COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS A Coleção de Zines das Clínicas de Borda Psicanalíticas Brasileiras, aberta a novos fascículos, nasce da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadas e inconformados com a resposta clínica de seu fazer e de sua formação face à realidade nacional brasileira, exposta à brutalidade e à violência estrutural. Trazem experiências múltiplas e plurais, sem necessariamente criarem um mínimo comum, nas quais experimentam o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, meios de formação. Nasceram da resistência dos movimentos sociais, em reação a genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, deslocamentos migratórios, nas periferias, praças, estações, ocupações, quilombos. Seu fazer é produto da rua e dos modos possíveis de cuidado a que o enlace transferencial na direção do tratamento psicanalítico dá visibilidade e nome a corpos apagados no cotidiano. Instituem elementos necessários na teoria e na prática, revisitando as clínicas públicas e populares, datadas dos tempos de fundação do campo psicanalítico com Sigmund Freud. Reviradas pela experiência do Sul Global, em elipse, olham o avesso do espelho e atravessam suas fronteiras. Marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos modos de partilha e de presença. Saem definitivamente do modelo burguês do consultório individual. Recebem os analisantes, tanto online, quanto em cadeiras expostas ao sol, a fim de escutarem seu sofrimento. Colocam o pagamento em xeque, não mais no cheque. Trazem a marca de sua região, de sua língua, das ricas expressões dos dialetos brasileiros. Distribuem-se em cada canto do país e questionam o modo de circulação do capital e de resposta do inconsciente às violações cotidianas. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica psicanalítica e da lógica excludente da formação do psicanalista, enfim, sua presença na polis. Elas não estão todas reunidas aqui. A coleção, aberta, aguarda novas presenças nessa escrita histórica. A psicanálise mudou. A gente queria que você soubesse.
Zine Clínicas de Borda Clínica do Cuidado Clínica do Cuidado, 2023 Editora n-1, 2023 ISBN: Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagem e a especificidade de cada obra publicada. COORDENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes DIREÇÃO DE ARTE Ricardo Muniz Fernandes CAPA E DIAGRAMAÇÃO Thata Oliveros COMITÊ EDITORIAL DA COLEÇÃO CLÍNICA DE BORDAS Andréa M C Guerra Augusto Coaracy Daniel Mondoni Marta Togni Ferreira Pedro O. Obliziner A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessário a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. 1° edição | junho, 2023. n-1edições.org
Título: Coleção Clínicas de Borda Autor: Clínica Periférica de Psicanálise Medidas: Número de páginas: Assunto geral do livro: Psicanálise de rua Palavras chave: Psicanálise; Clínica pública; Política; Clínica de borda ISBN:
Zine Clínicas de Borda COLEÇÃO: 1. PsiMaré (Rio de Janeiro/RJ) 2. MOVE: Movimentos Migratórios e Psicologia (Curitiba/PR) 3. ClínicAberta de Psicanálise de Santos (Santos/SP) 4. Falatrans (Juiz de Fora, UFJF/MG) 5. Ocupação Psicanalítica (Belo Horizonte/MG; Rio de Janeir/RJ; Vitória/ES; Santo Antônio de Jesus/BA) 6. Estação Psicanálise (Campinas/SP) 7. Coletivo Margem Psicanálise (Fortaleza/CE) 8. Intervenção Psicanalítica Clínico - Política às demandas da População LGBT (Rio de Janeiro/RJ) 9. Rede Sur (São Paulo/ SP) 10. Roda de escuta/grupos flutuantes LGBTQI+ (Aracajú/SE) 11. Clínica Periférica de Psicanálise (São Paulo/SP) 12. Clínica do Cuidado (Altamira/PA; São Paulo/SP) 13. Coletivo Psicanálise e Política e Cotidiano Refugiado (Rio de Janeiro/RJ) 14. Projeto Gradiva (Porto Alegre/RS) 15. Museu das Memórias (In)Possíveis (Porto Alegre/RS) 16. Psicanálise na Rua (Cuiabá/MT) 17. Coletivo Testemunho e Ação/SIG (Porto Alegre/RS) 18. Margens Clínicas (São Paulo/SP) 19. Psicanálise na Praça Roosevelt (São Paulo/SP) 20. Psicanálise no Jacarezinho (Rio de Janeiro/RJ) 21. Mutabis (São Paulo/SP) 22. Clínica Aberta Casa do Povo (São Paulo/SP)
E a gente se apresenta... Somos uma equipe de 15 clínicos, psicanalistas, psicólogos e psiquiatras que, em 2017, foi até Altamira, no Pará, para escutar os ribeirinhos atingidos pela construção da Hidrelétrica de Belo Monte. A gente acabou por se apelidar de cuidantes, nome que vem de nossa filiação à Clínica do Cuidado, um dispositivo de intervenção clínica concebido em uma relação direta com esse território e, inicialmente, proposto por Ilana Katz, pesquisadora do Instituto de Psicologia da USP e pelo Prof. Dr. Christian Dunker, professor titular do mesmo Instituto. A Clínica do cuidado, podemos dizer assim, foi a ação clínica de um projeto maior, idealizado pela jornalista Eliane Brum, e que chamamos de “Refugiados de Belo Monte: atenção em saúde mental”. O projeto, além da escuta e do tratamento, propôs também a documentação do sofrimento dos ribeirinhos, os refugiados produzidos por Belo Monte. Para realizar essa intervenção contamos com o apoio de 1.305 pessoas que colaboraram com o financiamento coletivo para custear a expedição da equipe clínica para Altamira. Entendemos, naquele momento, que a origem do dinheiro faria diferença no compromisso firmado com uma população vitimada pela omissão violenta do Estado. Chegamos lá financiados por pessoas comuns. Um instante comunitário, um tecimento de laço entre apoiadores/sustentadores e nossa ideia propositiva que viabilizou o trabalho. Vocês encontram esse pedacinho inicial da nossa história nesse link aqui, ó: https://www.catarse.me/refugiadosdebelomonte. Agora a gente, a equipe Clínica do Cuidado, vai contar a história da sua invenção e de sua ação. A gente é: Anna Mariutti, Ana Carolina Perrela, André Nader, Cassia Pereira, Flavia Gleich, Flavia Ribeiro, Erika Pellegrino, Layla Gomes, Maíra Riek, Noemi Bandeira, Pedro Obliziner, Rodrigo Souza, Vivian Karina da Silva, Ilana Katz e Christian Dunker. Sem esquecer nossa querida semente Eliane Brum – semente é aquele que, por seu grau de confiança junto à comunidade atendida, nos passa essa confiança e permite o nascimento de transferências para que o trabalho de escuta possa ocorrer – e nossos olhos de registro, documento e poesia, Lilo Clareto (em memória). A história da Clínica do Cuidado: sua invenção e sua ação. Para começar, precisamos dizer que essa história tem onde e com quem, teve porquê e como.
