“Alfabeto” – Pedro França
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INTRODUÇÃO
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I – ESTADOS DE ESGOTAMENTO Vida besta, vida nua, uma vida [agamben] Esgotamento e criação [tosquelles-beckett-deleuze] A catástrofe da liberação [simondon] O inconsciente desterritorializado [guattari]
101 125 135 149 177 197 209 223 231 250 265 299 335 347 371
II – PERSPECTIVAS SOBRE O NIILISMO
Travessias do niilismo [nietzsche] O bacilo da vingança [deleuze] Capitalismo e niilismo [lyotard-lazzarato-preciado] Impotência do mundo [jacobi-heidegger-sloterdijk] A potência de negação [dostoiévski] O arqueiro zen [axelos] III – POLÍTICAS DE DESSUBJETIVAÇÃO
A hipótese de Jó [negri] Brasil maior ou menor? [kant-deleuze] Experiência e abandono de si [foucault] Subjetivação e dessubjetivação [agamben-foucault] IV – MODOS DE EXISTÊNCIA
The Splendour of the Seas [ueinzz-riera] Linhas erráticas [deligny] O ato de criação [rancière-agamben-zourabichvili] Acreditar no mundo [james-lapoujade] Da polinização em filosofia [deleuze]
APÊNDICE
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Por uma arte de instaurar modos de existência
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REFERÊNCIAS DOS TEXTOS SOBRE O AUTOR
INTRODUÇÃO
Pode surpreender que um problema tão “europeu” como o niilismo, para não dizer “russo”, ocupe-nos hoje nos “trópicos”, se é que tal geofilosofia preserva ainda algum sentido em um contexto planetarizado. Que interesse pode haver em se debruçar sobre um tema tão brumoso ou depressivo — não terá sido apenas um modismo do século xix, já revolvido? É doloroso reconhecê-lo: o que Nietzsche chamou de “o mais sinistro dos hóspedes” continua entre nós, mais do que nunca, embora travestido em formas inauditas, e por vezes irreconhecíveis, que a cada dia pedem novas descrições, complementações, precisões. Daí o adendo quase redundante que nos atrevemos a agregar aqui, a título de explicitação, ao designarmos o niilismo contemporâneo como biopolítico — é nossa maneira de “atualizá-lo”. De fato, durante os últimos anos, essas duas linhas de pesquisa que nos interessaram — a biopolítica e o niilismo — não pararam de atrair-se, entrelaçar-se, percutir e remeter uma à outra reciprocamente. Era preciso, pois, investigar mais profundamente essa associação. A urgência da tarefa deve-se à pusilanimidade crescente em que convivem um alargamento indefinido dos modos de rebaixamento e monitoramento biopolítico da vida e uma imensa dificuldade em extrair desse contexto a variabilidade das perspectivas, dos modos de existência e de resistência que ele poderia suscitar. Há um estrangulamento biopolítico que pede brechas, por minúsculas que sejam, para reativar nossa imaginação política, teórica, afetiva, corporal, territorial, existencial. Algumas delas foram tratadas em livros anteriores, como A vertigem por um fio, ou ainda Vida Capital, mas o tempo mostrou que reclamavam uma ampliação conceitual e novos desvios. 13
É óbvio que, hoje, mecanismos precisos de controle da existência deram à interpretação feita por Nietzsche, sobre o niilismo, uma concretude suplementar: por exemplo, a negação da vida operada como “produção” de vida, a negação da saúde brandida como “produção” de saúde, para ficar em exemplos restritos — como se a mudança da lógica repressiva para a produtiva incrustada no exercício do poder, do modo como Foucault o mostrou, tivesse se escancarado. Mas esse processo tem seu avesso. Se no seu sentido rigoroso niilismo se refere ao declínio histórico-filosófico de uma matriz metafísica de negação da vida, Nietzsche postula que os mesmos sintomas podem remeter a “energias vitais que estão crescendo e quebrando uma casca”. Quais são tais energias vitais em nosso contexto? E como mapeá-las sem tangenciar a dimensão biopolítica? Paralelamente, a destruição ativa dos valores vigentes e, sobretudo, do modo de produção de tais