Tratado do todo mundo

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TRATADODO TODO-MUNDO

TratadodoTodo-Mundo TraitéduTout-Monde

ÉdouardGlissant

©ÉdouardGlissant,1997 ©n-1edições,2024 isbn 978-65-6119-017-6

Emboraadoteamaioriadosusoseditoriaisdoâmbitobrasileiro,a n-1ediçõesnãoseguenecessariamenteasconvençõesdasinstituições normativas,poisconsideraaediçãoumtrabalhodecriaçãoquedeve interagircomapluralidadedelinguagenseaespecificidadedecada obrapublicada.

coordenaçãoeditorial PeterPálPelbarteRicardoMunizFernandes direçãodearte RicardoMunizFernandes tradução© SebastiãoNascimento gestãoeditorial GabrieldeGodoy produçãoeditorial AndressaCerqueira assistênciaeditorial InêsMendonça preparação FlavioTaam revisão GrazielaMarcolin ediçãoemLATEX PauloHenriquePompermaier capa KamilaVasques

Areproduçãoparcialdestelivrosemfinslucrativos,parauso privadooucoletivo,emqualquermeioimpressooueletrônico,está autorizada,desdequecitadaafonte.Sefornecessáriaareprodução naíntegra,solicita-seentraremcontatocomoseditores.

TratadodoTodo-Mundo éoquartovolumedasérie Poétique,precedido por Soleildelaconscience, L’Intentionpoétique e Poétiquedelarelation, esucedidopor LaCohéeduLamentin

1ªedição|Junho,2024 n-1edicoes.org

TratadodoTodo-Mundo

ÉdouardGlissant

tradução SebastiãoNascimento

ParaOlivierGlissant. Paraasondasgrandesepequenas. Paraasmúsicasgrandesepequenas.

OsJardinsnasAreias

(Temaparaodiálogoessencialcomumpoeta)

OsJardins Apartesecretadopoema,oqueocontadorguarda parasidesolidãoegraça.Olugarqueeleofereceàatenção divinatóriad’Aquelaqueaugura,àdissertaçãodoamigoedo irmão,emfrágilpartilha.

AsAreias Aébriadisputadosjugosdomundo,emquecadaum delescantaeencanta.Sãotambémosofrerdetodosossofreres. Asareiasnãosãoinférteis.Repousamosilêncioemtodoesse ruídoaoredor.

OGRITODOMUNDO

Dizem-nos,ehádeserverdade,quetudoandadesregrado,desnorteado,amortecido,enlouquecido,osangueeovento.Éoque vemosevivemos.Maséomundointeiroquefalacomvocê,por meiodetantasvozesamordaçadas.

Paraondequerquesevolte,vocêencontraadesolação.E aindaassimvocêsevolta.

Semdúvida,pois,aonosesforçarmosporcompartilhá-lo,trazemosaoencontrodetodooconhecimentoaquiloquehátempos cadaumdenósmeditouoususcitou,e,deminhaparte,aqueles poucospressentimentosquemelevaramaescreverequeeu,na escrita,incessantementetranscreviou,porincapacidade,traí.

Opensamentodamestiçagem,dovaloroscilantenãoapenas dasmestiçagensculturaismas,antesaté,dasculturasdamestiçagem,quepossivelmentenospreservamdoslimitesoudas intolerânciasquenosaguardamequenosabrirãonovosespaços derelacionamento.

Oimpactorecíprocodastécnicasoudasmentalidadesdooraledo escrito easinspiraçõesqueessastécnicasinsuflaramemnossas tradiçõesdeescritaeemnossastransmissõesdevoz,degestose degritos.

OlentoesfacelamentodosabsolutosdaHistória,àmedidaque ashistóriasdospovos,desarmados,dominados,porvezesem viasdeextinçãopuraesimples,masque,contudo,irromperam emnossoteatrocomum,porfimseencontraramecontribuíram paramudaraprópriarepresentaçãoquefazíamosdaHistóriae deseusistema.

