Julian Beck
REVOLUÇÃO E CONTRARREVOLUÇÃO
O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Gilles Deleuze e Félix Guattari
Vamos falar da contrarrevolução porque queremos a revolução. ¶ E a revolução não terá lugar até que tenhamos exorcizado a violência, porque a violência é contrarrevolucionária. ¶ A violência é o produto da nossa civilização ¶ e a violência é o fundamento da nossa civilização ¶ e é essa civilização que a revolução quer destruir. ¶ A revolução é um processo de destruição e criação. ¶ A revolução é destruição criativa, seguida
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de pura criação. ¶ A revolução não pode
usar as técnicas da velha civilização. ¶ É por isso que a revolução não pode usar violência: ¶ porque não queremos os efeitos da velha civilização nunca mais. ¶ A velha civilização inventou a violência para executar seus propósitos violentos ¶ e a revolução não tem propósitos violentos, ela tem propósitos de vida, sem violência. ¶ A velha civilização é a violência do sistema social, a violência do dinheiro, ¶ a violência do poder autoritá-
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rio, exército, polícia... a violência da
raiva, ¶ a violência do orgulho, a violência de éticas egoístas e mortes absurdas... ¶ Não queremos violência. Queremos vida. Queremos ser livres. ¶ Ser livre significa ser livre da violência. ¶ É por isso que o verdadeiro revolucionário é não-violento. ¶ É por isso que encontraremos outros meios para mudar o mundo. ¶ Queremos ser livres do Estado assassino. ¶ Queremos transformar a força da morte em energia de vida, ¶ a
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violência, em criatividade. ¶ Cada
pessoa deve ser livre para comer. ¶ A revolução quer parar todas as guerras, todos os conflitos. A revolução quer dar a cada um a oportunidade de voar bem alto. ¶ Se você não vê que a vida é simplesmente sagrada, eu desconfio da sua visão de mundo. ¶ Enquanto você pensar que é lícito matar, não nos libertaremos. ¶ Não podemos alimentar os mortos. ¶ Não podemos parar a guerra com a guerra. ¶ Queremos nos livrar da coer-
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ção. Todas as armas coagem. Toda
matança é contra-revolucionária, antipoesia, antivida, antiamor e antimatéria. ¶ Os pobres ardem de beleza porque não carregam armas como a polícia. ¶ Os ignorantes e os desprezados ardem de beleza porque não foram corrompidos pela ganância. ¶ Quero dizer, nada possuem não pensam, nem raciocinam como as classes corrompidas pela riqueza. Eles são o povo. ¶ A revolução não corrompe o povo. A revolução não
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ensina a matar, como faz o exército. ¶
A revolução ensina outras coisas. ¶ É 1968, eu sou um realista mágico, eu vejo os adoradores do Che, vejo os negros forçados a aceitar a violência, vejo pacifistas se desesperarem e aceitarem a violência. ¶ Vejo todos, todos, todos corrompidos pelas vibrações... ¶ Vibrações de violência de uma civilização que está destruindo este nosso único mundo. ¶ Vejo o sofrimento dos negros do meu país e o sofrimento de
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todo o terceiro mundo. ¶ Vejo a violência
do sistema que produz o sofrimento dos desprivilegiados... ¶ E precisamos destruir esse sistema... O sistema, não as pessoas... ¶ Você não pode abolir o sistema imitando-o. ¶ Você não pode matar um assassino sem se tornar outro como ele, de certa forma. ¶ Você não pode parar a violência com a violência. ¶ Você quer libertar os pobres... você quer, você precisa fazer alguma coisa... ¶ E para fazer alguma coisa você escolhe a violên-
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cia. ¶ Porque gente de coração sensível
pensa que está fazendo alguma coisa ¶ quando faz algo de violento. ¶ Há outros modos de fazer alguma coisa para libertar os pobres ¶ Agora... venha cá, nós somos inteligentes, nós, os revolucionários ¶ Nós precisamos saber disso. ¶ Todo o meu teatro, meus poemas, todas as minhas invocações à revolução serão um fracasso se não reduzirem a cinzas a violência, se não afugentarem a violência com exércitos
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de amantes... ¶ A não violência não é
uma técnica, não é um substituto das armas. A não violência é algo que nem bem conhecemos. É, em si mesma, uma revolução! ¶ Não podemos vislumbrar a verdadeira revolução enquanto não fizermos os preparativos para a revolução e sentirmos as coisas de modo diferente. ¶ Não podemos mudar o mundo se não mudamos a nós mesmos. ¶ Não podemos ter uma sociedade que funcione com amor, se não amarmos. ¶ A violên-
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cia eliminou o sentir e o amar e é por isso
que mal sabemos o que é o amor, até hoje. ¶ Mas nós saberemos, quando tivermos abolido a violência, o dinheiro, o militarismo, a desigualdade... ¶ A revolução relegará o capitalismo... A revolução relegará o militarismo ao passado remoto. ¶ Este é o caminho: fora das prisões, fora das favelas, dos guetos negros, ¶ fora da vida de trabalhar por um salário... ¶ Fora da civilização da morte, a morrer e a matar... ¶ Fora de uma vida de
