposta nave extraterrestre caiu em Roswell? Trevor Bruttenholm acredita que o estado forma um nexo de energias paranormais e, quando o exército norte-americano insistiu em me realocar da Inglaterra, para que pudesse ser estudado em Roswell, ele ficou feliz em vir junto. Na época em que vivemos aqui, ele mergulhou nos mitos e nas lendas do Novo México, e me levava junto em suas frequentes jornadas investigativas. Uma de minhas primeiras lembranças foi da visita que fizemos ao Santuário de Chimayo, que ficava no topo de um vale cercado, ao pé das colinas Sangre de Christo.

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Como os peregrinos que viajaram pela região durante séculos, predominantemente os doentes e os frágeis, experimentamos os poderes curativos do solo místico. Bruttenholm estava convencido de que ele curara sua artrite. Só o que fez comigo foi me dar coceira. Tive tantas histórias e experiências durante aquele período da minha vida, que talvez não seja surpresa ter decidido seguir a linha de trabalho de meu pai adotivo. Passamos noites na antiga missão de Isleta Pueblo, na esperança de ver o cadáver reanimado de Pai Padilla e seu caixão de algodoeiro americano se levantarem por debaixo do altar, como ele fizera em numerosas ocasiões ao longo dos últimos dois séculos (só que não). Passamos dias acampando nas colinas, passando a noite em claro para o caso de uma bruja passar cavalgando uma bola de fogo (nunca vimos uma bruxa, mas vi minha primeira estrela cadente). O Novo México era como o tapete navajo que Bruttenholm me dera de presente antes de eu ir embora de Roswell para a costa leste, para a sede do BPDP, em Fairfield, Connecticut. Era um tapete simples, apenas duas fileiras brancas, nuvens retangulares destacadas contra um azul-claro de fundo. Mas o tapete tinha uma linha deliberadamente tecida ao longo da borda inferior, uma “linha espiritual” trabalhada no tecido, para o caso de uma alma ficar aprisionada durante sua tecelagem e precisar de uma saída. O próprio Novo México se parecia com uma linha espiritual, um portal entre os reinos, e parte das coisas que procuravam liberdade lá era do tipo malevolente. Então há também aquelas forças que são um reflexo da alma de quem contempla, nem boas, nem más, só meros espelhos das suas necessidades. Ela era uma dessas. Aquela conhecida como La Llorona, a Chorona. Uma manifestação particular do Novo México e da sua herança hispânica, a história de La Llorona teve muitas variações quanto à sua origem e natureza, mas sabia que ela era mais do que um mito. Sabia porque a havia encontrado. Lá em 1947, alguns meses antes da queda de Roswell e nosso departamento ser mobilizado para New England e a verdejante Connecticut, Bruttenholm me levara até Santa Fé, onde estava visitando o frei Angelico Chavez, renomado historiador e restaurador de igrejas antigas. O frei Angelico estava pesquisando as aparições registradas do frei Padilla e convidou Trevor para ler o primeiro rascunho do documento que preparava. Embora só estivesse no plano terrestre há alguns anos, já havia chegado à adolescência e vinha sofrendo da inquietação da juventude. Assim, conforme o dia transcorria e o crepúsculo mágico banhou as montanhas Sangre de Cristo de uma tonalidade vermelha como um rubi, e ao que Bruttenholm e o frei Chavez continuavam sua apaixonada discussão, decidi caminhar pelas ruas de Santa Fé. Já que sabia como os outros reagiam à minha aparência, andava distante das praças principais, atendo-me a vielas alinhadas por casas de barro adormecidas, acocoradas atrás de portões de madeira feitos à mão, meio escondidas por algodoeiros nodosos ou malvas-rosas de tonalidade suave. Segui na direção das orlas do rio Santa Fé. Lá estava tranquilo e meus pensamentos conturbados se acalmaram, conforme seguia as águas para o leste. Talvez tenha sido o prenúncio da adolescência e a necessidade de compreender quem e o que eu era. Ou talvez tenha sido o questionamento natural de um órfão sobre seus