Aobracadavezmaisevidentedaquiloquechameidecrioulização, sublime,imprevisível,tãodistantedastediosassínteses,járefutadasporVictorSegalen,1 àsquaisumpensamentomoralizante nosconvidaria.

AspoéticasdifratadasdesteCaos-Mundoquecompartilhamos, assimcomoeparaalémdetantosconflitoseobsessõesdemorte, edecujasconstantesseránecessárioquenosacerquemos.

Asinfoniae,igualmentevivazes,asdisfoniasquegeraemnóso multilinguismo,estanovapaixãodasnossasvozesedosnossos ritmosmaissecretos.

Sãoessesalgunsdosecosquefizeramcomqueaceitássemos agoraescutarjuntosogritodomundo,sabendotambémque,ao escutá-lo,percebemosque, doravante, todosoouvem.

Nãoésemprequevemoseécadavezmaisfrequentequenão nosesforcemosparaveramisériadomundo,adasflorestasde RuandaeadasruasdeNovaYork,adasfábricasclandestinas daÁsia,ondeascriançasnãocrescem,eadassilenciosasaltitudesandinas,eadetodososlocaisdehumilhação,degradaçãoe prostituição,eadetantosoutrosquefulguramdiantedenossos olhosarregalados,masnãopodemosdeixardeadmitirqueisso façaumruído,umrumorinfatigávelquemisturamossemsaber comamusiquinhamecânicaefastidiosadosnossosprogressose dosnossoslegados.

1.VictorSegalen(1878-1919),médico,escritoreantropólogofrancês,célebreporseu estudosobreoexotismoeaexperiênciaestéticadodiverso. [n.t.]

Cadaumtemsuasrazõesparabuscaressaescuta,eessas maneirasdistintasservemparamudaresseruídodomundoque todosaomesmotempoouvimosaqui-lá [ici-là] . 2

Eessasrazões,queextraímosnumaárduapaixãodeescrever edecriar,deviveredelutar,tornam-sehojeparanóslugares-comunsqueaprendemosacompartilhar;maslugares-comuns preciosos:contraosdesregramentosdasmáquinasidentitárias dasquaistãofrequentementesomosfeitospresa,como,por exemplo,dodireitodesangue,dapurezadaraça,daintegralidade, senãodaintegridade,dodogma.

Nossoslugares-comuns,sehojenãotêmnenhumaeficácia,absolutamentenenhumaeficáciacontraasopressõesconcretasque estarrecemomundo,mantêm-seaindaassimcapazesdemodificar oimagináriodashumanidades:épeloimaginárioque,nofundo, sobrepujaremosessasderreliçõesquenosatingem,sendoqueele jánosajudaacombatê-las,redirecionandonossassensibilidades.

Estaseráminhaprimeiraproposição:aliondeossistemas easideologiasfalharam,esemrenunciardemodonenhumao repúdioouaocombatequevocêdevetravaremseulocalespecífico,projetemosaolongeoimaginário,pormeiodeumaruptura infinitaedeumarepetiçãoinfindáveldostemasdamestiçagem, domultilinguismo,dacrioulização.

2.Anoçãode ici-là écaraaopensamentodeGlissant,queapropõepararepresentar asimultaneidadeouacoexistênciadediferenteslugares,contextos,temporalidades erealidades,invocandoamultiplicidadedeperspectivas,identidadeseexperiências queatodosconstitui,bemcomoaomundoquetodosintegram,nacondiçãodeseres interconectadoseinter-relacionadosemmeioàpluralidadedehistórias,geografiase culturas.Representaumarupturacomaleiturabináriaedicotômicadotempoedo espaço,invocadanaexpressão“bi”arroladaanteriormente,emfavordaabordagem aberta,inclusivaeplural.Aexpressãoestápresentenovolumeimediatamenteanteriora este TratadodoTodo-Mundo (quecorrespondeao Poétique iv)natetralogiadasPoéticas, em Poétiquedelarelation–Poétique iii (Paris:Gallimard,1990,p.204).Paraumadiscussão sobreadifusãodessaterminologianopensamentocaribenhofrancófono,verMary Gallagher,“Between‘here’and‘there’,orthe‘hyphenofunfinishedthings’”,in____. (org.), Ici-là:PlaceandDisplacementinCaribbeanWritinginFrench.Amsterdam:Rodopi, 2003,p.xiii-xxix. [n.t.]