valores, hoje, não pode fazer a economia da análise biopolítica. Pois a biopolítica, como Foucault a definiu, é gestão e controle da vida das populações, compatível com o que Deleuze chamou “sociedade de controle”, tendo por limite inferior o rebaixamento biologizante da existência (vida nua). No seu avesso, a expansividade multitudinária (afetiva, subjetiva, coletiva) afirma-se como biopotência em direções diversas, a serem mapeadas. Para ficar na terminologia nietzschiana, assistimos assim à dissolução de certas formações de domínio em favor de outras — por exemplo, a prevalência crescente do trabalho imaterial, em substituição ao modelo fordista, conduz a novas modalidades de produção de valor, a uma recomposição de classe e a novas linhas de conflitualidade. Tanto o niilismo quanto a biopolítica obedecem, desse modo, a uma lógica da fita de Moebius, dada a reversibilidade que lhes é intrínseca — sob certas condições, revelam o seu avesso. Como se, nos dois casos, fosse preciso ir até o limite de um processo para virá-lo do avesso. Ou melhor dizendo, como se só assim revelassem a força do avesso que desde o início ali estava, virtualmente, “fazendo pressão”. Se a lógica de ambos se assemelha a esse ponto, não será apenas por uma homologia estrutural. É também porque a biopolítica não deixa de ser uma concreção sócio-histórica, psico-política, afetivo-subjetiva do próprio niilismo, entendido como uma escalada de negação da vida, que no entanto traz embutido, na sua contraface, o elemento afirmativo. 14
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Era preciso, no entanto, sustentar os pontos onde as duas fitas de Moebius, por assim dizer, se cruzam e comunicam. Isso implicava assumir o caráter equívoco e não determinístico em ambos os casos, sem deixar-se engolfar nem pelas cores sombrias e sinistras que certa interpretação do niilismo ou do biopoder favorecem, nem, ao contrário, pelo tom esfuziante que algumas leituras da biopolítica instigam. Tal tensão apenas expressa o fato de que se está diante de um campo de forças complexo, múltiplo, atravessado por embates concretos em várias escalas, com todas as reversibilidades aí envolvidas. Contudo, deve-se reconhecer os perigos de toda abordagem que suponha uma totalização dada de início, em que se imagina um sistema fechado do qual caberia como que “sair”, com toda a impotência e paralisia que essa matriz suscita, ou, em contrapartida, a ansiada “superação” que postergaria para um além do tempo a grande “virada”. Como o notou com justeza David Lapoujade, em Deleuze e Guattari um sistema nunca é fechado, ele foge por todas as suas pontas, por isso tenta conter, “repelir, submeter essa heterogeneidade que o mina do interior”. Nesse sentido, “não se trata de ultrapassar ou de reverter seja lá o que for, mas de revirar […] percorrer a outra face […], o fora”.1 É esse, talvez, o sentido último do “avesso” que percorre este livro. Tarefa difícil, em que parece perder-se aquilo mesmo que se está em vias de mostrar. Foi preciso recorrer a figuras extremas, tais como esgotamento, desastre, catástrofe, e mesmo caosmose, capazes de revelar os pontos de a-fundamento onde aparecem, paradoxalmente e ao mesmo tempo, os contramovimentos (ao niilismo e do niilismo, à biopolítica e da biopolítica). Impossível, pois, falar do niilismo hoje sem mergulhar nesse caldo complexo e composto, no qual emerge, sem qualquer psicologismo, uma dimensão corpórea, matérica, afetiva, estética, psíquica, psicopolítica, micropolítica, biopolítica que, através de certos desarranjos ou colapsos, revela os componentes heteróclitos que apontam para novos agenciamentos a partir de um outro “Sim!”. São nesses pontos de inflexão que se insinuam, de maneira às vezes imperceptível, os contragolpes que 1. David Lapoujade, “Deleuze: política e informação” in Cadernos de subjetividade, no 10. São Paulo: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da puc-sp, 2010.
