Direitos humanos, estratégias menores

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Edson Teles

DIREITOS HUMANOS, ESTRATÉGIAS MENORES


O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.

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Gilles Deleuze e Félix Guattari


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DIREITOS HUMANOS, ESTRATÉGIAS MENORES


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O dia 4 de abril de 1983, uma segunda-feira, foi o momento da erupção de uma revolta contra o desemprego na Zona Sul de São Paulo. A cena primeira se realizou no Largo 13 de Maio, marco central de Santo Amaro, mas rapidamente se espalhou para o restante da cidade e, posteriormente, para as principais capitais do país. Conhecida à época simplesmente como “quebra-quebra”, sua narrativa foi apagada da história. Seja a nacional ou a de esquerda, até mesmo da história das lutas sociais. Contudo, é notável como esse movimento por condições básicas de vida, emprego e contra o alto custo de vida mobilizou o vocabulário e as performances de direitos humanos. As principais forças políticas dos pactos de transição, acordados longe das ruas e das praças, rapidamente se prontificaram a desqualificar o caráter político ou a legitimidade do acontecimento. “Provocação de infiltrados da direita”, disseram as “forças progressistas e democráticas”; movimento de desordem promovido por “forças radicais”, ameaçavam as instituições da ditadura em fase terminal. O presidente general Figueiredo classificou o evento como “atos de vandalismo que alarmaram a Nação”. Contudo, nas palavras de ordem dos manifestantes, viam-se estratégias tradicionais das lutas e a explosão da revolta:


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“Violência não, emprego sim”, “Temos fome, temos fome”, “Abaixo Figueiredo, queremos mais emprego”. Poucos anos antes, outro grande acontecimento havia mobilizado o discurso dos direitos humanos. Talvez tenha sido o maior protesto a fazer uso desse vocabulário durante a ditadura. Trata-se da campanha pela “Anistia ampla, geral e irrestrita”, organizada pelos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA’s). Foram milhares de pessoas engajadas em atos e ações públicas contra a ditadura e pela libertação dos presos políticos, pelo esclarecimento sobre as mortes e desaparecimentos de opositores e a favor do julgamento de agentes do Estado. O governo militar, por meio de seu ardiloso processo de “distensão política”, pressionado pela eficiência da campanha dos CBA’s, editou sua própria proposta de anistia. Fabricou um mecanismo de controle do processo de transição com uma lei limitada, porém com aspectos das demandas dos movimentos. O capenga Congresso Nacional, dilapido por anos de produção das instituições autoritárias, aprovou o projeto do governo. A Lei de Anistia libertou apenas parte dos presos e autorizou a volta de exilados. Tal como foi interpretado pelo aparato jurídico-político da época e confirmado pelo Estado de Direito, o agenciamen-


to do “perdão” estatal desautorizou os processos judiciais e bloqueou o acesso à verdade e à responsabilização do Estado e de seus agentes. No primeiro acontecimento descrito, o do Quebra-quebra de 1983, realizou-se o protesto por emprego e por uma vida digna. O estafe político nacional, em seu amplo espectro ideológico, tratou logo de apagar do imaginário a multidão amotinada em abril de 1983. Aparentemente, não teria sido um ato político, apenas uma “revolta”. O segundo acontecimento, contado e recontado pelo Estado e pelas várias forças herdeiras da redemocratização, se configurou como uma espécie de momento originário da ação política do novo regime. Enquanto lógica de governo, o consenso obtido pela “pacificação e reconciliação nacional” construídas a partir da anistia assombrou a institucionalidade democrática, ao menos até junho de 2013.1

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1. Refiro-me ao consenso como o artefato político criado na transição que, diante dos fantasmas da volta à ditadura ou da radicalização de esquerda, buscou consolidar a democracia em torno de normas estabilizantes das relações sociais e políticas. Seu produto foi, por um lado, a adoção da política do possível, uma média calculada de evitação dos riscos, além e aquém da qual não se ousaria ir. Por outro lado, os que ficaram fora do processo, notadamente os movimentos sociais, mas também vastos segmentos da população (negros, pobres


