Zine Clínicas de Borda Margens Clínicas Margens Clínicas, 2023 Editora n-1, 2023 ISBN: 978-65-81097-81-3 Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagem e a especificidade de cada obra publicada. COORDENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes DIREÇÃO DE ARTE Ricardo Muniz Fernandes CAPA E DIAGRAMAÇÃO Thata Oliveros COMITÊ EDITORIAL DA COLEÇÃO CLÍNICA DE BORDAS Andréa M C Guerra Augusto Coaracy Daniel Mondoni Marta Togni Ferreira Pedro O. Obliziner A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessário a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. 1° edição | outubro, 2023. n-1edições.org
Zine Clínicas de Borda COLEÇÃO: 1. PsiMaré (Rio de Janeiro/RJ) 2. MOVE: Movimentos Migratórios e Psicologia (Curitiba/PR) 3. ClínicAberta de Psicanálise de Santos (Santos/SP) 4. Falatrans (Juiz de Fora, UFJF/MG) 5. Ocupação Psicanalítica (Belo Horizonte/MG; Rio de Janeir/RJ; Vitória/ES; Santo Antônio de Jesus/BA) 6. Estação Psicanálise (Campinas/SP) 7. Coletivo Margem Psicanálise (Fortaleza/CE) 8. Intervenção Psicanalítica Clínico - Política às demandas da População LGBT (Rio de Janeiro/RJ) 9. Rede Sur (São Paulo/ SP) 10. Roda de escuta/grupos flutuantes LGBTQI+ (Aracajú/SE) 11. Clínica Periférica de Psicanálise (São Paulo/SP) 12. Clínica do Cuidado (Altamira/PA; São Paulo/SP) 13. Coletivo Psicanálise e Política e Cotidiano Refugiado (Rio de Janeiro/RJ) 14. Projeto Gradiva (Porto Alegre/RS) 15. Museu das Memórias (In)Possíveis (Porto Alegre/RS) 16. Psicanálise na Rua (Cuiabá/MT) 17. Coletivo Testemunho e Ação/SIG (Porto Alegre/RS) 18. Margens Clínicas (São Paulo/SP) 19. Psicanálise na Praça Roosevelt (São Paulo/SP) 20. Psicanálise no Jacarezinho (Rio de Janeiro/RJ) 21. Mutabis (São Paulo/SP) 22. Clínica Aberta Casa do Povo (São Paulo/SP)
[Pedro] A síntese sobre o que é o Margens Clínicas seria algo como: o Margens Clínicas é um coletivo composto por psicanalistas, psicólogues e afins que, em sua etapa inicial (os anos de 2012, 2013 e 2014), tinha como foco o atendimento às vítimas da violência policial de São Paulo e de ações de enfrentamento e denúncia dessa violência, tentando trazer evidências dos efeitos de adoecimento psíquico e sofrimento destas violências, não só para o debate público, mas também para o meio acadêmico da época. Com o tempo, o coletivo vai ampliando seu horizonte, percebendo que a violência policial não pode ser discutida por si só, isolada das outras formas de opressões existentes na nossa sociedade e da história de como ela é constituída, isto porque podemos extrair dela uma estrutura, uma gramática, que não será muito diferente de outras formas de violência que existem para perpetuar o sistema de exploração capitalista, patriarcal, racista e colonizador em que vivemos. Estas violências têm em comum o fato de serem maneiras de limitar formas de vida possíveis, apagando, exterminando ou explorando as formas de vida que não reconhecem, que não são úteis ao projeto do capitalismo colonial sob o qual vivemos. Isto ocorre por meio de um complexo aparato social, simbólico e ideológico que valida ou desvalida certas expressões culturais, corporais, buscando desumanizar diversas categorias de pessoas para que possam ser exploradas. Todas essas violências, de raça, de gênero, de sexualidade e de classe, nós passamos a chamar de violências políticas, para podermos olhar clinicamente para este fenômeno de forma mais delimitada, mas, elas podem ser chamadas de outras formas, um outro nome possível é o da necropolítica. [Laura] Também usamos violências coloniais. [Pedro] Sendo este o resumo, em poucas linhas, do que é o Margens Clínicas, o que mais pode ser falado? A verdade é que, neste momento que escrevo, com o Margens Clínicas com 12 anos de funcionamento, vivemos uma espécie de crise de meia idade (talvez a idade dos coletivos seja diferente),
passamos a fazer tantas coisas, que: o que é que fazemos, mesmo? Há ainda uma razão de existir o Margens Clínicas? Se sim, o que há de comum, de fio condutor, o que permanece? Será um desafio deste texto transmitir a você, leitore, um tanto destas transformações que ocorreram ao longo dos anos, mas, principalmente, o que é que permanece, que é fundamental. E, neste esforço, esperamos nós mesmos também nos reencontrarmos com isso, um olhar fresco. Mas, para além de “o que falar”, há o “como falar”. Tentando mais de uma vez escrever este texto de uma maneira mais padrão, ele simplesmente não saía. Primeiramente, porque é um texto para um zine, seria uma oportunidade perdida, e um tanto chato, usar um estilo meio “acadêmico de artigo” para um formato que permite muito mais liberdade. Por isso que, em uma epifania, pensei na forma do diálogo. O diálogo como modo de comunicação de um saber pode nos soar estranho, você mesmo pode estar passando por esse estranhamento neste momento, mas por muito tempo foi considerado um modo adequado de organizar um texto que tinha como objetivo a transmissão do conhecimento. Temos diálogos, sobretudo, em Platão, onde ele comumente vai apresentar o personagem de Sócrates refutando diversos outros personagens, mas o diálogo também aparece em incontáveis outros filósofos da tradição europeia e ocidental: Leibniz, Hume, Galileu e Wittgenstein, por exemplo. Isso, citando filósofos europeus, com uma cultura de transmissão e registro escritos consolidada, mas se pensarmos nas transmissões de outros povos, os povos originários, ela sempre se deu através do diálogo, de pessoas sentadas ou caminhando, olhando umas nos olhos das outras e falando. Confesso que, na maior parte das vezes, os diálogos que tive contato tinham esse formato como estratégia de convencimento, coloca-se um personagem representando o senso comum, ou com ideias a serem rebatidas, talvez até meio burro e um outro personagem que é praticamente o representante do autor, que vai convencer o primeiro personagem e, ao mesmo tempo, a pessoa leitora. Não é esta a intenção aqui, pensei em um diálogo por dois motivos, para expressar uma coletividade, mas também contendo uma singularidade. A coletividade virá da polifonia, construindo um discurso em diversas vozes, diversos pontos de vista, o que replica um tanto o funcionamento do próprio coletivo em sua eterna