Onde e com quem O processo de instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte nas margens do rio Xingu, no interior da Amazônia brasileira, entre os anos de 2011 e 2016, foi de tal maneira violento que a população ribeirinha que ali vivia sofreu todo o tipo de violação de direitos. As diversas oportunidades em que o Estado teve de interferir nesse processo, às vezes que fez algo e às vezes que fez nada, atestam sua posição deliberadamente negligente em relação a essa população. Essa negligência produziu uma condição de extrema vulnerabilidade psicossocial de cada uma das pessoas que ali vivia. Isso significa dizer que a população foi expulsa de suas casas sem ter como se sustentar – com todas as ressonâncias esse verbo pode conter – em pé. Como nos disse um ribeirinho: “Não está bom não. Lá a gente tinha tranquilidade, aqui não tem trabalho. Quem é do mato não sabe viver na rua. Lá você quer uma fruta, sabe onde tem, aqui a gente não sabe fazer dinheiro”. Quando falamos “população” é bom lembrar que nos referimos a aproximadamente 20 mil pessoas que foram expulsas de suas casas e que tiveram seu modo de vida inviabilizado. 20 mil pessoas que, ao mesmo tempo que não podiam parar de pé na cidade, não estavam mais vivendo com a floresta para fazê-la de pé. Mas essa não foi a primeira vez que foram expulsos. Muito antes disso, esse território já havia sido vitimado por uma série histórica de violação de direitos. Altamira fica a 749 quilômetros de Belém, capital de seu estado, Pará, e foi, desde o final do século XIX, polo de apoio para as investidas de desenvolvimento na Amazônia brasileira. Como aprendemos nos livros de história, essas investidas começaram por grupos não indígenas, no século XIX e início do século XX e estavam ligadas, em sua maioria, à exploração do látex das seringueiras nativas. Tais grupos eram formados por migrantes nordestinos que, patrocinados pela indústria extrativista da borracha e na tentativa de escapar das secas que assolavam a região do Nordeste do Brasil, se instalaram na Amazônia. São os conhecidos “soldados da borracha”. Os ribeirinhos que a gente encontrou lá, os que hoje vivem na região de Altamira, são, em sua grande maioria, descendentes desses migrantes que vieram trabalhar nos seringais dos rios Xingu, Iriri e Riozinho do Anfrísio. São assim, como a Dona Orquídea que se apresenta: “sou beradeira desde molinha, filha de soldado da borracha com mãe cabocla raciada com índio”. Ou ainda como Seu Kirpau que, contando a história da sua família, contou junto a história de ocupação do território, construção de um jeito de viver: seu avô, no início do século passado,
dedicava-se à “caça de gato” (onça) e depois se tornou seringueiro, atividade ensinada ao pai e ao próprio Seu Kirpau, ainda pequeno. Com a queda da borracha no mercado e também por causa das violências sofridas nas terras dos seringueiros, Seu Kirpau migrou para o garimpo e, depois para a pesca. E assim a gente foi conhecendo a história do território com quem a gente foi escutar. Depois dos ciclos da borracha, em 1969 teve início a construção de uma grande rodovia visando ligar o extremo leste (região Nordeste) ao extremo oeste (na região Norte), com 4.260 km de extensão. É a Transamazônica, obra realizada no governo do presidente ditador Emílio Garrastazu Médici (1969 a 1974). Para os militares defensores da rodovia, a floresta estava vazia, a rede de sustentação socioambiental, seu ecossistema – que inclui os humanos: indígenas e ribeirinhos, que ali habitavam – não existia. Pareceu aos conquistadores do século XX que toda aquela vastidão verde era terra de ninguém. Para eles, populações das florestas não eram exatamente populações, ou não existiam. Eles diziam “terra sem homens para homens sem terra”. ¹
O resultado? A estrada devastou o que viu pela frente, em mais uma tentativa, dentre outras que vieram antes, depois e mais ainda, de conquistar a floresta. “Naquela época era muita lama e muita luta” nos disse uma ribeirinha relembrando essa devastação. Como se não bastasse a borracha da guerra, a estrada que rasga a floresta, a hidrelétrica que mata o rio, tem também o garimpo, prática antiga e atualíssima que assola a região em sua mais nova versão Belo Sun² – empresa canadense que pretende construir a maior mina de outro a céu aberto – ameaçando prejudicar ainda mais a já sofrida Volta Grande do Xingu. A esperança do enriquecimento pelo ouro parece até mesmo seduzir alguns ribeirinhos que seguem acreditando que pode haver “prosperidade com o novo empreendimento”, assim como na época da instalação de Belo Monte. “Agora ninguém tem mais dinheiro para nada. Antes a cidade crescendo a olhos vistos, agora o dinheiro não circula” nos fala Flor do Carajás, sem, no entanto, ligar o “crescendo” de antes com a estagnação de agora, movimento típico das “práticas predatórias que inibem a emergência de uma economia do conhecimento da natureza e estimulam a permanência do que hoje pode ser chamada de economia de destruição da natureza” (ABRAMOVAY, 2019, p. 19).
Por que e como Quando chegamos, é importante dizer, cineastas, documentaristas, jornalistas, advogados e ambientalistas já se faziam presentes no território. Estavam lá de forma independente ou articulados a trabalhos de organizações não governamentais de proteção socioambiental e de luta por direitos civis. A jornalista Eliane Brum, que escuta os atingidos por Belo Monte desde 2004, entendeu que uma iniciativa diretamente dirigida ao cuidado com o sofrimento psíquico se fazia necessária. Ela falou assim sobre esse momento: “Eu cubro diferentes Amazônias há mais de 20 anos, mas essa região do Xingu desde 2004. Em 2016, eu estava andando pelas ruas de Altamira, num mês de janeiro. Eu tinha vindo com alguns psicanalistas para fazer uma pesquisa prévia para o projeto Refugiados de Belo Monte/Clínica de Cuidado, porque tinha percebido que algumas daquelas pessoas estavam em sofrimento mental intenso, aniquilador, por terem sido arrancadas de suas ilhas e beiradões do rio. Precisavam de outro tipo de escuta.³ Esse foi o porquê: um outro tipo de escuta se fazia necessária, uma escuta que tentasse alcançar o sofrimento aniquilador que deu margem à emergência de sintomas, crises de angústia e construiu a propensão a atos impulsivos e passagens ao ato. A gente escutou Eliane, que conhecia muito bem a população, e desenhamos uma intervenção orientada para a escuta e tratamento do sofrimento psíquico desencadeado pela operação Belo Monte, foi essa operação, composta entre muitos gestos, que chamamos de “Refugiados de Belo Monte: atenção em saúde mental”. Para isso, a gente teve que estudar e se aproximar muito bem do que se passava naquele momento e também do que aconteceu antes da construção da barragem. Era, para a gente, um ato de produzir alguma territorialização. E, então, escutamos e aprendemos, aprendemos escutando as lideranças locais, os ribeirinhos, os antropólogos que estavam lá, lemos o que a ciência havia produzido sobre o território e investigamos o que havia sido produzido de política pública em saúde para aquela região do país.
E aprendemos O alagamento da região que se tornou o reservatório da usina hidrelétrica justificou a expulsão dos ribeirinhos que moravam nas ilhas do Xingu e em suas margens. Neste contexto, a definição jurídica e discursiva do que vem a ser uma casa, o modo de restituir seu valor, a forma de recompor seu lugar com a comunidade conexa que lhe define tinha toda a sua importância. Mas, no entanto, tudo isso foi decidido pela empresa Norte Energia, com a anuência do Estado Brasileiro, e sem consideração à cultura e aos modos de pertencimento da população local. A política de reassentamento proposta incluiu, então, relocações em pequenas casas de alvenaria construídas em bairros planejados nos moldes citadinos (Reassentamento Urbano Coletivo - RUC), muito longe do tipo de vivência cotidiana dos ribeirinhos. Sem falar nas indenizações financeiras que nem de longe permitiram a recomposição de uma vida. Tudo aquilo que fazia a proteção para o habitual foi retirado dessas pessoas: a casa, os laços de vizinhança, as atividades extrativistas de sustento. Entendemos rápido o poder de devastação do que se sucedia: nunca se tratou de reassentar a população, a ação central era a sua expulsão: não havia mais território subjetivado. Fomos até lá orientados pelo entendimento do filósofo da comunicação e pensador da cultura Vilém Flusser (2007): para ele, a pátria é uma rede de ligações comuns, que podem ser impostas pelo nascimento em um determinado território, mas também podem se constituir por laços de amizade e amor eleitos em uma experiência de liberdade em relação ao acontecimento biológico. E entendemos que era nesse sentido que a população ribeirinha atingida por Belo Monte deveria ser pensada como uma população expatriada. Seus hábitos e suas redes relacionais foram destruídos, mesmo que tenham continuado a viver no mesmo lugar. Toda essa mudança de vida foi feita de modo muito violento, resultando em um impacto que excedeu a capacidade de elaboração simbólica da experiência pelo sujeito. Quando a gente se encontra assim, transpassado pelos acontecimentos, a gente costuma acessar nossa rede de apoio para conseguir, devagar, se levantar. E era justamente isso que não era possível ser feito facilmente. A rede de apoio estava desfeita, e não havia nenhuma política de proteção social que se propusesse, efetivamente, restituir o cuidado. O impacto encontrou cada uma das pessoas sem a possibilidade de acessar suas redes de cuidado e foi por isso também que o acontecimento de Belo Monte assumiu o estatuto de trauma para essa população. Um acontecimento que não alcança contorno assume um caráter repetitivo vivido como eternamente presente, não “vira memória”, pois se instala na série de violências sofridas, recuperando cada uma delas e insistindo como repetição. Para quem quiser entender melhor o traumático e a repetição, a gente recomenda começar pelo texto freudiano Recordar, repetir,
elaborar, de 1914, ou ainda por sua 18ª Conferência: A fixação ao trauma, o Inconsciente, de 1917. Agora, como a gente fez? Bom, a gente começou por escutar os ribeirinhos e os agentes de cuidado que já estavam no território. Foram algumas viagens até Altamira. A primeira ida a campo foi em julho de 2016. Nesse momento, a gente procurou pelos nomes que os atingidos davam ao seu sofrimento. Descobrimos, assim, que eram significantes que apontavam como essa população, enquanto grupo de pessoas, compartilhava uma narrativa de sofrimento que dizia respeito ao acontecimento Belo Monte, e, então, foi possível ver como o impacto da construção da barragem se articulou em campos diversos. Vamos ser bem específicos agora para que vocês possam ter ideia da problemática vivenciada pelos ribeirinhos e que tínhamos diante de nós.