Esses acontecimentos organizadores da democracia pós-ditadura, seja como modelo ou como o que deveria ser bloqueado, mostram um aspecto relevante dos direitos humanos: o caráter de lutas em favor da vida digna, por meio de movimentações organizadas ou espontâneas. Em ambos houve a mobilização de discursos e saberes tradicionais das lutas sociais. Um aspecto relevante da conexão entre os casos é a valorização dos processos institucionais em detrimento das lutas. Outras revoltas, como a de 1983, se repetem cotidianamente em maior ou menor grau nas periferias e nos territórios pobres. É frequente que movimentos de uma comunidade se desloquem para a avenida mais próxima, queimando ônibus e fazendo barricadas, em protestos contra a morte violenta de algum morador. Em geral, a vítima é um jovem negro, e o assassinato resulta da violação

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e todos que apresentavam alguma anomalia frente às normas da nova cidadania), foram considerados restos e gradativamente vieram a ser silenciados e invisibilizados. Em junho de 2013, rompe-se com a lógica do consenso, especialmente por reação à crescente presença dos setores que haviam sido alijados dos pactos dos anos 1980, e reinstaura-se a lógica binária do combate ao inimigo, à semelhança (ainda que distante) da ideologia de segurança nacional da ditadura. Desenvolvi essa análise no livro O abismo na história (Alameda, 2018).


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de direitos por parte de agentes do Estado. Mas, afinal, o que são os direitos humanos? Poderíamos pensá-los, para além de suas práticas de governo (politicas públicas, leis, direitos), como ação de resistência, inclusive nos moldes da revolta? Revoltas como a do Quebra-quebra de 1983 são compreendidas pela tradição do pensamento político como excessos ao direito e à lei, ameaçando o Estado, a paz, o mercado. Neste tipo de acontecimento, a ordem jurídico-política tende a desqualificar as lutas, fazendo-as aparecerem como algo sem linguagem ou sem a forma apropriada de um protesto. Não há uma representação, nenhuma liderança identificável, as falas desconexas são inaudíveis para os instrumentos institucionais de mediação. Na lógica de governo, cujas estratégias buscam capturar eventos como a Lei de Anistia, as várias subjetividades envolvidas são incluídas em mecanismos de máquinas políticas cuidadosamente calculados, ordenados e reproduzidos. Já nas revoltas, as representações e a organização não são dadas previamente e, por isto, ao ganhar corpo e temperatura, sai das formas institucionais de controle e condução. Apesar de certa autonomia temporária em relação ao


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institucionalizado, dentro ou fora do Estado, as ações da revolta apresentam conexões com as tradições das lutas sociais e populares. Assim, seja no lugar da dominação ou da resistência, as forças em disputa são conduzidas por táticas de conflito nas quais as ações de ruptura devem ficar fora do alcance. Fabrica-se a tendência a se compor com o “menos pior” e a temer o imponderável. Ambas as ações de rupturas ou as capturadas fazem uso da gramática dos direitos à vida, ou ainda, à sobrevivência, bem como de tecnologias e estratégias das formas tradicionais das lutas políticas (dizeres, síntese da reivindicação, passeata, bloqueio, relação com as instituições etc.). Mas emerge a questão: o que torna um ou outro evento propriamente político ou não? Por que alguns são qualificados como tal enquanto outros são desautorizados e esquecidos? Intentamos ressaltar que os direitos humanos, para além do aspecto universal e, por isto, totalizante da compreensão do agir e da condição humana, se constitui também a partir de formulações e instrumentos locais. A efetividade de tais movimentações ocorre mediante a suspensão, o deslocamento, a teatralização e a simulação da unidade do


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discurso e da performance dos direitos. As lutas fragmentadas e locais, como o Quebra-quebra de 1983, parecem sofrer bloqueios ao serem acessadas pelas instituições do Estado e de seus parceiros. Estas funcionam sob a lógica da gestão da vida e dos corpos. O que limita ou, por vezes, anula a potência transformadora das políticas públicas. São duas as ideias principais que procuramos sustentar: a primeira, a de que as lutas sociais, inclusive as revoltas, ao mobilizarem o direito à vida e usarem práticas tradicionais dos protestos, se constituem em movimentos de direitos humanos; a segunda é a de que essas lutas se configuram como ações políticas qualificadas e fundamentais para uma democracia. A implicação direta da proposição de valorização das formas autônomas de resistência é o alargamento da definição do que seja a ação política. Quando discorremos sobre o caráter local de determinado protesto, nos referimos às movimentações e aos deslocamentos descentralizados cujas produções não necessitam de validação autorizada ou do especialista. Nem mesmo de liderança ou programa político. São atos que provêm, de modo geral, dos movimentos sociais e dos coletivos diretamente envolvidos em lutas cotidianas e relacionados à experimentação do conflito em torno dos corpos


