Zine Clínicas de Borda Psicanálise de Rua Psicanálise de Rua, 2023 Editora n-1, 2023 ISBN: 978-65-81097-77-6 Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagem e a especificidade de cada obra publicada. COORDENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes DIREÇÃO DE ARTE Ricardo Muniz Fernandes CAPA E DIAGRAMAÇÃO Thata Oliveros COMITÊ EDITORIAL DA COLEÇÃO CLÍNICA DE BORDAS Andréa M C Guerra Augusto Coaracy Daniel Mondoni Marta Togni Ferreira Pedro O. Obliziner A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessário a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. 1° edição | setembro, 2023. n-1edições.org
Zine Clínicas de Borda COLEÇÃO: 1. PsiMaré (Rio de Janeiro/RJ) 2. MOVE: Movimentos Migratórios e Psicologia (Curitiba/PR) 3. ClínicAberta de Psicanálise de Santos (Santos/SP) 4. Falatrans (Juiz de Fora, UFJF/MG) 5. Ocupação Psicanalítica (Belo Horizonte/MG; Rio de Janeir/RJ; Vitória/ES; Santo Antônio de Jesus/BA) 6. Estação Psicanálise (Campinas/SP) 7. Coletivo Margem Psicanálise (Fortaleza/CE) 8. Intervenção Psicanalítica Clínico - Política às demandas da População LGBT (Rio de Janeiro/RJ) 9. Rede Sur (São Paulo/ SP) 10. Roda de escuta/grupos flutuantes LGBTQI+ (Aracajú/SE) 11. Clínica Periférica de Psicanálise (São Paulo/SP) 12. Clínica do Cuidado (Altamira/PA; São Paulo/SP) 13. Coletivo Psicanálise e Política e Cotidiano Refugiado (Rio de Janeiro/RJ) 14. Projeto Gradiva (Porto Alegre/RS) 15. Museu das Memórias (In)Possíveis (Porto Alegre/RS) 16. Psicanálise na Rua (Cuiabá/MT) 17. Coletivo Testemunho e Ação/SIG (Porto Alegre/RS) 18. Margens Clínicas (São Paulo/SP) 19. Psicanálise na Praça Roosevelt (São Paulo/SP) 20. Psicanálise no Jacarezinho (Rio de Janeiro/RJ) 21. Mutabis (São Paulo/SP) 22. Clínica Aberta Casa do Povo (São Paulo/SP)
Foto: Emanuele Daiane.
Psicanálise na Rua é fruto do encontro da Universidade Pública com o Sistema Único de Saúde (SUS) causado pela formação do psicanalista no Laço Analítico / Escola de Psicanálise. O projeto nasce como pesquisa de doutorado (2012-2018) com orientação de Luciano Elia e segue como Projeto de Extensão da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) – curso de psicologia desde 2016. O trabalho inicia acompanhando a primeira equipe do Consultório na Rua, dispositivo do SUS, inventado na Bahia, que consiste em uma van que se desloca pela cidade em assistência às populações de uso abuso de álcool e outras drogas que não “aderiam” ao tratamento nos Centros Atendimento Psicossocial (CAPS). Os CAPS por sua vez tratam-se de dispositivos implementados pela reforma psiquiátrica dos anos 80 e 90 na direção de capilarizar o atendimento na direção da Luta Antimanicomial de integrar o louco e não segregá-lo. Ideologicamente é difundido que essa população é “dependente química” a psicanálise faz furo nessa ideia porque se escuta a “droga” como significante e pode ouvir a ressonância dessa “droga de vida” que dá dimensão da riqueza que lhe foi expropriada e que sustentaria essas vidas para além desse curto-circuito. Causada pela escuta do que sofre essa gente, desmontando a ideologia, abre-se a clareza com a fala do povo: SEGREGAÇÃO E EXTERMÍNIO. Esse é o Real atrás do véu.
Figura 1. Pessoa em situação de rua é fotografada com metade do corpo dentro de um caixote de papelão. Um pé está de fora, o tênis está na calçada imediatamente à frente. A foto lembra um produto mal descartado em que um pedaço ficou para fora. HOMEM NO PAPELÃO Foto de José MEdeiros
Os usuários de crack traziam uma circulação incômoda para a cidade. Os “cracudos”, os “noiados” os “drogados entregues ao vício” ocupavam *viadutos e *becos da cidade. O *porto e a *rodoviária eram territórios visados pelo Consultório de Rua. A população e rua se abrigava por lá. Escutar abriu um portal Vidas e sofrimentos Violência policial Abusos e miséria Expropriação e segregação Muitos usavam drogas, como tentativa de escapar dessa droga de vida...
