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marcelino freire – nasceu em 1967 em Sertânia, Pernambuco. Vive em São Paulo desde 1991. É autor, entre outros, de Contos negreiros (Editora Record, Prêmio Jabuti 2006), Nossos ossos (Record, Prêmio Machado de Assis 2014) e do recém-lançado Bagageiro (Editora José Olympio, 2018). É também produtor cultural. Criou e é curador da Balada Literária, evento que acontece desde 2006. O conto “Quentinha” é inédito, escrito especialmente para este projeto. 2


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quentinha


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O

almoço foi farto. Carne e mais carne. E você se empanturra de espeto. Maionese, maionese. Arroz, arroz demais. Era uma reunião de trabalho. No interior de São Paulo, um encontro para falar da fabricação de papel por meio do eucalipto. Minha empresa tem muita grana. Os eucaliptos sobem ao céu. Parecem gráficos. Não digo que eu estivesse feliz. Comi demais, mas isso não quer dizer plena satisfação. Meu coração, talvez, cheio de dúvidas. O amor se perdeu em alguma curva. É sempre assim. Tenho um bom salário, minha opinião é ouvida pela administração. Por exemplo, falei que os papéis extraídos do eucalipto terão uma vantagem: já sairão perfumados. Gostaram do que eu falei. Levantaram até um brinde. Há quem tenha comentado à mesa

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sobre papéis higiênicos. Eles brindaram do mesmo jeito. Eu não entendi. Faltou delicadeza ao comentário. Vivo assustado, eu sinto. Cheguei a falar isso para a psicóloga. Ela falou que eu estou querendo negar a boa fase. Autossabotagem. Uma certa vocação para o fracasso. Abrace as oportunidades. Os eucaliptos vão ao céu. Quem imaginaria que eu chegaria aonde cheguei? Fim do banquete e sobrou muita carne. Comida, arroz, arroz, comida. Maionese, cebola frita. Macaxeira, coxa de frango. O garçom veio perguntar se queríamos levar a sobra para casa. O povo da empresa nem ouviu. Saiu cantarolando, um abraçando o outro. De fato, a reunião foi lucrativa. Teremos uma boa produção de papel. Fiquei eu para responder ao garçom. Sim, pode embrulhar para viagem. Resolvi

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esperar. Falei para o pessoal que depois eu iria de táxi direto para o hotel. Não estou bem. Todo mundo feliz e eu querendo ficar sozinho. A psicóloga disse que eu preciso resolver as pendências sentimentais. Por que não volta para Glorinha? Como? Naquele momento, eu arrotando ainda o excesso de torresmo. Nunca pensei que eucalipto pudesse combinar com torresmo. Coisas da firma. O garçom chegou com duas sacolas bem cheias. É isto. Faz tempo que eu não olho para a rua e preciso olhar. Alguém, em algum farol desta cidade do interior, precisa almoçar. Uma motivação qualquer que me bateu, no peito, feito uma onda de calor. O primeiro mendigo que eu encontrar, um menino, uma família desassistida. Um acrobata latino. Tem sempre um cuspindo fogo. E mais calor,

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calor. Quem será o sortudo? Ah, se eu pudesse um dia ser um andarilho. Sempre gostei de circo. Eu acho que eu me viraria bem em qualquer cidade do mundo. Eu tenho vocação, muito mais do que opinião. Entrei no táxi. O taxista era bastante alto. Debaixo do braço, rodelas de suor. Perguntou se era bom ligar o ar-condicionado. Eu disse que sim, era bom. Esperando que as rodelas não fedessem. Mas eu não tenho direito de pensar certas coisas. Não acho graça nesses julgamentos. Tenho um bom salário e uma boa educação. Amigo, me ajude a encontrar alguém para eu entregar essa comida. Ele esticou o pescoço para o banco traseiro, mediu as sacolas com um sorriso e disse “eu quero”. Só uma piada, porque a minha ideia não era entregar para ele. O taxista já tem tudo. Inclusive,

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é alto. Este sobe ao céu, com certeza. Demos partida. Fiquei ligado. A cidade quente fervida. Muito sol e ninguém na rua. O sol assusta os mais pobres. Se fosse no Nordeste, eles estariam esperando por mim. Suados e coloridos. No interior de São Paulo, ao contrário, a fome é cinza. Cadê os pedintes? O taxista soltou um “ih”, repetiu a palavra “pedintes” seguida de umas três interrogações. Estava orgulhoso da terra em que trabalha. Apontou a janela como se dissesse, “não há”, “pelo menos aqui não”, “mas se o senhor quiser podemos procurar”. Então procuremos. E no centro, hein, não tem ninguém perdido? Alguma criança de colo? Um camelô faminto? Eu não gostaria de chegar humilhado, com aquele pacote, lá no hotel. Vamos aproveitar que a quentinha ainda está