construção em conjunto. Mas, ao separarmos as vozes, é permitido ver que uma voz é apenas uma opinião, que ela poderia ser diferente, que não representa uma visão homogênea de todos os membros, pois tendemos a ficar com essa impressão ao ler um texto que, mesmo escrito a muitas mãos, não apresenta uma separação evidente de onde começa a ideia de um e termina a do outro. [Eduardo] A ideia do diálogo também é muito boa para estruturar uma certa movência que o próprio nome do Coletivo possui e que informa um tanto sobre esse começo, ou sobre tantos recomeços que nos constituíram. Eu entrei em 2016, ou seja, alguns anos depois da fundação inicial citada. Nesse momento, um ponto central de atuação no combate e escuta das violências políticas/coloniais era o trabalho com a memória, entendendo-a como uma ferramenta de luta que necessita de resgate e debate - não para se consolidar, mas ao contrário, para deslizar, se flexibilizar a partir de cada apropriação individual. A memória nos lembra que todo centro tem uma margem e que toda margem é centro de alguma outra margem e é a partir deste permanente deslizamento que podemos pensar nossa atuação clínica e política. Acho que falo por todo mundo quando eu digo que gostamos muito do nome do coletivo: vá lá que, como o Pedro disse, atualmente tá difícil saber o que fazer com ele. [Laura] Gostei muito dessa ideia do diálogo. Eu entrei no Margens em 2015 pela supervisão que na época era dividida e a que eu frequentava era com Victor e dada pelo Alexandre Maduenho. Fiquei escutando as pessoas trazendo os casos por meses e a partir daí fui entendendo porque o coletivo existia e a que se propunha. Hoje estamos numa situação de não saber. 2012-2015: O atendimento às vítimas de violência policial e as articulações com movimentos sociais e com acadêmicos
[Pedro] Eu ingressei no Margens apenas em 2016, então, tudo o que sei deste período são de histórias que me foram contadas. Naquele ano se aqueciam as discussões sobre a necessidade de revisitar e recontar o período das ditaduras brasileiras e as violações por elas cometidas nos mais diversos âmbitos, afinal, nos aproximávamos do aniversário de 50 anos do golpe de Estado de 1964 e com poucas conquistas referentes aos processos de justiça e reparação das violências cometidas. A Comissão Nacional da Verdade (a partir de agora chamada apenas pela sigla CNV) havia sido recém-criada, no final do ano de 2011, resultado de anos de lutas de familiares e presos políticos que continuaram pressionando a sociedade e o poder público. Nos anos seguintes, o trabalho da CNV e de outras iniciativas iriam se desdobrar em diversas frentes, sempre em embates envolvendo conflitos entre diversas partes, processo que foi descrito com mais detalhes por nós do Margens Clínicas em uma contribuição para o site Memórias da Ditadura (www.memoriasdaditadura.org.br/reparacao-psiquica/). Basta salientar, aqui, que este alvoroçar de ideias irá gerar, anos depois, uma consciência de que muitas das pessoas que sofreram violações ainda estavam em sofrimento, de que os traumas de décadas atrás não tinham sido endereçados propriamente, principalmente porque era impossível cuidar individualmente de um trauma resultado de um processo social e coletivo. Uma das respostas a isto foi a criação do projeto Clínicas do Testemunho, que iremos retomar mais a frente no texto. [Eduardo] Uia! Diálogo com link para referência e abreviação explicada, a modernidade é louca. Foi mal, não consegui deixar passar também pra não perder a oralidade da coisa. Mas retoma aí que o papo é sério… [Pedro] Em paralelo a isto, ocorria um forte movimento de luta por justiça de familiares que perderam entes queridos vítimas da chacina de policiais, em especial a ocorrida no mês de maio de 2006, na Baixada Santista, que levou a formação do grupo Mães de Maio e depois disso outros grupos
semelhantes. Estima-se que ao menos 493 pessoas foram assassinadas naquele período, número este, importante dizer, superior aos mortos e desaparecidos oficialmente reconhecidos ao final dos trabalhos da CNV, que declarou o número de 434 pessoas (do qual discordamos, ainda que reconhecendo todas as dificuldades de gerar provas para um reconhecimento mais amplo). Um número tão alto de assassinatos cometidos por agentes do Estado em um curto espaço de tempo, somado a todos os outros episódios, quase cotidianos, de assassinatos e violências em territórios onde vivem pessoas pobres e negras, demonstrava também o abismo de reconhecimento dessas violações com o que já estava sendo conquistado em torno da repressão ditatorial, assim como que tipo de pactos nossa sociedade fez desde sempre, com nossa história colonial, escravidão e extermínio de povos indígenas e pretos, e que voltava a refazer no período de redemocratização recente. Este contexto marca o cenário de fundo daquele ano de nascimento, havia um apelo para que as violências tanto do nosso passado recente quanto do presente fossem olhadas de outra forma, mas, também, a percepção de que tais violências causavam sofrimento e adoecimento psíquicos significativos. Este cenário externo ao campo das discussões clínicas, contudo, não era acompanhado tão de perto pelo meio acadêmico da psicologia e da psicanálise. Já havia, certamente, nomes importantes do meio dispostos a pensar a clínica permeada por questões da política, mas eram uma minoria. Isto levava a um descontentamento quanto ao nosso campo de atuação que ignorava, em grande medida, temas de justiça social, que refletia pouco sobre que contribuições a psicanálise, a psicologia clínica e a psiquiatria poderiam fornecer à luta daqueles que enfrentavam a truculência da polícia, a luta por moradia, pelo acesso à saúde, educação, entre outras lutas. No decorrer disto tudo, é realizado na USP um evento que convida a psicanalista argentina Fabiana Rousseaux, contando a, na época, já avançada experiência argentina de luta por justiça e memória que envolvia trabalhos de reparação psíquica e atendimentos aos afetados pela ditadura no nosso país vizinho, o que mostrava ao menos um exemplo do que poderia ser feito. O breve relato feito explica, em partes, os desejos envolvidos na criação do Margens Clínicas, coletivo que visava o atendimento a vítimas de violência de Estado e o enfrentamento a essas violências por meio de criação de insumos, produções acadêmicas, ações coletivas e, em certa medida, denúncia do que muitas vezes tenta-se ocultar.