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pais, mas por semanas eu passara noites a fio em claro, virando de um lado para o outro, elucubrando e buscando respostas para meu enigma. O enigma de mim. Ver as outras crianças que viviam na base de Roswell jogando futebol com os pais ou indo às compras com as mães deixava meu coração pesado. Trevor Bruttenholm era um mentor gentil e amoroso, uma figura tão boa quanto um Hellboy poderia querer. Contudo, quando o sono não vinha, ficava deitado em meu quarto, perguntando-me como devia ser perderme num abraço materno, ou então enfurecia-me ante a inabilidade de lembrar de onde viera antes do ritual místico que me trouxera até este mundo. Eu tive uma mãe? Ela sofreu ante a perda do filho? Esses pensamentos me atormentavam diariamente, mas, naquela noite em que andava pelas margens do rio, a calma preternatural de Santa Fé acalentou minha alma, permitindo que minha mente se voltasse para ideias mais intelectuais. Albert Einstein havia visitado Roswell com Oppenheimer na semana anterior, e passara horas explicando-me a Teoria da Relatividade. Trevor estava determinado a me dar as melhores oportunidades educacionais e quem melhor para explicar física do que Einstein? Aproveitei o tempo que passamos juntos, ainda que o dilúvio de conhecimento que ele derramou ameaçasse me consumir. E foi assim, com a cabeça repleta de equações e fórmulas, que vagava pelo escuro, sem perceber a distância que havia percorrido ou o fato de a noite já ter quase que completamente descido em sua glória aveludada, decorada com diamantes. Primeiro pensei que o som era de um animal. Mas, ao ouvir com mais cuidado, percebi que era um som humano, um lamento cheio de pesar. Então, talvez duzentos metros adiante, vi uma figura parada na margem, onde o rio fazia uma curva. Era uma mulher trajando um longo vestido cinza, sua cabeça e ombros ocultos por um xale de lã preta. O lamento irrompeu de seus lábios com uma força terrível, um poder oriundo de uma enorme dor emocional, e percebi que ela estava prestes a se atirar na água. Ela tornou a gritar: — Ayyyy, mis hijoooosss! Não compreendia as palavras, mas suas intenções eram claras. Comecei a correr quando ela se jogou no rio, deixando meu casaco cair como se fosse uma segunda pele ao mergulhar atrás dela. As águas geladas me fizeram arfar, chocando-me como um inesperado tapa no rosto, mas redobrei os esforços ao vê-la desaparecer abaixo da superfície. Foi instinto, puro e simples. Não tive tempo de pensar, só instantes para agir. A correnteza era surpreendentemente forte, considerando o lento movimento visto da superfície e, na curva, vi uma súbita turbulência, ao que a água, agora acelerada, atravessava rochas pontiagudas. Se eu não a alcançasse a tempo, sem dúvida seria esmagada contra as pedras. Um sargento da aeronáutica em Roswell tinha me ensinado a nadar, e pus toda a minha força numa braçada rápida, que o teria deixado orgulhoso. E, num instante, agarrei-a pela mão, enquanto tentava impedir meu próprio ímpeto em meio às águas espumantes, a uns quatro metros da curva. De alguma maneira, consegui puxar o corpo dela, agora mole, para perto de mim, mas não consegui vencer a correnteza. Aninhando-a contra meu peito e virando, consegui deixar minhas costas largas baterem contra a

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primeira rocha, parcialmente submersa. O impacto foi como o coice de uma mula. Então, estávamos nos movendo mais uma vez, como folhas num furacão, jogados de um rochedo para o próximo. Não me recordo de ter visto um galho baixo nem de agarrá-lo. De repente, estávamos estáticos, cercados, esmurrados pelas águas selvagens do rio, mas sem se mover, sem estar à sua mercê. Ao menos, não totalmente. O fato de o galho não ter quebrado foi incrível, mas não tanto quanto eu ter conseguido içar ambos até a margem. Creio que aqueles exercícios do Charles Atlas que o Trevor me encorajava a fazer diariamente compensaram. Eu nos salvei em meio a toda aquela tensão dinâmica. Sem fôlego, com os pulmões doendo, deitei de costas na margem lamacenta, junto de nossa benfeitora, a árvore. Ela estava deitada ao meu lado, consciente agora, soluçando suavemente. Dessa vez, em inglês: — Meus filhos. Meus filhos… Pus uma mão de conforto sobre o ombro dela e esperei, oscilando levemente pela vertigem causada pela adrenalina, com meu equilíbrio ainda rodando como um giroscópio após a dança dervixe das águas. — Está tudo bem — murmurei. — Tudo vai ficar bem. Vou pegar meu casaco. Precisamos aquecer você. Caminhando trôpego pelos arbustos, minha mente ainda girando, não me recordo do cair súbito do silêncio quando os soluços dela cessaram. Após pegar o meu sobretudo, virei-me e… Ela tinha desaparecido. Sumido. No ar. Mais tarde, sentado em volta de uma fogueira na reitoria da capela Loretto, o frei Angelico explicou que eu havia sido abençoado por um encontro com La Llorona, e que minha ação altruísta traria boa sorte. — La