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quentinha. Não falei, mas senti. A carne morna ardia nas minhas coxas. De longe, vi quando o garçom jogou um pouco de óleo quente nos restos de comida, nas sobras da confraternização. A fim, creio, de melhorar o aspecto da batatinha murcha. Da macaxeira lambida. E até da maionese fria. Fazia tempo que eu não sentia tanto orgulho deste meu esforço, humano. O céu, o céu. Descendo sobre nossas cabeças. O interior de São Paulo é um inferno às treze e quarenta e cinco. Para a rodoviária, eu pedi. Chega sempre gente de outras cidades. É uma parada aqui para refugiados, creio. Vêm para arranjar uma vaga na plantação de eucaliptos. Negras, negros. O taxista era negro. Mas disfarçava bem. Sabia que nossa cidade é uma cidade turística? Estamos pertinho de vários

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hotéis-fazenda. Até cachoeira a gente tem. E por que este clima tão desértico? São os eucaliptos, o taxista me falou. Agora foi a minha vez de disfarçar. Eu não tenho culpa. Outra: eu não sou tão branco assim. A família da minha mãe tem um lado indígena. Meu cabelo fino vem daí. E vem daí a minha preocupação, até certo ponto, com o bem-estar da tribo. E essa tristeza suicida que às vezes me dá. A psicóloga disse para eu voltar para Glorinha. Eu não gosto mais da Glorinha. Acho que eu não gosto de mais ninguém. Só quero, agora, deixar as sobras para quem merece. Depois, aí, sim, voltarei ao hotel e deitarei, tranquilo, em uma cama enorme, assistindo TV. Adoro esportes radicais. Só não sou muito vidrado em UFC. Ali, apontei. Mas era apenas uma mulher malvestida. Está cheio delas,

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de alguma forma, o escritório. O taxista falou que aquela vende pastel. Deve comer isso o dia inteiro. Com calda de cana. A rodoviária intacta, pequena, mas em ordem. O carro, em velocidade quase parada, ia me mostrando: ninguém revirando latas. Uma faxineira encostada na vassoura, falando ao celular. Se tem celular, tem o que comer. Embora ninguém dispense comida. Se eu chegar lá, ela terá para quem oferecer. Mas não é essa a proposta. A proposta é ser justo. Entregar nas mãos de quem precisa o que eu não preciso. Arrodeamos campos, ladeiras. Paramos várias vezes no mesmo semáforo. O orgulho do taxista só foi aumentando. Nós não temos favelas. A cidade é pequena, mas limpinha. Pensei em ir até a BR. Um penitente caminhando. Olha eu ali, um

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andarilho, no futuro. Quem sabe um dia? Um doido, uma doida. Um camponês na sombra. Nada, nada à vista. A corrida foi ficando cara demais. Daria para pagar uma nova conta de restaurante. Quase quatro horas da tarde. As quentinhas eu já larguei no assento, segurando a comida apenas pelas alças da sacola plástica. Voltar ao hotel com essa desgraça. Que decepção. Também ao taxista eu não daria. Pelo tamanho do orgulho, e depois de tanto tempo de convívio, o taxista varapau jogaria o prato no lixo. Qual lixo? Aqui tem lixão? No céu, nenhum urubu. O céu azul é só mesmo azul. Não chove urubu pela cidade. Ponto final. Já era. Guardarei essa merda na geladeira do hotel e pedirei que o mensageiro dê a ela um destino natural. E olhe que eu não sou de desistir. Quem

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trabalha comigo bem sabe. Eu iria até o fim se não estivesse tão triste. E desanimado. Glorinha, reunião, eucaliptos, o Brasil. Será que mataram todos os mendigos desta cidade e ninguém viu? Eu não quis pensar sobre isso. Mas o pensamento veio. Como se fosse uma piada. Dessas que a gente solta sem querer. Até que aquele comentário sobre os papéis higiênicos, à mesa, se lembra? Não foi tão ruim assim. Nisso eu concordo com a psicóloga. Para que sofrer?

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O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Gilles Deleuze e Félix Guattari

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acéuaberto é um projeto de leitura pública iniciado na Ocupação 9 de Julho.

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