Quando o programa chega ao fim: como seguir escutando essa gente? Onde estão? Como chegar? - Eles estão no Centro! Os vi no semáforo da Prainha!... Lá tem uma escultura de uma Chacina, você já viu? O encontro com Jonas
Figura 2. Jonas Correa, o escultor do Memorial da Chacina do Beco do Candeeiro era também um ativista dos Direitos Humanos. Fotos de Gabriela Rangel
Figura 3. O artista nos mostra recortes de jornal da época que noticiaram a implantação do Memorial e o "grande problema" da existência de crianças na rua nos anos 1990. O Memorial da Chacina do Beco do Candeeiro. Fotos de Gabriela Rangel
O Memorial da Chacina do Beco do Candeeiro
Figura 4. Foto: de Gabriela Rangel Memorial da Chacina do Beco do Candeeiro em 2016. Foto de Adriana Rangel
São três meninos em posição de horror. Três meninos que são trezentos. Mil. Incontáveis. Vidas que não se contam... Mas contaram: Nado, Baby, Indinho. 16, 13, 15 anos. Mortos à queima roupa no centrão. Um, dois, três mais um: Edilson Alves Ferreira Junior, sobrevivente número 01. Pé no território e primeira lição: morreram de quê? De traquinagem. Menino não pode brincar na rua. Despatologizar e politizar: a rua é manicomial.
Figura 5. Fotografia que sai no jornal de grande circulação da cidade de Cuiabá exibe o corpo de Nado, garoto que falece imediatamente no Beco do Candeeiro. Os outros dois, Baby e Indinho, são levados ao hospital com ferimentos graves e não resistem. Foto: jornal Diário de Cuiabá
O escultor crítico. A luta pelos direitos humanos dos anos 1980 crescia. Muitas mãos fazem um ato: Alair (padre), Teobaldo Witter, Maria do Santos Silva, mãe de Baby. Albina Rodrigues de Arruda, mãe de Edgar. Rosa, mãe de Nado. A Associação de Familiares Vítimas de Violência (AFVV). O Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade (CDHHT). Colocaram o incontável nas contas. Essa menina – a Psicanálise na Rua - não nasceu abandonada. Estava enredada numa família que lhe dava lugar e teve seu parto preparado, porém quis adiantar-se. No encontro com o parteiro Jonas Correa, ele precipita: vamos domingo, segunda estou indo embora. Dia um, 08/11/2015 nasce uma menina na rua: Psicanálise na Rua. Figura 6. Nasce a Psicanálise na Rua: dia 08/11/2015. Na foto em torno do Memorial Adriana Rangel, Jonas Correa, Joaquim e Luciano Elia.
Figura 7. Com as figuras reconhecidas do território, traçam-se as primeiras tecituras. Gabriela Rangel, vulgo Papai Noel, morador de uma casa abandonada no entorno, um amigo e Adriana Rangel conversam na véspera do que seria o nascimento do Psicanálise na Ruai - Foto de Junior Silgueiro.
Figura 8. 'Negro Drama', dia 08/11/2015, desenha no papelão no primeiro dia da Psicanálise na Rua. Foto de Junior Silgueiro.
Um território não é nada além daquilo que podemos reconhecer como um campo de significantes. Há coisas de que podemos partir (...) Trata-se das histórias de território (...)
Se o seu significante braço direito entrar no território do vizinho para fazer uma colheita – são coisas que acontecem o tempo todo – o vizinho, naturalmente, pegará o seu significante braço direito e o jogará por cima do muro da separação. (...) Essa é a origem do significante-mestre: um braço direito, o cetro. (...) ao cabo de um certo número de golpes, certamente haverá, eu diria, uma média de significantes mais importante em alguns territórios do que outros. (...). (Lacan 2009, 16)
Como significante mestre que nomeia os habitantes do Beco a presença comum do “sobrevivente”. Quem são vocês? Somos sobreviventes de chacinas. Muitos de nossos irmãos morreram, nós escapamos por um triz.
Figura 9. A Psicanálise na Rua no território: um mapa. Autora: Gabriela Rangel
1º TEMPO: Na beira do Memorial inicia-se a escuta. Escuta no papelão, no chão. Um mais um: analista + redutor de danos. Trabalho com o que há e que se sustentava pela direção rigorosa que tinha a transferência como bússola, se sustenta no que sustentou sua possibilidade de surgir: o Laço Analítico. Território de violência constante, a polícia dá batidas diariamente e o povo no corre, corre! “Quem fica no Beco do Candeeiro é bandido ou noiado”. Sofremos batidas, sofremos vendo batidas policiais. Em frente ao Beco do Candeeiro, o Morro da Luz. Trata-se de um parque urbano. Arborizado, é uma ilha de frescor em meio a uma cidade que faz fama por ser calorenta. É ali que a polícia diz que se esconde e vende grandes quantidades de entorpecentes. Batidas semanais. Mas o Beco é local de uso. Porque será toda essa repressão ao usuário? Poucos podiam enganchar na beirada no “corre”. A vida nas ruas é correria. Mais uma lição: A rua é manicomial! Ali ninguém para, ninguém relaxa, ninguém está “a toa”. Essa ideia de rua como lugar de liberdade é da classe média, já que sabemos bem, “quem pensa, pensa melhor parado”. Para os expropriados “dois homens pensando junto pode ser muito arriscado”. Apressados pelo “time is Money” do poder, legal ou paralelo, quem fica parado é poste. “Sem tempo, irmão” os (im) pacientes passam e a escuta dança. Como mudar o ritmo?
