O judeu pós-judeu : Judaicidade e etnocracia

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Ojudeupós-judeu

Judaicidadeeetnocracia

Ojudeupós-judeu:Judaicidadeeetnocracia

©BentziLaorePeterPálPelbart ©n-1edições,2024 isbn 978-65-6119-008-4

Emboraadoteamaioriadosusoseditoriaisdoâmbitobrasileiro,a n-1ediçõesnãoseguenecessariamenteasconvençõesdasinstituições normativas,poisconsideraaediçãoumtrabalhodecriaçãoquedeve interagircomapluralidadedelinguagenseaespecificidadedecada obrapublicada.

coordenaçãoeditorial PeterPálPelbarteRicardoMunizFernandes direçãodearte RicardoMunizFernandes gestãoeditorial GabrieldeGodoy assistênciaeditorial InêsMendonçaeJuliaMurachovsky preparação AnaGodoy revisão FernandaMello ediçãoemLATEX SuzanaSalama capa LuanFreitas ilustraçãodacapa Fragmentodagravura MoisésquebrandoasTábuasdaLei, prancha39dasérie“ABíblia”.Gravuraemmetaleágua-tintacomcoloraçãoàmão emaquarela,1931–1939.Dimensões:28,9×22,9cm(prancha)e53,7×39,1cm(folha).

Areproduçãoparcialdestelivrosemfinslucrativos,parauso privadooucoletivo,emqualquermeioimpressooueletrônico,está autorizada,desdequecitadaafonte.Sefornecessáriaareprodução naíntegra,solicita-seentraremcontatocomoseditores.

1ªedição|Abril,2024 n-1edicoes.org

Ojudeupós-judeu

Judaicidadeeetnocracia

bentzilaorpeterpálpelbart

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. . . . . . . . . . . . . . .183 epílogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .211 cronologia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .218
introdução
avítimaeocarrasco
desconstruçãodomitodacontinuidade dopovojudeu
messianismosheréticos
osionismoàluzdeumahistóriaaberta
adiáspora:umacartografia
identidadeedespossessão

Introdução

Emcertomomento,faceaacontecimentos públicos,sabemosquedevemosrecusar.A recusaéabsoluta,categórica[…]Oquenós recusamosnãoésemvalornemsem importância.Justoporissoarecusaé necessária.Háumarazãoquenãoaceitamos mais,háumaaparênciaderazoabilidadeque noscausahorror,háumaofertadeacordoede conciliaçãoquenãomaisescutaremos. Produziu-seumaruptura.Fomoslevadosa essafranquezaquenãotoleraacumplicidade.1 mauriceblanchot

OmassacreperpetradopeloHamasem7deoutubrocontra civisisraelenseseaHecatombequeIsraellançouemseguida contraapopulaçãopalestinadeGazaescancararamasvíscerasdesseconflitoquejáduramaisdecemanos.Alémdas bombas,explodiramoscorações,osconsensos,asacomodaçõescoloniaisvigentesatérecentemente.

Aideiadestelivrosurgiuemconversasremotas,vivendoum dosautoresnoBrasil,outroemIsrael.Aproveitamosaamizade dedécadaseaconfluênciadeideiasparacolocarodedonaferida. Nãocabiafingirimparcialidade,objetividade,isenção,nemfazer umaanálisefriadasrazõesquelevaramaesseconflito.Elassãopor demaisconhecidas.Precisávamosfalarapartirdeumsentimento dedesmoronamento.Nenhumapalavradeordememcirculação nosservia.Aúnicaopçãoqueseapresentouanósfoi,apartir deumarupturacujanaturezaaindademandarátempoparaser

1.MauriceBlanchot,“Lerefus”,outubrode1958.In: L’Amitié.Paris:Gallimard,1992.

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convenientementenomeada,falardedentrodela.Comoquando umterremotofragmentaumapaisagemaparentementecontínua, fomosobrigadosapercorreressaterramental,espiritual,subjetiva egeopolíticaditajudaicaapartirdasfissuras,dosvãossombrios quenelaseabriram,edofundosemfundoquefoiaparecendo. “Masdeixemosdeladoasmetáforas,carosautores–afinal,doque setrata?Dequeladovocêsestão?Qualavossaposição?”

Resolvemosmapearostraçosqueimpedemaexistênciajudaicadeenxergaroconflitoparaalémdeseusmedosecertezas, acomeçarpelaconvicçãodequenenhumatragédiacoletivase comparaàsua,oquejustificaorecursoatodososmeiospara sedefender.Nãoestaríamosconfundindoadiásporajudaica eoEstadojudeu,numamálgamainfundado?Ocorreque,há décadas,ascomunidadesdiaspóricassesubmeteramàtutela doEstadodeIsrael,etêmsidoarrastadasporeleeporsuas opçõesestratégicasaumainflexãosubjetivaepolíticadasmais inquietantes.Aquestão,portanto,nãoéaantigaindagaçãometafísica oqueéserjudeu? Oproblemaaquianalisadoédeoutra natureza:oquefezcomqueaidentidadeeaimagemdosjudeus, empoucasdécadas,doHolocaustoàGuerradosSeisDias,tenhamsofridoumamutaçãotãoradical?Devítimaspassarama carrascos,defrágeisabrutos,deindefesosainsensíveis…Quais fatoresinternosouexternosaoqueHannahArendtchamoude judaicidade(Jewishness)produziramumatalreviravolta?

Porséculososjudeusforamalvodeperseguiçõesemassacressemfim.Erainevitávelqueaautovitimizaçãovirasseum componentecentraldasubjetividadejudaica?Oproblemase agravaquandooEstadojudeusevaledolugardevítimapara justificaraopressãoexercidaporele.

Masissonãoétudo.Comooelementoétnicoganhoutamanhaprimazianarelaçãodosjudeuscomosgentios,nadiáspora, edosisraelensescomospalestinos,emIsrael?Nãopresenciamosumaespéciedesupremacismoetnocrático?

Pararesponderaessasperguntasfoiprecisorepensaros seguintespontos:

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1. Ahistóriadajudeofobiaedoantissemitismo;

2. Omitodacontinuidadeétnicaereligiosado“povojudeu”;

3. Ahistóriadosionismoeasbifurcaçõesque,noseuinício, aindapareciampossíveisouatépromissoras;

4. Aperspectivadoshistoriadorespalestinosarespeitode seumovimentonacionalesualiderança;

5. Aprevalênciadadicotomiajudeu/nãojudeuesuasincidênciasparaumaéticadaalteridade;

6. Amarcadatradiçãomessiânicajudaicanopensamento doséculo xx,deRosenzweig,ScholemeBenjaminaté LevinaseDerrida;

7. Adiscrepânciaentreessetesourofilosóficoeespiritual eastendênciasatuaisdadiáspora,bemcomoapolítica deIsraelperanteospalestinos.

Tivemosquenosvalerdemuitaspesquisasalheias.Fizemosumarrastãohistórico-filosófico,deIsaacDeutscheraJudithButler,deHannahArendtaMahmudDarwish,deShlomo SandeAdiOphir.Precisávamosentendercomoopovomais desterritorializadodahistóriaviuseurostointeiramentereconfiguradoapartirdareterritorializaçãonachamadaTerra Santa,eseguirasimplicaçõesdessareviravolta.

ComoodizEnzoTraverso,talvezestejamosassistindoao fimdamodernidadejudaica–istoé,esseperíodoriquíssimoem quepensadores,artistas,poetas,compositores,revolucionários deorigemjudaicacontribuíramdemaneiradecisivaparaa constituiçãodenossamodernidadeouparasuacontestação –deMarxeFreudaAdornoeBenjamin,deKafkaaCelan,de KlimtaSchönberg.Semesquecer,nocontextoisraelense,as contribuiçõesdeAmósOz,A.B.YehoshuaeZeevSternhell.

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Nãosetratadeanteciparaquioresultadodessatrajetóriaedas váriashipótesesquefomostestando.Bastadizerquedessastentativasveio-nosovislumbredealgumacoisaquenãoconseguimos aindadefinircomprecisão,senãodemodoalusivo,comaexpressãoumpoucocanhestrade Ojudeupós-judeu,inspiradanotítulodo livrodeIsaacDeutscher,obiógrafodeTrotsky, Ojudeunãojudeu.

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Quisoacasoque,nospouquíssimosmesesaolongodosquais escrevemosesteensaio,umdenósestivesseemBerlim,ondea palavra genocídio foiproibidanosprotestospalestinos,sobpena deprisão,eooutro,nascercaniasdeTelAviv,participandodas vigíliasemfavordalibertaçãodosrefénsedasmanifestaçõescontraogoverno.Talvezacircunstânciabizarradetersidoescrito nessasduascidades,dadoohistóricoqueparadoxalmenteenlaça aShoá[Holocausto]eafundaçãodoEstadodeIsrael,alémdas diferençasdecontexto,estiloebagagem,tenhacolaboradopara oformatohíbridoeotomirregulardestelivro.Nósoescrevemosemtrêsmeses,emumfluxofebril,maspartedessasideias vemmaturandoháanosemcadaumdenós.Eraurgentefazê-las circular,dadasasnotíciaspavorosasquenoschegavamacadadia daPalestina/Israeleoacúmulodeclichêsqueenvenenaramo debateemtornodoassunto.Semdúvida,éelaumadaszonas queosespecialistasemterremotochamariamde zonasísmica. Contudo,seusefeitosextrapolamemmuitooOrienteMédioe atravessamascomunidadesjudaicasepalestinasespalhadaspelo planeta,fraturandoaopiniãopúblicabrasileiraeinternacional.

Temostotalconsciênciadasinsuficiênciasdessesobrevoo. Queosinúmerosdefeitosdeumlivroescritoaquatromãos, emcontinentesdistantes,emvelocidadeinsana,emmeioà turbulênciageopolítica,possamservirdeconviteàreflexãoe aoprolongamentodaspoucaspistasaquientreabertas.

Osautores

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Avítimaeocarrasco

Radiografiadeumareviravolta

opontocego

Detodasasidentidadesquemeconstituem,amaisinegociávelé adejudeu.Nadaavercomreligião,culto,fé,masumsentimento difusodepertinênciaaumahistóriadesofrimento,perseguição, exílio,fuga,sobrevivência.Supostamenteopovojudeuéomais sofridodaterra:hámaisdedoismilêniosenfrentatudo,daescravidãoàexpulsão,daconversãoforçadaaoracismo,dos pogroms aoscamposdeextermínio.AsingularidadedeAuschwitzéabsoluta.Opovoeleitoterátidooprivilégiodemostraraomundo oquejamaissedeverepetir.Outrossofrimentoscoletivospovoamahistória,semdúvida,dosindígenasdizimadosaosnegros escravizados,dasmulheressubjugadasaosdissidentessexuais eliminados,dosloucostorturadosàsfeiticeirasqueimadasvivas, ealistaaquiéinfinita.Masnofundodofundodofundonenhum delesécomparávelaodopovoeleito,sejanonúmerodevítimas, sejanosmétodosutilizados,sejanaintençãodeliberadadeapagardafacedaterraovestígioúltimodesuaexistência.Quando perguntamoqueéopovojudeu,arespostalaicaquevemàmente é:umacomunidadededestino.Oudedor.Evocêsedácontade queissoteaconchega,teaqueceocoração,teprotege.Ademais, issodesenhaageografiadeteusafetos,cumplicidadeserepulsas.