Estes objetivos explicam as iniciativas iniciais do coletivo, visando o atendimento a familiares de entes assassinados pela polícia, a participação em reuniões de movimentos sociais, os eventos acadêmicos tentando dialogar com a comunidade “psi”.
Figura 1 - um dos primeiros materiais gráficos do coletivo, mostrando o recorte da época específico sobre a questão da violência policial
[Eduardo] Não sabia desse evento com a Fabiana, nem da importância dele pros anos iniciais do coletivo. Será que daí que vem nossa proximidade com a Argentina? Tá aí algo pra se retomar talvez… Nossa supervisora por anos foi a também argentina Sandra Berta, que nos ajudou e nos ajuda muito até hoje. Enfim, mais uma prova de que a memória tá aí pra ser recontada permanentemente. [Pedro] Quanto aos atendimentos, eles foram diversos, mas nunca sem apresentar muitas dificuldades sobre as quais nos debruçávamos. Isto ocorria pelas dificuldades já enfrentadas em casos de traumas por violência, que deixam marcas tão profundas em uma pessoa, mas também pelas condições socioeconômicas daquelas pessoas. Mesmo oferecendo atendimentos gratuitos em nossos consultórios, muitas vezes não era simples para uma pessoa se deslocar pela cidade e fazer isto de forma consistente. Já atendi mães que tinha perdido um filho e estavam sofrendo, mas ainda tinham que trabalhar, se deslocar por horas pela cidade e retornar para casa para cuidar dos outros filhos, ou um pai que teve que abandonar a comunidade em que vivia com medo de morrer e estava dormindo em centros de acolhimento da prefeitura, a cada dia procurando um bico para descolar um dinheiro, sem perspectiva alguma de uma agenda previsível. E, note, estamos falando de anos antes da pandemia, onde os atendimentos online e por celular se tornaram mais comuns. [Laura] Sobre os atendimentos, lembramos que nossos consultórios ficavam nas regiões centrais de São Paulo. Teve um caso de uma pessoa moradora da periferia que insistiu em ser atendida no consultório, por querer estar em outros lugares. Uma vez ela disse que gostava de ver o modo como a polícia tratava as pessoas em Pinheiros, como quem cuidasse delas. Para ela o deslocamento era fundamental no tratamento.
Mapa feito em uma cartografia social
[Eduardo] Nessa época eu ainda nem atendia, na verdade nessa época eu nem estava no Margens, mas vale dizer que isso era se desdobrar. Lembro das inúmeras conversas que tínhamos sobre como o deslocamento era surpreendentemente importante pra todo mundo, ou seja, gente da periferia que queria vir pro centro pra sacar essas outras relações e a gente também insistindo em ir para a periferia, tirar os consultórios e atendimentos e eventos e conversas do centro. Lembro de que o deslocamento dava um trabalho danado, mas fazia bem pra todo mundo. [Pedro] Mas, a principal questão de atender estas pessoas nos nossos consultórios era que ia se tornando muito evidente a dimensão coletiva daqueles casos, e esta era pouco tocada por atendimentos individuais seguindo os costumes padrões. Isto aparecia no modo como um paciente se sentia extremamente abalado ao saber de um novo caso de assassinato, mas também ao ver uma paciente que tinha poucas forças para se cuidar recuperar uma vitalidade ao saber de uma outra mãe que perdera seu filho para poder cuidar dela e apoiar. Isto nos leva à esfera pública e comunitária do ocorrido, se pegarmos a consideração trazida por Ferenczi que o motor do trauma não seria o ato em si, mas o desmentido, o descrédito de uma história de violência relatada, vamos entendendo a também possibilidade de cura ao lutar pelo reconhecimento adequado. Freud descreveu diversos modos de negação do psiquismo frente a um conteúdo indesejado, contudo, o conteúdo da violência política não é inconsciente, não é também um processo individual. Qualquer brasileiro sabe e vê pessoas sendo desumanizadas com frequência, moradores de grandes cidades veem pessoas dormindo nas calçadas e pedindo um trocado para se alimentar, ficam sabendo de jovens negros mortos pela polícia, indígenas sendo expulsos de suas terras e mortos por fazendeiros e garimpeiros, mas, ainda assim, a esses sofrimentos são negados o reconhecimento de que devem ser cuidados, de que são graves e não deveriam mais existir. Se há algo do espaço público que foi negado a certos grupos, a certas formas de sofrer, há que se pensar uma intervenção capaz de endereçar este problema. Um caso de tortura e perseguição não pode ser tratado
apenas dentro das quatro paredes de um consultório de psicanálise regular, esta história tem que vazar, de formas apropriadas, para que implique as outras pessoas que fazem parte dela – em suma, todos nós. Isto ocorre através do testemunho, mas também em grupos de militância, em obras de arte e outras formas de coletivizar uma vida. Todo este trabalho também era feito em constante diálogo com pesquisadores, clínicos, instituições de ensino, grupos de militância, profissionais do serviço público da justiça, saúde e assistência social. Certamente não era um trabalho fácil e fazer rede era uma estratégia de sobrevivência e de ampliação do potencial de atuação. Eu diria que é um traço do nosso coletivo tentar fazer uma ponte entre dois mundos que por vezes se mantém muito afastados, como reflexo de nossa desigualdade social, dialogando com o meio acadêmico e a comunidade de saúde mental e psicanálise dentro das universidades, produzindo pesquisas, mas também estando presente com os profissionais da ponta e movimentos sociais. Esta posição não vem sem conflitos, principalmente por uma ala expressiva do meio acadêmico e psicanalítico da época muito distante de uma implicação política, recebendo nossas experimentações, que buscavam dar conta dos problemas que estamos levantando, como heresias, com a frase já famosa de “isso não é psicanálise” ou com a defesa de que trazer a dimensão social, racial e de gênero eram tentativas de “predicar o sujeito”. Por sorte, e por muita luta, muito deste cenário mudou, como este próprio projeto Clínicas de Borda demonstra, hoje podemos contar com um número muito maior de aliados. Outra parceria mais frequente nestes primeiros anos era com o poder público, em pequenos editais e outras formas de cooperação. Este vínculo vai se intensificar, e também ser quase encerrado, com o projeto da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, o Clínicas do Testemunho. 2016-2017: Clínicas do Testemunho, CERP e a criação de dispositivos comunitários de escuta [Pedro] O projeto Clínicas do Testemunho foi de iniciativa da Comissão de Anistia, ligada ao Ministério da Justiça do Governo Federal, e está inserido dentre uma política maior de memória, verdade e justiça, na qual diversos países latino americanos traçam esforços em esclarecer os obscuros