Figura 10. Dia um. Escuta no papelão. A paciente se surpreende com uma limusine que passa em festa. "Já imaginou a gente lá?!". Foto Junior Silgueiro
Figura 11. Batida policial no Beco do Candeeiro. Na fotografia observam-se oito pessoas com roupas maltrapilhas entre elas quatro mulheres. Duas delas estão descalças e com o dorso seminu (de top), encostadas no muro que se estende ao pintado por nós. Afastados deles estão seis policiais de farda de mangas compridas, calça e coturno com colete À prova de balas e armas. Há uma moto. Um outro policial está próximo das meninas seminuas. Outros quatro observam de modo a cercar a possibilidade de fuga.
2º TEMPO: Um remanso: a Pastoral de Rua que nos acolhe. O espanto diante da violência e do sufoco do povo da rua: a busca por atender a demanda: alimento e roupas!!! A pastoral de rua forneceria almoços durante longos vinte anos para a população de rua. Por conta dessa vocação tinha um espaço ao lado da igrejinha que fica de costas para a Praça Nosso Senhor dos Passos - em que fica fixado o Memorial – e tinha um portão voltado para o Beco do Candeeiro que se abria nas horas da refeição. Esse espaço nos foi cedido. Começa-se um trabalho de aproximação. Reconhece-se a agressividade do povo da rua. Brigas por roupas melhores, mais alimento ou lugar no banho. O narcisismo e a agressividade curto-circuitam o manejo. Cai a ilusão do expropriado gentil e solidário com os seus. Há solidariedade, mas há agressividade e passagem ao ato na mesma medida. Oferecíamos comida, roupa e banho, mas que ideia! Buscar atender a demanda é lidar com os objetos do imaginário, campo de agressividade e rivalidade, nós é que tomamos um banho! Que seja então um batismo! Às vezes acertamos. No dia que o zepelin levantou seus canhões contra a cidade, que o Governo do Estado decidiu “devolver o Centro para os cuiabanos”, nós estávamos lá. Essa acolhida foi no Real. Às 4 horas da manhã ouve-se uma bomba nos arredores do Morro da Luz. O susto foi direcionado aos moradores do “Casarão”, edifício abandonado onde moravam de trinta a sessenta pessoas em situação de rua. Segundo o Governo do Estado de Mato Grosso aquele lugar precisava ser demolido para a construção da estação de integração do novo modal de circulação pela cidade, veículo leve sobre trilhos, o VLT.
Figura 12. A foto mostra a estrutura interna da cozinha da pastoral de rua com montes de roupas e três mulheres. Tratam-se de voluntárias da pastoral que somam esforços conosco. Durante vinte anos a pastoral de rua ofereceu almoço para os habitantes do Beco. Foto de Naiara Brum
Prometido para a Copa do Mundo de 2014 o modal prometia revolucionar o trânsito e a cara da cidade e seu coração funcionaria justamente ali: no local ocupado por essas pessoas indesejáveis, meio sujas e desdentadas que teriam que se mudar. Era junho de 2017 quando fomos fazer um sopão para esses que teriam que acordar com bombas e gritos.
Figura 13. Dia da demolição do "Casarão". Na foto a parte principal do complexo que reunia ainda um edifício menor chamado de "suíte 14" e uma casa histórica na parte baixa, a "Casa Singer". Foto: Emanoele Daiane
Figura 14. "Casa Singer", ruína de casarão histórico que abriga pessoas em situação de rua em diferentes momentos. Foto: Emanoele Daiane
Figura 15. Demolição do Casarão. Na foto a “Suíte 14”. Uma moradora que está sendo expulsa se debruça pela janela coberta de improviso por um cobertor seca-poço. Na lateral policiais e alguns curiosos acompanham a remoção das pessoas. Abaixo da janela emque se escora a moça está escrito “Inton?”, que é um modo regional típico de se perguntar “e então?” Foto: Emanoele Daiane
Figura 16. Moradores do "Casarão" recolhem suas coisas. Para ir para onde? Foto Emanoele Daiane
Mais de um ano depois é que o “Casarão” é efetivamente demolido. O projeto de VLT rasgou a cidade inteira e foi recentemente extinto (2022). Nunca chegou a se concretizar. Os antigos moradores do “Casarão” vão para o Morro da Luz e arredores. “Eles expulsam a gente do Casarão, a gente vai para os casarinhos” – diz o professor, habitante dos arredores do Beco do Candeeiro.