Cartografia do sofrimento PERDER A CASA “Aqui na Amazônia a casa é sempre da família. Podem imaginar o que é não poder receber a sua família? Ter que dizer pro seu pai que não tem lugar pra ele na sua casa?”. O impacto na rede de hábitos, na palavra dos ribeirinhos, aparece entorno das formulações sobre a casa. A casa, para essa população tradicional é uma ideia muito mais ampla do que a que se experimenta em outras organizações culturais. A casa se abre numa ampla experiência com o território, que inclui a floresta e o rio. A casa inclui ainda a vizinhança, os laços comunitários, o trabalho, a produção do alimento e a possibilidade de acolhida da família que não habite o mesmo território ou que eventualmente cresça com o casamento dos filhos. A casa é o território em que se organiza o hábito, onde o ribeirinho se veste de suas identificações que instituem pertencimento. Há também algo bastante particular que a caracteriza: a casa se abria em um registro de dupla moradia, uma “na rua”, que é usada como apoio na cidade, e outra na ilha, ou nas margens do rio, onde se vive e de onde se retira o sustento. Sempre que um ribeirinho falou para a gente sobre a perda da casa foi possível escutar que ele referia a bem mais do que aquilo que nós, numa outra cultura, referimos como casa. Era bem mais do que um lugar de morar. A rede de hábitos em torno da experiência da casa é o contorno de sua estrutura simbólica, sua referência de pertencimento. Neste sentido, as expressões “perda da casa”, “expulsão de casa”, e outras, configuravam um nome do sofrimento comum a todos aqueles que tiveram que sair de casa, e que refere a esse desordenamento bastante complexo do campo de inscrição simbólica do sujeito. Um ribeirinho, já assentado, refere-se à perda da sua casa fazendo alusão a todo o seu circuito comunitário, que contou como perda: “Queria ter ido todo mundo pro mesmo local. Queria sair no grupo”. SOU UM PESCADOR SEM RIO “Eu sou sabido [sobre o rio e a pesca], eu tenho meu saber”. A impossibilidade de viver “na rua” [cidade] estava marcada pela falta recursos simbólicos (de conhecimento e de saber) para situar-se: “Achei que tinha vencido na vida. Eu tinha pra ajudar, hoje é o contrário. Como vou recomeçar? Eu não vejo pra onde vou...” A condição identitária, fundamental para que alguém possa se apresentar diante de outro, fica profundamente abalada quando um sujeito não tem acesso a um saber próprio (subjetivado) para usar na sua relação com o mundo que o cerca. A experiência em torno do sustento também depende do rio. E esta era um elemento fundamental da constituição identitária nesta comunidade.
PERDIDOS “Tem sempre gente doente, é consequência da desorientação”. Perdidos é um significante usado para nomear a situação do ribeirinho seja por ele mesmo, seja pelos agentes sociais com quem eles se relacionavam. Era um termo que se abria em duas vertentes: perdido em relação à origem e também em relação ao futuro. Os atingidos, expulsos de suas terras e de suas casas, ao perderem o modo de vida, não tinham mais para onde voltar. Sua casa (na extensão aqui apontada) não existia mais. Os atingidos também não tinham recursos para organizarem-se na nova configuração da vida que se lhes apresentava: eles não têm para onde ir, não à toa, Eliane Brum os nomeou refugiados em seu próprio país. A GENTE NÃO SABIA: DESINFORMAÇÃO. “Minha casa, minha terra não me pertence mais. A Norte Energia se apropriou de tudo. Eu não escolhi sair de lá, assim como meu pai. A Norte Energia fez meu pai assinar o documento de venda da terra, sem ao nem explicar o significado”. Quando um ribeirinho dizia que não sabia o que estava escrito no papel que assinou, isso quer dizer bem mais do que a referência a sua condição de analfabeto. Eles não conheciam as condições de negociação e nem participaram da escolha da área de reassentamento, tampouco foram informados da data de seu realojamento. Não havia acesso a qualquer recurso que os tirasse da experiência de injustiça, de estarem sendo roubados e violados, pois tampouco foram informados sobre os recursos de resistência e contestação que o Estado deveria lhes oferecer. A empresa responsável pela obra não ofereceu informações suficientes para que os ribeirinhos conhecessem o cenário da negociação. A Defensoria Pública, como é de conhecimento de todos, só chegou em Altamira em 2015, quando a maior parte dos direitos já́ estava violada. Lembrando aqui: informação não é elencar dados e palavras que não tornem o conhecimento compartilhável ou que conduzam exclusivamente a processos alienantes. VIOLÊNCIA “Altamira parece um açougue, o pessoal mata os outros porque gosta, não tem amor pelas pessoas, parece que não existe mais Deus”. Os ribeirinhos que passaram a viver na cidade acusaram os impactos da violência urbana: assaltos, assassinatos e violência contra as mulheres. Todos falavam do aumento da violência como fator decisivo para o encurtamento das experiências comunitárias. O medo, nome de sofrimento referido à violência, passou a fazer parte das relações de vizinhança, pois o desconhecimento do semelhante somado a uma nova configuração territorial deixou o ribeirinho
desprovido de traços de reconhecimento a partir dos quais articular seu convívio. A presença dos barrageiros, trabalhadores da construção civil que estavam no Xingu para a construção da usina, também contribuiu para aumento da violência e sobretudo da violência contra as mulheres. “Na época que morava na rua da peixaria, eu gostava de usar roupas curtas, mas comecei a sentir medo dos homens e agora ao invés de vestidos uso calças compridas” AS DROGAS “Minha vida se transformou em três anos. Todo o dinheiro que ele ganhava dava na minha mão. Daí fazia muita pressão porque queria que eu lhe desse o dinheiro para usar de novo e de novo. Começou a tirar objetos de dentro de casa para vender. Ele se transformou em outra pessoa”. A percepção de aumento significativo de consumo e de tráfico de drogas, sobretudo o crack, e como isso afetou principalmente o jovem, em situação de extrema pobreza, que não sabia se situar na nova experiência de cidade, apareceu em muitas conversas. A relação com o tráfico repete aqui sua expressão mais violenta: o aumento significativo de assassinato de jovens. BEBIDA “Nossa vida foi esquartejada (...) A gente começou a beber pra conseguir dormir”. Era como uma tentativa de lidar com o sofrimento relacionado às perdas vividas, mas muitos também referem ao alcoolismo próprio ou de familiares como um modo de sofrer em si mesmo. OS DIREITOS “Eles disseram que os primeiros que foram lá conversar, nosso presidente [da associação de pescadores] chegou pra brigar e é por isso que perdemos tudo. Se eles tivessem ido conversando aí tinha muito mais direitos”. Fica clara a estratégia da empresa de dividir os grupos, desfazer os movimentos, particularizar as negociações. Isso se confirmou em todos os outros depoimentos de atingidos que escutamos. Mas, se direitos civis são conquistas já consolidadas e, portanto, garantias legais, como poderiam ser não ser objeto de negociação? Direitos, na expressão dos ribeirinhos fazia referência aquilo que deveria estar garantido e legitimado legalmente, mas não estava. No Xingu, a população não acessou os direitos civis que sua condição de cidadão brasileiro deveria lhe garantir. .
