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para ler


carlito azevedo – nasceu em 1961. É autor de Monodrama e Livro das Postagens (ambos publicados pela Editora 7Letras). Os dois poemas aqui apresentados fazem parte do livro inédito Vida: Efeito-V.


Para Maria Eduarda


VIDA: EFEITO-V Esta coisa é A, esta outra é B, esta outra bem diferente é você palpável no ato de lavar o rosto de manhã ou investigar as etéreas e fecundas regiões do supra-socialismo. Comecemos pelo mais próximo: as suas mãos são o que mais gosto de ter nas minhas mãos,


e o Brecht que sai de sua boca, gestus e pรกginas me parece maior e mais vivo que qualquer Brecht que eu tenha jamais lido ou ouvido. ร como se o pobre B.B. tivesse acabado de sair de uma alcova vestindo a malha justa de Hamlet envolto numa aura dourada de amor e vinganรงa, saciado, insaciรกvel. Com a esperanรงa de um cineasta que finalmente encontra


o plano inicial de seu projeto mais arriscado você não se cansa de me pedir para trabalhar meus sentimentos, ressentimentos, muito obrigado por não desistir assim fácil de mim, que sempre confundi a vida com o efeito-V. Você talvez deteste este poema, penso agora, já que prefere as cenas de rua e sabe abrir em si, de múltiplas mãos, uma rede de túneis vias e avenidas


com suas associações livres sua montagem de vozes fraturadas para que todo o extramuros te percorra e atravesse coração, cabeça e estômago. É o que devemos de fato fazer se se considerar as forças em ação na História. Talvez minhas palavras procedam de um otimismo injustificado sobre o valor do espírito humano, mas sendo eu um não-A e você


uma grande não-B, quando enchemos as palmas das mãos com a água que jorra luminosa da torneira, quando espalhamos ou recolhemos livros pelo chão, quando zapeamos a tv e nos deleitamos com o monte de feno em Giverny o cordeiro sacrificial ou o sorriso de Totoro, é o nosso jeito de responder ao que outros chamavam as questões últimas da vida, o coração batendo


na malha justa de Hamlet. Meu amor, você é o melhor da vida e quando abro as cortinas de manhã o céu lá fora errático cinzento ou claro é sempre o céu não é um sonho de Wassily Kandinsky.


O BALAIO Como recomendado por Hesíodo, no quinto mês cortei o lenho para o leito nupcial, e ao arar a terra as aves consultei. Não sei o que perguntaria ao oráculo em Delfos, mas a você pergunto todos os dias o que é o amor. Aqui começam provavelmente a obscuridade e a decepção.


Mas adoro as partes sublinhadas por você nos livros de sua biblioteca. É como se você adivinhasse tudo o que eu precisava realmente ler de William James e Eurípedes muito antes de me conhecer. Ontem me detive por alguns instantes num metro quadrado de calçada da rua Senador Vergueiro e, plano a plano,


turvação a turvação, como se em progressão metafísica, da Pura Existência até a divina Ideia, estivesse se erguendo dentro de mim uma resposta iluminada, um fluxo verbal contínuo homogêneo e que afinal não veio. Paciência. Veio, isso sim, de um pedinte maltrapilho


sentado no meio-fio a pergunta “você sabe onde eu moro? sabe o meu nome?” Quase só olho para baixo; mas os ouvidos criam laços com todas as nuvens auditivas ao redor, venham de onde vierem, do trânsito, das vozes, dos cães de rua, das rãs coaxando nos buracos de um jardim ou do tremor


de todas as palmeiras súbito desconectadas do chão sólido do bairro do Flamengo. Quando décadas atrás o levaram à força num carro da polícia ele disse que não pensou que ia morrer, apenas mentalizou que a própria solidez está longe de ser um


estado perfeitamente definido da matéria. “Só queriam me assustar”, repete. Eu devia ter então uns cinco ou seis anos. Do fundo do maltrapilho desmemoriado também às vezes parece que vai saltar um caçador paleolítico,


um poeta jônico, um linotipista cego. Dorme sob quadrados de papelão onde cunha a cunha quase se pode ler: “Colhi do bom punhado e do feixe poeirento em meu balaio e sempre evitei o exagero no júbilo ou no pranto, nem assim calou jamais


em meu teto o grasnar da gralha estridente; respeitem esse quadrado de calçada que conquistei para ser o meu ponto de observação do mundo, tão propício ou tão impróprio quanto o de qualquer um de vocês.”


acéuaberto é um projeto de leitura pública iniciado na Ocupação 9 de Julho.

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