períodos de ditaduras e violência de Estado que assolou o continente na segunda metade do século XX, assim como oferecer reparação material, simbólica e psíquica aos afetados por tais violências, de modo a efetivar o processo de transição democrática. O Clínicas do Testemunho é importante dentro deste contexto, o da luta pela memória e justiça referente aos períodos ditatoriais, mas também porque é o primeiro projeto do Estado brasileiro a oferecer reparação psíquica aos afetados pela violência perpetrada pelos agentes de segurança pública. Ele é resultado da incessante luta de militantes políticos envolvidos com o processo de anistia para que o Estado se responsabilize pelos crimes de lesa humanidade que cometeu. Ele teve seu primeiro edital realizado a partir de 2012 em aliança com instituições que formavam 5 núcleos: Instituto Sedes Sapientiae e Instituto Projetos Terapêuticos (ambos de São Paulo), Instituto Projetos Terapêuticos (Rio de Janeiro) e a Sigmund Freud Associação Psicanalítica (Porto Alegre). Neste período, nós do Margens Clínicas também executávamos nosso projeto de reparação psíquica às violências de agentes de segurança pública, mas com casos da atualidade e estávamos em constante diálogo com esses núcleos, participando das atividades públicas e acadêmicas, sempre também frisando a necessidade de se conectar esses dois pontos da história. Em 2015, quando foi lançado o segundo edital Clínicas do Testemunho, buscamos construir um projeto que pudesse juntar as duas pautas, levando a discussão sobre a violência da ditadura às margens da cidade, às comunidades que muitas vezes ignoram que houve ditadura, ignoram que a violência cotidiana que vivem também é decorrente da ditadura, ignoram os efeitos da exceção em suas realidades, materiais e psíquicas. Propusemos assim: implementar um Núcleo das Clínicas do Testemunho da Comissão de Anistia em São Paulo, com capacidade para oferecer atenção psicológica aos familiares de desaparecidos políticos entre 1964 a 1988 e a quaisquer outras vítimas diretas ou indiretas dos períodos ditatoriais; através de dispositivos clínicos e de sessões públicas de testemunho, bem como das oficinas comunitárias, incluir na experiência de testemunho e reparação psíquica comunidades que viveram a experiência de violência estatal sem que, contudo, se reconheçam ainda como beneficiários desta reparação que estávamos sendo agentes, e que ainda continuam a experimentar essa forma de violência como legado da ditadura; e sensibilizar e capacitar profissionais e estudantes para atuarem
no campo da reparação psicológica aos danos causados pela violência de Estado. Este último objetivo foi desenvolvido também porque, junto do edital do Ministério da Justiça, cada um dos núcleos do Clínicas do Testemunho (chamado, a partir de agora, de CT) também passava a fazer parte de um edital de um fundo estrangeiro, Fundo Newton, que fornecia recursos para implementação de uma formação sobre temas pertinentes do projeto aos profissionais da rede pública de saúde e assistência. Esta articulação, a qual o Margens Clínicas também foi um dos responsáveis por fazer acontecer, foi fundamental para a nossa decisão de fazer parte deste segundo ciclo do CT, pois dava autorização e validade para a discussão do que havia em comum entre as violências desse passado recente com as do presente, permitia que trouxéssemos nosso saber acumulado ao executar e planejar o CT para os trabalhadores da ponta que lidam com a população e, também, que pudéssemos adquirir com eles seus saberes no trabalho diário com a miríade de situações que enfrentam. Foi assim que foi criado o “Centro de Estudos em Reparação Psíquica” (CERP), que tinha como objetivo principal debater e aprimorar a escuta do sofrimento psíquico provocado pela violência de Estado nas redes SUS e SUAS. Mas, todo o trabalho envolvido na execução do CT não foi sem dificuldades, uma delas era de ordem prática, o edital nos fornecia recursos financeiros para executar o projeto, mas éramos psicólogues e psicanalistas, não éramos contadores ou publicitários. O projeto existir oficialmente não fazia com que ele fosse automaticamente conhecido pelas pessoas que poderiam ser beneficiadas pelo CT. Um símbolo disso foi que ao realizarmos nosso evento de encerramento do Clínicas do Testemunho, realizado em janeiro de 2018 no saguão de entrada do Memorial da Resistência, na região central de São Paulo, algumas pessoas que estavam indo visitar o Memorial se juntaram à roda de conversa sem saber muito bem do que se tratava, entre elas um homem que foi um preso político e anistiado e ele desconhecia a existência do projeto até aquele momento, seu último dia.
Figura 2 - cartaz do nosso último evento pelo Clínicas do Testemunho, ao longo do projeto, fomos utilizando com recorrência imagens de um elefante na divulgação, depois elaboramos que o elefante traz associações interessantes para um trabalho de memória, há o “elefante no meio da sala” sobre aquilo que ninguém quer falar, há a “memória de elefante” para aquilo que é bem lembrado, mas há também o risco de ser “o elefante na loja de porcelana”.