ENGANADOS E TRAÍDOS “Prometeram o progresso, chegou a desagregação das comunidades e a pobreza”; “Foi mudança só pro pior. Tivemos um ano de ilusão. E a ficha caiu (...) Perdi o direito de viver”. Enganados e traídos referia-se à todas as promessas feitas pela Norte Energia e pelo Governo Brasileiro que não se cumpriram: o enriquecimento, a manutenção dos vínculos comunitários, a reorganização da vida no novo território, enfim tudo que se vendeu em nome do “progresso”. CANSAÇO “Qual o pai de família que fica satisfeito com um problema desse? Pra quem vou apelar? Tive força, mas agora cadê a força? Com 64 anos? Pra onde eu vou? Pra quem eu apelo?” O cansaço estava presente na fala de todos e era referido às perdas produzidas no caminho da luta pelos direitos. A luta não alcançou seu objetivo, o território original ficou desfigurado e não foi reconstituído. O discurso reivindicatório que sustentou para muitos o último elo de pertencimento ao território não foi capaz de impedir a operação de Belo Monte e o enchimento do lago. Os ribeirinhos que acusavam cansaço se referiam sobretudo ao fato de não encontrarem interlocução, nos contaram suas longas peregrinações em busca do que entendiam ser seu direito, ou seja, a restituição das perdas: tentavam as instâncias indicadas pela Empresa, tentavam os órgãos governamentais, tentavam as instituições jurídicas. ADOECER “Sinto que sou nada, não consigo mais sentir que a casa é minha, não durmo, tenho dor de cabeça, pressão alta, desânimo. Preciso me reencontrar, minha alma está doente e tudo o que passei não consigo esquecer, está vivo dentro de mim” Os adoecimentos no corpo foram considerados efeito de Belo Monte, acometimentos físicos como consequência da desconfiguração territorial. Problemas cardíacos, acidentes vasculares cerebrais, diabetes, crises hipertensivas e depressões foram entendidos como doenças que acometeram a si e a seus próximos depois da chegada da Usina. Adoecer como efeito do impacto da experiência de perda. A partir dessa cartografia nos aproximamos do sofrimento ribeirinho e entendemos que a experiência de desagregação comunitária ocupou um lugar central no processo de adoecimento. A perda dos laços e a destituição do sistema de identificações foram efeitos diretos da desorganização do pertencimento ao território para essa população tradicional. É assim que eles vivenciaram a experiência de morar exclusivamente na cidade e longe do rio com .
absoluto estranhamento e sem nenhum amparo para constituir uma nova experiência circunscrita a seu modo de vida. De novo: nem rede de apoio, nem rede de proteção social. Mais uma vez: a ação decidida de desarticular a comunidade local e a escolha pela negligência. A imposição foi a de um outro modo de vida, e a isso, essa população não sabia responder. É a isso que as formulações em torno da experiência de sofrimento nomeada como “perder a casa” acima apresentadas estão relacionadas. Os modos de ocupação do espaço geográfico podem se dar de diversas maneiras, mas, o modo que isso se efetiva para cada sujeito relaciona-se ao que, do ponto de vista da Atenção Psicossocial, referimos como território, ou seja, os modos de subjetivação, de atribuição de sentidos particulares a um determinado espaço físico, a forma de uso deste espaço e as relações que ali se estabelecem. É com base nesse entendimento que o sujeito faz de seu espaço físico de circulação uma morada territorializada, para que possa ali se constituir em seu modo de vida. Além da morada, a gente tem que lembrar as atividades em torno das quais se organizavam o sustento dessas pessoas – atividades que sustentavam também o lugar desses sujeitos na cultura – foram duramente afetadas. Tal qual o trabalho assalariado realiza nas culturas urbanas, a atividade dos ribeirinhos confere a eles um lugar diante do outro, além de regular sua relação com o rio e com a floresta. Há aí um fazer da identidade, que confere lugar ao sujeito no laço social de maneira ampla. Ser pescador, por exemplo, arma todo o enredamento simbólico do sujeito em sua comunidade. Ser pescador é um elemento central no modo de viver ribeirinho: significa uma determinada forma de morar, de se ausentar da casa, de se relacionar com o rio, com a floresta e com as outras pessoas da mesma comunidade. Se esse fazer não é mais possível, não se trata simplesmente de perder um trabalho e conseguir um outro. Não é o mesmo que deixar de ser médico em um hospital para trabalhar na indústria farmacêutica – o que também não ocorreria sem algum efeito psíquico. Porque não é meramente de uma outra atividade ou um outro trabalho que se trata, mas de um outro território, um outro ser/estar no mundo, uma determinada forma de pertencimento, de se reconhecer e ser reconhecido. É de modo de vida que falamos, e escutar isso foi fundamental. Não há, para essas pessoas, outro rio. A identidade do ribeirinho se impacta se este deixar a pesca para ser pedreiro, por exemplo. Há uma alteração sistêmica no ritmo da vida, na forma de encontrar pessoas, no pertencimento, e sobretudo no reconhecimento conferido pelos pares. “Pescador” é uma das modalizações que o modo de vida ribeirinho pode assumir no cenário das pluriatividades que, articuladas, compõe a relação dessas pessoas com o rio e com a floresta. Trata-se aqui de uma ocupação de território, de pertencimento. Sem rio, ele não pode mais ser ri(o)beirinho. Se “pescador sem rio” nomeia o sofrimento dos ribeirinhos atingidos por Belo Monte, é ainda preciso guardar lugar para o sofrimento fruto deste esforço do ribeirinho de ter que se dizer na lógica do outro para fazer a entrada no campo
dos direitos civis. Um acontecimento complexo e paradoxal, uma vez que para entrar no campo dos direitos civis, o ribeirinho perde o direito de nomear-se em seus próprios termos, e junto com isso opera uma redução importante da compreensão de seu modo de vida. A contribuição da psicanálise é, após escutar tudo isso, demandar que o campo do direito possa repensar os termos de acolhimento da demanda de populações que são diversas porque tecem-se em outra geopolítica.