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se ensejam, mas também, de maneira espetacular, explosões multitudinárias que denunciam os modos de produção de sentido e valor que caducaram. Para formulá-lo de maneira mais precisa, diríamos que não se trata de produzir um amálgama entre niilismo e biopolítica, porém de experimentar a dimensão biopolítica do niilismo, a dimensão niilista da biopolítica e o avesso de ambos. Só assim pode aparecer o que se esgotou e aquilo que se insinua a partir de uma força do fora. Para um panorama mais amplo sobre a problemática do niilismo, foi preciso, por vezes, recorrer a autores pouco citados no circuito filosófico, já que nos proporcionam uma perspectiva menos codificada a respeito. Blanchot, por exemplo, parece sugerir que todas as palavras dessa constelação filosófica ou literária já estão condenadas de antemão, incapazes de dizer o que está aí em causa — seja niilismo, nada, ser, destruição, ou mesmo criação.2 Em nosso afã de descrever esse fenômeno de civilização, essa mudança atmosférica, acrescenta ele, faltam-nos as palavras justas, precisamente porque o que está em jogo é uma movência que arrasta consigo as dicotomias ainda fáceis demais, tais como Ser e Nada. Pois o niilismo nos ameaça não onde ele parece fazê-lo de maneira mais manifesta, mas justamente ali onde parece “assegurar-nos”. O nazismo, por exemplo, jamais se pretendeu destrutivo, tendo sempre atribuído a destruição aos outros, judeus, artistas, decadentes, marxistas, ateus, num “niilismo” a ser superado precisamente pelas figuras extraídas caricatamente de Nietzsche, como o super-homem e a vontade de potência. Em outras palavras, o nazismo sempre propôs valores positivos. Talvez não haja destruição que não se dê assim, acrescenta Blanchot, salvo casos raros como na Rússia do século xix, à qual dedicamos um capítulo. Portanto, para tratar do niilismo a última coisa útil é falar do nada: “Há ainda muita positividade no nada. A enormidade dessa palavra, como a enormidade da palavra ser os fizeram, um e outro, desmoronarem sob suas ruínas (ruínas ainda por demais vantajosas). Eis aí termos que é melhor evitar.”3 2. Maurice Blanchot, L’entretien infini. Paris: Gallimard, 1969, p. 394 e ss. [Ed. bras.: A conversa infinita 2: a experiência limite, trad. de João Moura Jr. São Paulo: Escuta, 2007]. 3. De fato, deve-se distinguir a reflexão sobre o nada do niilismo como problema de civilização. Ocorre reduzir-se este último a uma questão ontológica, metafísica ou mesmo lógica. Cf. Franco Volpi, O niilismo. São Paulo: Loyola, 1999.
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Como fazer, então, para abordar o tema, recusando a sua substantivação ou reificação, assumindo sua esquiva infinita? Não há resposta, mas táticas locais. Um dos desafios, em todo o caso, consistiu em recusar a cada passo uma leitura “niilística” do niilismo — com o que nos distanciamos de várias abordagens disponíveis, embora consagradas, que remeteriam à “história do Ser” ou a uma dialética antropocêntrica calcada nas noções de alienação, reapropriação, autenticidade. Tanto a solução aurática quanto a humanista “resolve” o que nos escapa, tendo-nos sido preferível a linha do escape — mesmo quando isto não “resolve” nada. Ao reconhecer a modéstia do empreendimento filosófico de Deleuze diante da pergunta militante, “mas afinal, então, o que você propõe?”, Lapoujade responde que essa pergunta volta porque ainda não se fez o luto “da filosofia como aparelho de Estado”.4 Os autores que mais nos ajudaram, portanto, mesmo quando mal tematizam o assunto, foram aqueles que sustentam um “tônus”, uma allure, para não dizer uma “velocidade de salto”, uma “crueldade” até: Nietzsche, James, Deleuze, Guattari, Simondon, Foucault, Blanchot às vezes. Mas também Lapoujade, Zourabichvili, Tosquelles, Riera, Preciado. Muitos