[Eduardo] Acho que aí vale dizer da consciência fundamental, que foi gradativamente deixando de ser uma crença, para ser uma consciência da importância da construção e do trabalho em rede(s). Seja pelas condições do próprio projeto que exigiam alianças com outras áreas - é meio aí que eu entro, dado que minha formação inicial é em cinema - para cuidar de comunicação, divulgação, organização financeira, etc… Seja pelo contato mais direto com a rede pública do SUS e do SUAS. Não que já não havia essa convicção na própria estrutura do coletivo desde seu início, mas eu sinto que a partir deste momento a necessidade de fazer rede - tanto em tamanho, quanto em diversidade - toma um outro corpo e nos faz, realmente, repensar nosso horizonte ético de atuação, colocando a atuação e saúde coletiva não como um objetivo a ser atingido, mas como um pressuposto sem o qual sequer é possível traçar objetivos. Vale ainda uma menção aos coletivos culturais e casas de cultura que nos receberam e abriram seus espaços, em especial em Perus.Um salve ao Quilombaque e a saudade e a memória viva, permanentemente recontada, daquele que se tornou também nosso supervisor: José Soró. [Pedro] Acrescento a essa necessidade de rede a simples também consciência de que nosso trabalho não era nada, sempre giramos em torno de 10 pessoas no coletivo, e nosso trabalho podia ter algum impacto no plano pessoal, ampliar o horizonte de possibilidades de uma pessoa ou outra (o que já é muita coisa), mas tem um impacto muito mais reduzido no plano macro ou estrutural. Desta forma, recorremos às redes também como forma de multiplicar o que estamos fazendo. Mas, voltando ao tópico das dificuldades ou desafios, uma outra aparecia na natureza da nossa proposta. Ao escolhermos investigar o que havia de não reconhecido nas violências da ditadura, formulamos a pergunta “quem é um afetado pela ditadura?” que foi repetida em diversos locais e com diferentes públicos. Havia aqueles que se reconheciam claramente como afetados, os sindicalistas, militantes e universitários que foram perseguidos, presos, exilados. Ou familiares destes, ou de pessoas desaparecidas. Mas nosso questionamento também ia para os demais brasileiros que viviam na época, tendo dificuldade no acesso de direitos
básicos, ou, mais além, será que mesmo um brasileiro nascido após 1988 não poderia ser considerado um afetado pela ditadura? Isso causava sofrimento, ou um sofrimento digno de ser tratado em um trabalho clínico? A ideia de tratar uma comunidade ou território, ao invés de indivíduos isolados, nos fez procurar inspiração em iniciativas que tinham que divergir da clínica tradicional em consultórios particulares, e até mesmo fazer algumas inovações nossas. Fizemos oficinas com características artísticas, como a “Bonecos da Memória” com a Camila Sipahi - que construía do zero bonecos com participantes que tiveram entes desaparecidos ou vítimas de violência -; muitas atividades coletivas que adotamos o nome de “conversas públicas” já utilizado por outros núcleos do CT, mas demos nossas próprias características para se tornar um evento mais horizontal, de compartilhamento de histórias e de testemunhos; a cartografia social, método de construção de mapas impregnados de subjetividade, mapas sobre seu corpo, mapas sobre seu trajeto rotineiro, mapas que deixavam evidentes pontos que o discurso oral nem sempre captava e diversas outras conversas que não poderiam ser chamadas de atendimentos, mas caminhavam nesta fronteira. [Laura] Na verdade as oficinas Bonecos da Memória também foram realizadas dentro de MSEs, serviços de cumprimentos de medida sócio-educativa, do bairro de Heliópolis, com a participação tanto das equipes quanto de pais e mães dos jovens que cumpriam medidas. Nossa justificativa era de que os efeitos de uma polícia de natureza militar resvalava naqueles jovens em cumprimento de medida. Apostamos na linha contínua da história. Noutro momento fizemos no Memorial da Resistência, com essa descrição que você citou, Pedro.
Para saber mais: -nosso livro de capa cinza “Clínicas do Testemunho nas Margens” no site do Margens Clínicas (www.margensclinicas.org/blog)
2018-2020: Estudos sobre formas de justiça [Pedro] Por lidarmos com experiências de injustiças e termos a “justiça social” como um horizonte, em algum momento tínhamos de nos perguntar sobre o que poderia ser a justiça, o que era considerado justiça na visão hegemônica e como fazer uma crítica a ela. Em 2018, fizemos um minicurso de quatro encontros sobre justiça restaurativa que preparou o terreno para o que se tornou um ano e meio de grupo de estudos sobre formas de justiça e sua intersecção com a clínica aberto às pessoas de fora do coletivo, ocorrido em 2019 e 2020. Entre os pontos principais, discutimos como a nossa subjetividade, além de ser dominada por um paradigma mercantil, individualista, racista, patriarcal, também era marcada por ser uma subjetividade jurídicopunitivista. A principal característica desta lógica é que, após um crime ser cometido, o ofensor deve ser punido apropriadamente. Seja por castigos físicos ou, na nossa forma mais pasteurizada, no pagamento de indenizações ou restrição da liberdade. O contato com a Justiça Restaurativa, ainda que tenhamos levantado diversas ressalvas a esta prática, permitiu perceber que a punição estava acima de tudo, sendo que a pessoa ofendida, que também podemos chamar de vítima, não precisava receber cuidados ou atenção. Na verdade, para nossa estrutura jurídica, a vítima não importa em nada, é um acessório, talvez mais uma evidência. Isto ocorre por diversos motivos, mas, o pensamento marxista permite apontar que o motivo central é de que nossa estrutura jurídica está aí para defender a propriedade privada, mesmo quando o crime é cometido contra uma pessoa, por exemplo, numa agressão, podemos dar um passo adiante que nos revelará que as pessoas, na sociedade capitalista, também são vistas como propriedades privadas, que se relacionam entre si e com o Estado por meio de contratos. Isto pode ser rastreado até os idealizadores da nossa sociedade burguesa ocidental como Thomas Hobbes e John Locke. Acho interessante a teoria, difícil de ser provada mas provocativa, de que esses teóricos da sociedade burguesa emergente estavam, na verdade, morrendo de medo dos relatos que chegavam na Europa do que os brancos encontravam ao ter contato com as sociedades dos povos indígenas do continente americano. Isso porque essas sociedades eram
muito mais livres em seus costumes, na sua sexualidade, nas leis sociais, também tinham uma possibilidade de mobilidade social muito maior do que a daquela sociedade européia extremamente enrijecida em suas classes sociais. Por isso, cabia a esses teóricos moldar uma ideologia que desqualificasse essas sociedades com características tão sedutoras àqueles em posições subalternas, e justificar a ordenação européia como a melhor possível, sempre ao redor da propriedade privada e da acumulação material, exatamente o que tinha levado ao poder a nova classe dominante da burguesia. Consideramos isso, fomos buscar nos estudos indigenistas inspirações para outras formas de justiça, com alguma dificuldade de traçar com clareza propostas, mas me pareceu, ao final daqueles estudos, que qualquer forma de justiça interessante deve estar ancorada em experiências de comunidade. Vemos isso, por exemplo, na sociedade tupinambá descrita por Pierre Clastres, onde o líder, que deteria um acúmulo de poder, é também aquele que ninguém leva a sério, ou onde o melhor caçador é ridicularizado ao trazer uma nova caça para que sua soberba não o leve a atos indesejados mostra uma forma de controle social que não busca a opressão ou exploração, como na nossa sociedade, mas sim uma forma de evitar a acumulação material ou simbólica por um indivíduo ou outro, causando desigualdades e adoecimento.
Para saber mais: -Artigo “Abrindo brechas - A construção de formas alternativas de justiça em diálogo com a saúde mental” por Victor Barão Freire Vieira, Pedro Oliveira Obliziner e Anita Vaz na Revista Desenvolvimento Social, v. 26 n. 2 (2020).