Um modo de escutar, efeitos formadores Incluímos na nossa formação de cuidantes a produção da análise acima, da escuta da história do território, que foi feita em quatro viagens de pesquisa de campo. Foram vários tempos: teve o tempo da nomeação do sofrimento; o tempo de construir o dispositivo, como a gente ia fazer para encontrar essas pessoas; teve o tempo de acompanhar a construção do Conselho de ribeirinhos, que foi fonte de nossos encaminhamentos, e teve o tempo de pensar a inversão da demanda e as transferências. Em nossas primeiras visitas, percebemos que a resistência e a luta, inicialmente contra a construção da barragem, depois pela mitigação dos danos produzidos, faziam uma função de suplência identitária diante da destruição que atingia todo o sistema de identificações da comunidade. Porém, reconhecer-se como vítima e aglutinar laços discursivos e práticos em torno disto concorria, muitas vezes, para o agravamento do sofrimento e dos sintomas. A cada derrota, a cada movimento de fragmentação, consolidava-se um ciclo de repetição extenso que redobrava o luto da perda de ideais na perda dos recursos de recomposição e resiliência. Já na primeira viagem, a gente entendeu que a proposição da categoria SOFRIMENTO PSÍQUICO para analisar a experiência dos ribeirinhos atingidos por Belo Monte ampliaria a possibilidade de cuidado e tratamento, incluindo toda a experiência de sofrer. Decidimos por um modo de leitura da experiência que incluiu a contingência, ou o que se refere como território, e que não isola e reduz o sujeito ao seu acontecimento físico. O sujeito não é tomado fora do laço social, que o constitui. Em uma outra viagem testamos o dispositivo de cuidado que desenhamos, e conhecemos os serviços de saúde mental da região. A essa altura, já sabíamos que não seria possível atender essas pessoas numa “sala de atendimento”, que seria necessário estar onde vivem, ir até elas. Na cidade, nos bairros, nos RUCs, na transamazônica, nas ilhas do rio Xingu. A relação dessas pessoas com a experiência física de território cumpre uma função discursiva, os gestos que apontam coisas, os lugares que mostram, as pessoas que encontram enquanto estão conosco, tudo isso cumpre uma função muito particular: de um lado despertam palavras, e de outro, entram, na narrativa, no lugar da palavra que não há. Sabíamos, também, que teríamos o trabalho de, ao ofertar a escuta e o registro do testemunho, tentar produzir uma inversão na demanda - o que não se revelou um problema durante a realização do trabalho, ou seja, éramos nós que demandávamos suas histórias, dada a importância de documentar, desde o ponto de vista dos deslocados, o que se passou em Belo Monte. E propusemos, ainda, que o atendimento de cada ribeirinho fosse realizado por uma dupla de clínicos. A intenção era a de que, diante do curto e intenso período de duração da intervenção, fosse possível administrar e dissolver os efeitos de transferência que o
relato inevitavelmente seria capaz de desencadear, bem como criar pelo menos duas perspectivas sobre a experiência, enfrentando a pretensão de unidade e coerência que se produz diante de cada interlocutor constituído. Ao mesmo tempo que íamos e vínhamos de Altamira, iniciávamos no IP/USP o curso Psicanálise em Situação de Vulnerabilidade Social: o caso Belo Monte, que tá gravado e vale a pena ver: https://www.youtube.com/playlist? list=PLzFproveupoTxb0fg6KSWJw97sxCap41J. O curso foi a primeira etapa para a formação da equipe da Clínica de Cuidado. Recebemos lideranças do Xingu Marcelo Salazar (Instituto SocioAmbiental) Antônia Melo (Movimento Xingu Vivo para Sempre), Eliane Brum (idealizadora do projeto), Deborah Noal e Cecilia Weintraub (Organização Médicos Sem Fronteiras). E contamos com a contribuição das professoras Miriam Debiaux e Maria Livia Tourinho. Todos aqueles que quisessem estar conosco no Xingu precisariam assistir ao curso para conhecer a discussão que fazíamos do território e do dispositivo clínico que vinha sendo forjado. Depois, os profissionais selecionados, de diversos estados brasileiros, participaram de um Grupo de Estudos que durou 5 semanas. Tudo isso resultou em uma compreensão que para escutar a gente tinha que partir de um entendimento de que escutávamos pessoas forjadas em outra cultura, quase em outra língua, o que nos relegou a uma condição radical de estrangeiros. Coube ao trabalho clínico amparar a legitimidade da perda, encontrar os termos da identificação em curso e trabalhar com ele para que - sem destituir o engajamento no laço social através da reinvindicação de direitos – o sujeito pudesse caminhar na direção de que sua ancoragem se deslocasse da experiência do idêntico, e fosse suportada por traços identificatórios que guardassem lugar para montagens singulares. A incidência sobre o sistema identitário para dar lugar ao sujeito, sem violar as identificações que o sustentassem no campo do Outro, foi um desenho estratégico específico que se sustentou em articulação ao cenário político da intervenção. A Clínica de Cuidado pretendeu operar uma desidentificação que não destitui pertencimento. Uma relação outra ao ideal tende a constituir uma também outra posição do sujeito diante do impossível. Esta subversão foi nosso ponto fundamental. Ao instabilizar o par significante S1-S2, fazendo vacilar o saber elemento central da proposição identitária - ocorre que o S1 ganha condição de acontecer em sua relação aos signos de sua singularidade que escapam a sua alienação ao Outro. A função desejo do analista, resposta de Lacan ao que os pós-freudianos tomaram na legitimação dos afetos contratransferenciais como material de trabalho clínico, foi o argumento necessário de sustentação de uma prática que pretendeu não se realizar pelo exercício de um poder, mas, ao contrário, propor, como política, uma discussão do poder. Entre a negação do impossível retorno ao perdido expresso na demanda do discurso da luta pela restituição do passado e a impotência expressa sobre o
adoecimento do corpo sob o nome da depressão que imobiliza o sujeito, apostamos que a psicanálise poderia oferecer uma terceira via de tratamento. Munidos dessas elaborações advindas do que escutamos nas incursões ao campo, atentos às formulações discursivas dos ribeirinhos, que é o que a gente como clínica que quer ouvir as bordas se empresta para fazer ressoar, partimos todos em direção à Altamira, em janeiro de 2017.
MOVIMENTOS CLÍNICOS, ATOS POLÍTICOS Partimos, chegamos e escutamos, escutamos e escutamos. Desta escuta os cuidantes fizeram textemunhos clínicos e novos trabalhos de pesquisas se seguiram. Aqui a gente vai colocar um pouco deles, não sem a ajuda do que Eliane Brum escreveu depois de nossa intervenção: Sentei no chão, num canto do quintal, em geral meu lugar de repórter escutadeira, enquanto Ilana e Rodrigo conversavam com Francineide. Ilana começou a explicar o que faz um psicólogo. Essa ribeirinha, que é uma das mulheres mais inteligentes que conheço, interrompeu Ilana para dizer o que ela, Maria Francineide, entendia: Eu entendo assim, no meu modo de dizer. Vocês sabem que eu comecei a estudar agora, né, então eu tou começando tudo na minha vida depois dos 48 anos. No meu modo de pensar, vocês são assim pessoas que nos ajudam a achar uma porta que, pra muitos, não tem mais saída. Tem casos de pessoas que vêm dessa barragem aí que eles mesmos se isolam a um ponto que nada mais lhes importa. Nem os filhos, nem o alimento, nem o trabalho. Você morre, entendeu? As pessoas não entendem. É uma tristeza que nasce dentro da gente que, por mais que a gente queira tirar ela, tem hora que não consegue. Isso aconteceu comigo. Então é uma dor terrível. Você quer ficar sempre só, você não quer falar com ninguém. Então isso mata a gente. Então vocês são as pessoas que nos ajudam a achar essa porta. Eu saí de uma porta que me colocaram. Fizeram um caixotezinho, me colocaram dentro e fizeram uma brecha bem pequenininha. Mas, antes da brecha, colocaram um papel escuro. Por mais que eu procurasse, eu não achava a brecha. E nós entramos em certos lugares que precisa desconjuntar braço, pescoço, perna, quadril pra poder sair do outro lado só o resto, e ainda tem o trabalho de remontar, porque muitas vezes os ossos não ficam no lugar. Então, no meu modo de ver, vocês são essas pessoas que nos ajudam a achar a brecha, a porta, no lugar que não existe. Silêncio. (BRUM, 2021, p. 292-293).