a

Aquelesqueseencontram aqui vêmsempredeum“lá”,davastidãodomundo,eeisqueestãodecididosatrazeraesteaquio frágilsaberquearrastaramconsigo.Umsaberfrágilnãoéciência imperiosa.Intuímosqueestamosaperseguirummerorastro.

Eisaquiminhasegundaproposição:

Queopensamento dorastro secoloque,poroposiçãoaopensamentosistêmico,comoumaerrânciaqueorienta.Sabemosque orastroéoquenoscolocaatodos,deondequerquevenhamos, emRelação.

Ouorastrofoivividoporalguns,lá,tãolongetãoperto,aqui eali,sobreafaceocultadaTerra,comoumdoslugaresdasobrevivência.Porexemplo,paraosdescendentesdosafricanos escravizadosedeportadosparaoquelogosepassouachamarde NovoMundo,elefoinomaisdasvezesoúnicorecursopossível.

(Todaumaparceladoreal,subtraídadeumpassadoinsubmisso, redistribuídaemcadacantodavida,reditaemcadalivro:)

Orastroestáparaaestradacomoarevoltaparaainjunção,o júbiloparaogarrote.

EssesafricanostraficadosparaasAméricastrouxeramconsigo,de alémdasÁguasImensas,orastrodeseusdeuses,deseuscostumes, desuaslínguas.Confrontadoscomadesordemimplacáveldocolono, tiveramagenialidade,atreladaaossofrimentosquesuportaram,de fecundaressesrastros,criando–maisquesínteses–resultantescapazes desurpreender.

AslínguascrioulassãorastrosabertosnaságuasdoCaribeoudo OceanoÍndico.Ojazzéumrastrorecompostoquecorreuomundo. AssimcomotodasasmúsicasdesteCaribeedestasAméricas.

Quandoessesdeportadosseaquilombarampelasflorestas,abandonandoasfazendas,osrastrosqueseguiramnãoacarretavamoabandonodesimesmosnemodesespero,tampoucooorgulhoouasoberba. Enãopesaramsobreaterranovacomosefossemestigmasirreparáveis.

Quandopremimosemnós,querodizer,osantilhanos,essesrastros denossashistóriasofuscadas,nãoéparadesdelogoevitarummodelo dehumanidadeque,demaneira“todarastreada”,oporíamosaesses outrosmodelosquenossãoimpostos.

Orastronãofiguraumasendainacabadaouumtropeçosemvolta, nemumaaleiaencerradaemsimesma,quedemarcaumterritório.O rastropenetraaterra,quenuncamaisseráterritório.Orastroéa maneiraopacadeabarcarogalhoeovento:serasimesmo,inclinado aooutro.Éaareianagenuínadesordemdautopia.

Opensamentodorastropermiteiràsdistânciasdosestrangulamentossistêmicos.Porissoelerefutatodocúmulodepossessão.Elefendeo absolutodotempo.Eleseabreparaessestemposdifratadosqueashumanidadesdopresentemultiplicamentresi,porseusconflitosemaravilhas.

Eleéaerrânciaviolentadopensamentoquecompartilhamos.

(Degritoemfala,decontoempoema,do Soldaconsciência à Poéticadodiverso, 3 tambémparamimessamesmaoscilação.)

aSerenunciamosaospensamentossistêmicos,éporquesabemos queelesimpuseram,aquielá,umabsolutodoSer,quefoiaum sótempoprofundidade,magnificênciaelimitação.

aQuantascomunidadesameaçadasatualmentedispõemapenas daalternativaentre,deumlado,odilaceramentoessencial,a anarquiaidentitária,aguerradasnaçõesedosdogmas,e,do

3.Ambosdalavradoautor: Soleildelaconscience.Paris:Gallimard,1997; Introductionà unepoétiquedudivers.Paris:Gallimard,1996. [n.t.]

outro,uma paxromana impostapelaforça,umaneutralidadeoca quefazrepousarsobretodasascoisasumimpériotodo-poderoso, totalitárioebenevolente.