O ano era 2018. Seria ano de eleição e as instituições públicas estavam loucas para colocar para dormir furiosamente os desgostos com a gestão. Recente era a “demolição” do Casarão. Pegaram o recurso do PAC-Cidades Históricas e resolveram “requalificar”, “revitalizar” a Praça Nosso Senhor dos Passos retirando aquela “peste” de Memorial indigesto. O pessoal da rua protestou. Disse para o tratorista que ele se daria mal se fizesse aquilo. Deu certo a mandinga! – Mandinga que sempre nos salvou do bem da gente ruim! Ele vacila. No vacilo consegue-se frear o as forças verticais. Somos procurados pela Defensoria Pública para a formação do Fórum de População de Rua. Claro! Porque não? Se “o primeiro direito humano é à fala”.
Figura 18. O PAC-Cidades Históricas tenta apagar a história que não interessa. Foto Junior Silgueiro.
Figura 17. Foto da época da copa do mundo 2014. Moradora de rua segura as pontas de uma camiseta com os dizeres "povo de rua 1º eliminado da Copa". Autor desconhecido
; FiguraFoto Fórum Pop Rua. O Fórum articula entidades que estão na luta pelos direitos humanos, instituições públicas e sociedade civil organizada junto à pessoas em situação de rua que são chamadas a opinar livremente.
O Psicanálise na Rua vira projeto de extensão: entrada dos alunos no campo. Entrada do Beco na Universidade: Funk da Danila. Da universidade para o Beco e do Beco para a Universidade. Descobre-se o funk como força pulsional da periferia. A experiência modifica radicalmente a relação com o ritmo sonoro e o projeto passa a incorporar a linguagem da rua para chegar a ela.
Figura 20. Danila, uma habitante dos arredores do Beco do Candeeiro abre um espacate no saguão do Instituto de Linguagens da UFMT em oficina de funk. Foto: alunos da UFMT.
Na incorporação do território: a cultura negra!
Foto de alunos do projeto de extensão Psicanálise na Rua da UFMT
Ato 1: Rap no Beco - Pinta-se o muro cinza que dá entrada para o Beco com a marca do Psicanálise na Rua.
Figura 21. À esquerda o muro com intervenção provocada pela Psicanálise na Rua. Beco do Candeeiro.
Figura 22. Rap no Beco. O rapper "Jesus da Quebrada" passa seu recado na festa dos direitos humanos em que o muro foi pintado. Foto de Junior Silgueiro
Figura 23. Rap do Beco. Jean pinta o muro dos direitos humanos. Foto de Junior Silgueiro
Figura 24. Rap do Beco. Luciene Carvalho, poetisa de referência de Cuiabá, membro da Academia mato grossense de letras, ex paciente psiquiátrica, participa de nosso sarau no dia dos direitos humanos em que pintamos o muro. Dia em que convidamos artistas a cantarem e pintarem o muro da entrada do Beco do Candeeiro. Foto de Junior Silgueiro
Ato 2: Samba da Benção. Que tal um samba? Uma capoeira? Um choro que é reza? Afinal nesse Beco já passaram mestres e choros. Nos anos 2000 muitos foram os grupos que de alguma forma usaram do termo Beco: capoeira do Beco, Beco do Samba; como forma de unir-se a esse território.
Figura 25. Samba da Benção. Marinete mostra a língua para a fotógrafa. Foto de Emanoele Daiane.
Figura 26. Samba da Benção. A habitante do Beco do Candeeiro, Danila, dança. Foto Emanoele Daiane.
Figura 27. Samba da Benção. Cristóvão bate palmas num canto que é reza. É um homem negro, alto e está de chapéu. Foto de Emanoele Daiane.
Com o tempo vão se formando lideranças da população em situação de rua e as mesmas passam a fazer formação junto ao Movimento Nacional de Pessoas em Situação de Rua (MNPSR). “NADA POR NÓS SEM NÓS!” Fazem-se seminários, formação, rede! A pastoral nos abriga por dois anos. Deus dos pobres X Deus dos ricos. O clima reacionário toma conta do país. A Pastoral de Rua fecha as portas para a população de rua. Aos poucos, as portas da pastoral vão se fechando para o Psicanálise na Rua também.
Figura 28. Seminário Pop Rua de Cuiabá. Na foto Defensora Rosana provocadora do Fórum Pop Rua, uma colega de trabalho e liderança do MNPSR. Foto de Rosana Monteiro, defensora pública do Estado de MT.
Figura 29. Foto Movimento Nacional de População de Rua
3º TEMPO: Íntimos do território afogando na busca de responder à demanda. Como sustentar-se diante de tanto encharcamento? A resposta vem como desejo de fundação. Fundar-se enquanto equipe clínico-territorial de tratamento psicossocial. Em junho de 2018 aluga-se um espaço. Inicia-se o tempo do consultório. Busca-se ser equipe com inspiração da luta antimanicomial.
