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para ler


juliano garcia pessanha – nasceu em São Paulo em 1962. Após abandonar o curso de direito no Largo São Francisco, graduou-se em filosofia. É mestre em psicologia (PUC-SP) e doutor em filosofia (USP). Lançou em 2018 os livros Recusa do não-lugar (Ubu) e Epigramas recheados de cicuta, coautoria com Evandro Affonso Ferreira. Autor também de Sabedoria do nunca (1999), Ignorância do sempre (2000), Certeza do agora (2002) e Instabilidade perpétua (2009), publicados pela Ateliê Editorial. Recebeu o prêmio Nascente (Abril-USP) nas categorias poesia e ficção, em 1997, e o Grande Prêmio da Crítica da APCA na categoria Literatura (2015) por Testemunho transiente, reunião de sua tetralogia pela Cosac Naify. Sua obra é marcada por um hibridismo de gêneros, entre eles, ensaio, conto, aforismo, heterobiografia e heterotanatografia. Tece estreito diálogo com a literatura, a filosofia e a psicanálise, em busca de dizer as coisas em registros múltiplos de enunciação. É professor e dirige grupos de estudo de filosofia.


Diário de bordo Dia 200. Prossegue a nossa viagem. Perambulei a noite inteira pelo barco e senteime na cadeira em frente ao mastro. Em vão, minhas mãos buscaram a memória de alguma fisionomia. Devo ter passado a última manhã estraçalhado por pesadelos, pois lembro-me de ter polido nadadeiras de platina depois de abandonar o bosque dos hermafroditas. Agora estou no convés e a luz de uma estrela diz-me que ainda não perdi a razão. Dia 203. Os homens estavam bêbados e uma nova tempestade nos pegou. Fico caminhando pelo convés de cá pra lá e de lá pra cá. Estou vesgo de cansaço. Alguns homens se revezam para vigiar a volúpia das ondas, mas mesmo assim, um por um está sendo engolido. A todo momento refaço o saldo dos vivos, subtraindo os afogados: faço as marcas dessas contas, não aqui neste diário, mas no próprio mastro deste barco.


Temo ter sido designado: “o sobrevivente”. Dia 209. Hoje tentei recordar o dia da partida. O burburinho alegre das donzelas e o rebuliço das crianças. Minhas pernas estão dormentes e todos os tripulantes estão mortos. Vago pelo convés e me esforço para continuar ereto. Já não há bússola nem estrela e, desgovernado, acho que me aproximo do polo. Enormes icebergs sondam o casco. Eles dizem: “Nós somos as sondas brancas da morte”. E sei que dizem a verdade. Minha barba congelada mede o tempo que passa, apesar do pânico ter aniquilado o futuro. Recusei-me a devorar o braço de um companheiro morto. Não compreendo por que este barco. Ele era a nova arca e eu o Noé repetido que avistaria verdes e aves. Por que a missão não deu certo? Por que eu, o escriba do mastro, o último a anotar o desastre? Ulisses sem sombra de Ítaca.


Sala de visita No tapete estava escrito dez vezes a palavras inverno e da parede pendia uma sentença: “nesta manhã de inverno sigo o caminho e encontro uma criança à sombra da árvore azul”. O apartamento era térreo e dava para o mar. A porta estava aberta e entrei sem ser notado. Três homens de trinta anos conversavam. Eles pareciam bem mais velhos, pois eram carecas e enrugados. Punham discos na vitrola e gargalhavam, mas tudo me pareceu mergulhado em uma atmosfera imóvel. Ao escutar uma das piadas, senti-me asfixiado por um cheiro tóxico. Olhei para o tapete novamente e vi que a partir da quarta repetição a palavra inverno ia perdendo o “r” e mudava para “inferno”. Saí sem ser notado e me dei conta que os três homens nunca leram aqueles vocábulos até o fim. Portanto, não haviam interpretado aquele sinal indicativo de lugar.


Carta entre melancólicos Minha cara, Todas as noites leio e releio tuas cartas. Antigamente, quando eu as recebia, eram todas extraviadas. Tua voz não me achava em canto algum. Hoje releio. Procuro me recolher e tua companhia me é essencial. A lembrança de nossa história é para mim como um oásis. Nunca mais tive ou fiz história. Nunca mais a hora positiva e os assaltos do tempo. Apenas desacordo e imobilidade. Vivo exterior a tudo e a minha recordação hesitante de nós é o vínculo que sobra com o tempo de minha vida. Preciso sustentar a recordação de nossa passagem. Não que eu queira mendigar sinais de vida. Isso seria um fiasco. Se torno a te escrever deste país esquecido é porque sei que minha vida se esgotou e sinto ainda uma espécie de aflição. E essa aflição quer compreender o desastre.


Mas é suave a espécie que se extingue e por isso prefiro a monotonia de uma sobrevida e os relatos da sombra às insistências do devir.

Poema I As matilhas que me cortam não se cruzam sou uma ode das carnificinas Os rios que me atravessam não se misturam sou o ninho das rasgaduras os seres que me povoam não se suportam sou a oração de evitar a faca

Poema II um bando de lobos uivantes uma matilha de cães selvagens é o amor rasgam, cortam e devoram aquilo que cai no seu território


acéuaberto é um projeto de leitura pública iniciado na Ocupação 9 de Julho.

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