Umdiavocêdescobre,espantado,quetersidoavítima mais“judiada”detodaahistóriadahumanidadeéumprivilégio.Umahonra.Umaglória.Queissoagregasentidoe valoràtuaexistência.Issotefazmaisinteressante,profundo,

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denso,talvezatémaissensívelemaisinteligente.Issote garanteumasuperioridademoralnopalcodahistória.Éum podersutil,umacartanamangaquevocêusasemprequese vêdesafiadoaprestarcontasnotribunaldahistória.

Nãoéchegadaahoradequestionaressenarcisismomórbido?Sejamosclaros:sóumaraçasuperiorsaivitoriosanum talcampeonatodohorror.Osobrevivencialismoatodaprova desembocanumsupremacismoétnico.

Éprecisoentãosepararojoiodotrigo,perguntar-seoqueéhistóriaeoqueémito,everoquesobradaidentidadejudaicauma vezfeitaessaoperaçãocontraintuitiva,adeescovaracontrapeloa históriadoantissemitismo.NãobastacombatersemtréguaonegacionismodoHolocausto,umadasmaisabjetasdetodasasdenegações.Éigualmenteurgentedaraverquaisnegacionismosacarreta aetnocraciadaeternavítima,equeoutrasvozeselasilencia.

ojudeubipolar

Jávailongeotempoemqueojudeueravistocomoumavítima indefesaepassivamentesubmetidaaosventosdahistória. Pelomenosdesdeoséculo xix eleéconsideradodetentor depoderestentaculares,sobretudonoâmbitofinanceiro, mastambémintelectual,científico,midiático.Ultimamente, acrescentou-seadimensãomilitar:dadoopoderioisraelense, ojudeuapareceassociadoàpotênciaatômicaecolonial.

PormaisquesedesejesepararasatitudesdeIsraeldadiáspora judaica,dificilmenteosjudeusespalhadospelomundosãopoupadosderesponsabilidadepelasaçõesdoEstadodeIsrael–seja comoapoiadores,cúmplices,sejadiretamentecomopartícipes.

Consequentemente,hátemposascomunidadesjudaicas espalhadaspelomundosãoassociadasaoimperialismonorte-americano,aosinteressesdoOcidente,aonorteglobal,como cortejodeacusaçõesvinculadas: apartheid,racismo,fascismo, quandonãodiretamentenazismo.

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Areviravoltanoestatutodosjudeusnãopoderiasermaisradical. Noespaçodemenosdeumséculo,asantigasvítimasdaInquisição, dos pogroms,dascâmarasdegásefornoscrematóriospassarama agirouaseremvistoscomoagentesdosupremacismobranco,perpetradoresdemassacresaéreoscontracivispalestinosesfomeados, que,carregandocriançasagonizantesnosbraços,perguntamàscâmerasdetelevisãosimplesmenteisto: porquê?Porquenós?Oque fizemos? Tudoisso,obviamente,transmitidoaovivoeemcorespelo planetainteiro.Nãoàtoa,emdezembrode2023umapesquisarevelouquedoisterçosdosjovensestadunidensesentre18e24anos consideramosjudeus–“todososjudeus”–umaclasseopressora.1

teoriadocomplômundial

Écomoseosjudeustivessemencarnadopartedos Protocolos dossábiosdeSião.Comosesabe,odocumentoforjadopela políciasecretaczaristaaindanoséculo xix produziuaconhecidahipótesedocomplômundial.Aliseexplicitaumplanode dominaçãodomundoapoiadonosseguintesprincípios:aforça embasaodireito;osmeiosjustificamosfins;éprecisogovernar peloterrorepelaviolência;opovoésinônimodeignorância, covardia,anarquia;somenteumdéspotaabsolutistaécapazde conduziropopulachocristão,embrutecidopeloálcool,pelo luxo,pelalascíviaedesencaminhadopelosestudosclássicos.

Muitasoutrascuriosidadescompõemestedocumento. Quemlançouolema Liberdade,Igualdade, Fraternidade, senão osjudeus?2 Poiseraprecisoderrubaraaristocraciavigente, únicoestamentocapaz,outrora,dedefenderostradicionais valoresreligiosos,parasubstituí-lapela“aristocraciadain-

1.LúciaGuimarães,“GuerraemGazaconvulsionauniversidadesdos eua”. FolhadeS.Paulo, 28/12/23,p.A8.

2. GustavoBarroso(org.), OsprotocolosdossábiosdeSião.SãoPaulo:Minerva,1936,p.107.

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teligênciaedasfinanças”,cujoobjetivoéludibriarospobres deespírito.Afinal,aliberdadenãoéparatodos,aigualdade contrariaanatureza,afraternidadeéparaosfracos.3

Omarxismo,odarwinismoeonietzschianismotambém sãocriaçõesjudaicas,jáquevisamabalardevezosalicerces daculturacristã.Osocialismo,oanarquismo,ocomunismo constituemmerosinstrumentosparaodomínioda francomaçonariasocial –verdadeiroagentedocomplôjudeu.“Nosso interesse[…]équeoscristãosdegenerem.Nossopoderreside nafomecrônica,nafraquezadooperário,porquetudoissoo escravizaànossavontade.”4 Osfortessabemtrair,apropriar-se dosbensalheios,imporaferroefogosualeieseuarbítrio:

Nossotriunfofoiaindafacilitadopelofatode,nasnossasrelações comoshomensdequemprecisamos,sabermostocarascordasmais sensíveisdaalmahumana:ocálculo,aavidez,ainsaciabilidade dosbensmateriais,todasessasfraquezashumanas,cadaqualcapaz deabafaroespíritodeiniciativa,pondoavontadedoshomensà disposiçãodequemcomprasuaatividade.”5

Segueummanualprimárioetoscodemanipulaçãopolíticae econômica,especulaçãofinanceiratransnacional,cosmopolitismoapátrida,planosparaadestruiçãodosvalorescristãos,sua fé,seusprincípios,eanecessidadedeoprimiropovopelosmeios maisdiversos,desdeoterrorismoatéaguerra,desdeasciências, aeducaçãopelaimagemeacorrupçãodasletrasatéacontratação dosmaiscompetentesadministradores,jurisconsultos,publicistasnaformaçãodoGovernoSupremo:

Denóspromanaoterrorquetudoinvade.Temosanossoserviço homensdetodasasopiniões,detodasasdoutrinas;restauradores demonarquias,demagogos,socialistas,comunistasetodasortede utopistas;atrelamosomundointeiroaonossocarro.6

3.Ibidem,p.109. 4.Ibidem,p.104. 5.Ibidem,p.94. 6.Ibidem,p.137.

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Aoimpelirastendênciasváriasaseentredevorarem,semearama desordemeocaos,corroendoasinstituições.“Emcasoderebelião, trata-sedefazervoarpelosaresosmetrôsdasprincipaiscapitais!”

Oobjetivofinaléquea“raça”dispersa,quejamaisconseguiu alçar-seaopoderdiretamente,ofaçapormeiosescusos:“Deus nosdeu,anós,seupovoeleito,adispersão,e,nessafraquezade nossaraça,seencontraaforçaquenostrouxehojeaolimiardo domíniouniversal”.7 SóentãoareligiãodeMoisésdeveráimperar comoúnica.“SeoreideIsraelpusersobresuacabeçasagrada acoroaqueaEuropalheoferecerá,tornar-se-áopatriarcado mundo.”8 AoinvésdeumPapacristão,oreidosjudeusseráo “verdadeiropapadouniverso,opatriarcadaIgrejaInternacional”.

Édeseperguntarcomoumdocumentotãoestapafúrdio ganhoutamanhanotoriedade.Seucaráterantissemitaserviu, certamente,paraalimentaralutacontraarevoluçãobolchevique,acusadadeestarinfiltradaporjudeusquenelateriamvisto umaoportunidadededarseguimentoàconquistadomundo eàdestruiçãodacivilizaçãocristã.Masomesmodocumento foiintegralmenteadotadoeexploradopelomovimentonazista, eaindapermeiaodebateumpoucoportodaparte.

acontinuidadeétnicaemquestão

Nodocumentoapócrifoaparecemacusaçõesdefundoreligioso, teológico,econômico,racialoupolítico.Seráoantissemitismo umfenômenounitárioeatemporal,revelandoumaespéciede destinometafísico,indissociavelmenteligadoàpróprianaturezadeum“povoeleito”?Imediatamentesurgeoutrapergunta. Emquemedidaatrajetóriaziguezagueantedessepovonãoestariadiretamentevinculadaedependentedessemesmoantissemitismo?Emoutrostermos,maiscoloquiais:oqueseriado antissemitasemumjudeuparaodiar?Oqueseriadojudeusem

7.GustavoBarroso(org.), Osprotocolos…,op.cit.,p.154. 8.Ibidem,p.184.

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umantissemitacontraoqualbrandirseueternosofrimento, compondoassimonúcleodesuaprópriaidentidade?Haveria comodesfazeressamútuadependência,essaaliançamacabra?

Paraqueessasperguntastenhamalgumavalidade,seriaprecisoadmitir,antesdetudo,queopovojudeuelemesmo“existe”. Emoutraspalavras,queeletemumaexistênciacontínuano tempo,eumamínimaunidadereligiosa,étnicaoucultural. ShlomoSandmostrou,nacontramãodahistoriografiasionista, quesequera expulsão dosjudeusdachamadaTerraSanta,apósa destruiçãodoSegundoTemplo–versãoquejustificariaodireito aoretorno–,correspondeàrealidade.Maisprecisoseriafalar em exílio voluntário.Deixaremosospressupostoseimplicações dessainterpretaçãoiconoclastaparaopróximocapítulo.

aracializaçãodojudaísmo

Nãosepodedizer,comorezaavulgata,queoantissemitismo tenhaacompanhadoojudaísmoaolongodetodasuahistória, jáqueessahistóriaéelamesmaentrecortadaeziguezagueante. Oexpansionismoreligiosoapoiadonoproselitismoativodesde oséculo v a.C.atéosprimeirosséculosdenossaera,oflorescimentodeváriascomunidadesjudaítasemdiversoscontinentes, odeslocamentodeumaideiadecomunidadedeorigempara umacomunidadedefé,tudoisso,pelotempoquedurou,contrastaviolentamentecomaimagemdojudeuminoritárioeperseguido,eternosofredoràmercêdaviolênciadosimpériose religiõeshostis.Queostrêsmonoteísmosrivalizassem,entrassememembates,sofressemmútuasinfluências,nadatemde excepcional.Porisso,comoodizHannahArendt,édifíciltaxar deantissemitatodoembatereligiosoemqueojudaísmotomou parte,sobretudonosprimeirosséculosdenossaera.9

Aheterogeneidadenacomposiçãoétnicadopovojudeucolocouparaahistoriografiajudaicaeparaosionismomaispro9.HannahArendt, Origensdototalitarismo:antissemitismo,instrumentodepoder, trad.bras.RobertoRaposo.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1989.