Figura 30. Fachada do consultório do Psicanálise na Rua mostra a placa e o beiral de tlhas de barro com o céu azul atrás. Foto de Junior Silgueiro
Atos: Em junho fez-se uma homenagem aos meninos mortos com os “Vinte anos da Chacina do Beco do Candeeiro”. Houve presença das mães através do esforço do jornalista Johnny Marcus de escreve um livro reportagem policial com a leitura e interpretação do processo impetrado pelo Ministério Público Estadual de Mato Grosso. Conhecemos as mães. “Não gosto nem de falar muito, porque é só sofrimento. Você sabe que uma mãe perder um filho, não é fácil né?", se emociona Maria dos Santos, 69 anos, mãe de uma das vítimas da chacina do Beco do Candeeiro (Alves, 2018).
Figura 31. 20 anos da Chacina do Beco do Candeeiro. O memorial se enche de flores! Foto de Junior Silgueiro
Figura 32. 20 anos da Chacina do Beco do Candeeiro. Maria dos Santos, mãe de Baby, coloca flores no memorial da chacina. Foto Junior Silgueiro
Em outubro de 2018 falece Danila que é levada ao IML com indigente. Corre-se para encontrar os parentes, corre-se para enterrá-la com nome. O último ato na pastoral de rua é seu velório.
Figura 33. No velório da bailarina as amigas dançam funk. Ela é coberta com a bandeira do movimento. A mãe e a irmã vêm chorar e enterrar a bailarina. Danila é enterrada com seu nome. https://youtu.be/0QMUxWczNcY
Assim como os garotos mortos em 1998 no Beco do Candeeiro, conhecemos a mãe de Danila. A família. Os amores. Cai mais um véu: morador de rua tem família e é amado. Tem casa e quer casar. “Morar na rua não existe. A gente mora nos casarões abandonados, na casa dos pais. A rua é passagem, não tem teto. Ora, como é que se pode morar na rua?!”
Figura 34. Casa de Danila onde residiu seus últimos dias. Na doto vê-se a inscrição do nome dela à beira da porta, uma maneira de marcar seu lugar. Fotos Gabriela Rangel
Fotos Gabriela Rangel
Danila é enterrada com nome e sobrenome. Danila Benites.
Ato: Bendito Almoço Já estava programado. Já víamos ela dançando e fotografias lindas de novo. Em novembro de 2018 tínhamos sede de fundação e sustentação e apostamos em dar corpo jurídico e financeiro para isso. Nas melhores heranças que a pastoral nos deu: a ligação com a igreja católica e sua maneira de mobilizar a comunidade em torno de uma causa coletiva. Para arrecadar fundos, realizamos um almoço aos moldes populares que sempre fez a comunidade da igreja de São Benedito. O Bendito Almoço.
Figura 35. Bendito Almoço. Faixa chama para o evento. Fotos Junior Silgueiro Figura 36. Bendito Almoço. A foto mostra uma reunião de pessoas que contribuíram para que o evento fosse um sucesso ao lado da Igreja. Ao fundo se vê a cidade de Cuiabá-MT.
Mas como ter o território na equipe como deve ser? De modo êxtimo! Função do supervisor! No mesmo golpe de constituir um supervisor, se constitui a equipe: O homem chegou gritando na porta do consultório - Tenho fome! Quero falar com a fulana! Ela me deu dinheiro pra eu comer. - Ela não está. - Mas eu quero!!! Quero comida, quero alimento! Quero arroz e feijão! [...] - Mas eu quero arroz e feijão! Você vai me dar dinheiro para eu comprar arroz e feijão? Me dá senão vou quebrar esse consultório de vocês! - Bom, desse jeito nós ficamos diante da sua insistência num impasse. Impasse? - Um enigma. Silêncio. Suspiro... - Tenho saudade do arroz e feijão que minha mulher fazia pra mim! Os melhores anos da minha vida... Arroz assim assado, feijão frito cozido... Faz tempo que não como, faz tempo que não vejo...