A gente queria muito, na leitura desses textemunhos, circunscrever os movimentos clínicos dos atendimentos, quando eles aconteceram, né? Por que nem sempre eles aconteceram. Mas quando eles aconteciam, a gente tentou entender como saíamos de uma situação A e chegávamos a C? Na clínica, temos, geralmente, uma situação inicial – seja uma queixa sintomática, uma questão analítica ou pura angústia – e chegamos à uma situação outra – um alívio do sintoma, a transformação de uma percepção sobre si, uma acomodação do eu, ou mesmo uma angústia que cede – mas circunscrever o “passe de mágica” entre uma situação e a outra parece ser uma tarefa relegada sempre mais difícil de fazer. O que nos vale críticas acertadas sobre certo obscurantismo psicanalítico. A citação acima nos dá mostra do movimento, de um percurso, há um antes e um depois: primeiro o sem saída – alguém imobilizado e constrangido (dentro de um caixote) – e depois uma brecha, a saída em um lugar que não havia, encontrada com a ajuda desse outro que escuta. Neste depoimento temos a
clareza de que nossa intervenção, pelo menos para essa ribeirinha, não foi focada no eu – não buscou fortalecer um eu fraco que estaria debilitado pela perda ocorrida, não tentou encobrir o que estava quebrado – nem visou algum tipo de resiliência via caridade, que, ademais, não permite passar do imaginário ao simbólico. A ribeirinha não sai inteira, forte ou plena com a ajuda do achador de brechas, mas “só o resto”, o que indicaria que a intervenção preservou a dimensão da perda, a fratura nos ossos, e que na passagem pela brecha, não há conjunção, há desconjuntura. Maria Francineide não se valeu de obscurantismo e circunscreveu o lugar e a tarefa daquele que a escutou. No entanto, a coisa não se dá sempre assim. Podemos argumentar, com Lacan (1967), que no ato psicanalítico o sujeito não está, ele está onde não pensa. Ou ainda que há algo realmente inapreensível em um encontro analítico, que não logra passar todo à significação, fato do qual estamos avisados. Não raro, nos encontros de equipe, nos dizíamos: “algo mudou, não sei como...”. Os analistas também se surpreendem quando a neurose se desacomoda e uma outra posição perante as relações aparece no paciente e logo perguntamos: como isso se deu? Algo de inapreensível restará e é justamente deste resto que advém nosso trabalho com os casos clínicos, dado que, como analistas envolvidos na transmissão da psicanálise via discurso analítico, nos esforçamos a, ao menos, fazer hipóteses sobre esse “passe de mágica”. Hipotetizar esses movimentos, fazer decantar a ideia da mágica e articular o ato ao trabalho analítico, são tarefas tão difíceis quanto importantes, uma vez que ao vislumbrar, mesmo que de relance, como um deslocamento operou, podemos dizer que em casos análogos, intervenções análogas podem também ser feitas, isso vale ainda mais para a clínica de bordas. A gente pôde acompanhar os movimentos do Teré, um senhor que havia perdido sua mulher “que morreu dos nervos” depois de Belo Monte, e que contou que não aguentava mais ter insônia. Tomamos a insônia de Teré como o que se costuma chamar sintoma. Como em outros casos tivemos o dormir em excesso, a falta da escola e a inibição em lutar por ela, o cansaço generalizado, a militância, a indefinição jurídica, a zonzeira etc. A esse sintoma, o discurso médico oferece, geralmente, sua solução medicamentosa para fazê-lo cessar. Mas se trata de saber como isso se manifestava no caso de Teré, o que só pode alcançar com o desenrolar do mesmo e na escrita deste, feito pelo analista. Na situação da clínica psicanalítica, o sintoma é, antes de tudo, uma abertura para o inconsciente, é ele que nos dará notícias dos conflitos psíquicos daquele sujeito, é esta a passagem que nos interessa aqui. Então, frente a tudo que esse ribeirinho nos disse de seu passado e de suas articulações com o presente, qual o sentido de seu sintoma? O que seu sintoma marca? A hipótese é que o sintoma era o esquecimento de um pedaço de sua história – a de ter sido um devastador de indígenas no passado, contado para os cuidantes – essa a ideia contra qual sua insônia lutava. Mas a gente precisa se perguntar: por que agora? Ele convivia com
essa história há bastante tempo e nem sempre sofreu de insônia. Bom, é claro que a elaboração de um luto tende a evocar outros lutos (DUNKER, 2019), mas, ao que parece – e isso é uma hipótese, ou antes, um exercício clínico – esse caso revelou o cruzamento entre o acontecimento Belo Monte e os acontecimentos singulares na vida de Teré. Se a ideia é rechaçada pela insônia, fazendo o “ficar acordado para tirar o sentido” é porque esta lembrança colocaria Teré na mesma posição da Norte Energia, no caso Morte Energia como ele dizia, ou seja, tão mortífero quanto ela. Mas e o passe de mágica? Bom, o próprio recordar e o falar podem trazer alívio dos sintomas, como a literatura psicanalítica e a sabedoria popular reconhecem. Mas, para além disso, a figura do interlocutor e o que ele pôde dizer sobre o que escutou marca a diferença de um trabalho clínico e um alívio que ocorre em uma simples conversa com um amigo. Apontamos que a curta e precisa intervenção dos cuidantes, que responderam simplesmente “É mesmo?” perante as fixas articulações de sentido de Teré, criou um efeito de vacilação na significação única de “uma vida risca a outra”, qual seja “seguro é andar sozinho”, uma vez que esta também portava um esquecimento, o da vida comunitária comum aos ribeirinhos. Vacilação que trouxe à tona a lembrança dos caiapós assassinados, afinal, quem diz vida, também diz morte e quem diz sozinho também diz acompanhado, pois que estas palavras trazem a ausência de seus antônimos. Quando a recordação pôde ser dita para um achador de brechas, conforme nos ensinou Francineide, Teré não precisou mais ficar acordado para “tirar o sentido” – aquilo que ele sentia, poderíamos dizer culpa – e a posição em que ele se encontrava – tão mortífero quanto a empresa – também perdeu sua força, pois houve reconhecimento desta, que não é possível via resposta de acomodação de identificação, que é o primeiro capítulo da resposta ao acontecimento Belo Monte, propiciada pelos movimentos sociais, mas que não atinge o sintoma de cada um. Nesse sentido, o caráter destrutivo da instalação de Belo Monte não vinha apenas porque incidia sobre o que é belo e bom da vida que a comunidade experimentava, mas, ao mesmo tempo, porque destruía a história daquele ribeirinho em sua narratividade. O destrutivo adveio não só da perda da materialidade do que era comum e particular – a perda da escola, a perda da casa – mas também pela construção da contranarrativa estabelecida no campo político e jurídico da resistência, que convocava a certa romantização do passado, obrigando cada ribeirinho a censurar os capítulos de sua história que não cabiam na descrição do paraíso perdido⁶. Ou seja, era preciso que cada um fizesse de sua história passada outra coisa do que tinha sido, recortando e apagando partes dela de modo a fazê-la caber neste pertencimento “somos atingidos”, e aquele que atinge caiapós, ainda que no passado, não cabe neste pertencimento. Aqui é importante ver o deslocamento da lógica dos movimentos sociais para a lógica da clínica, pois se na primeira tínhamos uma fixação discursiva em torno do sofrimento social e nos significantes deste discurso jurídico-social – atingidos,
deslocados, indenizações, restituições – na segunda temos a possibilidade do sujeito, diante do movimento de se contar e de se escutar, circunscrever seu sofrimento a partir dos significantes de sua história – pescador sem rio, cansaço, morrer dos nervos. Nenhuma é mais importante que a outra, é preciso repetir isso, são apenas lógicas diferentes que levam a desenvolvimentos distintos. Os movimentos sociais trabalham pela lógica da identidade – em nosso caso ela ficou reunida sobre o nome de “somos atingidos” – ao passo que a clínica psicanalítica trabalha com uma espécie de desidentificação, ou ainda com uma identidade de separação (SOLER, 2018). Se entendemos por eu a reunião de imagens e significantes que identificam o ser social, entendemos por sujeito – na acepção lacaniana deste termo – justamente uma parte desse ser que resiste a ser identificado por essa reunião, pelo simples fato de que ele está localizado entre os significantes de uma cadeia e não lhe é possível ser representado totalmente por apenas um significante. Essa resistência, tão comum em falas como “mas eu não sou isso que você diz que eu sou”, nos indica que o sujeito protesta contra os veredictos identitários do Outro social, ainda que os adote em um primeiro momento⁷, já que, no laço social, somos sempre assentados sobre esses veredictos. Tal protesto nos leva à ideia de que toda identidade convoca, ao mesmo tempo, o diferente e o idêntico, pois