Estaremostodosreduzidosaessasimpossibilidades?Não teremosodireitonemosmeiosdeviverumaoutradimensãode humanidade?Mascomo?

Maisdoquenunca,massasdenegrossãoameaçadaseoprimidasporseremnegras,deárabesporseremárabes,dejudeuspor seremjudeus,demuçulmanosporseremmuçulmanos,deindígenasporseremindígenas,eassimpordianteaoinfinitodas diversidadesdomundo.Essaladainha,naverdade,nãotemfim.

Aideiadaidentidadecomoraizúnicadáamedidaemnome daqualessascomunidadesforamsubjugadasporoutraseem nomedaqualmuitasdelastravaramsuaslutasdelibertação.

Masemcontrapontoàraizúnica,quemataoqueestáàsua volta,nãoousaremosproporporextensãoaraizemrizoma,que estabeleceRelação?Elanãoédesenraizada,masnãousurpao seuentorno.

Arremessemossobreoimagináriodaidentidaderaiz-única esseimagináriodaidentidade-rizoma.

Aoserqueseimpõe,apresentemosoentequeseapõe.

Rejeitemosaomesmotempooretornodorefugonacionalista eaestérilpazuniversaldospoderosos.

Nummundoemquetantascomunidadesveemfatalmente impedidoseudireitoaqualqueridentidade,éparadoxalproporo imagináriodeumaidentidade-relação,deumaidentidade-rizoma. Creioqueaíseencontra,noentanto,umadaspaixõesdessascomunidadesoprimidas:suporessasuperação,trazê-laaoencontro deseussofrimentos.

Nãoéprecisobradarumavocaçãohumanistaparasercapaz decompreenderisso.

a

Chamode Caos-Mundo ochoqueatualdetantasculturasque seinflamam,sedesprezam,desapareceme,contudo,subsistem, seaplacamousetransformam,lentamenteoucomvelocidade fulminante:esseslampejos,essasexplosõescujoprincípioecuja economiamalcomeçamosaapreenderecujoímpetonãotemos comoprever.OTodo-Mundo,queétotalizante,não(nos)étotal.

Echamode PoéticadaRelação essapossibilidadedoimaginárioquenoslevaaconceberaglobalidadeinabarcáveldeumtal Caos-Mundo,aomesmotempoquenospermitevê-loemalgum detalhee,sobretudo,denelecavaronossolugar,insondáveleirreversível.Oimaginárionãoéosonho,tampoucoovaziodailusão.

Partimosdopressupostodequeumdostraçosdessapoética passapelolugar-comum.Quantaspessoassimultaneamente, sobauspícioscontráriosouconvergentes,pensamasmesmas coisas,sefazemasmesmasperguntas.Tudoestáemtudo,sem necessariamenteseconfundir.Vocêsupõeumaideia,elesaabocanhamvorazmente,elalhespertence.Elesaproclamam.Elesa reclamam.Éoquedesignaolugar-comum.Elecongreganossos imagináriosmelhorquequalquersistemadeideias,massobacondiçãodequevocêestejaalertaparareconhecê-lo.Eisaquialguns quesereferemàrelaçãoentreasculturasnaRelaçãomundial.

–Pelaprimeiravez,asculturashumanasemsuaquasetotalidadeestãointeiraesimultaneamenteemcontatoeemefervescênciadereaçãoumascomasoutras.

(Masaindaexistemespaçosfechadose tempos distintos.)

–Aglobalidade,outotalidade,dofenômenodelineiaacaracterística:astrocasentreasculturascarecemdenuance,asadoções easrejeiçõessãoselvagens.