A fala flui mata a fome do sujeito de dizer de sua falta-a-ser. Fome pra além da comida. Fazer virar alimentos e roupas em significantes. Taí o que se costura: a equipe. A transferência é a mola que sustenta o funcionamento de uma equipe. O poder da direção do trabalho. A coluna vertebral sustentada pela transferência ao supervisor desmonta num tropeço determinou também nossa queda. Aprende-se mais uma: a transferência é o arroz e feijão do trabalho psicanalítico. O consultório fecha em março de 2021. TEMPO DE COMPREENDER O RETORNO DO RECALCADO: desde sempre negra O primeiro paciente do Psicanálise na Rua apresenta-se para nós como “Drama”, “Negro Drama”. Gozado essa coisa que sempre foi. Dizem que Exú mata um pássaro ontem com a flecha que atira hoje. É que inscrever tem dessas, o inconsciente trabalha ressignificando o passado. Escrevivescências, diz Conceição Evaristo. Mas quão passado? Ancestral. Somos antes de sermos. É o ancestral mais antigo que tem a chave entre os mundos. Ele que abre as portas para vermos o que não vimos. Desenhei no papel a menina na rua, desenho recorrente na infância. Levantei para mostrar. Ela chorou. Lágrima de tinta no olho da boneca. Porque choras? Sou criança abandonada. Mas que abandono é esse que me atravessa e vaza pelo papelão que meu corpo nunca sofreu? Pátria que me pariu! O Brasil segrega os negros desde a colônia. Rua: lugar dos pretos. Tigres andando com tonéis de merda sob as costas. Escravos de ganho subindo e descendo com águas e liteiras que carregam moças brancas. Moça de família NÃO ANDA NA RUA! Menina amarra esse cabelo! Tá parecendo menina de rua. Pátria que me pariu! A rua é preta como psicanálise na rua. Quem foi a pátria que me pariu? Negro drama, entre o sucesso e a lama Dinheiro, problemas, invejas, luxo, fama Negro drama, cabelo crespo e a pele escura A ferida, a chaga, à procura da cura [...] Desde o início por ouro e prata Olha quem morre, então veja você quem mata Recebe o mérito, a farda que pratica o mal Me ver pobre, preso ou morto já é cultural [...] Daria um filme Uma negra e uma criança nos braços Solitária na floresta de concreto e aço Veja, olha outra vez o rosto na multidão A multidão é um monstro, sem rosto e coração [...] Eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama Eu sou o fruto do negro drama Racionais MC’s
Quem foi a pátria que me pariu?
Figura 37. A mão de Maria dos Santos, mãe de um dos meninos chacinados, segura a cabeça da escultura num close no ato de vinte anos da chacina do Beco do Candeeiro. Foto de Rogério Fratarcangelli
Lembrar para não repetir. Freud lembra que os monumentos de uma cidade são como sintomas que trazem a mensagem de uma dimensão traumática a interrogar o que não foi elaborado, fazendo retornar o recalcado. A segregação e o extermínio é da negritude. Na Cuiabá Colonial duas capelas foram imediata e simultaneamente levantadas em 1722: a capela de Nosso Senhor do Bom Jesus de Cuiabá e a capela de São Benedito. Essa polaridade do ordenamento espacial reflete a polaridade do ordenamento divino dos desbravadores: um ordenamento racial. O fenômeno da construção de duas capelas destinadas uma ao Jesus branco e outra a um santo negro refletia “[...] a bipolarização em um nível religioso pleno, morfologicamente consagrado no desenho dos espaços urbanos setecentistas mineiros: os brancos e os negros”. O Beco do Candeeiro possui uma interessante proximidade com esse ordenamento: fica na mesma região da igreja dos homens de cor: a igreja de São Benedito. Um memorial que, como um sintoma fala do recalcado – o racismo. Desde sempre ali, desde sempre recalcado. Freud faz uma associação entre os monumentos em uma cidade e o sintoma no neurótico. Os sintomas, assim como os monumentos, são lembranças de traumas esquecidos, símbolos. Como uma memória que faz eco ao
ponto traumático da morte violenta de menores, o memorial dá pertencimento às dores impondo um trabalho de narrativa desse inominável. Através das narrativas a memória vai tecendo os fios que recobrem o traumático, possibilitando inscrevê-lo simbolicamente. A narrativa, portanto, é trabalho e trabalho de elaboração. Um grupo pode trabalhar os significados de uma história. Ao conta-la e reconta-la, transforma-a, molda-a, cria esquemas coerentes: uma memória coletiva. Submetidas constantemente a reformulações as memórias pessoais dos companheiros de Nado, Baby e Indinho ao encontrar uma materialidade que interpreta sua narrativa – o Memorial da Chacina – passam a referirem-se e situarem-se em torno da autodenominação de “sobreviventes”. Ser um sobrevivente é possuir vínculos de pertencimento dessa Rua e também com um território que conecta a cidade de uma maneira única e tem como força centrípeta a pobreza e a negritude. Território Negro, como não ouvimos? Em junho de 2018 fomos consagrados com o retorno da Lavagem das Escadarias do Rosário e São Benedito. Ato de fé, ato de consagração desse território enquanto preto! São Benedito, rogai por nós!
Figura 38. Lavagem das escadarias do Rosário e São Benedito. Na foto cultuadores do santo aspergem água e lavam seus "pés". Foto de Junior Silgueiro.
Figura 39. Lavagem das escadarias do Rosário e São Benedito 2018. O átrio da igreja encontra-se repleto de devotos. Duas pombas brancas voam representando paz. Foto Junior Silgueiro
Figura 40. Lavagem da Escadaria do Rosário e São Benedito 2018. Uma mão negra verte a água de um jarro com rosas. Foto Junior Silgueiro.
Figura 41. Lavagem das escadarias do Rosário e São Benedito. Devotos aspergem água que espirra formando uma luz branca na escada. Uma mulher porta uma vassoura ritual. A bandeira escrito paz está hasteada ao fundo. Mulheres vertem a água de jarros com flores na escadaria. Foto Junior Silgueiro.