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blemasdoqueopróprioantissemitismopoderiaimaginar.Pois écomosetalheterogeneidadepusesseemxequeodireitode existênciadoEstadodeIsrael.Umbomexemplofoiolivrode ArthurKoestlerchamado Oskhazares,tachadodeantissemita emIsraelapenasporevocaroimpériokhazarcomopossível origemdepartedojudaísmoeuropeu–oreidoskhazaresteria seconvertidoaojudaísmoeincorporadoapopulaçãodeseu impérioaopovojudeu.Paradoxalmente,aintençãodeKoestler eracombaterateoriadaraçahitleriana.Incondicionaldefensor deIsraelcomo larnacional paraosjudeus,Koestlerpensavaque osjudeusnãodeveriamdefinir-sesegundoparâmetrosraciais, talcomoohaviamfeitoosnazistas.Assim,postulava

queosancestraisdessesjudeusnãovinhamdasmargensdoJordão,mas dasplaníciesdoVolga,nãodeCanaã,masdoCáucaso,ondeseviuo berçodaraçaariana.E,geneticamente,elesseriammaispróximosdos hunos,dosuigures,dosmagiares,doquedasementedeAbraão,Isaace Jacó.Seassimfosse,apalavra antissemitismo nãoteriasentidoalgum.10

Contudo,oriscodequeoantissemitismoperdessesuarelevância históricafezcomqueoshistoriadoresisraelensesinterpretassem talevocaçãodaconversãodoskhazarescomoumaameaçaàlegitimidadedoEstadodeIsrael–comoseapenasumaestritacontinuidaderacialpudesseassegurá-la.Masnãoseriajustamentea racializaçãodojudaísmo,obstinadamentereivindicadapelahistoriografiasionista,umproblema?Éprecisodarnomeaosbois:a ideologiasionistaprecisavadalinearidadehistóricadopovojudeu, bemcomodeseufundamentoracial,parafundamentarsuareivindicaçãodo“retorno”.Quetalracializaçãotambémtenhacaracterizadoapráticadonacional-socialismoemseuprojetogenocidaé apenasmaisumaironia–senãoumtraçotrágicosuplementar–à interdependênciaentreojudeueoantissemitasugeridaacima.

10.ArthurKoestler, TheThirteenTribe, p.17apudShlomoSand, Ainvençãodopovojudeu, trad.bras.EvelineBouteiller.SãoPaulo:Benvirá,2011,p.429.

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Sabe-sequeahereditariedaderacialfoidefendidaporMosesHess,emaistardeporNathanBirnbaum,inventordo termo“sionista”,queescreveu:

Sóasciênciasnaturaispodemexplicaraespecificidadeintelectuale afetivadeumpovoemparticular.“Araçaétudo”,disseumdenossosmaiorescorreligionários,lordeBeaconsfield[BenjaminDisraeli],a especificidadedopovoseencontranaespecificidadedaraça.11

Éverdadeque,nesseperíodo,umamísticaneorromânticaenvolvia comumaauraespiritualabasebiológica,comoemMartinBuber,até queaSegundaGuerrainterditassedefinitivamenteotermo“raça”.

Masconsidere-seaLeidoRetorno,umdosfundamentosdo projetosionista,quereconheceodireitodetodoequalquerjudeuemadquiriracidadaniaisraelense.Noinício,considerava-sea autodeclaraçãosuficiente.Maistarde,passou-seausarocritério daortodoxiareligiosa–judeuésomenteofilhodemãejudia,e quenãoprofesseoutrareligião.Comisso,oEstadodestinadoa servirderefúgioparaumpovoerrante,perseguidoepluralpassou adefinirqueméjudeuequemnãoénumabaseétnico-religiosa. Quandoorabinatoortodoxo,nasnegociataspolíticasdosgovernos israelenses,conquistaodireitoexclusivodedecisãosobrequemé judeu,portanto,quemmereceaimediatacidadaniaisraelense,e sebaseianoscritériosmencionados,umpassoamaisédadona direçãodaessencializaçãodaidentidade.Aindaveremoscomoa fronteirademarcadacomtamanhainsistênciaentrejudeu/nãojudeu,comaqualosjudeustantasvezessofreram,emtantasépocas epaíses,passouaregulartodasasrelaçõesinternaseexternasda sociedadeisraelense,fortalecendoovetoretnocêntricoesupremacista,ecolaborandoparaaconsolidaçãodeumaetnocracia.

centralidadefinanceiraealheamentopolítico

Aoescreverseu Origensdototalitarismo:antissemitismo,instru-

11. JoachimDoron, OpensamentosionistadeNathanBirnbaum.Jerusalém:BibliotecaSionista, 1988,p.177[emhebraico]apudShlomoSand, Ainvençãodopovojudeu,op.cit.,p.461.

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mentodepoder,HannahArendtnotavaadificuldadeemencontraralgumestudoanalíticohistoricamenteconfiávelsobreo antissemitismo–muitodiferentedatorrentedepublicações atuais,queNormanFinkelsteinpõenacontadeumaindústria doHolocausto,comoseverá.12 Segundoela,oslivrosdisponíveisnaépocaforamelaboradosorapornãojudeusmentecaptos, oraporjudeusapologéticos.13 Afilósofarecusavatodaversão “lacrimogênea”–poisnãosetratadelamentar,masdecompreender–aindaqueacompreensãonãoapagueemabsolutoa dimensãodo“malabsoluto”,comoelaqualificouogenocídio.

Ora,ahistoriografiajudaicatendealerasequênciadecatástrofes,expulsõesemassacresquecaracterizaasuatrajetóriadesdea Antiguidaderomanacomoummartirológio,espéciedecondição metafísicaindissociáveldeum“povoeleito”.Oantissemitismo modernonadamaisseria,nessaperspectiva,doqueoantigoódio aosjudeuscombasereligiosa.Contratalsupostalinearidade,a filósofapostula,comolembradoacima,queoconflitoentreas religiões,quecaracterizoupartedahistóriajudaicaapartirdo ImpérioRomano,nãoescapavaaopadrãodarivalidadeentrereligiõesedosódiosrecíprocosqueasacompanham.Corrobora-a LéonPoliakov,emseumonumental Histoiredel’antisémitisme:

sóraramentedetectamos,naantiguidadepagã,essasreaçõescoletivasquenasequênciatornarãoasortedosjudeustãodurae precária.Acrescentemosque,comoregrageral,oImpérioRomano daépocapagãnãoconheceuo“antissemitismodeEstado”.14

Comocristianismo,aproximidadeentre“religião-mãe”e “religião-filha”produziuinúmeraszonascinzentas,deindefinição,entrecruzamento,contaminaçãorecíproca,seitasintermediárias,rivalidadesnoproselitismo,deslocamentosrituaise doutrinários,acusaçõesrelacionadasàresponsabilidadejudaica

12.NormanFinkelstein, L’industriedel’Holocauste:réflexionssurl’exploitationdelasouffrancedesJuifs. Paris:Lafabrique,2019.

13.HannahArendt, Origensdototalitarismo,op.cit.,p.16.

14.LéonPoliakov, Histoiredel’antisémitisme,v.1.Paris:Points,1981,p.21.

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pelacrucificaçãoetc.Algunsgermesdeumantissemitismoteológicocirculavam,porém,nogeral,nadaqueescapasseaojogo entrereligiõesvizinhas.Asinúmerascomunidadesdispersas, antesmesmodadestruiçãodoSegundoTemploeparaalémdele, sefortaleceramefloresceram,comonaBabilôniaounaÁfrica donorte.Comodiziamcomsabedoriaosrabinosdaépoca,para guiaracondutacomunitárianointeriordoImpérioqueoshospedasse:“Aleidopaísé a lei”.15 Omaissurpreendente,contudo, pelomenosaosolhosdeumaperspectivacontemporânea,foio acolhimentofavoráveldadopelosjudeusaosurgimentodoislamismo,earecíprocatolerânciadoscalifados,nogeral,paracom aerudiçãoehábitosjudaicos:“Oislãéumareligiãodetolerância. Nadamaisfalsodoqueover,conformeosclichêstradicionais, quebrartodaresistênciapeloferroepelofogo”.16 Dondeasrelaçõesfrutíferas,pelasquaisojudaísmoseabriuparaafilosofia gregaeasciênciasporintermédiodoseruditosislâmicos.

Éapenasmuitomaistardequeahostilidade,vindasobretudodocristianismo,ganhaumaformaviolenta,principalmenteapartirdasCruzadas(1096),esuscitaestratégiasde sobrevivênciaasmaisdiversas.

oséculododiabo

Tomemoscomoexemplodaexacerbaçãodaviolênciacontraos judeusoséculo xiii germânico.NacidadezinhadeRötingen, surgiuorumordequeumahóstiahaviasidoprofanadapelos judeus.UmtaldeRindfleischconclamouapopulaçãoàvingança.

Osjudeusdacidadeforammassacradosequeimados.Maso bandoresponsávelnãoficousatisfeito:foidecidadeemcidade ateandofogoesaqueandoosbairrosjudeus.Umcronistacristão afirmaquecemmiljudeusforammassacradosnaqueleepisódio! Assim,umcrimeimputadoa um judeuimplicounaculpade

15.Ibidem,p.37.

16.LéonPoliakov, Histoiredel’antisémitisme,op.cit.,p.54.

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todos osjudeus.LéonPoliakovconsideraesseoprimeirocasode genocídiocontraosjudeus,oprimeirodeumasérie,dandoinício aoquesepodechamardeantissemitismopropriamentedito.17

Outroexemplo.NaFrança,umaespéciedecruzada,ados Pastoureaux,saidemodoumpoucoindefinidoparalutarcontra osInfiéis.Nocaminhocruzacomosjudeus,queseencaixamna categoriaantesreservadasobretudoaossarracenos.EntãocomeçaomassacredosjudeusdeAuch,Gimont,Castelsarrasin,Rabastens,Gaillac,Albi,Toulouse,Verdun-sur-Garonne.Osdesta últimacidadeserefugiamnumafortaleza,edoaltodelatentam sedefenderatirandopedrascontraseusperseguidores.Denada adianta.Aoperceberemqueestãocondenados,osjudeuspreferemamortevoluntária.Escolhemomaisvigorosoentreeles paraqueosdegoleatodos–eramquinhentos.Sobraramalgumascriançascomasquaiseledescepararender-seaosinimigos eaceitaraconversão.Emvão.Émortoeesquartejado.Obando atravessaaotodo147localidades,disseminandooterror.18 Acadarumorouacusação,umanovaondasurgia.Por vezes,orumorvinhadepoisdomassacre,justificando-o,e outromassacreadvinhaparaantecipar-seàvingança.Ospríncipesvariavamemsuasdecisões,oraliberavamosaquede mármoredoscemitériosjudeus,comoemLiegnitzeBreslau, oraestipulavamtaxasarbitrárias,oraprovocavamexpulsões comtodasortedealegações.Oclímaxveiocomapestenegra, queceifouumterçodapopulaçãoeuropeia.Osmassacrese saquessemultiplicaram,aresponsabilidaderecaindosobre osassassinosdeCristo,prováveisenvenenadoresdasfontes deágua.EmEstrasburgo,encarceraramdoismiljudeusedepoisosqueimaramnocemitério.EmWormseOppenheim, osprópriosjudeusincendiaramseusbairros.Emalgunscasos,realizavamrituaisdecantoedançaàbeiradamortepara mostrarque,apesardeseumartírio,aféestavaintacta.

17.Ibidem,p.284. 18.Ibidem,p.287.

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MesmodepoisqueonúmerodejudeusnaEuropaCentraldiminuiubrutalmente,emvirtudedessasondasincessantes,boaparte emigrandoparaaEuropadoLeste,suapresençanasmentesda turbasófaziaaumentar.Aexpulsãodefinitivaocorreumaistarde, porpartedaFrança,Inglaterraecidadesgermânicas,nosséculos xiii e xiv.Foiquandosecristalizouaimagemdojudeuerrante,que defatovagabundeavadecidadeemcidadeembuscadealguma moradafixa.Ocorreque,emtodososlugares,eramcobradastaxas paraentraremnacidade,parasaírem,paracasar,comer,existir.O comérciodedinheiroquepraticavamtinhatambémessafunção elementar:eraprecisopagarparasimplesmenteviver.