Llorona é antiga; sua verdadeira origem remonta à antes da época em que passamos a fazer registros. Ela já fazia parte deste lugar antes dos espanhóis chegarem. Ela antecede até mesmo os povos indígenas anasazi. — Escutei histórias que… O frei Angelico ergueu a mão para silenciar Trevor: — Escute. E aprenda. Se não pelo seu bem, então pelo de Hellboy, pois esta criança especial foi abençoada. Ela nem sempre é tão misericordiosa. E nem tão vulnerável aos olhos dos outros. Uma pessoa pode escutar o lamento. Outra pode vê-la lutando contra a dor. Mas vê-la em tamanho desespero nu… É altamente incomum. Felícia, a arrumadeira de frei Angelico, trouxe-me uma caneca de chocolate quente. Seu calor reviveu os meus sentidos trêmulos, e escutei atentamente à lenda de La Llorona. — Já houve uma garota — começou o sacerdote — que dizia-se ser muito bela. Por causa da sua aparência, as pessoas não a tratavam como as outras. E, quanto mais bela ela se tornava ao florescer para uma mulher adulta, mais as pessoas a evitavam. Até mesmo sua família sentia vergonha por ser incapaz de lidar com tamanha beleza. — Certa noite, um estranho chegou ao vilarejo. Ele estava bem-vestido, obviamente

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era um homem de posses. E generoso também. E seu comportamento o tornou popular entre os locais. — O estranho logo se cansou do vilarejo e preparava-se para partir, quando viu a bela mulher, ficando hipnotizado. Como podia haver uma mulher tão linda ali, numa vila tão pobre, cercada por nada além de pó e cactos? Ele jamais vira tamanha elegância e decidiu ficar, para cortejar aquela mulher estonteante. Quando a propôs em casamento, sua família a encorajou a dizer “sim”, já que aquele cavalheiro poderia provir a ela o que fosse necessário, oferecendo o futuro que eles acreditavam que sua filha merecia. — Eles se casaram e a combinação pareceu ter caído do céu. O estranho ganhou o respeito de um prefeito, e a bela encontrou felicidade além da sua imaginação. Eles logo tiveram uma criança. A alegria da bela era tal que ela mal conseguia acreditar. Mas, conforme o tempo passava, o estranho foi ficando cansado da monotonia do vilarejo. Até mesmo sua devotada esposa o entediava, e a criança só tinha olhos para a mãe. Não fora o que ele esperava. Seu dinheiro estava começando a acabar e ele ansiava por aventuras e pelas tentações da cidade grande. Então, certo dia, ele partiu sem dizer uma só palavra. — Sua linda esposa esperou. Toda noite, após pôr o filho para dormir, ela acendia uma vela ao lado da porta. Pela manhã, ela acordava a criança com um beijo e apagava a vela. Os dias se transformaram em semanas. Embora o desaparecimento do marido a preocupasse, ela nunca perdeu a esperança. Semanas se transformaram em meses. Ninguém vinha visitá-la. Nem mesmo a sua família. Eles tinham certeza de que, de alguma maneira, ela tinha afugentado o estranho com sua beleza monumental. Ela começou a enlouquecer ao não saber o que havia feito para fazer com que todos se virassem contra ela. O frei Angelico fez uma pausa, tanto para saborear seu brandy beneditino quanto para causar efeito dramático. — O tempo mudou com as estações, e as monções começaram a surgir. O ar pesado exacerbava a imaginação febril dela. À noite, os ventos eram brutais, e os espinhos das árvores se esfregavam contra as janelas. Os céus se abriram. Foi como se o firmamento estivesse chorando uma torrente de lágrimas, ensopando sua casa de barro. A lama entrou em seu lar, trazendo consigo o cheiro do túmulo. A bela não suportava mais. Ela apanhou seu bebê adormecido e saiu pela porta, rumo à tempestade. — Enlouquecida pela deserção do marido e da sua família, ela correu para o rio. Tinha perdido toda a razão. E lá, ao lado da correnteza, jogou o filho nas águas furiosas. Naquele instante terrível, ela recuperou toda a clareza mental, ainda que apenas por um doloroso segundo. A bela deu um grito agonizante e, incapaz de aceitar o horror de seu pecado obsceno, atirou-se também nas águas tempestuosas. — Foi o pior dilúvio de que se tinha notícia no vilarejo. Poucas pessoas conseguiram dormir naquela noite, pois gritos aterrorizantes demais para serem descritos foram ouvidos por todo o vale. — Até hoje, quando o rio fica cheio e flui rápido, alguns dizem que uma bela mulher pode ser vista caminhando em suas margens. Se chegar perto demais, quem sabe escute um estranho lamento, e há quem diga que uma mão elegante pode até mesmo tocá-lo no ombro.

