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para ler


maria rita kehl – psicanalista, jornalista, escritora. Doutora em psicanálise pelo Programa de Estudos PósGraduados em Psicologia Clínica da PUC-SP com a tese Deslocamentos do feminino - a mulher freudiana na passagem para a modernidade, 2a edição pela ed. Boitempo, 2013. Ganhou o prêmio Jabuti, em 2011, com o livro O tempo e o cão - atualidade das depressões - Boitempo, 2009. Entre 2012 e 2014 integrou a Comissão Nacional da Verdade criada pela presidente Dilma Roussef para investigar graves violações de direitos humanos no Brasil, entre 1946 e 1985. O tema de sua investigação eram os crimes cometidos contra camponeses e indígenas. Seu livro mais recente é Bovarismo brasileiro - ensaios sobre o Brasil, Boitempo, 2018. Em 2020 a Boitempo também vai relançar o livro Ressentimento (Casa do psicólogo, 2004).


um orfanato para o universo

“O pior já passou. Foram os melhores anos da minha vida” (josé joffily filho)


1. Homem em luta Não é o rastro o suor que brilha acima dos lábios dele nem o esforço de conter o olhar que não encara, nem pode, ninguém. Não é a voz que desafina e trai na nota aguda que fere uma sílaba aqui outra ali a disparada da respiração. Tudo nele está lutando contra sua fúria agora. Mas é questão de tempo. Sabemos quem há de perder. (No Paradouro, LIsboa, set. 99).


2. Chuva descendo escadas Rajadas disparam súbitas do alto As cápsulas vazias executam sua dança tonta e se atiram vindo morrer logo abaixo, onde estou. Não pense que eu penso em lágrimas. Penso no desperdício, na alegria vã, vital, inútil. Penso no curto espaço entre começo e fim.


3. Represa Rápida meditação essa noite de pé, contra o vento gelado assombrada pelas vozes dos cachorros - o medo é minha intoxicação - até ver rebentar, do outro lado estilhaçando toda a superfície a cara enorme de uma lua incendiada.


4. Bispo do Rosario Catador de sucata das vidas alheias ele disse: preciso dessas palavras. Todas! E fez um orfanato para o universo.


5. Guanabara A tarde recolhe os restos do dia que nĂŁo percebe presos no fundo da rede Ă­nfimas lascas de prata inĂşteis para o repasto. Passa a vida feito cega ao esplendor dos contrastes - tudo sobra, tudo excede tudo finda antes do gasto.


6. Edifício Guaratiba Eu quero morar no tempo. Pretendo um quarto modesto com cama, lume e varanda suspenso sobre a cidade Outros bens, que não possuo deixo aos cuidados do mundo. Quero janelas sem trancas escancaradas ao vento, à escuridão, minha amiga, à luz dos dias sem fim. Não quero loft em São Paulo não quero apê em Paris. Eu quero morar no tempo onde tudo a minha volta seja eterno menos eu.


7. A delicadeza de estranhos Perdiste el vuelo, señora. O moço do balcão. Os olhos dele boiam num riso benigno: su billete fue para las dieciocho. O que eu fazia às 6? saí do filme em prantos tentando nunca esquecer os versos de Fito Paez pensando en ti, pensando en tí Y casi me hizo pegar por un auto en Cordoba y Maipu. Pero no importa, quedáte tranquila quero beijar a fonte do sorriso dele el de las veinteydos los ojos que miran mi corazón está vacío.


8. Seja o esquecimento obra inacabada. Um dia esse tempo esquisito tambĂŠm serĂĄ lembrado com saudades.


acéuaberto é um projeto de leitura pública iniciado na Ocupação 9 de Julho.

jun_2020


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