Comisso,asolidariedadecomunitáriaganhouumpeso extraordinário,eosrabinosnãohesitavamemexigiruma contribuiçãodetodosquando,porexemplo,umdelesvirava refémdeumbandocristãoqueexigiaumresgatealtíssimo. Avidadascomunidadesfoisevoltandocadavezmaispara dentro.Concretamenteaté,poispassaramaviveremguetos, trancadosdenoite,paraevitarsuacirculaçãopelascidades. Acautela,asolidariedade,oconfinamento,odistanciamento emrelaçãoaocristianismosóforamcrescendo.Logicamente, osofrimentofoicriandolaçosmaisadensados,eorespeito àsleisemandamentossetornoumaisestritoparafavorecer aclemênciadivina.Oestudoerasagrado,poisocumprimento dessemandamentobíblicotambémasseguravaaproteçãodo Senhor.Essaeraumacondiçãoinflexível–oaprofundamento napalavrabíblicaeemsuasinterpretaçõestornou-seaatividademaisimportante–aolado,claro,dausura,quegarantia asobrevivência.Aosolhosdorabinato,asatividadesdausura edoestudonãoeramemnadaincompatíveis.

judeofobiaelutadeclasses

Antesqueajudeofobiareligiosasetransformasseemantissemitismoracial,oquemudoufundamentalmentefoiolugardos judeusnasociedadeeuropeia.Comosesabe,proibidosdepos-

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suíremterrasaolongodaIdadeMédia,exerceramatividades ambulantesdepequenocomércio.ComasCruzadas,tudomudou.Ocomércioambulantesetornoucadavezmaisarriscado,e, poucoapouco,restritosaoconfinamento,osjudeuspassarama dedicar-seemboaparteaprofissõescomoadeprofessor,mediadordetransaçõesentresenhoresfeudais,eatividadesdeusura. Ocomérciododinheiro,tãocondenadopelaIgreja,gradualmente tornou-seumaatividadetípicajudaica.Mas,paratanto,osjudeus precisavamdaproteçãodossenhoresfeudais.Comatransformaçãodossenhoresempríncipesereis,ecomosurgimentodas monarquias,consolidou-seojudeudacorte,queemtrocadeseus serviçoselealdaderecebiaproteçãoecertosprivilégios.

Maistarde,comosurgimentodosEstados-naçãoapartirda RevoluçãoFrancesa,ecomaemancipaçãodosjudeuseuropeus, umanovaconfiguraçãooscolocounumasituaçãoproblemática.

SomentepoderiasatisfazerasnovasemaioresnecessidadesgovernamentaisafortunacombinadadosgruposjudeusmaisricosdaEuropa OcidentaleCentral,confiadaporelesabanqueirosjudeusque,porconseguinte,comobanqueiros,precisavamdecoletividadesjudaicasorganizadascomofontesdecaptaçãodedinheiro,easapoiavamnessesentido.19

Ora,comoficaofinancistajudeunanovasituação,dadasuaantigaproximidadecomospoderosos,umavezdestituídaaaristocracia?Porumlado,édecretadaaigualdadededireitos,por outro,subsistemasprofundasdesigualdadessociais.Intensificase,assim,oantagonismoentreEstadoesociedade.Umadas tesesfortesdeHannahArendtédequeosjudeusdepaísescomo França,Alemanha,ÁustriaouInglaterrapossuíamriquezasimportantes,porémnuncadetiveramopoder.Comareviravolta políticamencionadaacima,subitamenteseviramsemfunção: caíramnumaespéciedevácuosocial,alijadosdaprodução,da política,sendovistoscomoparasitas–alvosfáceis,portanto,da hostilidadepopular.Arendtsustentaquealutadeclasses,com

19.LéonPoliakov, Histoiredel’antisémitisme,op.cit,p.35.

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todaaexploraçãoqueseescancara,nãosuscitatantoódioquanto apossederiquezassemumainserçãosocialepolítica,poisainutilidadedogruposocialemquestãocausamaioranimosidade:

Nãoédifícilcompreenderporqueumhomemqueusaoseudinheiroúnicaediretamenteparagerarmaisdinheiropodeserodiadocommaisintensidadequeoqueobtémseulucroatravésdeum longoecomplicadoprocessodeprodução.20

Nãopodemosacompanharaquiosmeandrosdesenvolvidos pelaautorasobreasambiguidadesdaaristocraciaemrelação aosjudeus,oproveitoqueosgovernantesaindaauferiamde seuapoiofinanceiro,arivalidadequeaburocraciaestatal,em suaspretensõespolíticas,enxergavanaposiçãodosjudeus,o furorcrescentequeosescândalosfinanceiros–emparteenvolvendobanqueirosjudeus–provocavamnabaixaclassemédia, ouaindaaveemênciacomquecertaintelectualidadeosataca, nelesenxergandoaliadosdoEstadoasercombatido.

Numcertosentido,osjudeuspassamafazerpartedalutade classessemquepretendessemnelaassumirposiçõespolíticas,esão automaticamenteidentificadoscomoEstadovilipendiadoportantos. Quemaeleseopõe,viaderegra,assumeacoloraçãoantissemita.

Aignorânciapolíticadosjudeus,queosajudavatãobemnocumprimentodeseupapelnaesferadenegóciosdoEstadoenamanutenção deseuspreconceitoscontraopovoeemfavordaautoridade,cegavaosdiantedosperigospolíticosdoantissemitismo,emboralhesaguçasseasensibilidadediantedetodaformadediscriminaçãosocial.21 QuandoosnobressevoltamcontraoEstado,forçosamenteos

20. HannahArendt, Origens…,op.cit.,p.63.Dascinquentaeduascasasbancáriasna Alemanhaem1807,trintapertenciamajudeus(Ibid.,p.218).Aqui,algunsdosmaioresbanqueiroseuropeusnaépoca,daPrússiaàRússia:Rotschild,Mendelsohn,Bleichroeder,Warburg,Oppenheim,Bamberger,Gutman,Fuerstenberg,Goldschmidt, Sasson,Montefiore,Oppenheimer,Hirsch,Bischoffsheim,Arnstein,Kornfeld,Ullmann,Ptschek,Lemberg,Stieglitz,Guensburg,Zak,Wawelberg,Epstein,Kronenberg,Natanson,Mannheimer,Fraenkel.

21.HannahArendt, Origens…,op.cit.,p.85.

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judeussãoosprimeirosvisados–oelomaisfraco.Comoo disseEngels,osprotagonistasdomovimentoantissemitaeram osnobres,eocoroeraaraléululantedapequenaburguesia.

ojudeubajuladorcontraojudeumiserável

ConvémassinalaradiferençaentreosjudeusdessesEstados-nação eamassadosjudeuspoloneses,russosouromenos,emsuamaioriamiseráveishabitantesdo shtetl,comoerachamadoemídiche ovilarejoondeviviamosjudeusnaEuropaOriental:pequenos comerciantes,funcionáriosdosistemadeeducaçãopróprio,eprestadoresdeserviçosváriosàcomunidade.Seudestinoincertodeixavaindiferentesosjudeusbem-sucedidosdospaísesocidentais, ounelesdespertavagrandeinquietação,dadooreceiodequemigrassemecomprometessemaimagem,aposiçãoeosprivilégios obtidospelaelitejudaica“educada”nasmetrópoleseuropeias.Tal desprezoeraexplícito,eadiscrepânciaressaltada,jáqueomaior perigoseriaestenderaemancipaçãoaessecontingenteindesejável.Aprópriaemancipação,diga-se,jáeraproblemática,poiso “judeuexcepcional”,aceitoporseutalentoouatrativoespecial, corriaoriscodesedissolvernacategoriagenéricadosjudeus,os quais,comogrupo,sofriamdecertarejeiçãocoletiva.Daíatentaçãode“serenãoserjudeu”.Serjudeuemcasa,nãoserjudeuna rua.Ounaruaserumjudeuexcepcional,jáquenossalõesesse tipoexerciacertofascínio,aomenosporumtempo.

Comolidarcomtaisdilemas?Trágicabuscadeconformismo, dizArendt:oravalorizadosporseusapologistaspelabondade, humanidade,sensibilidadeàjustiça,orareconhecidospelosdetratorescomotípicosarrivistas,dadaa“desumanidade,cobiça, insolência,servilismobajuladoreadeterminaçãodevencer”.22 Páriaouarrivista,rebeldeouconformista–emtodocaso,mergulhadonaambiguidade,quesetornaumtípicotraçopsicológico.

22.HannahArendt, Origens…,op.cit.,p.101.

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Saltandoagoraparaumplanomaismacropolítico,Arendt sustentaquenãofoionacionalismoquecatalisouoantissemitismo,masjustamenteoenfraquecimentodoEstado-naçãoeo adventodosimperialismos,cujaambiçãotransnacional,tendendo àeliminaçãodosinimigos,dispensavaosserviçosdeumgrupo transnacionalquejustamenteserviaaumsistemadeequilíbrios. Doravante,nãosevisavamaisaequilíbrioalgum,masàconquista absoluta.SegundoArendt,oquecaracterizouoextremismoantissemitanãofoiocultoaoEstado,comosepensa,porémseu desprezo,suadeslegitimação,apartirdeumaperspectivatransnacionalparaaqualonacionalismorepresentavaumaestreitalimitação.Apenascomfinsmanipulatóriosexaltava-seaindaanação, poisoqueimportavarealmenteeraomundo,istoé,suaconquista. Numcertosentido,ojudeurepresentavaoconcorrente,orival, portantooinimigoaserdemonizado.Eseualheamentopolítico foiresponsávelporsuacegueiraparaoqueestavasedesenhando.

Aliás,écuriosoquesónessemomento,depoisde1870,équeo antissemitismoganhaumadesignaçãoprópria,inteiramentedistintado“ódioaojudeudeorigemreligiosa,inspiradopelahostilidaderecíprocadeduasfésantagônicas”.Comoseviu,afilósofa enxergamaisrazõespolíticasdoqueeconômicasnosurgimento domodernoantissemitismo,enãoisentaosjudeusdecertodesinteresseemrelaçãoàreconfiguraçãodasrelaçõessociais.“Os judeus,semconheceropoderouseinteressarporele,nuncapensaramemexercersenãosuavespressõesparafinssubalternosde autodefesa.”23 Talestreitezaealheamentonãoosfavoreceuno turbilhãoemcurso.Emtodocaso,nãoficadepé,segundoela, qualquerteoriadoantissemitismocomomerapolíticadobode expiatório–teoriaaceitatantoporjudeuscomoporseusdetratores.Umregimepolíticonãoescolheumbodeexpiatórioaoacaso, semquetalescolhaestejaenraizadanumcontextoespecífico,cujo desenhojustamentecabeaumaanálisecuidadosadaraver.

23.Ibidem,p.44.

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Mascomoaimagemdamanipulaçãomundialpodetersido atalpontoexplorada?