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O frei Angelico tirou os óculos. Ele me encarou profundamente: — Você, caro garoto, fez algo bastante nobre. Você a tocou. Estou certo de que a bela não esquecerá. — Mas existem variações da lenda, não? — interrompeu Bruttenholm. — Sim — assentiu o frei Angelico. — Com frequência, ela é vista do lado de uma estrada. Aqueles que param para oferecer uma carona descobrem que ela desaparece conforme se aproximam ou fogem de medo. — Por quê? — perguntei. — Em vez de ser uma bela, é uma bruxa hedionda ou tem o rosto de uma caveira — ele deu uma gargalhada seca. — Quem a vê assim são com frequência amantes adúlteros, voltando de um encontro ilícito. Parece que ela não aprova a infidelidade. — Mas também ouvi dizer que ela protege as crianças — acrescentou Bruttenholm. — De fato. Aquelas tolas o bastante para brincar ao lado do rio após o anoitecer são notórias por encontrá-la. Aparentemente, foi o que aconteceu com Malcolm MacDougal, Dona me disse. Mas, em vez de assustar o garoto, La Llorona o hipnotizara. Dona estava na cozinha, preparando uma ceia tardia para Jamie. Estava tão concentrada na tarefa que perdeu a noção do tempo. Então, quando percebeu que já tinha passado das nove, e o garoto ainda não voltara para casa, começou a entrar em pânico. Tinha acabado de sair da casa quando o encontrou vagando, distraído e devaneando. Ele contou que estivera no rio, onde conhecera uma linda mulher, que lhe disse que sua mãe o amava e que ela estava bem, esperando pelo dia em que ambos se reencontrariam. Diante disso, Dona deu uma bronca em Malcolm, urgindo-o a nunca mais ir ao rio à noite. Claro que às vezes proibir uma criança de fazer algo é a pior coisa que um adulto pode fazer, já que o jovem torna-se naturalmente curioso pela proibição. Na noite seguinte, Dona insistiu que Malcolm ficasse em casa. De modo surpreendente, o garoto concordou e ficou no quarto, lendo. Aliviado por ele ter aceitado calmamente o pedido, ela foi cuidar das tarefas do lar, sem pensar que ele pudesse estar desaparecido. Mas quando foi chamar Malcolm para o jantar, descobriu o quarto vazio e a janela aberta. Jamie ficou fora de si ao escutar as notícias, tanto que o comandante da base recusou-se a permitir que ele participasse das buscas. Além disso, não parecia que seria complicado. Um técnico dirigindo de Jemez Springs relatou ter visto o que pensou ser um garoto no acostamento da estrada principal. Ele parou para investigar, mas a figura havia desaparecido nas matas, a um quilômetro e meio do rio. Contudo, as buscas que duraram a noite inteira foram em vão. Malcolm MacDougal tinha desaparecido em pleno ar. Não foi possível deter Jamie na manhã seguinte. Cada córrego e afluente foi vasculhado, e a parte do rio onde Malcolm disse a Dona ter visto La Llorona foi drenada. Uma semana depois, com a busca pelo garoto interrompida, tornei-me a última esperança de Jamie. Saindo do riacho, tomei a direção de uma exuberante pastagem em declive e da floresta além. Meia hora depois, localizei um córrego e sentei-me para esperar, na esperança que meus instintos estivessem corretos.