outros foram convocados, entre eles Negri, Agamben, Rancière, eventualmente Žižek ou Baudrillard, Jünger, mesmo Heidegger, de modo que os textos que se lerá são também uma conversação ziguezagueante com um leque de posições, forças, gestos e ímpetos muito distintos que atravessam nosso presente, inclusive quando operam de modo polêmico ou conservador. Se os livros consultados que tratam mais diretamente do niilismo nos pareceram insuficientes, justificando assim a presente empreitada, é porque, com exceção dos bons estudos focados no niilismo em Nietzsche, nacionais ou estrangeiros, os demais, ao pensarem o contexto contemporâneo à luz da perspectiva nietzschiana, em geral foram escritos sob a sombra da Floresta Negra, em todo o caso na proximidade de Heidegger.5 Por vezes, ao mesclarem juízos peremptórios sobre a do4. D. Lapoujade, “Deleuze: política e informação”, op. cit. 5. Basta percorrer os estudos e coletâneas recentes para confirmar tal tendência. Cf.: Pier Paolo Ottonello, Structure et formes du nihilisme européen. Bordeaux: Bière, 1987; Denise Souche-Dagues, Nihilismes. Paris: puf, 1996; Jean-François Mattéi (org.), Nietzsche et le temps des nihilismes. Paris: puf, 2005; Rossano Pecoraro, Niilismo e (pós)modernidade. São Paulo: Loyola, 2005; ou R. Pecoraro e Jaqueline Engelmann
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minação planetária da técnica a diagnósticos não menos lapidares extraídos de Guy Debord (sobre a sociedade de espetáculo), ou da Escola de Frankfurt, (por exemplo sobre a indústria cultural), ou de Agamben (sobre o estado de exceção), adotam uma atitude de demonização do contemporâneo, não raro apoiados em uma indignação “politicamente correta” e em um humanismo duvidoso, para não dizer regressivo. Tal conjunto, com todas as análises penetrantes ou sedutoras que possam aportar — e algumas delas foram aqui retomadas —, impede de pensar a questão a partir do nosso presente, de suas múltiplas energias e sua molecularidade enxameante, bem como de um contexto material e imaterial específico, maquínico e semiótico, que demanda ferramentas de abordagem inauditas. Particularmente importante foi a exploração de certos processos paradoxais que atravessam esse contexto em pares, tais como subjetivação/dessubjetivação, individuação/desindividuação, cuidado de si/desapego de si, desmedida da dor/desmedida do poder, esgotamento/criação, obra/desobramento — vida nua/uma vida. Não pudemos esconder nossa suspeita em relação às leituras excessivamente totalizadoras, seja no arco histórico que remonta à antiguidade, seja no alcance extensivo que abrange todo o espaço planetário, resultando às vezes em uma tonalidade de aversão a priori pela complexidade contemporânea — que já é, diga-se de passagem, parte do sintoma a ser pensado. Como o diz Deleuze numa referência à análise de Kostas Axelos, que tentou conjugar Heidegger, Marx e Heráclito para pensar a era “planetária”: justamente quando tudo parece nivelado, quando a terra se tornou lisa, e todas as potências se deixam determinar pelo código da técnica, enfim, é nesse estado aparentemente unidimensional que o niilismo tem o mais bizarro dos efeitos, o “de restituir as forças elementares a elas mesmas no jogo bruto de todas as suas dimensões, de liberar esse nihil impensado em uma contrapotência que é a do jogo multidimensional. Do mais infeliz dos homens, não se dirá que ele é alienado ou trabalha para as potências, mas que ele é sacudido (orgs.), Filosofia contemporânea: niilismo, política, estética. São Paulo: Loyola, 2008; Georges Leyenberger e Jean-Jacques Forté (orgs.), Traversées du nihilisme. Paris: Osiris, 1993-4; Remedios Ávila, Juan Antonio Estrada e Encarnacion Ruiz (orgs.), Itinerarios del nihilismo. Madri: Arenas, 2009; etc. Viés semelhante pode ser encontrado em outros textos referidos ao longo deste livro.