Vemosentãoosjudeussemprerepresentadoscomo uma organizaçãodecomérciointernacional, uma firmafamiliarglobalcom interessesidênticosemtodaparte, uma forçasecretaportrásdo trono…Assim,devidoàsuarelaçãoíntimacomasfontesdepoder doEstado,osjudeuseraminvariavelmenteidentificadoscomo própriopodere,devidoaoseudesligamentodasociedadeeàsua concentraçãonofechadocírculofamiliar,eramsuspeitosdemaquinarem–mancomunadoscomopoder,masseparadosdasociedade –adestruiçãodestasociedadeedesuasestruturas.24

omonoteísmododinheiro

Éoutra,comosesabe,aleiturafeitaporMarxem Sobreaquestãojudaica. EleseposicionacontradoislivrosdeBrunoBauer, intitulados Aquestãojudaica e Aaptidãodosjudeusedoscristãosde hojeasetornaremlivres. BaueréamigodeMarx,e,comoele,faz partedocírculodejovenshegelianos.Juntosescreveram,anos antes,ummanifestoemfavordoateísmo.Masdessavez,Marx sevoltacontraBauer,queestipulaseraemancipaçãodosjudeus incompatívelcomapreservaçãodesuareligião.Marxnãopensa oproblemaapartirdoviésreligioso,masdomododevidaaque foramrelegadososjudeus–osnegócios,odinheiro,ointeresse. Poucostextosdoautorproduziramtantosmal-entendidos.As fraseslapidares,defato,nãofavorecemacompreensãodeseu sentidoanalítico,eparecemdiretamenteextraídasdequalquer compêndioconspiratório.Trata-se,paraMarx,antesdetudo,de rompercomaformulaçãoteológicadaquestão.ContraBruno Bauer,Marxsevênaobrigaçãodeobservarnãoo judeusabático, maso judeucotidiano.Eoqueesterevela?Oumelhor,qualéofundamentoseculardojudaísmo?“Anecessidade prática,ointeresse próprio.”25 Qual,portanto,seucultosecular?“O negócio. Qualé

24.HannaArendt, Origens…,op.cit.,p.48.

25.KarlMarx, Sobreaquestãojudaica.trad.bras.DanielBensaïd,WandaCaldeiraBrant.São Paulo:Boitempo,2003,p.56.

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oseudeussecular?O dinheiro.”26 Marxnãojulga,masrevelao lugarsocialqueocupaojudeueaatividademajoritáriaqueexerce nospaísesocidentais.Ojudeupoderiaemancipar-sedessafunção práticaeestariaimediatamentecolaborandoparaa“emancipação humanapuraesimples esevoltandocontraa suprema expressão prática deautoalienaçãohumana”.27 Seojudeuéconsiderado,antesdetudo,apartirdeseulugarsocial real,enãodesua ideia sobre suaatividade,eletambémépensadoapartirdeuma emancipação destafunçãoqueoencarcera–onegócio–edessecentroemtorno doqualeleorbita–odinheiro.Mais:suaemancipaçãoéreferida àemancipaçãodahumanidade,queolivrariadesuaalienaçãode fato.Emancipar-sedesse judaísmoprático,dessaprática dointeresse, donegócioedodinheiro,eisohorizonteapartirdoqualojudeu poderialiberar-sedofardoquelhecoubecarregar.

EssaéaleituradeEnzoTraverso,entreoutros:dequeaposiçãodeMarxtinhaporhorizonteaemancipaçãohumanauniversal, quefossealémdasfronteirasdoprópriojudaísmo.28 Pois,como oformulouMarx,oqueojudeuencarnanãoéumproblemateológico.Nasuaatividade,eleexpressaesustentaprecisamentea essênciadasociedadeburguesa,omonoteísmododinheiro,que aplastatodososoutrosdeuses“eostransformaemmercadoria”.29 Odinheiro,valoruniversaldetodasascoisas,“despojouomundo inteiro,tantoomundohumanoquantoanatureza,deseuvalorsingularepróprio”.30 Emresumo:“ODeusdosjudeussesecularizou esetornouoDeusdomundo”.31 Écompreensívelquetaisfrases tenhamdespertadoindignaçãoereprovação.Contudo,elasapenassituamapráticadosjudeusconcretosnarelaçãocomaquilo quesetornouareligiãodasociedadeburguesa,easubstituição doslaçosdegêneropelanecessidadeegocêntrica,nummundo 26.Ibidem.

27.KarlMarx, Sobreaquestãojudaica,op.cit.,p.56.

28.EnzoTraverso, TheendoftheJewishModernity,trad.it.DavidFernbach.Londres:Pluto Press,2016.

29.KarlMarx, Sobreaquestãojudaica,op.cit.,p.58.

30.Ibid.

31.Ibid.

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de“indivíduosatomizados,quesehostilizammutuamente”.32 A essênciadojudeu,porconseguinte,nãoestánoTalmud,masna sociedadeburguesa.Nofundo,aemancipaçãosocialdojudeué vinculadaporMarxàemancipaçãodasociedadeemrelaçãoao “judaísmo”destasociedade,omonoteísmododinheiro.

AemancipaçãotalcomoBrunoBauerapreconiza,portanto, soaaMarxinsuficiente.Elaseriaumaemancipaçãopolítica,sim, porémdeixariaosjudeusaprisionadosnaessênciadasociedade burguesaqueeles,nasuafunção,sãolevadosasustentar.Aceitar oEstadocristãorenunciandoàreligiãojudaicaafimdeobter direitoscivis,comoosugereBauer,significacontinuarcativo daalienaçãohumana–eéestaquedeveserquestionada.

OsDireitosHumanosUniversaisreconhecemoindivíduoburguês… Elesnãolibertamohomemdareligião,eleslhedãoliberdadereligiosa;elesnãoolibertamdapropriedade,eleslhedãoaliberdade depossuir;nãoolibertamdovergonhosoexercíciodocomércio, dão-lhealiberdadedeempreender.33

OqueMarxestádiscutindoéoidealismodaposiçãodeBruno Bauer,esclareceDanielBensaïd.34 Aorefletirsobreaaptidãodos judeusdeseintegraremàEuropaOcidental,queéoproblema deBauer,Marxnãolhesimputaqualquerresponsabilidadepela dificuldadeemseremaceitos,nempensa,comoBauer,queéa ideiadeseremumpovoeleitoqueosatrapalha.Adotaumaperspectivamuitomaisampla.Éamaneiracomoestáorganizada asociedade,dopontodevistaeconômico,jurídicoesocial,que colocaosjudeusdaAlemanhanestasituação,emquelhescabe afunçãoquaseexclusivadausura,docomércio,dafinança,que evidentementesuscitaaindisposiçãodoscristãos.Edenadaadiantariaumatofilosófico-teológicode“conversão”paraocristianismoouoateísmo–massimumaaçãosocial.Oalívio,porém,

32.Ibid.,p.59.

33.KarlMarx, Sobreaquestãojudaica,op.cit.,p.24.

34.DanielBensaïd,“Dansetparl’histoire.RetourssurlaQuestionjuive”.In:KarlMarx, Surlaquestionjuive. Paris:Lafabrique,2006.

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apenaspoderáadvirquandoaprópriasociedadeselivrarnão dosjudeus,masdosistemaqueosreduzàsuafunção,sistema estequeMarxdesignoupor“judaísmo”.Nãohápreconceito algumcontraoaspectoreligioso,étnicoouracialdosjudeus, porémumfocono judaísmoprático enasuadimensãogeral.

SabemosqueessetextodeMarxfoiescritonumperíodo detransiçãoentreseuhumanismoantropológicoeaperspectivadalutadeclassesedarevolução.Aindaassim,édese perguntarse,apesardeseuestatutodepassagem,elenãonos permiteformularalgumasindagaçõesaindaatuais.

Explicitemosumdoscomponentesdenossahipótesecentral. Osjudeusestãopresosnumatríplicearmadilha:suanecessidadedo antissemitismo,suadependênciaemrelaçãoaoEstadodeIsraele, porfim,suaidentificaçãocomasaspiraçõesdasociedadeburguesa. ÉesteterceiropontoqueMarxaindanosajudaapensar,casoconsigamosnosdesfazerdeumainterdiçãoquemarcouopós-guerra,já queotemadaassociaçãodosjudeuscomodinheiroparecerianos fazerrecuarparaomotoantissemitaquedesembocouemHitler.

Emquemedida,perguntamos,circunstânciashistóricasque, comovimos,relegaramosjudeusàsfunçõesligadasaocomércioe àsfinanças,passadosquasedoisséculos,nãoosmantêmainda,por assimdizer,doladoerradodahistória?Essainserçãonãoosterá atalpontocoladoaodestinodocapitalismo,tantonadiáspora quantoemIsrael,quequalquerdesvioparaforadapolaridade maniqueístaquehojedivideogloboganhaapechadeantissemita ouantissionista?ComoseoalinhamentoisraelenseaosEstados Unidos,aoOcidente,aonorteglobal,sejalácomosequeirachamar oblocoligadoà otan eaocapitalismodospaísesditosliberaisou supostamentedemocráticos,arrastasseconsigooconjuntodas comunidadesjudaicas,jáporsiemparteconservadoras,emdireção aposiçõesaindamaisconservadoras,bloqueandooutrasopções. fascismoslatinos

Paraficarmosemexemploscaseiros.Umcandidatoàpresidência

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doBrasil,decentro-esquerda,sevêtachadodeantissemitapor defenderumamelhordistribuiçãoderenda,programassociaise umacuidadosaequidistânciaemdeterminadasdisputasgeopolíticas.Ora,quemoacusadeantissemitismo?Umaaliançaentre aextremadireitabrasileiraeinternacional,o lobby israelensee judaico,partedoempresariadoedosetorfinanceiro,comacentuadaparticipaçãodejudeus,ecertamídia.Umarticulistaacusa o pt deantissemitismo,poisLulaapoiaainiciativadaÁfricado SulcontraIsraelnoTribunalPenalInternacionalemHaia.Um padrecatólicoquededicatodasuavidaàdefesadosmoradores deruadeSãoPauloéacusadoderelaçõesobscurascomas ongs queoapoiam.Quemoameaçadeabriruma cpi contraele?Um grupodeempresários,entreelesummilionáriojudeu.

VamosànossavizinhaArgentina.Boapartedosjudeusargentinosapoiouacandidaturaàpresidênciadoanarcocapitalista, filojudeuefanaticamentepró-israelenseMilei.Emumcomício numestádiodefutebolrepleto,foramprojetadasemtelõesgigantesimagensdosbombardeiosdeGaza,umaexplosãoatômica, numclimabélicoeapocalíptico,totalmenteidentificadocomIsrael.Comrazão,alguémperguntouseoeventualfracassodeseu governonãosuscitariaumaondaantissemitanopaís.

Apusilanimidadedepartedascomunidadesjudaicasno mundo,comrespeitoàsposiçõessocialmentemaisretrógradas emseusrespectivospaíses,constituiumabomba-relógio,inclusiveporqueaumentaoriscoderessurgimentodeumantissemitismopolítico,porvezesdeesquerda,quepensávamossoterrado.

Totalmentedistintoeraocontextohácinquentaanos.Quantos intelectuais,artistas,professores,profissionaisliberais,ativistasde origemjudaicaseengajaramnaslutasmaisprogressistasmundo afora,sejaduranteaditadurabrasileiraouargentina,mastambém nomovimentofeministaoucontraaGuerradoVietnãnosEstados Unidos,ounoMaiode68francês…Deláparacá,comoconservadorismoganhandooplaneta,comadireitadominandooespectro políticoisraelense,comosfascismospipocandopelomundo,entreelesnaHungria,naRússia,semfalardaItália,obolsonarismo

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noBrasil,otrumpismoredivivo,pode-sedizerquearrefeceuem muitooímpetodoengajamentosocialepolíticodosjudeus.Nada diferentedomundo,abemdizer,comaspautasmaisregressivas aliadasaoneoliberalismoascendente.Porém,sãorazõessuficientesparasuscitarcertainquietaçãosobreorumopolíticoque tomamcertascomunidadesjudaicasdiaspóricas,e,consequentemente,osriscosdenovasondasdeanimosidadecontraosjudeus nomundo,deteormaispolíticoesocialdoquereligiosoouracial.