que uma identidade também pressupõe a diferença entre outras identidades. Uma vez identificado pelo discurso social, não importa com qual atributo – você é ... ribeirinho, mulher, preguiçoso – o sujeito que se percebe outro não pode senão protestar, pois é dividido entre outros anseios que não só ribeirinho, mulher ou preguiçoso, ainda que ele não saiba muito bem quais. O sujeito diz não ao atributo reivindicando sua diferença. É neste sentido que a clínica psicanalítica trabalha, ou seja, em uma lógica inversa à da identificação, escutando a voz da diferença reivindicada pelo sujeito. Assim, a contra narrativa jurídico social – responsável por dar um contorno à catástrofe que se abateu sobre centenas de famílias expulsas de suas casas constituindo discursivamente uma ação que organizou a vida das pessoas atingidas através da luta no campo dos direitos civis – foi de suma importância como estratégia política de pertinência e refiliação subjetiva. No entanto, o lugar paradoxal do ribeirinho se apresentava assim: inicialmente era necessário que os ribeirinhos fossem representados politicamente, e isso se deu por uma compressão dos mesmos à uma classe identitária – movimento que Katz (2019) nomeou “suplência identitária” no nível subjetivo – a partir da qual pode se reivindicar direitos que, não obstante, já estavam limitados pelas condições desta mesma compressão à categoria. Com o trabalho clínico na direção inversa à identitária a gente buscou – via sintomas, inibições e angústias – fazer disjunções, separações entre os traços singulares e os sociais, o que permitiu que os sofrimentos pudessem ser lidos de outra maneira que não pela chave identitária, pela chave do nós. Quem esclareceu isso para a gente foi uma beiradeira:
Volta e meia beiradeiros da Amazônia me puxam para um canto, em festas ou reuniões públicas, dizendo que precisam “falar com a escritora”. Dessa vez, a mulher que me encostava na árvore queria me contar o que tinha acontecido no dia anterior, ao ser atendida por uma dupla de psicólogos: Eu achei que nunca que contava esse segredo pra ninguém. Nunca tinha falado de meu passado pra ninguém. E ontem contei pra psicóloga. Foi como arrancar um prego podre das minhas entranhas. Hoje eu acordei às quatro da manhã, como sempre, mas eu estava liberta. Eu não tenho o que comer e carrego uma carga muito pesada por conta do que aconteceu com a gente por causa desse Belo Monte. Mas hoje eu acordei pesando uma grama (BRUM, 2021, p. 293294). A carga continuava lá, a fome também, mas ela já não pesava mais que uma grama. Pois que o capítulo censurado de sua história, o segredo incontável, encontrou eco no achador de brechas e sua narratividade pode ser reconstituída em partes, em partes, o que significa preservar a dimensão do que se perdeu, seja no segredo do passado ou em sua atualização no presente. Frente o fechamento do nós, a gente ofereceu a abertura da separação “eu e o outro”, o que significa saber se ribeirinho em sua diferença de ribeirinho e não apenas em sua paridade. Assim, Belo Monte não é apenas a história de uma destruição, é a história de uma destruição e de uma recomposição, e de seus comos, como recompor, como refazer, que lugar dar para o que resta. A gente espera ter deixado claro a importância da contra narrativa comunitária na união deste grupo que, ademais, havia sido propositalmente desmantelado pela empresa Norte Energia. No entanto, essa importância não esconde o fato que, ao mesmo tempo, ela reforçava a constituição de uma espécie de “comunidade unida pelo pior”⁸, infinitizando as perdas e impedindo o facultamento do luto para muitos. Ora, a luta pelos direitos não poderia incluir ou oferecer lugar ao luto de cada um advindo das perdas inegáveis, o que não se faz apenas romantizando o passado comum perdido, mas colocando-o em termos próprios, ou seja, singularizando o lugar de pertença nisto que foi comum a todos e que já não existe mais. Esse sofrimento foi singularizado na escuta dos casos de forma distinta, segundo a posição do sujeito perante sua própria história de vida, e cada singularidade propiciava saídas mais ou menos eficazes do sofrimento. Alguns seguiram suas vidas, outros ficaram imobilizados. A gente quer ressaltar aqui que essa “comunidade unida” (ainda que pelo pior) não é contrária à lógica da escuta analítica, desde que se reconheça que a comunidade de iguais, formada em um
primeiro momento e referente ao acontecimento comum, pode se tornar mais forte, em um segundo momento, ao reconhecer as diferenças entre seus membros. Essas diferenças vão desde a percepção de que o rio ou a casa de um é diferente do rio e da casa de um outro – de modo que a perda desses incidirá também de modo diferente – até a constatação de que a perda do rio ou da casa não é a causa de sofrimento de toda a comunidade. A gente não sabe como acaba a história da expulsão de cada ribeirinho que escutamos, e mesmo se ela acabou, mas entendemos junto a eles que foi necessário ir ao começo de cada história e ela não se deu, apenas, com a chegada de Belo Monte. Pois que cada ribeirinho traduziu sua chegada incorporando-a em suas séries significantes, orquestradas por sua posição fantasmática, que não é comensurável com a tradução que fizeram outros ribeirinhos. O que significa dizer que uma parte importante do que estava acontecendo ali, já estava ali antes da chegada de Belo Monte, ainda que não exatamente da mesma maneira. Apoiados na psicanálise, entendemos que qualquer tipo de acontecimento catastrófico não produz necessariamente sofrimento psíquico e nem qualquer trauma, já que essas experiências – sofrimento e trauma – são constitutivas do falante, em qualquer território humano. No entanto, a maneira como um acontecimento tal qual Belo Monte se mescla às subjetividades, de um dado local em um dado tempo, não exime esse acontecimento como indutor de sofrimento, pois que reativa a experiência traumática, ou, ao produzi-la, coloca em cena o pior de cada história.
INVOLUNTÁRIO DA PÁTRIA⁹ o sintoma como dissidência política Para terminar gente quer mostrar um pouco de nossos movimentos que tocaram um sentido possível do sintoma de imobilidade, colhido transversalmente nos casos escutados como um significante representativo de resistência política, extraindo do singular o político. A partir do trabalho com os textemunhos, a gente tentou dar um novo sentido ao que havíamos chamado sintoma coletivo dos ribeirinhos – a imobilidade – para dizer que o coletivo era o sintoma. Melhor dizendo, a imobilidade, singularizada de maneiras diversas em muitos corpos, encontrava sua morada na sintônica “comunidade unida pelo pior”. Não estamos dizendo com isso que as lutas sociais seriam sintomas, que portariam uma mensagem cifrada direcionada a um Outro que por sua vez ocuparia um lugar de amparo. Estamos dizendo que as lutas sociais são conflitos que portam uma força imanente de destituição da autoridade e de realização de exigências de justiça, as quais o sintoma se assemelha e se apadrinha (SAFATLE, 2020). O sintoma, tal como podemos entendê-lo na psicanálise lacaniana, é uma resposta incapturável do sujeito a uma injunção do discurso corrente a qual todos deveriam se inclinar, concordar e corresponder; uma resposta contrária a tentativa de “universalizar o sujeito e fazer funcionar um “para todos” ... ao preço de uma exclusão, [...] a exclusão do impossível de universalizar” (SOLER, 1998, p. 258). Essa resposta – sintomática, aquilo que não anda, o que Lacan também chamou Real do sintoma¹⁰ – nunca é totalmente desconectada das histórias do sujeito e vem marcar sua resistência, que não temos que por que não chamar de política, à injunção do discurso corrente. Logo, o sintoma não é tomado como uma atipia que os analistas deveriam corrigir, é preciso antes e principalmente ratificar seu valor de uso no laço e trabalhar com o sintoma, sem separá-lo de “seus modos de expressão e reconhecimentos social, nem dos mitos que constrangem a escolha de seus termos nem das teorias e romances dos quais ele retém a forma e o sentido” (DUNKER, 2018, p. 323). A “comunidade unida pelo pior” foi o laço social possível feito desde o sintoma da imobilidade singular de cada corpo e não haveria por que, e nem como, desmontálo de saída. A gente cuida do que não anda, isto é certo, mas isso não significa aplicar empuxos para o andar, ação que a parafernália feita pela indústria farmacêutica, ancorada no discurso da ciência, faz com muito mais rapidez ao preço da exclusão do sujeito do inconsciente. Como a gente justifica nossa aparente indiferença à cura do sintoma? Pelo entendimento de que o que apareceu sob forma de sintoma já trazia em si a potencialidade de um ato revolucionário (LACAN, 1969/2003; SAFATLE, 2020), em que pese todos as dificuldades que os sintomas podem colocar na vida de muitos.