2018-atual: (Des)formações abertas e a criação da Rede para Escutas Marginais (REM) [Pedro] As formações desenvolvidas pelo Margens Clínicas são, na minha opinião, uma consequência de diversos fatores na nossa história. O primeiro, seria a tentativa de formalizar, ou descrever com bases teóricas mais sólidas, alguns de nossos desenvolvimentos, dispositivos clínicos que fomos construindo em resposta aos desafios do dia a dia. Uma etapa fundamental desta tentativa é a de estabelecer diálogo com outras pessoas, colocar sua ideia à prova, perceber as repercussões e, no processo de troca, aprender coisas novas. Um segundo ponto, como já citado acima, é a percepção da nossa pequenez, um coletivo com poucas pessoas e com uma atuação com impacto limitado. Sendo assim, as formações também podem cumprir o papel de multiplicar, espalhar nossas pautas e questionamentos para que ganhem vida de uma outra forma e em outro lugar. O terceiro e último ponto está intimamente relacionado a nossa ética e nossa proposta enquanto coletivo. Nós sempre buscamos questionar onde estão os centros e as margens, se estes centros são permeáveis, se eles podem se deslocar, ou, ao contrário, se são centros hostis para os que estão às suas margens. Este movimento dialético está no questionamento de quais sofrimentos nossa sociedade acolhe ou não, também estava na pergunta sobre quem é um afetado pela ditadura, mas também é um movimento que fazemos ao voltarmos nosso olhar para a nossa própria comunidade e perguntar: quem pode se tornar psicólogue e psicanalista no Brasil? Isto passa por pensar as possibilidades de formação de quem quer se tornar um clínico profissional, o que atualmente é muito pouco acessível a uma grande parte das pessoas em nossa sociedade, mas também a outras pessoas que não precisam necessariamente se tornar psicanalistas para poder utilizar a psicanálise como uma ferramenta útil em seu trabalho, como assistentes sociais, professoras, ativistas de movimentos sociais, entre outras. Esses objetivos já estavam presentes na nossa primeira formação, o CERP, e continuaram aparecendo nos anos após seu encerramento em 2017. Foi o caso da formação ministrada em 2017 na Vila Itororó,
região central de São Paulo, chamada “desformação marginal”, que contava com aulas sobre testemunho e dispositivos clínicos alternativas, mas também com muitas atividades de troca e reflexão, o que é uma característica das nossas formações, já que nunca se resumem apenas em aulas expositivas. No ano seguinte, em 2018, ocorreu uma nova formação em parceria com o SESC 24 de Maio a qual nomeamos de “como escutar o outro?”. Estávamos já ao final do ano, na época eleitoral que elegeu Bolsonaro como presidente, e lidando com todos os afetos que aquele momento fazia emergir, o medo, a raiva, a desesperança, mas também com um sentimento de que a capacidade de escuta estava reduzida. Acho que posso dizer que a ideia principal por trás dessa formação era de fazer com que a possibilidade de escutar o outro não fosse monopólio do psicanalista ou psicólogue. E, em meio a pandemia, em 2020, lançamos a formação Rede para Escutas Marginais (REM), um modelo de formação com muitas raízes no trabalho realizado em 2016 e 2017 no CERP, também voltada principalmente para profissionais do SUS e do SUAS, mas com diversas modificações, principalmente no quesito de ser uma formação totalmente online, fruto do isolamento social que vivíamos à época. A REM, em seu primeiro ciclo, do qual fiz parte dos grupos de coordenação, funcionava da seguinte forma: as pessoas participantes eram divididas em grupos que se encontravam quinzenalmente em uma sala de vídeo chamada, sendo que antes de cada encontro as participantes assistiam aulas gravadas, disponíveis online, sobre diversos temas nas esferas das discussões clínicas, sobre raça, classe, gênero, sexualidade, etc. As aulas eram ministradas por diversos professores e professoras e, para além da transmissão de saber, tinham também o papel de serem disparadores das discussões destes encontros grupais, nas quais as pessoas traziam trechos de casos vistos em seus serviços e das situações de trabalhadores da rede pública, também atravessades por todas as violências e opressões que acolhiam. Os grupos também foram importantes pontos de apoio e acolhimento naquele período difícil que vivíamos.
Para saber mais: -Livro de capa vermelha chamado “Dispositivos de escuta e desformação” no site do Margens Clínicas (www.margensclinicas.org/blog)
2012-2020-atual: Atendimento a ativista e supervisão institucional para outros grupos e coletivos [Pedro] Pelo nosso fluxo por meio de muitos espaços de luta e militância, sempre foi comum chegar até nós pedidos de atendimento para um ou outro ativista. São atendimentos que não divergem, em sua forma de atuação, de outros atendimentos na clínica particular, mas que carregam uma grande temática da coletividade, muitas vezes com a pergunta implícita: como balancear minha vida pessoal com a luta coletiva? Às vezes, a pessoa ali deitada no divã, está vindo não porque considera que ela está precisando, mas porque aquilo é necessário ao seu grupo. Outras vezes, a pessoa não consegue se desligar, as demandas são tantas - e qualquer um que trabalhe com justiça social sabe que o trabalho é inesgotável - que há sempre a necessidade de continuar, de fazer mais um pouco. Como lidar com a impotência? Há também a dificuldade de ouvir e amparar pessoas que estão sofrendo dores tão próximas às suas: como fazer uma separação? Ou, então: como não prometer coisas incertas, tentando aplacar um sofrimento que você não sabe como lidar? Muitas dessas questões aparecem a muitos ativistas, e eu diria que nós, trabalhadores da saúde mental, temos algo a dizer sobre elas, especialmente porque também sofremos das mesmas questões em muitos pontos de nossa trajetória. Mas, se há os sofrimentos que surgem a partir da militância, também há a possibilidade de cura pelo ativismo. É um processo importante, que dribla um pouco a alienação que sofremos de nos acreditarmos indivíduos autônomos, quando percebemos que nosso sofrimento é compartilhado, algo que Lacan descreveu ali quando falava do “mito individual do neurótico”, mas que podemos encontrar em muitos outros autores. Não foram poucos pacientes também que ingressaram na clínica e em algum ponto se tornaram ativistas de algo, justamente ao perceber essa conexão, por exemplo, uma mãe que perdeu seu filho para a violência policial que começa a perceber que fica mais forte ao sair de casa para apoiar outra mãe que perdeu o filho recentemente. Eu defendo que as experiências de testemunho tem este poder, ao escutarmos um testemunho acontece uma experiência transindividual,