Nãoseriaissotudosuficienteparaumhistoriadorisraelense daropassomaisradicaleinimaginávelparaumestudiosoda históriadojudaísmo,oderenunciaràsuacondiçãojudaica?

Comopareideserjudeu,escreveShlomoSand.

Onúmerodeintelectuaisanimadosporumaconsciênciauniversal,filhos oufilhasdejudeusimigrados,prontosasecolocarsempreaoladodos perseguidos,regrediusingularmente,enquantoumaamplafraçãoentre elessedeclaracadavezmaisconservadora.Algunsseaproximaramdas tradiçõesreligiosasjudaicas,aopassoqueoutros,maisnumerosos,se revelamdefensoresentusiastasdetodasasaçõespolíticasdeIsrael.35

EquantoàderivafascistaemIsrael,eleacrescenta:

Quandoumatradiçãodeéticaintracomunitáriaseuneaumpoderreligiosonacionalouaopoderdeumpartido,elasempreengendraterríveis injustiçascontraaquelesquenãofazempartedacomunidade.36

Éocomunitarismoparticularista,oetnocentrismoessencialista,oidentitarismotribalcujotraçopodeserlidoemparteda históriadojudaísmo,equeganhaconcretudenoatualcontexto político,comosperigosqueacarreta.37

Hãodeobjetar,comrazão,queissoésóumladodamoeda. Ooutroviés,inspiradonatradiçãodomessianismojudaico, 35.ShlomoSand, Commentj’aicesséd’êtrejuif. Paris:Flammarion,2015,p.107.

36.Ibid.,p.108.

37. EduardoViveirosdeCastroescreve:“oetnocentrismoé,comoobomsenso–doqual sejatalvezapenasaexpressãoaperceptiva–,acoisadomundomaisbemcompartilhada”. Masoetnocentrismodoseuropeus,conformesuaanáliseapoiadaemLévi-Strauss,éocontráriodaqueledosindígenas.Vercapítulosobreoperspectivismoem Metafísicascanibais–elementosparaumaantropologiapós-estrutural (SãoPaulo:Ubu,n-1edições,2015,p.33).

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presenteemKafka,Benjamin,GershomScholem,Agamben, equemarcouprofundamentepartedopensamentopolítico contemporâneo,comoseveránocapítulo iii,nãoganhoua devidaexpressãonadescriçãodeSand–talvezporserele historiador,enãofilósofo,ouentãoisraelense,enãodiaspórico. Aindaassim,eleenxergouumapontadessavertente:

Aopressãoexercidaporcivilizaçõesreligiosasdominantescontrauma minoriareligiosapreparouoterrenoparaque,comoadventodoIluminismo,umapartedosoprimidos,emviasdelaicização,mostresua solidariedadeparacomtodososquesofrem.Ademais,comapersistênciadajudeofobiamodernadevê-loscomojudeus,contrasuavontade, confortousuaaspiraçãoaumamoraluniversal:paranosliberarmos, éprecisoliberartodomundo;paraobternossaverdadeiraliberdade, todososhomens,porprincípio,devemserlivres.Umrestodatradiçãodeesperançamessiânica,fundamentodaféjudaicaancestral,pôde continuararessoaremalguns,emborasejadifícilconfirmá-lo.Asensibilidadejudaicaestavaimpregnadadeumdesejoardentedesalvação religiosa.Norastrodasperseguições,ecomoprocessodelaicização, elaaspiravavivamenteàrevolução;oadventodeummundomaisjusto sendosinônimodofimdahistória,dossofrimentosedaopressão.38

oholocausto:dereligiãoàmanipulaçãopolítica

DesdeaSegundaGuerra,omundodeumuitasvoltas.Oscarrascos deontemsãohojeosmaisveementesdefensoresnãosódaexistênciadeIsrael,mastambémdesuaspolíticas.OhistoriadoraustralianoDirkMosesassimresumeoqueelechamade“catequismo alemão”–cincopreceitosbásicosaquedeveobedecertodoequalquerdebatenaAlemanhasobreoHolocausto,Israel,judeusetc.39

1. OHolocaustoéúnico,poisfoioúnicoextermínioilimitadovisandoaopróprioextermínio,diferente,pois, 38.ShlomoSand,Commentj’aicesséd’êtrejuif,op.cit.,p.106. 39.Ver“TheCatechismDebate”,nosite TheNewFascismSyllabus,noqualsebaseiamas próximaspáginas.Disponível online.

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deoutrosgenocídioscomintençõespragmáticasoulimitadas.ÉaprimeiraveznahistóriaqueumEstadose organizouparadestruirumpovoembasesideológicas.

2. Foiumarupturacivilizacionaldofundamentomoraldanação.

3. AAlemanhatemumaresponsabilidadeespecialpara comosjudeusnaAlemanha,eumalealdadeespecial paracomIsrael:asegurançadeIsraelépartedarazão deEstadodaAlemanha.

4. Oantissemitismoéumpreconceitosingular,quenão deveserconfundidocomracismo.

5. Oantissionismoequivaleaoantissemitismo.

Essespreceitosforamelaboradosem2000,esubstituíramum conjuntoanterior,segundooqualoHolocaustoteriasidoumacidentehistórico,provocadoporumaminoriadefanáticos–oque asseguravaumareconciliaçãodanaçãoalemãconsigomesma.O novocatecismoestabeleceuumaperspectivadistinta,quepassou aservirdeparâmetro,curiosamente,paraosdebatessobreamemóriadoHolocaustotantoemIsraelcomonosEstadosUnidos.

AoinsistirnasingularidadeabsolutadoHolocausto,enasua exclusividadegermânica,eleéretiradodocontextohistóricocolonialaoqualpertence,segundoalguns,edahistóriadosimperialismoscomaqualsemistura.Talexcepcionalidadebloqueia areflexãosobreoutrosgenocídiospassadosouemcurso,justamentenummomentoemqueosestudospós-coloniaistratam dereinserironazismonumahistóriamaisampladeconquistas, impériosegenocídios.ComodizaconclusãodeDirkMoses,num textoqueprovocouumvivodebateentreosespecialistas:ocatecismoteveafunçãoimportantenadesnazificaçãodopaís.Ébom queexistaummemorialdoHolocaustoemBerlim.Masopaísmudou,eéprecisorenegociarasdemandasdejustiçahistóricaque respeite todas asvítimasdoEstadoalemão,nãoapenasosjudeus.

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ComoocomentaUdiGreenberg,emsuaanálisedoartigode Moses:ofocointensodaAlemanhanamemóriadoHolocausto podeconfortaralguns,masofazàscustasdeoutros,especialmente ospovosdaÁfricaedoOrienteMédio,quenuncativeramdireito aqualquerreconhecimentodosofrimentocoletivocausadopelos alemães.Afinal,foinumaconferênciaemBerlim,em1884–85,que aspotênciaseuropeias,sobacoordenaçãodaAlemanha,decidiram expandirbrutalmentesuapresençanocontinenteafricano.Esó recentementeospovosnativosdaNamíbia–HereroeNama–foramreconhecidoscomovítimasdogenocídioocorridonocomeço doséculo xx,em1904,perpetradopeloscolonizadoresalemães.

Ofoconogenocídiodosjudeusfoimuitoimportantenum certomomentodopós-guerraalemão,dizemváriosautoresnesta coletâneaemtornodotextodeDirkMoses,mashojeeletemo efeitodebloquearodebateemtornodeoutrospovoseetnias quesofreramouaindasofremdiversosgrausdebrutalidade.O alinhamentoautomáticodaAlemanhacomIsrael,porexemplo, ignoraaspolíticasrepressivasdoEstadojudeuemrelaçãoaos palestinos.Assimcomoacriminalizaçãodo bds (Boycott,Divestment,Sanctions),declaradapeloBundestagháalgunsanos, passouporcimadeváriasvozes,inclusivedeinstituiçõesjudaicas progressistas,silenciandoasolidariedadeparacomospalestinos.

Jánãosesabesetaisdecisõesdoparlamentooudogoverno alemãotêmaindaavercomoHolocausto,ouadviriamdeescolhas políticas(ocidentais,europeias)quecamuflamnovosracismos.Em todocaso,comoosublinhamváriosdosautores,talconcentraçãono Holocaustotemoefeitodeofuscaraslutasantirracistasdopresente.

Éprecisoretomarumcasoemblemático.Em2020,adireção deumgrandefestivaldearteemRuhr,naAlemanha,convidou AchilleMbembeapronunciarumaconferênciainaugural.Conhecidoporseuapoioao bds,semfalarnassimilaridadesentre apolíticaisraelensenosterritóriosocupadoseo apartheid sulafricanoassinaladasemseulivro Necropolítica, 40 partedaclasse

40.AchilleMbembe, Necropolítica,trad.bras.RenataSantini.SãoPaulo:n-1edicões,2021.

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políticaalemãviunaqueleapoioexpressãodeantissemitismoe exigiuoimediatocancelamentodoconvite,oquedesencadeou umaondadeprotestosporpartedosorganizadores,daesquerda universitáriaecultural,alemãeinternacional.Oautor,porsua vez,comrazão,prometeununcamaispisaremsoloalemão.Mais recentemente,oantropólogodeorigemlibanesaGhassanHage, quetrabalhousobreoetnonacionalismo,imigraçãoeraçanaAustrália,ondereside,foisubitamentedesligadodoInstitutoMax Planckacusadodeantissemitismo,dadasuaavaliaçãodaguerra deGaza.Assimelereagiuaoatentadoàliberdadedeexpressão:

Eutenhooidealpolíticodeumasociedademultirreligiosacomposta porcristãos,muçulmanosejudeusvivendojuntosnaquelaterra…

CritiqueitantoIsraelquantoospalestinosquetrabalhamcontraum talobjetivo.SeIsraelenfrentouecontinuaenfrentandoumacrítica maior,issosedeveaofatodequeseuprojetocolonialetnonacionalista édelongeomaiorobstáculoparasealcançaressameta.41

SusanNeimancunhouaexpressãomaisexataparadescrevera perseguiçãoinstitucionalizadaàsmanifestaçõescontraapolítica israelense,emterritórioalemão:macartismofilossemita.Olema Neveragain,entãopropaladopelogovernoalemão–mashátempostambémpelosjudeus–nãopareceterumcaráteruniversal; eleéreservadoúnicaeexclusivamenteaoHolocausto.

comparatismo

Oqueestáemquestãoéodireitodecomparar.Em Políticasda inimizade,Mbembeescreve:

Osistemado apartheid naÁfricadoSul,enomodoparoxísticoenum contextodistinto,adestruiçãodosjudeusdaEuropa,constituemduas manifestaçõesemblemáticasdeumfantasmadeseparação.42

41.Ver“StatementRegardingmysackingfromtheMaxPlanckInstituteofSocialAnthropology”,nosite HageBa’a.Disponível online. 42.AchilleMbembe, Políticasdainimizade,trad.bras.SebastiãoNascimento.SãoPaulo: n-1edições,2020.

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Mbembequerdizerque,ao isolar umpovooucomunidade,hálinhasdecontinuidadeentreaShoáepolíticaseuropeiasocorridas fora daEuropa.Aobservaçãoimporta,poisnaquereladoshistoriadorestrintaanosantes,ErnstNoltehavialançadoahipótesede queaShoánãofoi,comosepretende,umarupturacivilizacional absoluta,vistoque,jánosanos1920,quasetudoqueosnazistas tinhamfeitoconstavadeumavastaliteratura–aforaainvençãodagasificação.AindasegundoNolte,osnacional-socialistas tinhamrealizadoum“atoasiático”,poiselesseconsideravamvítimasde“hordasasiáticasbárbaras”naPrimeiraGuerraMundial. Temendoserinvadidoseaniquiladosdemaneirabestialpelos soviéticos,teriamaplicadoaosjudeusoqueelesmesmostemiam.