Nos casos atendidos em Altamira, a imobilidade era um significante representativo dessa potencialidade do ato revolucionário, um involuntário da Pátria. Mas a que ele poderia responder? À injunção máxima, grafada em nossa bandeira brasileira, “Ordem e Progresso”, que se estende a todos os tipos de intervenções empreendidas na região Amazônica visando sua colonização e urbanização. Empreendimentos que são feitas em nome do progresso, em nome da marcha, em nome do que “tem que andar”, “ir para frente”¹¹. Queremos dizer com isso que a ideia do avançar, do não poder ficar parado, do progresso, é o ideal que dá sustentação às sucessivas intervenções que vemos ocorrer no norte do país, e não só lá, desde a luta contra os indígenas, da guerra da borracha, passando pela construção da Transamazônica, por Belo Monte: tudo em nome do Brasil que vai para frente! Só não é dito com que frente. Aliás, isto nunca é dito, mas basta uma olhadela na história para saber qual é a frente que paga por isso: os negligenciados pelo Estado, os vulnerabilizados, empurrados para as bordas, os excluídos, enfim, os que ficam de fora por quem dita o universal de um território, em uma determinada época. Pois bem, a esse empuxo ao progresso, parte dessa comunidade respondeu com a paralisia, a imobilidade, resposta que tomamos no singular de cada caso durante a escuta, mas que não podemos deixar de ouvir também como uma resposta política maior. É uma resposta difícil no singular, pois como pode ocorrer uma vida assim, em estado de paralisia? No entanto, naquele momento, ela não deixou de ser uma maneira de denunciar a verdade segundo a qual o sofrimento é ligado à manutenção da situação atual (SAFATLE, 2020). Tratar do que não anda é acolher esse sofrimento legitimando-o em sua potencialidade de ato contra a norma vigente, dando voz a esse corpo insubmisso, nas palavras de Dunker (2018, p. 323): “É preciso reconhecer cada novo sofrimento como invenção e resposta, reconhecimento e resistência, às transformações no horizonte de uma época”. Foi assim que nos bem disse a Dona Rosa. Na última conversa, enquanto ela preparava um açaí: “sabe, essa nossa conversa foi muito importante pra iluminar os pensamentos... a gente fica aqui trancado e não vê...quando eu morava na ilha era tudo aberto, aquele rio que não acabava na vista, aqui não, essas grades... é ruim pra gente. Eu gostei muito dessas prosa da vida da gente, nem precisa explica o que estão fazendo aqui não, eu já é entendi tudo ‐ Eu sei o que vocês estão fazendo aqui...os filhos de Altamira estão esquecidos, vocês estão fazendo é memória.”
Referências bibliográficas O que aprendemos com a antropologia por causa dessa clínica, os antropólogos que lemos, como Manuela Carneiro da Cunha, Sônia Barbosa Magalhães, Maurício Torres, Mauro Almeida, Ana de Francesco, e tantos outros; e as lideranças de movimentos sociais que nos instruíram (O Xingu Vivo, com a Antônia Melo e Daniela Silva, o MAB, com o ... e a Elisângela), além das Colunas da Eliane Brum, àquela altura publicadas no El Pais. Tudo que a gente já leu de Freud e mais um pouquinho do Lacan e seus comentadores e seus conversadores. Tudo o que a gente aprendeu na estrada da vida, e também com nossos professores e orientadores, nos anos de poltrona atrás de um divã e mais o que a gente fez de escrevivências deitado nele. Aqui a gente deixa só os citados: ABRAMOVAY, R. Amazônia – Por uma economia do conhecimento da natureza. São Paulo: Elefante, 2019. BRUM, E. Banzeiro òkòtó: Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. DUNKER, C. Crítica da razão diagnóstica: por uma psicopatologia não-toda. In: SAFATLHE, V.; SILVA JÚNIOR, N. da.; DUNKER, C. (orgs). Patologias do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. DUNKER, C. I. L. Teoria do Luto em Psicanálise. Revista PsicoFAE: Pluralidades em Saúde Mental, [S.l.], v. 8, n. 2, p. 28-42, dez. 2019. ISSN 2447-1798. Disponível em: https://revistapsicofae.fae.edu/psico/article/view/226. FLUSSER, V. Bodenlos. Uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007. GUARRESCHI, L. Da escuta à escrita: casos clínicos dos refugiados da barragem de Belo Monte. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica) – Instituto de Psicologia. Universidade de São Paulo – São Paulo, p. 167, 2022. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-10102022-153750/pt-br.php KATZ, I. A clínica do cuidado: intervenção com a população ribeirinha do Xingu atingida por Belo Monte. In: BROIDE, E.; KATZ, I. (Org.). Psicanálise nos espaços públicos. São Paulo: IP/USP, p. 22-37, 2019. Disponível em: http://newpsi.bvspsi.org.br/eventos/Psicanalise_espacos_publicos.pdf. LACAN, J. (1969) O ato analítico. In: Outros Escritos, Zahar, 2003. SAFATLE, V. Maneiras de transformar mundos. Autêntica Editora. Edição do Kindle, 2020.
SOLER, C. Rumo à identidade. São Paulo: Aller Editora, 2018. Tem também quase tudo que a gente já produziu sobre a Clínica do Cuidado e que vocês podem encontrar no site do Latesfip, bem aqui ó: https://www.latesfip.com.br/producaotextual E para ver ainda tem o documentário Eu +1: uma jornada de saúde mental na Amazônia, que a gente gravou enquanto estávamos lá: http://elianebrum.com/documentarios/eu1-umajornada-de-saude-mental-na-amazonia/
¹ Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IPZ0h9yJ26M . Acesso em: 27 fev. 2022. Filmagem épica, feita à época da visita do então presidente Médici à Altamira, onde se assiste à queda de uma castanheira que marca o início da construção da BR-230. Este marco, o enorme tronco cortado da castanheira onde fixou-se uma placa de metal com os nomes dos benfeitores da construção da estrada, pode ser visto ainda hoje em Altamira. ² Disponível em: https://oeco.org.br/noticias/belo-sun-perde-novamente-na-justica-e-projetode-mineracao-no-xingu-para/ . A Justiça Federal negou o pedido da concessão, no entanto, a empresa pode recorrer. ³ Disponível em: https://matinal.news/eliane-brum-armada-com-palitos-de-fosforo/. ⁴Feliz expressão de Carla Rodrigues. ⁵Cf. GUARRESCHI, L. Da escuta à escrita: casos clínicos dos refugiados da barragem de Belo Monte https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-10102022-153750/pt-br.php ⁶Essa manobra também se revelou clara através de um caso descrito por Katz e Dunker em Clinique du Soin aux Bords de la Rivière du Xingu: Une Intervention psychanalytique auprès de la Population Riveraine atteinte par Belo Monte. Disponível em: https://www.cairn.info/revueresearch-in-psychoanalysis-2019-1-page-49.htm?contenu=article. ⁷Cf. Soler Rumo à identidade (2018), sobre identificação primordial e identificação alienante, principalmente capítulos 1, 2, 3 e 7. ⁸Cf. Aula gravada “Belo monte, Belo Monstro: sonhos de Altamira, ministrada por Ilana Katz e Luciana Guarreschi, Seminário aberto Sonhos em tempos de incerteza e na clínica contemporânea, organizado por Gilson Iannini. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-RZbsw-x-lc&t=5s. Acesso em: 1 set. 2021 ⁹Tomo esse termo emprestado do título do texto de Viveiros de Castro, apresentado no colóquio “Questões indígenas: ecologia, terra e saberes ameríndios”, que aconteceu no Teatro Maria Matos, em Lisboa, no dia 5 de maio de 2017. Disponível em: https://chaodafeira.com/catalogo/caderno65/. ¹⁰pelo menos três textos importantes onde se pode encontrar essa formulação: Radiofonia (1970), Televisão (1974) e A terceira (1975). ¹¹ Vale lembrar o conhecido jingle “Pra frente Brasil”.