escuto uma história que eu, pessoalmente, não vivi, mas, após escutar aquela história, a sua força é tão grande que passo a considerar que ela também faz parte de mim, e eu dela. Esta parece ter sido a experiência de muitas pessoas em nossos eventos de testemunho, mas também foi a minha, como analista, em diversos casos onde escutei violações, injustiças, crimes contra a humanidade. Além destas experiência de atendimentos individuais, nosso trabalho visando formas de coletividade também ganhou outra abrangência quando passamos a atuar com grupos, coletivos e instituições. [Eduardo] Era plena pandemia da Covid (e o estranhamento de ter que adjetivar “pandemia” pelo fato de que no futuro pode haver outra) e fomos contactados pelo Repórter sem Fronteira. Covid e governo Bolsonaro formaram uma espécie de dupla perfeita para aterrorizar todos nós. Pra galera do jornalismo, em especial, pra galera do jornalismo da região amazônica a coisa tinha ficado pesada, mais pesada do que deveria, mais pesada do que era pensável. O governo Bolsonaro fez coisas inaceitáveis em muitas instâncias, mas na região amazônica, como costuma acontecer diga-se de passagem, a tragédia vem na mesma proporção da escala das árvores da região. Viver estava difícil, reportar, ouvir, gravar, fotografar, escrever sobre tudo que estava acontecendo, estava acachapante. Nos pediram então, dado os inúmeros casos de adoecimento da saúde mental dos profissionais do jornalismo da região, que fizemos um projeto que contemplasse o atendimento a profissionais vinculados à uma agência de jornalismo da região amazônica. Pedro pode explicar melhor como foi a intermediação institucional disso. Aliás esse foi o primeiro novo dado: como pensar a análise a partir de uma transferência inicialmente institucional? E isso perpassando diversas instâncias da escuta que vão desde o pagamento, até o paradoxo de você estar sendo chamado por um lugar em que, na escuta individual, é muitas vezes simbolizado como a própria razão do adoecimento. Contradições do capitalismo e de suas frentes de resistência aos montes: muito bate cabeça interno nosso para conseguir separar, ou juntar, o que dizia respeito a cada um e ao todo.
[Pedro] O contexto do contato foi o de que eles já pensavam o cuidado com os jornalistas, mas este cuidado se dava por maneiras de pensar a proteção física do jornalista nas ações de campo, ou a proteção digital contra ataques na internet, mas estavam se dando conta de que era necessário também um cuidado com a saúde mental. Começamos, realmente, com esta agência de jornalismo com repórteres em vários estados da região norte, porque a situação ali no momento estava mais aguda, com a intenção de que esse trabalho mais circunscrito fosse um plano piloto para um trabalho com jornalistas de outras agências e regiõers, o que acabou não ocorrendo. Creio, também, que este trabalho também teve ecos com outros trabalhos institucionais que já tínhamos feito, ainda que não de atendimento, mas de supervisão em vários tipos de serviço. [Eduardo] Nesse contexto da pandemia que comecei a atender particular. Nesse projeto inclusive. Meu primeiro consultório foi a partir de computador e isolamento. E a gente, que tanto aprendera sobre a importância do deslocamento pelo território e da rede diversa e coletiva, agora estava prostrado, vendo não uma pessoa mas uma imagem, ouvindo não uma voz, mas a digitalização sonora da mesma. O Real nos desloca de formas improváveis. Como tudo é memória, margem e centro, também estávamos tendo a oportunidade de ouvir e trabalhar junto de profissionais que estavam em outra ponta, a da liberdade de expressão num contexto de escalada do emudecimento, num outro território, impossível de nos deslocarmos concretamente, a região amazônica. Tivemos que repensar a forma de fazer rede, repensar nosso papel, agora virtualizado, e também nossa escuta para dentro do coletivo. Sem a possibilidade dos corpos nas reuniões semanais, as videoconferências fizeram o papel e demoramos um bocado para nos dar conta de que uma coisa não substituía a outra. Precisávamos aprender uma nova forma de construção de comum agora em conexões virtuais a partir de lugares cada vez mais radicalmente diferentes. Ainda estamos aprendendo. Assim como demoramos um bocado para entender que, quando se está dentro de uma relação institucional, a escuta clínica é necessária também
nesse nível, o não dito informa das instituições e nisso informa de nós também, enquanto coletivo nesse momento já reconhecido, solicitado, institucionalizado. E isso, aprendemos, independente da nossa resistência em ter CNPJ. [Pedro] Acho que o trabalho com instituições toca bem fundo em nós, porque é como se olhássemos a nós mesmos também em um espelho. A forma de coletivo, para mim, é extremamente importante em nosso trabalho, mas ela não é dada, ela tem que ser construída, não há receita de bolo. Como se divide as tarefas? Quem tem mais espaço de fala, quem ocupa mais as reuniões? Quais são as relações de poder? Sempre tivemos uma resistência a sinais de uma institucionalização, como o Dudu falou, por exemplo ao abrirmos um CNPJ oficial, porque parecia haver aí uma certa morte do coletivismo, talvez acertadamente. Mas, tentar nos manter em coletivo não nos torna imune a nenhuma das formas de adoecimento que pode ocorrer em grupos. E é um tanto disso que também olhamos quando entramos em contato com trabalhos frente a outras instituições, serviços públicos ou coletivos. Como se dão os atravessamentos de raça, gênero e classe, onde a palavra pode circular, quais são os não-ditos? Como uma demanda institucional faz com que uma pessoa tome ações tão contraditórias com aquilo que ela sempre defendeu e lutou, sem nem mesmo se dar conta?