A população de rua e sua circulação forma uma região moral na cidade na qual há sobreposições entre esta e as territorialidades negras históricas. Segregação por barreiras invisíveis que aponta para uma ocupação do espaço que divide a cidade em pretos e brancos desde a época colonial. Os interesses comuns criam “parênteses simbólicos” entre as pessoas que são midiatizados, projetados, divulgados pelos grupos que têm o poder de fazê-lo. Na cidade se criam “regiões morais” (AGIER, 2011). Em uma cartografia imaginária da cidade há um “Baixo Centro” onde, para além da ideia topográfica, o significante “baixo” torna-se metáfora de seus frequentadores.
PANDEMIA Com os bares e restaurantes fechados, a população de rua passou fome viveu seu maior isolamento. O Fórum entrou como provocador para a abertura de um lugar de abrigo e a Defensoria Pública consegue que a Prefeitura alugue um hotel para servir de albergue em abril de 2020. No hotel albergue seguimos escutando em rodas de conversa. Em outubro de 2020 a Prefeitura buscou fechar o albergue e as pessoas em situação de rua se mobilizaram através das rodas. O grupo local buscou ajuda da Defensoria, do Fórum e do Movimento Nacional de Pessoas em Situação de Rua (MNPSR). Uma carta foi escrita. A Defensoria Pública encaminhou ao juiz. O juiz deferiu: mantenha-se aberto! O MNPSR-MT começa a formar suas lideranças. Viagens, documentos, articulações em rede. O MNPSR-MT se constitui! Eles fizeram uma manifestação quando a pandemia deu uma trégua. Abrem dois Comitês Intersetoriais de Acompanhamento da Política para Pessoas em Situação de Rua, um estadual outro municipal. O municipal nunca saiu do papel, mas o estadual tem funcionado regularmente.
Figura 42. CIAMP-Rua Estadual. Uma conquista do MNPSR em Cuiabá-MT. Foto Gabriela Rangel.
Fizeram horta
Figura 43. Horta na casa Singer durante a pandemia. Foto Gabriela Rangel.
Para bem ou para o mal reformou-se o Beco do Candeeiro...
Figura 44. Beco do Candeeiro reformado pela Prefeitura Municpal de Cuiabá. Foto Gabriela Rangel.
4º TEMPO: Ocupando um casarão vizinho ao Beco do Candeeiro o MISC, Museu da Imagem e do Som de Cuiabá nunca se negou a fazer parte de nosso território. Fortaleceu as rodas de samba e chamava-nos atenção para a Lavagem. Talvez por isso, sem nos encontrar no lugar de onde saímos, os pacientes foram ao MISC: cadê o Psicanálise na Rua? O MISC era mesmo nosso herdeiro natural. Havia ficado com duas ou três coisinhas que tínhamos nas paredes. Porque não? Fazer do Museu um remanso, que tal? Ancoramos no MISC, conosco, a loucura! A assistente cultural: Apareceu uma mulher aqui, meia idade, muito magra e seminua. Ela não falava coisa com coisa, arrancava a roupa. Dizia para os meninos: quer? Pegando nas partes íntimas! O que eu faço? Saí correndo!!! Tenho medo dela! Ocupar a instituição pública exigiu atenção nossa ao cuidado com os funcionários. Como manejar as situações? - Ela veio me pedir dinheiro! - O que você disse? - Ela sentou do meu lado. Disse que conhecia o Obama e me pediu o celular para falar com ele. Ela insistiu e insistiu. Quando viu que não ia conseguir me pediu dinheiro... Eu disse para ela pedir ao Obama e ela saiu. Reconhecimento de um saber não-saber. Desocupar-se de si: o medo se dissolve. O MISC começa a apontar caminhos para a formação de uma nova equipe de cuidado com o povo da rua. O território! O território... Inaugura-se o Centro Pop, reivindicação histórica da população de rua em Cuiabá. São as novas conquistas do Movimento de Pessoas em Situação de Rua - MT. Foi na luta! O Centro Pop foi uma reivindicação do nosso I Colóquio. Recentemente teve perdas... Dia 26/06/2022 matam mais um à queima roupa na calçada. Robson Nadine vivia em situação de rua a mais de trinta anos. A situação de rua o levou a perder um pé. Ele andava de muletas e pedia dinheiro no semáforo. Silencioso, nunca se aproximou da psicanálise para falar, mas montando esse trabalho vimos que ele está em uma das primeiras fotos mostradas. Estava no entorno desde sempre. Mas a população de rua aprendera agora a não morrer como indigente, eles protestam e pautam: ROBSON NADINE, PRESENTE!
Figura 45. ROBSON NADINE 28/06/2022. Foto: MNPSR.
PRESENTE!
Ato
do
dia
Uma comunidade que pode começar a chorar os mortos é uma comunidade que começa a ter história. Passamos a fazer escuta ali. No início on demand. Atualmente retornamos aos plantões. Quinzenalmente fazemos uma sessão de cinema. Ser o que sempre fomos, lugar de escuta, de elaboração, de penduricalhos: memórias e narrativas.