(Aleidafruiçãoelementar,individualoucoletiva,reforçada oumantidapelosmecanismosdepoderedepersuasão,preside tantoaadoçãoquantoarejeição.)

–Tambémpelaprimeiravez,ospovostêmtotalconsciência datroca.Otelevisionamentodetodasascoisasexasperaesse tipoderelação.

(Sehárepercussõessubliminares,elaslogosãodetectadas.)

–Asinter-relaçõessereforçamouseabatemaumavelocidade dificilmenteconcebível.

(Cabedizerqueessavelocidadelançaluzparanóssobrea assustadoraimobilidadedetantastransformaçõesvertiginosas domundo.)

–Braçadasdeinfluências(asdominantes)ganhamcorpo,as queconduzemporcaminhosquelevamaumapadronização generalizada.

(Nãoacrediteestarsecontrapondoaissounicamentepor meiodoexasperodoseuisolamento.)

–ARelaçãonãoimplicanenhumatranscendência legitimadora. Seosespaçosdepodersãobeminvisíveis,oscentrosdedireito nãoseimpõememlugarnenhum.

(ARelaçãotampoucopossuimoral:elanãodecide.Damesma forma,nãolhecabeassinalaroqueseriaseu“conteúdo”.ARelação,sendototalizante,éintransitiva.)

–Asinter-relaçõesprocedemprincipalmenteporfraturase rupturas.Chegamtalvezatéaserdenaturezafractal:donde decorrequenossomundoéumcaos-mundo.

Suaeconomiageralesuaindefiniçãosãoasda crioulização. a Apartirdestesarquipélagosquehabito,erguidosemmeioatantos outros,eulhesproponhoquepensemosessacrioulização.

a Processoimparável,queenvolveamatériadequeéfeitoomundo, quecombinaealteraasculturasdashumanidadesdopresente. AquiloqueaRelaçãonosdáaimaginar,acrioulizaçãonosdáaviver.

Acrioulizaçãonãoculminanaperdadeidentidade,nadiluição doente.Elanãoimplicarenunciarasimesmo.Elasugerea distância(oir-se)emrelaçãoàsperturbadorascoagulaçõesdoser.

Acrioulizaçãonãoéaquiloqueperturbaumadeterminada culturaapartirdedentro,pormaisquesaibamosquemuitas culturasforameserãodominadas,assimiladas,levadasaolimite daanulação.Oqueelafaz,paraalémdessassituaçõesnomaisdas vezesdesastrosas,émanterrelaçãoentreduasoumais“zonas” culturais,convocadasaumpontodeencontro,domesmomodo comoumalínguacrioulaoperaapartirde“zonas”linguísticas diferenciadasparadaíextrairseuconteúdoinédito.

Rapidamentesepercebequeespaçosdecrioulizaçãosempre forammantidos(asmestiçagensculturais),masqueacrioulizaçãoquenosinteressahojeserefereàtotalidade-mundo,umavez consumadaessatotalidade(principalmentepelaaçãodasculturasocidentaisemexpansão,istoé,porobradascolonizações).A Relaçãoalimentaoimaginário,sempreaserimaginado,deuma crioulizaçãoquedaquiemdiantesegeneralizaenãoarrefece.

Acrioulizaçãoéimprevisível,elanãoteriacomosecoagular, sedeter,seinscrevernasessências,nosabsolutosidentitários. Aceitarqueoentemudeaoperdurarnãoéseaproximardeum absoluto.Oqueperduranatransformação,namudançaouna trocaétalvez,acimadetudo,apropensãoouaaudáciademudar.

Eulhesofereçootermocrioulizaçãoparasignificaressaimprevisibilidadederesultadosinauditosquenosimpedemdesermospersuadidosporumaessênciaoudenoscimentarmosemexcludentes.

Essacintilaçãodoenterespingaemminhalinguagem:nossa condiçãocomumaquiéomultilinguismo.