Pode-seimaginaraviolênciadodebatequeseseguiu,capitaneadoporHabermas,quevianessaposiçãoumatentativa derelativizarocrimealemãocontraosjudeusepermitira reconciliaçãodanaçãocomsuahistória.

VoltandoaMbembe:aAlemanha,partedaEuropa,noseu projetocolonial,nutriuodelíriodaseparação.Emboracurta, suapresençanaÁfricafoiparticularmentecruel.QueaAlemanhatenhatranspostoessapráticaparadentrodeseuterritório emrelaçãoaosjudeusnãomudasubstancialmenteaequação. Maisradicalmente,Mbembeescreveuqueadiferençaentreo apartheid eoextermínioéumaquestãodeintensidade.

Pelodireitodecomparar,repeteMichaelRothbergem Multidirectionalmemory,resumindooteordodebate.Eofundo delepareceserasolidariedadeincondicionaldaAlemanhaàs políticasdeIsrael,queRothbergassimdefine:

Osalemãesfariambem,sobretudodiantedofatodequeasconsequênciasdogenocídionazistaestãoinextricavelmenteligadasàocupação daPalestina,emquestionarsuapartenessainjustiçaincessante.43

43.MichaelRothberg, Multidirectionalmemory. RememberingtheHolocaustintheageof decolonization.Stanford:StanfordUniversityPress,2009.

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Poderíamosdizerdeoutromodo:porteremcometidoaShoá,e assimprovocadoacriaçãodoEstadodeIsrael,osalemãescarregamumapartederesponsabilidadepeloscrimesdesseEstado.

Muitatintafoigastanessedebate.Felizmente,comarenovaçãodaquereladoshistoriadores,háumatendênciaemampliar ofoco,removendoosinterditosquepautaramsuadiscussãona AlemanhaFederal.Oganho,comisso,éabrir-separaosproblemasdopresenteeseusatores,semjamaisesquecerouencobrir oscruzamentoscomoHolocausto.Trata-se,comooobservou PaulaVillaBraslavsky,decontornaraintensidade,aferocidade eofundamentalismoredutordodebatealemão,queacabou,segundooutros,transformandooHolocaustonumanovareligião.

ÉalgodissoqueirritaNormanFinkelsteinnocontextodosEstadosUnidos,ondeeledetectaumaindústriadoHolocausto.44 A sacralizaçãotornouoHolocaustoumlugardecultoemistério.Elie Wieselseriaosacerdote-mordessanovareligião.45 QualquercomparaçãodoHolocaustocomoutrogenocídiorepresenta,paraele, umatraiçãoàhistóriajudaica,emesmoShimonPeresfoirepreendidoporWieselquandosereferiuadoisholocaustos,Auschwitze Hiroshima– não,respondeWiesel,sóexistiuumHolocausto. OHolocausto,talcomocelebradohoje,éumsistemaeumareligião.Tudocomeçapelopostuladodequeháumódioeternodos gentioscontraosjudeus.Esteódioéirracionaleirremovível.O Holocaustoéumeventoúnico.Eleéabsolutamenteúnicotambém porquequemosofreuéumpovoúnico.Deve-sepreservaromonopóliojudeusobreoHolocausto,apesardetantasoutrasminorias teremmorridonoscampos–comunistas,ciganos,homossexuais, loucosetc.DefenderasingularidadedoHolocaustoédefendera singularidadedopovoqueosofreuevice-versa.Comodizoautor:

44.NormanFinkelstein, L’industriedel’Holocauste:réflexionssurl’exploitationdelasouffrance desJuifs,trad.fr.ÉricHazan.Paris:Lafabrique,2019. 45.NormanFinkelstein, L’industriedel’Holocauste,op.cit.,p.47.

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OquefazasingularidadedoHolocaustonãoéosofrimentodos judeus,éofatodeque judeus tenhamsofrido.Ditodeoutromodo:o Holocaustoéúnicoporqueosjudeussãoúnicos.46

OucomoocomentaElieWiesel:“Tudoemnósédiferente”.Os judeussão“ontologicamente”excepcionais.47 Obviamente,isso lhesdáodireitodeseconsideraremameaçadossempre,esempre justificadosemtodososesforçosparasedefenderesobreviver.

Ora,FinkelsteindiferenciaoHolocausto(aindústria)doholocausto(ogenocídioconcreto).OHolocaustoéumafabricação ideológica,ecabeperguntarporqueelepersistesesuasteses sãoatalpontoinconsistentes.Arespostaéquenãosóeleofereceaosjudeusumestatutoàparte,mastambémlhesdáum podersobreosdemais.EparaIsraelistorepresentaumálibiprecioso.Umpoderdepressãomoraleemocional,dechantagem política.Nãoédiferentedoqueaconteceuduranteaascensão socialdosimigrantesjudeusnosEstadosUnidos,aoenfrentaremadversáriosnocamposocial:qualquerconflito,fosseele social,econômico,jurídicooupolítico,eraatribuídoaoantissemitismodosoutros.Eleservedeexplicaçãouniversal.Emsuma, aoinvocaroHolocausto,deslegitima-setodacríticadirigidaaos judeus,quesópodeterpormotivoumódiopatológico.48

Conhecemosavervepolêmicadoautor,eseuestiloprovocativo,oqueemnadainvalidasuapercepçãodousoquejudeus, instituiçõesjudaicas, lobbys israelensesouoEstadojudeufazem doHolocausto,envolvendo-onumaaurasagrada,porémespetaculosa,queesconde,nofundo,mecanismosdemanipulação.

OmanejopolíticodoHolocaustopelosgovernantesisraelenseséumcapítuloàparte.Váriassãoascamadasdessamanipulação.Auniformizaçãodanarrativasignificaumcontroleda memóriacoletiva,queserveparafinsdechantagemgeopolítica ededoutrinaçãointerna.Aoexploraraculpaeuropeia,por 46.Ibid.,p.50.

47.ElieWiesel, Againstsilence.NovaYork:HolocaustLibrary,1984,vol. i,p.153apudFinkelstein. L’industriedel’Holocauste,op.cit.

48.NormanFinkelstein, L’industriedel’Holocauste,op.cit.,p.41.

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exemplo,seobteveumconsensoemtornodasoperaçõesem Gaza.OargumentoéqueoataquedoHamasfoiumaespécie deprolongamentodoHolocausto–nãoporacaso,comentaristasdamídiaedapolíticaisraelenseusamapalavraShoápara referir-seaele.Noplanointerno,aimprensaisraelenseestátão atravessadapelovocabulárioreferenteàépoca,queoespectador sópodesecurvaràlegitimidadedetodasasoperaçõesmilitares.

NãosepodenegarqueotraumacoletivodoHolocausto marcaprofundamenteopsiquismoisraelense.Mascapitalizar taltragédiaparajustificaraocupaçãodosterritórios,acolonizaçãomaciça,o apartheid,asincursõessistemáticas,comose tudoservissepara“evitarqueserepita”,éofenderamemória dosmortos,sobretudoporqueressignificaapassividadedas vítimasdeentãoporumativismobelicistacrescente,principalmenteapartirdaGuerradosSeisDias,comoseveráde maneiraprecisanocapítulo iv,sobreahistóriadosionismo.

Aliás,jáem1948,osimigrantesrecém-chegadosdequalquer paíseuropeu,sobreviventesdoHolocausto,aquemseentregava umfuzileseenviavaimediatamenteparaalinhadefrente,muitas vezesviamnosinimigospalestinosouárabesmerareencarnação dosnazistas–pode-sesuporquetalassociaçãoelevavaoânimo doscombatentes,masproduziu,pormeiodeumadistorçãohistórica,umafalsacontinuidadequeatéhojedificultaarelaçãocom ospalestinos.OsterroristasdoHamassãochamadosdenazistas, mastambémoscivisdeGazasãovistoscomonazistaspotenciais.

Comosesabe,findaaSegundaGuerraMundial,oesforçode reconstruçãodaAlemanhaeváriosoutrosfatoresimpuseram duasdécadasdeumsilêncioquaseabsolutoarespeitodoHolocausto.Apartirdosanos1970esobretudo1980,edesdeentãoem velocidadeexponencial,aliteraturaemtornodamemóriadoHolocaustoseagigantou.Todauniversidadetemseudepartamento emtornodoassunto,novasdisciplinasforamcriadas,colóquios proliferamportodaparte,umahipertrofiadeinterpretaçõesem disputaanimaodebate.Nãonoscabejulgaraqualidadevariável dessaprodução,masinsistirnumúnicoponto,quevaificando

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cadavezmaisclaro:amemóriadoHolocaustonãopodeserexclusividadedeninguém–nenhumainstânciatemodireitode reivindicarrepresentá-laexclusivamente.EmhipótesealgumadeveriaelasertuteladaporumEstado.Vimosnoqueresultaquando issoacontece,comonocasopolonês:ogovernoanteriorcriminalizouqualquermençãoàparticipaçãopolonesanaeliminaçãoda populaçãojudaicaduranteoperíododaocupaçãonazista.Há,certamente,umapolíticadamemória,ecadavezqueumgoverno,fascista,ouapenasdedireita,tomaopoder–tambémnosocialismo realissoerapreponderante–atentativaprimeiraéderessignificaçãodopassadopormeiodeumamaquiagemnarrativa.Foiocaso comobolsonarismoearenomeaçãodogolpede1964como“movimento”,atémesmoporumjuizdoSupremoTribunalFederal. Mastambéméocasodaeliminaçãosistemáticadosvestígiosda presençapalestinanosterritóriosconquistadosporIsraeldurante aguerrade1948.Quandoumpartidopolíticoseapropriadamemóriacoletiva,égrave.Quandoumaetniaofaz,éaindamaisperigoso.QuandoasduascoisasocorremcomopolíticadeEstado,éo silenciamentodefinitivodasvítimas,oudosvencidosdahistória.

Aissotudoseagregaumproblema.Qualquercríticaouoposiçãoexternaàpolíticadogovernoisraelensetemsidoqualificada porelecomoantissemitismo,equalquercríticaouoposiçãointernaévistacomoantissionista.Aequaçãopredominanteede fundoéesta: crítica=antissionismo=antissemitismo.Maséóbvio quenemtodacríticainternaouexternaéantissionista,nemtodo antissemitismoéantissionista(háumaextremadireitafrancesa ligeiramenteantissemitaepró-israelense,omesmoacontecendo noPartidoRepublicanonaeraTrump),enemtodoantissionismo éantissemitismo.Porexemplo,comoesvaziamentodoprojeto sionista,dadoqueseuobjetivomaior–oferecerum larnacional aosjudeusdomundo–secumpriu,partedosisraelensesouse considerapós-sionistaou,demodominoritário,antissionista, semporissosernemremotamenteantissemita.