Figura 46. Psicanálise na Rua oferece sessão de cinema. NA foto a bandeira do Movimento de População de Rua e o banner que ficava na fachada do nosso consultório. Um paciente segura o banner para ser fotografado. Foto Gabriela Rangel
Figura 47. O Museu como espaço de escuta. Dia de capoeira e sessão de cinema. Foto Gabriela Rangel.
A aposta é de que Psicanálise é para rua assim como para o consultório. O inconsciente é popular, como o formula Luciano Elia, e público, pois é transindividual. Os sujeitos estão na casa assim como estão na rua! Seguimos no MISC abrindo os ouvidos no, do e para o território. Nesse terra dura o museu e seu coordenador, Cristóvão Luiz
Figura 48. Fotógrafos brincam com as meninas na tarde dos vinte anos da Chacina. Fotos de Emanoele Daiane, Bruna Obadowski e Junior Silgueiro.
Figura 49. Casas no Centro próximo ao Beco do Candeeiro colocam vidros no peitoril das janelas para afastarem pessoas em situação de rua. Foto Gabriela Rangel
Figura 50. Foto mostra o recolhimento de lixo que pessoas em situação de rua fizeram em dos eventos da Psicanálise na Rua. Foto de Emanoele Daiane
Figura 51. Maria dos Santos segura fotografia de Baby em primeira reportagem com as mães. Autor desconhecido. Figura 52. Albina mostra a carteira de trabalho de Edgar, Indinho, filho assassinado no centro da cidade na chacina do Beco do Candeeiro, em reportagem da época. Autor desconhecido.
Figura 68. Colóquio Psicanálise na Rua 2017. Foram três colóquios. Foto Junior Silgueiro.
LINKS IMPORTANTES: Funk da Danila na universidade: https://youtu.be/rK_Sqy6icNI Funk da Danila no Beco: https://youtu.be/mAyHihbhPec Robson presente: https://youtu.be/UfpM1cNsCrY Primeiro vídeo da Psicanálise na Rua https://youtu.be/P-psXJufFQ0
OBRAS CITADAS AGIER, M. (2011). Um etnólogo nas cidades e Os SAberes Urbanos da Antropologia. Em M. AGIER, Antropologia da cidade: lugares, situações. Movimentos. (pp. 47-88). São Paulo: Terceiro Nome. Alves, J. (10 de 07 de 2018). "É uma dor que não passa, não tem remédio". Fonte: Hiper Notícias: (https://server.gblcdn.com/pool/r?c=a315b540-dd47-11ec-ab771deb963db2d2&pubid=bd3ba070-ebb6-11ec-8840-7bc6100a3139&wid=1cc44090f3b9-11ec-adefGil, G. (1984). Sou feliz por um triz [Gravado por G. Gil]. Brasil. MC's, R. (2002). Negro Drama [Gravado por Racionais MC's]. Brasil.
Título: Coleção Clínicas de Borda Autor: Psicanálise de Rua Medidas: 14,8x21 Número de páginas: 32 Assunto geral do livro: Psicanálise de rua Palavras chave: Psicanálise; Clínica pública; Política; Clínica de borda ISBN: 978-65-81097-77-6
COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS A Coleção de Zines das Clínicas de Borda Psicanalíticas Brasileiras, aberta a novos fascículos, nasce da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadas e inconformados com a resposta clínica de seu fazer e de sua formação face à realidade nacional brasileira, exposta à brutalidade e à violência estrutural. Trazem experiências múltiplas e plurais, sem necessariamente criarem um mínimo comum, nas quais experimentam o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, meios de formação. Nasceram da resistência dos movimentos sociais, em reação a genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, deslocamentos migratórios, nas periferias, praças, estações, ocupações, quilombos. Seu fazer é produto da rua e dos modos possíveis de cuidado a que o enlace transferencial na direção do tratamento psicanalítico dá visibilidade e nome a corpos apagados no cotidiano. Instituem elementos necessários na teoria e na prática, revisitando as clínicas públicas e populares, datadas dos tempos de fundação do campo psicanalítico com Sigmund Freud. Reviradas pela experiência do Sul Global, em elipse, olham o avesso do espelho e atravessam suas fronteiras. Marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos modos de partilha e de presença. Saem definitivamente do modelo burguês do consultório individual. Recebem os analisantes, tanto online, quanto em cadeiras expostas ao sol, a fim de escutarem seu sofrimento. Colocam o pagamento em xeque, não mais no cheque. Trazem a marca de sua região, de sua língua, das ricas expressões dos dialetos brasileiros. Distribuem-se em cada canto do país e questionam o modo de circulação do capital e de resposta do inconsciente às violações cotidianas. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica psicanalítica e da lógica excludente da formação do psicanalista, enfim, sua presença na polis. Elas não estão todas reunidas aqui. A coleção, aberta, aguarda novas presenças nessa escrita histórica. A psicanálise mudou. A gente queria que você soubesse.