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À meia-noite, minhas suspeitas se confirmaram e minha paciência foi recompensada. O som começou baixo, lamentoso à princípio; então, foi ficando mais agudo. Para um desavisado, poderia soar como um coiote uivando, mas eu já tinha escutado aquele som sofrido. Era impossível de ser esquecido. Por um momento, os anos desapareceram, levando-me de volta às margens do rio Santa Fé. Então, de repente, tudo parou. O silêncio que veio a seguir era estranho, de intensidade sufocante. Eu aguardei; meus olhos tentando penetrar as sombras escuras lançadas pelas árvores. Nada se moveu. Quando a mão tocou meu ombro, quase pulei para fora da minha pele vermelha. Virei-me e vi, ali ao meu lado, a Chorona. Meu primeiro encontro tinha sido agitado, repleto de ações frenéticas; não havia conseguido dar uma olhadela clara para ela. Agora, via que sua beleza era notável, quase dolorosa demais para ser observada. Tentar descrever aquela criatura etérea seria tolice. Além disso, aqueles olhos profundos e assombrados, cor de azeviche, atraíam-me, tornando-me prisioneiro da dor dela. — O garoto — disse com suavidade; pouco mais de um suspiro. — Por favor, leve-me à criança. La Llorona pegou minha mão, levando-me para longe do córrego e para dentro dos segredos sombrios da floresta. Ela continuava em silêncio, enquanto eu não sabia o que dizer. O que poderia falar àquele espírito? Chegamos a uma clareira. Embora a luz do luar estivesse amplamente obscurecida pelos enormes carvalhos e abetos, consegui divisar uma colina rochosa à frente. Ela foi me guiando pelo contorno, e, do lado oposto, parei diante de um denso emaranhado de arbustos. Aqueles olhos tristes me encararam por um momento, antes de ela se adiantar. Desde que me tocara, ela parecera sólida. Agora, dissolveu-se em meio aos arbustos, soltando minha mão, libertando meus braços para lutarem através da vegetação. Atrás dela, havia uma pequena caverna, a qual entrei. Em vez de puro breu, a caverna era suavemente iluminada, e levei um momento para perceber que ela era a fonte de luz. La Llorona brilhava de dentro para fora. O chão da caverna seguia em declive, e ela tomou minha mão para me guiar conforme descíamos. As paredes de rocha natural se estreitaram e o teto ficou mais baixo, forçando-me a me curvar. O túnel fez uma curva antes de se abrir numa câmara subterrânea. Malcolm MacDougal jazia deitado numa cama de folhas ao lado de uma piscina subterrânea do tamanho de uma lagoinha para peixes ornamentais. Seus olhos brilhavam num delírio febril. A perna esquerda estava quebrada, posicionada um ângulo dolorido. Como ele chegara ali? Será que ela o carregara? — Mãe — ele disse. — Não me deixe. Fique comigo. Não me sinto bem. Ela não respondeu, mas um estranho sorriso cruzou aquelas feições manchadas de sujeira. Ele tinha a boca do pai e os olhos da mãe. Senti algo passar por eles. — Vou te levar para casa — disse. O sorriso desapareceu. — Sim. A Mãe disse que era hora de ir — ele murmurou. Eu o apanhei com tanto cuidado quanto possível e, levado a La Llorona, retornamos. A cabeça dele estava quente; o corpo, magro e frágil. A água o mantivera vivo, mas

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o garoto estava faminto e a febre o esgotara. Conforme atravessava as árvores, senti que ela não estava mais conosco. Ao voltar-me, vi que ela havia desaparecido na noite como a condensação num dia frio. Ela fizera sua parte e, agora, eu tinha de concluir a minha. Torcia para que continuasse com sorte; quem sabe a gente encontrasse algum motorista passando que não surtasse ante a visão de uma enorme criatura vermelha carregando o corpo de um garotinho. Malcolm murmurou em seu delírio: — Mãe… não me… deixa… Sua condição era pior do que eu pensava. Queria correr; tinha de levá-lo ao hospital de Los Alamos, mas cada passo parecia chacoalhar os ossos dele. Movimentos súbitos estavam fora de questão, então, esperava encontrar um carro ou um caminhão. Do contrário, tudo que eu podia fazer era dar um passo por vez. A respiração dele estava curta e seca. Um passo foi seguido de outro. Mantendo os olhos no chão, minha mente vagueou. Na metade da campina, percebi que já havia deixado a floresta para trás. E percebi que Malcolm estava morto. Lágrimas de frustração escorreram dos meus olhos. Agachei na grama, ninando o pequeno cadáver. Tarde demais. Eu tinha falhado. — Estamos amaldiçoados — Oppenheimer dissera, enquanto dirigíamos para Los Alamos. — Acredito que aqueles de nós que criaram a bomba ou que continuam a trabalhar no programa jamais serão perdoados pelo que fizeram. Seja lá qual a sua fé ou o Deus em que acredite… não importa. Estamos amaldiçoados. Cometemos o maior pecado contra a vida. Os homens criam para destruir. As mulheres criam. Elas criam a vida. Nós só a destruímos. Com aquelas palavras ecoando em minha mente, olhei para o rosto de diabrete de Malcolm. Na morte, suas feições pareciam-se ainda mais com as do pai. Pobre Jamie. O que diria a ele? Ao ajudar a criar armas de destruição em massa, ele perdera de vista a vida que ajudara a conceber, inadvertidamente empurrando o garoto para os braços de uma ilusão. Uma lágrima caiu do meu rosto e rolou pela bochecha de Malcolm, limpando uma camada de sujeira. Parecia que ele também estava chorando. Uma lágrima de alegria, pois eu esperava que agora ele estivesse com a sua mãe. E, naquele momento vulnerável, perguntei-me quem choraria por mim. Das profundezas das matas, escutei La Llorona lançar seu lamento dolorido.

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