Para saber mais: -O texto “Apresentação do Dossiê - Movimentos sociais, sofrimento e conflito: por uma escuta que potencialize a luta” de Paulo Beer e Pedro Oliveira Obliziner em Revista Desenvolvimento Social, v. 26 n. 2 (2020). -Os dois textos “O ativismo como forma de cura – pela possibilidade de narrar e formular sobre a própria dor” e “Como escutar sujeitos violentados? – por processos de acolhida que não causem ainda mais dor” por Pedro Obliziner no site da Escola de Ativismo (www.escoladeativismo.org.br)
2020-atual: Aquilombamento nas margens e estudos sobre racialização [Laura] No final do ano de 2018, numa celebração do livro “Margens Clínicas: Dispositivos de Escuta e Desformação”, ouvi nosso querido supervisor José Soró dizendo que a única saída possível para o que vivíamos era o aquilombamento. No ano seguinte, o Kwame fez o convite ao Aquilombamento, trabalho que ele já vinha desenvolvendo há alguns anos. Mesmo tendo passado pelas formações do Margens, estando ali imersa, eu demorei a escutar o convite que ele fez mais de uma vez. No final de 2019 e depois no início de 2020 demos início aos encontros de Aquilombamento nas Margens, com foco nos serviços de saúde e assistência social da Zona Sul de São Paulo. A ideia era fazermos encontros itinerantes, cada vez em um serviço. Tivemos dois encontros, sendo que fui em apenas um, no qual se apresentaram Emiliano de Camargo David, falando sobre o trabalho de Aquilombação na Brasilândia e Oggy, que na época conduzia uma iniciativa chamada Café Preto. Ambos apresentavam formas de aquilombamento dentro dos serviços. A ideia principal do Aquilombamento enquanto dispositivo clínico era a transversalização das relações raciais no modo psicossocial, construindo estratégias de cuidado que levassem em conta o atravessamento dos marcadores sociais de diferença (gênero, raça e orientação sexual). Para isso seria necessário se debruçar no estudo da tradição colonialescravocrata no Brasil e sua relação com a construção do campo de Saúde Mental no Brasil, para a partir daí encontrar o comum na diferença e a diferença no comum, visando a construção coletiva de uma ética na qual pudéssemos questionar e interrogar os modos como pensamos clínica e cuidado. Pois bem, nossa ideia era dar seguimento em 2020 nesse trabalho, mas a pandemia de Covid-19 alterou os planos. Continuamos fazendo alguns encontros online voltados à Zona Sul, com algumas pessoas e publicamos a cartilha “Saúde Mental, Relações Raciais e Covid-19”, financiada pelo Fundo Baobá para Equidade Racial. Em seguida decidimos expandir os encontros de aquilombamento e oferecer um grupo online mensal para trabalhadores do SUS e do SUAS. Poucas horas depois de publicarmos o formulário na internet tivemos mais de 80 pessoas inscritas, o que indicou
a enorme demanda desses profissionais por espaços de escuta em que se colocava as relações raciais na centralidade das discussões. Esse foi o motivo pelo qual decidimos dar início a uma série de entrevistas virtuais, as lives, que ocorreram mensalmente, foram gravadas e publicadas e passaram a compor a Formação Aberta de Aquilombamento nas Margens. São mais de trinta encontros que estão no canal do Margens Clínicas no YouTube. Paralelamente às lives, coordenamos o grupo de Aquilombamento nas Margens composto por trabalhadoras da Zona Oeste, Norte e Centro de São Paulo e da cidade de Osasco, que aconteceu de agosto de 2020 a dezembro de 2021. O trabalho do Aquilombamento sempre foi feito por muitas mãos. No início de 2023 fizemos algumas lives virtuais para o Sesc Consolação e em maio demos início à Formação Aberta de Aquilombamento nas Margens presencial, no Sesc Paulista, que vai até dezembro deste ano. Nosso primeiro convidado (também o primeiro da primeira live, em agosto de 2020) foi Emiliano Camargo que, dentre muitas coisas importantes, nos lembrou que naquele espaço não estávamos criando nada do zero. Que o Aquilombamento não é de nenhum de nós. Hoje percebemos que algumas pessoas têm criado o hábito de ir aos encontros mensalmente no Sesc. A construção desse saber coletivo tem sido uma experiência muito rica, que se transforma a cada encontro. Estamos em construção. [Eduardo] Retomando lá do início, acho que o Aquilombamento é um prática que coloca muito a inversão que foi se dando na trajetória do Margens, do coletivo não ser um objetivo de chegada, mas um pressuposto de saída. É sucesso esse aí! [Pedro] Tendo escrito tudo o que escrevi acima e finalmente lendo o que vocês estão falando sobre Aquilombamento, me parece que o Aquilombamento também foi uma confluência de tudo o que fizemos nesse tempo todo, mas, com um enfoque importante a partir da racialização. Ou, melhor, em modos de viver, se organizar e existir - que é um quilombo - que se dá a partir da questão da consciência racial. Lembro que algum convidado ou convidada (se não foi o próprio Emiliano) uma vez falou sobre o centro do
aquilombamento ser vazio, ora ocupado por um ou por outra, em uma circulação, e acho que isso diz muito sobre o ideal que temos de como construir coletividade.
Para saber mais: -Cartilha “saúde mental, relações raciais e covid19” no site do Margens Clínicas (www.margensclinicas.org/blog) -Dezenas de vídeos do aquilombamento nas margens no youtube do Margens Clínicas (www.youtube.com/margensclinicas)
Título: Coleção Clínicas de Borda Autor: Margens Clínicas Medidas: 14x21 Número de páginas: 36 Assunto geral do livro: Psicanálise de rua Palavras chave: Psicanálise; Clínica pública; Política; Clínica de borda ISBN: 978-65-81097-81-3
COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS A Coleção de Zines das Clínicas de Borda Psicanalíticas Brasileiras, aberta a novos fascículos, nasce da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadas e inconformados com a resposta clínica de seu fazer e de sua formação face à realidade nacional brasileira, exposta à brutalidade e à violência estrutural. Trazem experiências múltiplas e plurais, sem necessariamente criarem um mínimo comum, nas quais experimentam o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, meios de formação. Nasceram da resistência dos movimentos sociais, em reação a genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, deslocamentos migratórios, nas periferias, praças, estações, ocupações, quilombos. Seu fazer é produto da rua e dos modos possíveis de cuidado a que o enlace transferencial na direção do tratamento psicanalítico dá visibilidade e nome a corpos apagados no cotidiano. Instituem elementos necessários na teoria e na prática, revisitando as clínicas públicas e populares, datadas dos tempos de fundação do campo psicanalítico com Sigmund Freud. Reviradas pela experiência do Sul Global, em elipse, olham o avesso do espelho e atravessam suas fronteiras. Marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos modos de partilha e de presença. Saem definitivamente do modelo burguês do consultório individual. Recebem os analisantes, tanto online, quanto em cadeiras expostas ao sol, a fim de escutarem seu sofrimento. Colocam o pagamento em xeque, não mais no cheque. Trazem a marca de sua região, de sua língua, das ricas expressões dos dialetos brasileiros. Distribuem-se em cada canto do país e questionam o modo de circulação do capital e de resposta do inconsciente às violações cotidianas. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica psicanalítica e da lógica excludente da formação do psicanalista, enfim, sua presença na polis. Elas não estão todas reunidas aqui. A coleção, aberta, aguarda novas presenças nessa escrita histórica. A psicanálise mudou. A gente queria que você soubesse.