Escrevodaquiemdiantenapresençadetodasaslínguasdo mundo,napungentenostalgiadeseufuturoameaçado.Seique évãotentarconheceromaiornúmeropossíveldelas;omultilinguismonãoéquantitativo.Éumadasformasdoimaginário. Nalínguaquemeserveàexpressão,emesmoassimeunãome serviriaunicamentedela,jánãoescrevodemaneiramonolíngue.

“Preservar”aslínguas,contribuirparasalvá-lasdodesgaste edodesaparecimento,consistenesseimagináriodequetanto falamos.Nãoacreditemosqueumalínguapossaserdeumdia paraooutro,esemmaioressobressaltos,universal:elalogopereceria,sobomesmocódigoaqueseuusogeneralizadodesse lugar.Aquiloqueosabirnorte-americanoameaça,antesdemais nada,sãoassurpresas,ossaltos,avidaorgânicaeenérgica,as debilidadespreciosaseasreentrânciassecretasdaslínguasinglesa,americana,canadense,australianaetc.Asimplificaçãoque facilitaastrocaslogoasdesnatura.

aAprimeirareuniãodoParlamentoInternacionaldosEscritores, emEstrasburgo,em1993,nãofoidemodoalgumpoliglota,mas certamentemultilíngue.

Nãofoiaúnicavezqueescritoreseintelectuaistentaramse reuniremcongressoouemassembleia.Ahistórianosoferece ilustresexemplos.

Talveznãotenhasidoaprimeiravezqueseprocurourestituir aotermo parlamento seusentido,nãodelugarparaoqualseé eleitoeondesevotaesedecide,masdelugarondesefala.

Masfoiaprimeiravezqueumparlamentodessestambémse propôsapuraesimplesmente escutar –comodissemos–ogrito domundo.

Nãoasteorias,asideologias,ospoderes–nãoumsistemaou umaideiademundo–,masoimensoenredamento,noqualnãose

tratanemdeseentregaràlamentaçãoprimordialnemdeselançar aesperançasirrefreadas.Apalavragritadadomundo,comaqual contribuiavozdecadacomunidade.Oamontoadodelugares-comuns,degritosdeportados,desilênciosmortais,emquese verificaqueopoderdosEstadosnãoéoquegenuinamentenos move,aceitandoquenossasverdadesnãocomungamdopoder.

(Eisque,tendoevocadoaslínguasameaçadas,aslínguassustadas, retornoaquiaoutrademinhasafliçõeseeisquerepitominhas palavras,comoumecoestriadonumagretaque,porsuavez,grava umcalcáriofrágil.Éparaampliarosescapesqueoexercícioda traduçãorealizaentrelínguaselinguagens:)4

Atraduçãoécomoumaartedafuga,istoé,tãolindamente,uma renúnciaqueseconsuma.

Hárenúnciaquandoopoema,transcritoemoutralíngua,deixou escaparumaparcelatãograndedeseuritmo,desuasestruturas secretas,desuasassonâncias,dessascoincidênciasquesãooacasoea permanênciadaescrita.

Éprecisoconsentiresseescape,eessarenúnciaéapartedesique emtodapoéticaseabandonaaooutro.

Aartedetraduzirnosensinaopensamentodaesquiva,aprática dorastroque,acontrapelodospensamentossistêmicos,nosindicao incertoeoameaçado,queconvergemenosreforçam.Sim,atradução, artedaaproximaçãoedoquasetoque,éumafrequentaçãodorastro.

Contraalimitaçãoabsolutadosconceitosdo“Ser”,aartedetraduziramealhao“ente”.Rastrearaslínguaséamealharoimprevisíveldo mundo.Traduzirnãochegaareduziraumatransparência,tampouco aconjugardoissistemasdetransparência.

Porisso,estaoutraproposiçãoqueousodatraduçãonossugere: oporàtransparênciaosmodelosdaopacidadeabertadasexistências irredutíveis.

4.Naterminologiadoautor,adistinçãoentre língua e linguagem apontaparaelementos objetivosesubjetivos,respectivamente,noempregodoidioma. [n.t.]

a

Pleiteioparatodosodireitoà opacidade,quenãoéareclusão. Éparareagirassimcontratantasreduçõesàfalsaclarezados modelosuniversais.

