acĂŠuaberto
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para ler 1
elisa band –
é performer, encenadora e escritora. Já morou na Alemanha, teve medo do gato Felix, e lembra o que sonhou todas as manhãs, mas tem que anotar pra não esquecer. Em 2015 publicou o livro de contos Perecíveis, pela editora Lamparina Luminosa. Atualmente é professora do curso de performance do MAM- SP, diretora de teatro da ONG Ser em Cena, e faz mestrado na Escola de Comunicações e Artes da USP. Gosta de listas, dicionários e do oceano. 2
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12 milĂmetros
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esmo que eu não saiba o que fazer com tudo isso, ainda assim é preciso fazer algo. Por saudade, por jeito, por medo da outra coisa. Por um desejo que nasce no meio da saudade do jeito do medo. Antes, lembra como era antes? Não, não me lembro, ela disse. Não me lembro de antes ou então me lembro de antes cada hora de um jeito, e me deixa muito exausta me lembrar de antes cada hora de um jeito, então é bom que eu não lembre até que comece a lembrar novamente, mas com mais leveza, até que eu possa respirar quando me lembrar de antes. E quem sabe eu consiga definir o que faz um antes e um depois, é tão difícil precisar quando começa a nascer uma ferida. Talvez seja bom pra ela ouvir o médico, mas ele quase não fala. Ela com tantas perguntas ele estende a mão ela ignora a tentativa de despedida e faz mais perguntas, ele mão estendida ela tira as imagens do envelope, o que o faz contorcer lábios e sobrancelhas, as imagens que ele nem havia olhado, só leu o laudo, como assim, um absurdo, ela pensa, será
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que ele está querendo me poupar, será que tem pressa, será que nem liga ou não imagina que o lacre é falso?, é óbvio que todo mundo abre, é óbvio que abri que convivo há uma semana com imagens embaralhadas a palavras do laudo e não consigo ligar os pontos, não entendo o estômago por dentro, tentei ligar úlcera bulbar com aquela caverna úmida e cor-de-rosa iluminada por luz artificial. Tentei ligar 12 milímetros com um ponto negro na caverna rosácea ou com espumas brancas que apareciam nas paredes, tentei, doutor, durante toda a semana não sabia se o ponto negro era a saída da caverna: toda caverna tem que ter uma, não?, ou se era a ferida. E tem as dobras, sempre úmidas, a espuma é o machucado ou faz parte da geografia, e onde ficam o antro e o corpo descritos no laudo? E os dois fragmentos encontrados, ninguém explica do que são feitos, mas falam que mediam, ou medem, de 0,2 a 0,5 cm no antro, e de 0,5 a 0,8 no corpo do estômago, e vivi até agora sem saber que o estômago tem um corpo, esse homúnculo que me morde às vezes, sim, agora posso lembrar 5
de antes, a fisgada, tem tamanho a criatura mas nome não vou dar. Por isso, doutor, depois de você-o senhor ter desistido de apertar minha mão pra eu ir embora, me levantei e tirei as feridas do envelope colado, etiqueta impecável que diz: não abra, a gente não quer que você chore no meio da rua, pode atrapalhar o fluxo, você pode se machucar, ser atropelada ou cair em um buraco, nosso laboratório não se responsabiliza, por isso colamos a etiqueta, com amor, Fleury. Quando tirei aquelas imagens e perguntei onde está a ferida (um pouco trêmula como quem descobre uma traição), eu já estava de pé e a gente se olhava, o senhor surpreso, e eu com aquela canastra real do esôfago. Em outras circunstâncias poderíamos ter sido amigos, eu poderia te beijar. Você poderia me abraçar com seus braços médicos, mas o beijo teria sido antes, no primeiro dia, a primeira vez antes da ferida, quando eu nem tinha perguntas nem imagens e você pediu pra eu me deitar: desculpe, doutor, sempre confundo as coisas quando um homem pede pra eu deitar e levantar a camisa e depois 6