Hoje,porém,omaiorperigoéqueaoposiçãoexternaà políticadeIsraeldefatoganhecoloraçãoantissemita,numa

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estranhacumplicidadeentreIsraeleseusopositoresouinimigos,talcomoportantotempoaconteceuentreojudeue oantissemita:elesseretroalimentam.Israelprecisadeseus inimigos,eofantasmadeumcomplôantissemitamundial(invertemosaquiopostuladodosSábiosdeSião)sófavoreceo projetodaextremadireitaisraelense,dejustificareampliar seusplanosparaumaGrandeIsrael,doJordãoatéomar.

oduploamálgama

Éinegável:odestinodosjudeusestáindissoluvelmenteligadoaopresentedoprojetosionistaeaopassadodoantissemitismo.Ousamos arriscarahipótesedeque,enquantoesseduploamálgama–com Auschwitzdeumlado,ecomIsraeldeoutro–nãoforaomenosproblematizado,paranãodizerdesfeito,nãoháchancealgumadeque seabra,paraascomunidadesjudaicas,umaterceiraviaouquartaou quinta.Emtermosmaissimples,atualmenteaalternativapareceser olugardavítimaoudoagressor.Emcertassituações,osdoislugares seconfundem.Éumfato:comunhasedentes,osjudeusseagarram aopapeldevítimaeoalardeiamaosquatrocantos.Aomesmotempo, oEstadocomoqualseidentificamouaoqualtantodelegamexerce suaforçabruta,justificando-apelapropaladainjustiçapadecida,no passadoounopresente,valendo-sedestaparaencobriraquela.É oquesevêquandoaCortePenalInternacionaldeHaiaéacionada pelaÁfricadoSulcontraIsrael,acusadodegenocídio.Areaçãoda mídiaisraelensefoideperplexidadetotal:comoasvítimas(deum ataqueterroristaqualificadoporelasdegenocida)estãonobanco dosréussobacusaçãodegenocídiocontraospalestinosdeGaza, sobumalegislaçãocriadaparacontemplarprecisamenteoscrimes contraahumanidadequeoutroravitimaramjustamenteosjudeus?

Aoconjugarinternamenteaautovitimizaçãoeahostilidade paracomaalteridadepalestinacontinuarãopatinandonaperversãoética.Pior:opróprioEstadodeIsrael,concebidocomorefúgioesoluçãoparaaquestãojudaica,intensificarátaistraçosque pretenderesolver,tornando-sepáriadacomunidadeinternacio-

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nal,enxergandoantissemitismoportodaparte,redobrandosua violêncianasupostaautoproteção,esuscitandocrescentehostilidadecontrasi,emparteprovenientedocampoprogressista.As críticasàsuapolíticasendointerpretadascomoantissemitismo, amáquinaparanoicatendeagirarcomforçaaindamaior.

ofimdamodernidadejudaica

Ementrevistarecente,ohistoriadorEnzoTraversonotaqueIsrael,aotransformar-senumEstadoétnicoereligioso,comseu expansionismomilitarepolíticasegregacionistaeexpulsiva emrelaçãoaospalestinos,secoloca,enquantoEstadojudeu, paradoxalmente,nasantípodasdamodernidadejudaica.49 Amodernidadejudaicaconsistenainscriçãodosjudeusno mundomodernocomoumaminoriadiaspóricaeextraterritorial,quehistoricamenteencarnouumpensamentocrítico exatamenteporquenãopodiaserincluídanacategoriapredominantedeumEstado-nação.Essatradiçãocríticaaindaexiste, claro,masareversãoqueocorreudesdeafundaçãodoEstado deIsraelpermitedetectarofimdamodernidadejudaica.

Pormodernidadeoautorentendeoperíodoquevaide1750 a1950,daemancipaçãodosjudeuseuropeus,norastrodoIluminismo,atéoextermíniodosjudeuseuropeus,duranteonazismo.50 Daíemdiante,oeixodojudaísmosedeslocouparaosEstados UnidoseparaIsrael.A“questãojudaica”,segundoele,perdeu osentidocomafundaçãodoEstadodeIsrael,masengendroua “questãopalestina”.O povodolivro setransformounumaentidade étnicaeconfessional.DojudeupáriaaoEstadopária.Aanomalia judaicamigraparaafiguraestatal.OEstadoquesedestinavaa tirarosjudeusdeumaanormalidadehistóricasetornouporsisó umaanormalidade.EnquantoaAlemanhaselivradeseupassado

49. VercomentáriodeEnzoTraversoementrevistaà Verso,noTwitter.Disponível online.

50. EnzoTraverso, TheendofJewishModernity,trad.ing.DavidFernbach.Londres: Pluto,2015,p.7.

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chauvinista,Israelregeneraosjudeusatravésdeseunacionalismo. Comodizoautor,ofinaldoséculo xx parecemarcarofimdociclo histórico–alongahistóriadoantissemitismo.Aodeixaremdeser párias,deixaramparatrás,majoritariamente,aperspectivacrítica quecostumaseroapanágiode outsiders –aquiloqueGüntherAnderschamade“tradiçãodeantitradicionalismo”.Amarginalidade emqueseencontravamosjudeusfavoreciaqueelespensassem contraoEstado,oconsenso,aortodoxiaeadominação.Ninguém podelamentarqueoantissemitismojánãosejapredominante nadeterminaçãodahistóriajudaica,masofatoéqueosjudeus, umavezaceitoseincorporadoscomocidadãos,deixaramdenadar contraacorrente.Claroqueopassadoeuropeucontinuaassombrandoocontinente,porémmaisaomodo,comodizTraverso, deumareligiãocívica–sendoAuschwitzoparâmetronegativo segundooqualsepodeavaliarqualquerregime.

Apopulaçãojudaica,antessujeitaagrandemobilidade,circulação,aculturação–ojudeuerrante–,aomesmotempo emqueeraobjetoderepulsa,porserumaespéciedevagabundoentreasnações,carregavaemcompensação,graçasa essemesmonomadismo,umadimensãofortementecosmopolita.Aliás,essaeraumadasprincipaisacusaçõesdeHitler. Ojudeuencarnavaamobilidadedodinheiroedafinança,o universalismoabstrato,ointernacionalismodesenraizado.

Tudoissomudoucomodeclíniodoantissemitismo.Apartir daGuerradosSeisDias,eprincipalmentenasúltimasduas décadas,comaascensãodofundamentalismoreligiosojudaico, umfilossemitismodedireitacomoqueresgatouaimagemdos judeusnumachaveinteiramenteoutra–conservadora.Ecom elefortaleceu-seumneoconservadorismojudaico.Apredominânciaesquerdistaemcertascomunidadesjudaicascedeuo passoparaumadireçãocontrária.Assim,ocorreucertaruptura entremuitosjudeuseaesquerda,dentroeforadascomunidadesjudaicas,eistoemváriospaíses.Osperturbadoresda ordemdeantigamentetornaram-seseusdefensores.Certas parcelasdascomunidadesjudaicas,emsuaaliançaincondici-

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onalcomIsrael,sealiaramàextremadireitapró-israelense.Ou seja,certojudaísmosereconcilioucomofascismo.Oculto daforçasealiouàcríticaaoEstadodebem-estarsocial,ouà oposiçãoaváriosaspectosdademocracia.

paraalémdoholocausto

Aolongodosanos,[Israel]redefiniusuaidentidadeaoprocurartornarsearepresentanteeredentoradasvítimasdoHolocausto.Oevento trágicoquepermitiuseunascimentogradualmentesetornousuajustificativahistórica,eumavezinscritanoseumessianismonacional,o pretextoconstantementeinvocadoparalegitimarsuasações.51

FoicomojulgamentodeEichmann,segundoTraverso,queIsrael deixoudeconsideraroHolocaustocomoumcapítulovergonhoso dahistóriajudaicaparareivindicarsuamemóriacomofontede legitimaçãodesuapolítica.Apartirdaí,qualquergestodehostilidadeárabefoiinterpretadocomoumprolongamentodonazismo. Foi,aliás,oqueaconteceudesdeo7deoutubro,quandoseafirmou,emIsrael,queoHamastinhaassassinadoemumdiaum númerodevítimasapenasmenordoqueduranteoHolocausto–traçandoumacontinuidadeentreoHamaseonazismo,comose ospalestinos,emsuatragédiaenasváriasreaçõesquedelabrotaram,fossemapenasumareencarnaçãodonacional-socialismo. Anazificaçãodoinimigoéumamaneiracômodadenãoterque olharparaadominaçãoexercidapelogovernoisraelenseaolongo dedécadasdeocupaçãodosterritóriospalestinos.EamemorializaçãoobsessivadoHolocaustorepresentaumsaltoestratégico emrelaçãoaopassado.AfrasedeAdorno, nuncamaisdenovoAuschwitz,transformou-seemalgocomo“opassadonuncapassa”,e odiscursodamemóriatornou-seumdiscursoretóricoeconformista,umafórmularitualqueincentivaahistórialacrimogênica deumacomunidadeunidapelosofrimento.

51.EnzoTraverso, TheendofJewishModernity,op.cit.,p.107.

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Éincontestável–aalteridadejudaicadeixoudeserestigmatizadanaesferapúblicaoucultural.Porvezes,atéserevestede umsignodedistinçãoemulticulturalismo.Masofimdoantissemitismonãosignificaofimdoracismo,insisteTraverso,com razão.Afinal,aislamofobiatomouolugardoclássicoantissemitismo.Obviamente,comacontrapartidareversa:umajudeofobiaprovocadapeloconflitoisraelo-palestinovaicrescendo. Dificilmenteaquelesjudeusqueseinseriramnoscircuitosdominantestêmcondiçõesdecederolugardevítimasprioritárias àquelesqueestãosobojugodoEstadodeIsrael.

Hojeemdia,osmaiorespensadorespós-coloniaisoudecoloniaisestãoforadocircuitoeuropeu–Bhabha,Glissant,Said –,nósacrescentaríamos,numaoutrachave,Mbembe,Viveiros deCastro,Butler,Chakrabarty.Poisdemaneirasdiversassustentamumacríticaaoeurocentrismo,oureafirmamaprovincializaçãodaEuropa.Osurgimentodomovimentopós-colonial coincide,segundoTraverso,comaexaustãodociclocríticojudaicopréepós-holocáustico.Said,numaentrevistaaofinalde suavida,seconsiderouo“últimointelectualjudeu”…

Tudoparecesemsaída,amenosqueseinventeumasaída.A começar,digamos,pelafiguradeumjudeuliberadodesuadependênciaemrelaçãoaoantissemita,porumlado,edatuteladoEstadodeIsrael,poroutro.Sóentãoadiásporapoderiareinventar-se nasmaisdiversasdireções,semficarsartreanamentesubjugadaao olhardoOutro52 –oeternoinimigoantissemita–,nempermanecersubmetidaàtuteladeumEstadocadavezmaisobcecadocom asupremaciajudaica–nachaveetnocrática.Sóentão,talvez,a contraposiçãojudeu/gentiodeixassedeconstituiromotocentral davidajudaica,abrindo-aparaoutrasaventuras,alianças,afetos, composições.Avida,agorapensadaemtermosdedefesaeataque, derrotaouvitória,extermíniooudominação,teriaalgumachance

52.JeanPaulSartre, Réflexionssurlaquestionjuive. Paris:Gallimard,1954,p.98:“Mostramos queosjudeusnãopossuementresinemcomunidadedeinteresses,nemcomunidadede crenças.Elessequertêmumapátria,nãotêmnenhumahistória.Oúnicoliamequeosune éodesprezohostilemqueosmantêmassociedadesqueosrodeiam”.

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deseredefinirporparâmetrosdistintos,taiscomoconfluência, hibridação,devir-outro, TikunOlam [reparaçãodomundo].Eas comunidadespoderiambasear-seemafinidadeséticasenãoem filiaçõesétnicas,multiplicaçãodeterritóriosexistenciaisenãoem conquistabélicadaTerraPrometida.Seráqueolegadoespiritual judaico,noseurepertóriovariegado,dispõederiquezaeforçasuficientesparainspirartalreversão?Ouseriaprecisoirmaisalém, além-do-judeu,talcomoNietzschepregouoalém-do-homem?

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