Nãomeénecessário“compreender”quemquerqueseja–indivíduo,comunidade,povo–,“levá-locomigo”aocustode, dessemodo,sufocá-lo,perdê-lonumatotalidadeentedianteque eugeriria,paraquepossaaceitarcomeleviver,comeleconstruir, comelearriscar.

Que,umavezencontrada,aopacidade–anossa,emsetratandodooutro,eadooutroparanós–nãosefechesobreo obscurantismoouo apartheid,quesejaparanósumafesta,não umterror.Queodireitoàopacidade,pormeiodoqualseriapossível,namelhordashipóteses,preservarodiferenteereforçara aceitação,vele,óluzes!,pornossaspoéticas.

aTudoisso,contadosumariamente,temporúnicoméritoabriro rastroparaoutrosditos.Éàspoéticasconjuntasqueapeloneste momento.Nossasaçõesnomundosãoeivadasdeesterilidadese nãomodificamos,namedidadenossaspossibilidades,oimagináriodashumanidadesqueconstituímos.

TomoporfiadoresopovoqueMattareuniunaentradadesse ParlamentodeEscritoresem1993,emEstrasburgo.5 Fosteacolhidoportodoumcorodevozesqueseerguianumclamor.Povo deestátuas,cujochapéuincacobriaatogaegípcia,cujosáriafricanovestiaaposeinuíte,cujoscondõesdebronzeoudecobre, amareloquerespiraevioletaquesofre,davamsuporteatodotipo deformasestilizadas,reconhecíveisemescladas,vindasdetodos oscantosdomundo,germinadasdetantasbelezasdomundo.

5.RobertoMatta(1911-2002)foiumpintorsurrealistachileno. [n.t.]

Essasobraserammestiças,suaarquiteturadavaaveradiversidade,recolhidaporumartistanumresultadoinesperado.Sim. Esseestatuárioseassemelhavaaesseclamor.

Umpovoqueassimfalaéumpaísquecompartilha.

Opensamentoarquipelágicoconvémaoritmodosnossosmundos.Elelhetomadeempréstimooambíguo,ofrágil,oderivado. Admiteapráticadodesvio,quenãoéfuganemrenúncia.Reconheceadimensãodosimagináriosdorastro,queeleratifica.Seria issoumarecusaasegovernar?Não,échegaraumacordocom aquilodomundoqueestádifusojustamenteporarquipélagos, essasespéciesdediversidadenaimensidão,que,nãoobstante, juntamasmargenseconjugamoshorizontes.Damo-nosconta doquenelehaviadecontinental,deespesso,equepesavasobre nós,nossuntuosospensamentossistêmicosqueregematéhoje ahistóriadashumanidadesequejánãosãoadequadosanossasrupturas,anossashistóriasouanossaserrânciasnãomenos suntuosas.Opensamentodoarquipélago,dosarquipélagos,nos abreessesmares.

Dopontodevistadaidentidadepropriamentedita,oalcancedo poemaresultadabusca,erranteenãoraroinquieta,dasconjunçõesdeformasedeestruturasgraçasàqualumaideiadomundo, emitidaemseulugar,encontraounãooutrasideiasdomundo. Aescritasubmeteoslugares-comunsdorealaumexercíciode aproximaçãoquesebaseianumaretórica.MichelLeirisrealizou-oemsuaobra.MauriceRochetambém,deumaoutraforma.A identidadenãoéproclamatória.Nessedomíniodaliteraturaedas formasdeexpressão,elaéoperatória.Aproporçãodosmeiosde dizeredesuaadequaçãosãomaisfortesqueaproclamaçãopor sisó.Areivindicaçãodeidentidadenãopassadeproferimento senãofortambémmedidadeumdizer.Quando,inversamente, designamosasformasdonossodizereasinformamos,nossa identidadejánãosebaseianumaessência,masconduzàRelação.

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