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ódio, para a vida, finalmente! ¶
O fuzil é a lógica do pensador insensato. A bomba é a justiça do ódio. ¶ A revolução se baseia no amor. A revolução faz girar a roda. Ela faz a vida avançar. ¶ A rebelião é algo diferente. Faz avançar, mas não o suficiente. ¶ A rebelião escolhe a violência porque não vê mais longe à sua frente. ¶ A sede de vingança é o legado que herdamos da velha civilização. A rebelião a aceita. ¶ Nós, a rejeitamos. ¶ A violência, ó meus con-
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temporâneos, é o bezerro de ouro da
revolução! ¶ O que queremos é energia, e não a violência. ¶ Queremos transformar os oponentes da revolução com nossos corpos, brancos e negros. ¶ Nós formaremos células, minaremos a estrutura, assaltaremos a cultura, ¶ divulgaremos a ideia da nova sociedade: a nova sociedade livre. ¶ Nós construiremos uma infraestrutura de trabalhadores e organizadores e, um dia, deixaremos de usar dinheiro. ¶ Só faremos trabalhos
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úteis. Planejaremos antecipadamente
como levar as maçãs para a cidade. ¶ Você irá aos armazéns públicos e levará tudo o que precisar. Nada de dinheiro, nada de escambo, nem contrato. E se você não quiser, não será obrigado a trabalhar. ¶ E todas as pessoas envolvidas com dinheiro, governo, burocracia exército e a produção de inúteis mercadorias de merda todas estarão livres. ¶ E se cada pessoa trabalhar cerca de dez horas por semana, o mundo, em
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revolução, continuará girando. ¶ Todas
as prisões serão abertas. Não há roubo se não há nada para ser roubado. ¶ Não há nada neste mundo que eu mais queira do que o seu amor... ¶ Se eu tiver alguma coisa que você quiser, pode levar... ¶ Não precisamos de leis. Precisamos sentir. ¶ A violência é falta de sensibilidade. ¶ O dinheiro é falta de sensibilidade. ¶ Se pararmos de usar dinheiro, os bancos falirão. O exército desaparecerá, se não houver mais paga-
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mento. ¶ Os governos cairão e o povo se
levantará. ¶ Não precisamos de governo, precisamos de uma simples administração. ¶ A razão de ser do governo é proteger o dinheiro. ¶ Uma simples administração irá girar a roda para nós e isso será suficiente. ¶ Nos administraremos a nós mesmos e não haverá aluguel, não haverá nada para pagar. ¶ Esse será o nosso mundo: nosso, para gozar, e fazer o que quiser. ¶ Para fazer amor. Comer e transar. ¶ Queremos alimentar a todos. E
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transar com todo mundo. ¶ Mas o meio
para chegar à revolução não violenta é a destruição do dinheiro. ¶ Quando queimarmos o dinheiro, queimaremos o combustível dos demônios. ¶ Demônios do antiamor do capitalismo e do autoritarismo. ¶ Quando pararmos de usar dinheiro, esta era da civilização da angústia terá fim. ¶ Tudo é simples assim. ¶ Quando abandonarmos o dinheiro e a violência, inverteremos a consciência. ¶ Quando renunciarmos ao dinheiro e à
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violência, tudo irá mudar. ¶ A revolução
contra a violência é a revolução que liberta todo mundo. ¶ A revolução contra a violência, em todas as suas formas, é a revolução que todos querem ¶ e precisam... ou, morreremos cedo demais! ¶ Você não pode ter uma sociedade comunitária que inclua a violência. ¶ A violência divide. É anti-comunidade. ¶ Você não pode ter liberdade individual com a violência ao seu redor. ¶ A violência tiraniza todo o mundo. ¶ A rebelião violenta
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contra a violência não elimina a
violência, embora digam que sim, há dez mil anos. ¶ É uma mentira! Nós a rejeitamos. ¶ E quando vierem contra nós... ¶ Iremos enchê-los de santidade. Iremos fazê-los levitar de alegria. ¶ Iremos abri-los com canções de amor. ¶ Iremos vestir os desprezados de linho e de luz. ¶ Iremos colocar música e verdade em nossas roupas íntimas. ¶ Iremos fazer luzir a terra e suas cidades, com criatividade. ¶ Tornaremos tudo irresistível, até
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mesmo para os racistas. ¶ Queremos
fertilizar os campos de gelo. ¶ Queremos transformar o caráter demoníaco dos nossos oponentes em glória produtiva. ¶ Mudando o mundo, queremos mudar a nós mesmos. Queremos nos desfazer da nossa corrupção. E, mediante o processo da revolução, encontrar o ser, não o morrer. ¶ E enquanto não fizermos isso, a revolução não terá lugar. ¶ Cefalù,
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Sicília, abril de 1968
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tradução de Ilion Troya
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Julian Beck (31 maio 1925 - 14 setembro 1985). Poeta, artista expressionista abstrato, escritor, dramaturgo, ator, diretor, cenรณgrafo, iluminador, ativista, anarquista, pacifista e vegetariano.
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