toca na minha barriga. E espero a próxima instrução, camisa levantada, obediente, o senhor-você pousa a mão na minha barriga, o que faz com que o antebraço fique perto do meu rosto e eu sinta o seu cheiro de membro da sociedade cirúrgica, e as coisas mais estranhas podem acontecer quando um homem e uma mulher se juntam. Isso foi antes. A primeira vez, tudo novidade. A segunda eu já tinha passado pelo sono profundo enquanto eles tiravam fotos das cavernas viscosas, eu já tinha ficado mais perto do medo da Outra Coisa. Esse medo é tão impossível, doutor, o senhor deve sentir isso também quando está sem seu jaleco, ou no meio de um procedimento importante, como vocês dizem. Com aquela luz grande e fria que ilumina a outra caverna que é a sala do procedimento, enquanto o senhor está lá e desliza dentro da floresta de alguém que dorme, posso pensar que o senhor nesse momento pode ter encontrado em uma reentrância o medo, a água que não dá mais pé, e talvez graças ao seu profissionalismo apenas 7
a sua enfermeira mais próxima possa ter notado um pequeno tremor em alguma parte do seu rosto, e como o senhor estava com as duas mãos ocupadas, sua enfermeira pode ter passado um lenço esterilizado em seu rosto para afastar o medo. No meu caso, doutor, me sobra a criança que tem de esperar uma explicação de um susto. Enquanto a explicação não vem, a conversa com o impossível fica truncada, e ela acorda no meio da noite com muito medo de que seu gato tenha caído da varanda, ela procura o gato pela casa, sacode o pote de comida — e novamente a fisgada, doutor — e vai até a varanda e olha pra baixo, como ela é criança nesse momento, nem lhe ocorre que o gato poderia ter caído de qualquer parte da varanda, na paisagem do medo foi por uma certa parte da varanda que o gato caiu, e enquanto ela observa sete andares abaixo, o gato aparece e roça na sua perna. Ela fecha a varanda e dorme. Por isso é que eu fiz a pergunta, e você não respondeu como se responde a um adulto quando eu estava com as cartas na mão, a 8
canastra suja, e te perguntei onde está a ferida? Por favor, me fala, aqui nessa imagem o que é a ferida, doutor? Eu te mostrei, escolhi uma carta à parte das espumas e perguntei se isso é a ferida, e você diz que sim, só porque você talvez esteja com pressa, quando o certo seria você nesse momento falar pra eu sentar, e então respiraríamos os dois, eu aliviada e você se preparando para contar mais uma vez como funciona uma caverna quando cresce um buraco nela, como a gente faz pra não machucar, ou pra machucar menos, e nesse momento, quando respiro um pouco mais e você me olha, nesse momento talvez você é quem tivesse se confundido um pouco, um homem e uma mulher juntos e ela respira, você sabe, vai ficar tudo bem, e depois o abraço desconcertado, sim, tem uns médicos que abraçam, doutor. Mas não. No momento da pergunta, eu de pé e você sentado, no momento que você-o senhor poderia se tornar humano e eu poderia me tornar adulta, você olhou para a imagem 9
apontada, olhou para a espuma qualquer e disse: é a ferida isso. E fui embora mais embaralhada ainda, pressa, fome, cansaço, volte daqui a 45 dias, e se eu tiver alguma dúvida posso te ligar, pode falar com minha secretária, mas ela não vai saber me explicar como faço pra conviver com o medo. *** Querido doutor, eu fiz tudo direitinho. Depois do nosso duelo, quando você-o senhor me falou que eu poderia pular da janela se eu quisesse, recuei. E quando você rasurou a receita, para que eu voltasse para te pedir outra, e falei que dessa vez eu tinha poucas perguntas, que era só trocar a receita mesmo e saber se posso continuar tomando o remédio até o nosso encontro final, e você disse que sim, e você disse que eu poderia fazer mais perguntas, que não precisavam ser poucas. Mas depois do nosso duelo eu tinha só essas duas e um decote, no centro um vão cavadiço, descortinado, com vontade de mãos 10