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pelas forças”.6 É essa irreverência diante do tom grave, solene e lapidar que permite relançar o jogo (“isso joga, sem jogadores”), evitando as capturas niilísticas — em suma, livrando o pensamento do niilismo do risco de se tornar o niilismo do pensamento. Essa capacidade de virar do avesso, de sacudir o consenso empoeirado, de encontrar as contrapotências, os contragolpes, os novos estratagemas, e também as novas desordens que a suposta ordem totalizada encobria, preside certas escolhas presentes neste livro, já que por si só instaura um outro combate. Algumas vezes, mais do que a distinção entre o verdadeiro e o falso, importa uma outra, entre o pesado e o leve, o profundo e o aéreo. Ao se referir a uma música de Charles Koechlin, por exemplo, que renuncia às afirmações clássicas e aos arroubos românticos, Deleuze nota a que ponto ela se torna particularmente apta a dizer “certa desordem, certo desequilíbrio, certa indiferença mesmo”, e, além disso, uma “alegria estranha que seria quase felicidade”.7 Não é outra a direção que adota um belo livro publicado recentemente por Georges Didi-Huberman, inquieto com a predominância de um tom apocalíptico que impede precisamente de dar a ver aquilo que sobrevive, num estranho paradoxo no qual o discurso de denúncia, por mais lúcido e “luminoso” que seja, ajuda a ofuscar justamente as existências que sobrevivem ou se reinventam, com sua discreta luminosidade. O autor sustenta com razão que “uma coisa é designar a máquina totalitária, outra coisa é lhe atribuir tão rapidamente uma vitória definitiva e sem partilha. Assujeitou-se o mundo, assim, totalmente como o sonharam — o projetam, o programam e querem no-lo impor — nossos atuais ‘conselheiros pérfidos’? Postulá-lo é, justamente, dar crédito ao que sua máquina quer nos fazer crer. É ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos projetores. É agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência. É não ver mais nada. É, portanto, não ver o espaço — seja ele intersticial, intermitente, nômade, situado no improvável — das 6. Gilles Deleuze, “Falha e fogos locais”, trad. bras. de Hélio Rebello Cardoso Júnior in D. Lapoujade (org.), A ilha deserta e outros textos, coord. de trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 208. Cf. capítulo “O arqueiro zen”. 7. Ibid., p. 205.
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aberturas, dos possíveis, dos lampejos, dos apesar de tudo”.8 Ou ainda, retomando sua bela imagem, ele acrescenta: “Para conhecer os vaga-lumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores. […] Assim como existe uma literatura menor — como bem o mostraram Gilles Deleuze e Félix Guattari a respeito de Kafka —, haveria uma luz menor possuindo os mesmos aspectos filosóficos.”9 Tudo indica que há mesmo um problema de “luz” no pensamento. Como não ofuscar a luz menor com o “holofote” da razão? Bergson dizia que a luz está no mundo, não no espírito que contempla. É possível que um regime de luminosidade obscena e pornográfica, tal como se desenha atualmente, tenha efeitos inéditos de ofuscamento das “bioluminescências” — niilismo branco! Daí nossa menção mais detida a experimentos micropolíticos que dão disso um contratestemunho contundente, tais como os capítulos sobre as linhas erráticas em Deligny, ou sobre a viagem transatlântica em “The Splendour of the Seas” ou no apêndice, em que são abordados modos de existência “menores” e, para falar como Souriau, sua “instauração”. Já podemos relançar a pergunta que não quer calar. Afinal, do que é que estamos tão esgotados? É preciso imaginar uma cartografia do esgotamento que fosse uma espécie de sintomatologia molecular. Ora, seguindo a trilha de Deleuze, não deveríamos repensar o esgotamento, hoje, segundo categorias beckettianas? Talvez isso nos permitisse encarar com menos sobressalto os estados de suspensão, de falência, de bruma musiliana, de deriva subjetiva ou até mesmo de dissipação, seja individual ou coletiva, de gênero ou de nosografia, e vislumbrar neles estratagemas vitais, indissociáveis das forças de que são expressão. De minha parte, para quem todos esses autores, pensamentos, ventos e eventos constituem fontes de inspiração incessantes, fica a impressão de que eles são também o indício, mesmo fugidio, de um deslocamento em curso. De quem? Do quê? Em qual direção? Não sabemos. É uma cartografia coletiva, inacabada, movente, dos avessos do niilismo 8. Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, trad. bras. de Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: ufmg, 2011, p. 42. 9. Ibid., p. 52.
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biopolítico — o esgotamento obedece aí a uma lógica similar ao do niilismo e à da biopolítica, pois lhes é correlato — a da fita de Moebius que indicávamos acima: apenas quando vai ao seu limite advém um avesso e a vidência de um fora. A expressão “cartografias do esgotamento” deve ser entendida também no genitivo: o esgotamento ele mesmo é o cartógrafo, por assim dizer, indicando pontos de estrangulamento através dos quais se liberam outras energias, visões, noções. Não se trata, portanto, de saber “quem fala”, nem “de qual lugar se fala”, talvez nem mesmo “do que” se fala, mas, como o sugeriu Guattari, “o que fala através de nós”. Só assim, e numa polinização filosófica que o último capítulo deste livro evoca, um outro enxameamento parece pensável.
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