acĂŠuaberto
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para ler
marcos visnadi – nasceu em Jundiaí (SP) em 1984. Vive em São Paulo.
Circunstâncias excepcionais “Nas grandes perplexidades, obriga-te a viver como se a história estivesse selada, e a reagir como um monstro corroído pela serenidade.” – Emil Cioran, Do inconveniente de ter nascido
Agora eu não quero dizer nada. Depois de não querer dizer nada, eu olho pros lados e respiro fundo. O app desconta os centavos. Vivemos num futuro distópico: cada respiro custa centavos. Fundos, mais ainda. E o app controla tudo.
Pronto, o futuro distópico acabou. Respirar não é nada de mais, a criança corre atrás das galinhas no quintal. A ruiva teve o bico cortado porque furava os ovos que deveriam ser nossos, não dela. Foi ali que eu aprendi que sabotar não dá certo. Ela tinha um olhar de raiva, mais do que as outras galinhas, e era feiosa de penugem falha. Um dia morreu sem virar almoço e foi enterrada no quintal sem nunca ter tido nome nem filho. Devia ter a carne ruim, estragada pela maldade, uma pena que ninguém comeu. Quando eu falo qualquer coisa, dói um pouco a vergonha de me ouvirem ou não ouvirem, nenhuma resposta é certa. Cada minuto de silêncio desconta um pouco mais do saldo, e respirando tanto não posso me dar ao luxo, na rua as pessoas cacarejam umas com as outras, ouvir também conta pontos, é fácil lucrar, gente. Dou outra fungada. Ajusto a câmera. —
Do nada nada brota, só que o nada é uma bagunça, então ela vê um risco verde cinde e sai da terra onde nenhuma semente foi jogada, parábola do semeador: ele não plantou e mesmo assim nasceu. Saiu salgando os prados e mesmo assim nasceu. Aff. De pirraça, não rega não aduba não conversa. Também não vai lá e pisa nem arranca, porque isso ia ser uma vitória da planta. Já que ninguém me ajuda, eu não vou mover uma palha. Vamos ver quem de nós desiste primeiro. A coisa cresceu em árvore e muitos pensamentos passaram pela cabeça dela nesse meio tempo. Outros capins e outras coisas, muitas idas ao banheiro. Como último gesto poético, cafona mas quem nunca, tudo é um pouco desespero, foi no galho dessa árvore que mais velha ela pendurou uma corda e se enforcou. O novo proprietário da casa quis cortar passar cimento abrir buraco e fazer
piscina, mas foi convencido, temporariamente, a deixar do jeito que estava, e no mesmo galho a empregada amarrou uma corda e fez um balanço pra filha do patrão. Ela se divertia empurrando a menina cada vez mais forte, e a menina se divertia agarrando a corda e gritando, caiu só uma ou outra vez. — Todo mundo é cliente de todo mundo. Os tardígrados sobrevivem no vácuo e na radiação cósmica. E o futuro é um troço aberto uma fresta lubrificada caindo pra baixo o futuro é assim óbvio e apertado. —
Estou pescando a infância e peixes estranhos mordem a isca, não dá pra limpar a carne lodosa, meu pai há décadas morto me diz joga de volta no rio, isso não presta, mas tudo o que eu tenho é o que a isca atrai, o que morde e segura, batalha depois perde, então abraço o peixe fedido, se debate, é meu, a gente não tem que cuidar do que é nosso? A vitória só me entrega prêmio feio, é pegar ou largar, mas o troféu é muita coisa, resolvo assim: deixo o peixe morrer na grama longe da margem. Eu pesquei o assassinato, não o peixe. — Um grunhido, um trinado, unhas grossas e azuis nos dedos dos pés e das mãos, rebolado que ameaça prédios, o monstro passeia despercebido em meio aos dentes e às línguas e aos pesos de papel, e aos fantasmas entre as árvores e aos sonhos entre os cornos, quem verá e dançará e aniquilará o monstro? Desvio
da rotina, desejo de destruição, melancólico impossível – mas crescente, estranho, inútil, presente – o monstro rompe os azulejos, azeda o leite, suja o tapete de lama – é um inconveniente. Irão nascer os caçadores, gente de ancinho e sabonete e gás lacrimogêneo na mão perseguindo o bicho manso que mastiga os nenéns nos hospitais. E virão aviões bombardeando, vírus incubados na coxa em espingarda pedindo a morte do monstro o quanto antes, o sumiço do corpo, a volta ao trabalho. Dos olhos do monstro nascerá uma cidade. E dela, uma boca. E ela lamberá o planeta.
acéuaberto é um projeto de leitura pública iniciado na Ocupação 9 de Julho.
abr_2020