clínicas, eu tão pretendente, e você, doutor, tão candidato, um carimbo, uma assinatura, e eu nem ligava mais. Talvez seja só isso que eu queira, é uma avidez de imaginação, você nem imagina. Talvez se as mãos médicas almejassem de fato o meu abismo, eu, paciente, recuaria, não é bom ir aonde não dá pé quando tem correnteza, doutor. Por favor, dessa vez não rasure, me libere para o segundo passeio fotografado nas florestas estomacais e um pouquinho das alças do duodeno, só vim aqui corrigir essa receita, deixar que suas mãos errem por carimbos e CRMs e meus abismos desadormeçam em outros lugares, boa tarde, é só isso, marco com sua secretária a última risada assim que saírem os resultados, doutor. *** Agora somos adultos. Posso te dizer tudo o que quero, isso é ser adulto, não é mesmo? Ou então ficar em silêncio e não dizer tudo que posso, isso também é ser adulto, li em algum lugar. 11
Enquanto espero na sala de espera, observo as outras duas, uma moça cinza que tem as beiradas da boca desembocadas pra cima numa eterna tentativa de sorriso e um homem sem predicado. A moça cinza me dá um papel religioso, sorrio sem mostrar os dentes e penso que ela não iria gostar se eu desse pra ela um pouco do que me acalma e que o homem talvez goste de outra coisa, e ele também tem um papel na mão: fomos colonizados pela missionária da sala de espera que quer nos soterrar com esse Jesus com olhos de tamanhos diferentes. Li em algum lugar que olhos de tamanhos diferentes não é nada bom, tenho medo desse Jesus e da mulher cinza, a secretária me chama, eu entro. Eu me sento, você me olha, nós apertamos as mãos, talvez eu te beije na bochecha, afinal já é a quarta ou quinta vez que venho aqui, quando a gente perde a conta é que já tem um vínculo, ou uma doença, mas no caso, sem querer estragar a surpresa, eu estou cu-ra-da. Quase curada. Grau bem leve de alguma coisa. O laudo fala assim. Praticamente boa. 12
Totalmente cicatrizada. Não beber nem dirigir nem tomar decisão importante. Isso foi no dia do exame. No dia do laudo já podia tudo. E hoje te dei um beijo na bochecha, mas ali no limite, que é pra deixar bem claro não sei direito o quê. Você olha o laudo, sorri. Eu te conto mais uma notícia, é como uma valsa. Conto que estou sem fumar, sem te contar que tenho pesadelos em que vou ao teatro e tem uma moça enforcada na frente da plateia do lado direito do palco e preciso passar por ela pra ir ao banheiro, meu corpo roça no seu corpo duro, meu ombro na altura da sua cintura, eu acordo gritando e suada e tenho que colocar uma luzinha pra poder dormir de novo, só crianças fazem isso, adultos dormem no escuro, mas eu de vez em quando preciso acender a luminária, você não precisa saber disso, doutor, voltemos a nossa dança. Parei de fumar há quarenta dias, doutor, você sorri e fala como isso é bom, crucial, excelente, linda. Você volta para o laudo. E me olha e sentencia, sou hipersecretora, posso tudo mas com moderação. Doutor. 13
Primeiro, não sei quanto é com moderação. Você precisa me dar números. Se eu te falasse que às vezes, quando a gente vai ao teatro, tem uma mulher enforcada na nossa frente e ninguém faz nada pra tirar aquela mulher dali, contasse que no final da peça tiraram o corpo de lá mas a penduraram mais pra trás, até que a polícia chegasse, só que a polícia não chega, doutor, está ocupada demolindo prédios com pessoas dentro, e acordo suada: se eu te falasse isso, você poderia me explicar como se faz para suar com moderação. Ou quando eu choro na rua. Tem umas pessoas, doutor, elas moram na rua. Se você soubesse, e é um mar de gente espalhada sem moderação, cobertores, caixas de papelão, não te falei nem vou falar sobre esses assuntos. É bom que sejamos um pouco felizes. Antes de você me falar pra voltar em noventa dias. Na nossa valsa sem cigarros.
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O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Gilles Deleuze e Félix Guattari
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acéuaberto é um projeto de leitura pública iniciado na Ocupação 9 de Julho.
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