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que habitam determinado território. As lutas locais apresentam características temporárias, algumas vezes espontâneas e, em outras, previamente organizadas. Mas diferem dos movimentos sociais, principalmente, por não se proporem representantes universais de grupos, populações, categorias, segmentos. Os movimentos tradicionais procuram desenhar ou aderir a um projeto político prévio à sua ação e tendem a se coligarem estrategicamente com programas mais gerais ligados às lutas em torno das instituições do Estado. Os conteúdos que emergem nas experiências específicas advêm da acumulação histórica de saberes produzidos em sua constante fricção com as políticas públicas ou a execução das leis. As interpretações desses coletivos são periféricas, tanto do ponto de vista geográfico, quanto político. O surgimento desses conteúdos históricos propiciou a coletivos locais ou circunscritos a acontecimentos periféricos a produção de lutas pelos direitos humanos. Por corresponderem a processos históricos, esses saberes, com frequência, transitam entre coletivos aparentemente distintos ou anacrônicos entre si. Refiro-me, por exemplo, à adoção de um vocabulário contra a violência de Estado, tanto pelos movimentos de vítimas da ditadura mi-


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litar, quanto pelo Movimento Mães de Maio. Este último denuncia o genocídio promovido pelo Estado paulista contra centenas de pessoas no ano de 2006, em acontecimento relativamente distante do período militar do ponto de vista dos indivíduos que os compõem. Para uma lógica de governo, a distância das lutas em relação à localização política do Estado gera a concepção de que seus saberes, suas estratégias e seus discursos são ingênuos, afetados e menores. Até legítimos e justos, mas insuficientes, inferiores ou abaixo do nível necessário para se qualificarem como ações políticas. Parece-nos que a emergência dos saberes menores tem obtido certa visibilidade por meio das subjetividades atípicas, tais como as mulheres, os jovens negros das periferias, as pessoas LGBTQI, os indígenas, os quilombolas, os opositores, o corpo torturado, cujas experiências contrastam com os saberes jurídico, médico, penal e reparatório de governo da vida. O saber emergente dos direitos humanos em movimentos é desqualificado em favor da produção do universal ou da unanimidade das políticas institucionais, caracterizando-se, em oposição, mais por ser diferencial e discrepante. Os atípicos, considerados vulneráveis e em estado de


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sofrimento social, demandariam cuidados. Para os dispositivos das políticas estatais, o remédio seria a institucionalização dos direitos humanos. São atípicos porque há algo neles de anormal e, isto que supostamente possuem, o isto que eles seriam, os submete aos diagnósticos identificadores de patologias sociais alvos da farmacologia política autorizada pelos especialistas. Um caso explícito de emergência dos atípicos é a luta dos movimentos negros em favor da criação de mecanismos de acesso à educação, especialmente ao nível do ensino superior. São lutas que produziram as políticas públicas de cotas, as quais até hoje são limitadas. Contudo, com a entrada em larga escala das subjetividades identificadas com a questão racial por meio da experimentação do corpo, houve uma explosão de produção dos coletivos negros e do feminismo negro, bem como a validação de seus saberes, ainda que de forma extremamente dificultosa e bloqueada, na medida em que as universidades são estruturalmente racistas. Mas a fricção entre as políticas públicas com cotas e expansão das vagas e as novas formas de lutas implicou em transformações nas subjetividades dos corpos que experimentam o racismo desde o nascimento.


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Acrescentaria às definições desses coletivos a qualidade de se oporem com contundência às violações que sofrem, assim como de afetar as práticas de movimentos sociais maiores, transcendendo a simples soma de seus componentes. Seus percursos enquanto agentes menores têm a potência de produzir saberes, discursos e estratégias complexas, no entanto, sem serem centrais, universais e hierarquizados. O caráter emergente denota, portanto, o percurso histórico tradicional dos direitos humanos somado às experimentações específicas e às produções localizadas e diversas, fazendo suas ações surgirem à tona das práticas sociais mais visíveis. Haveria da parte do saber centralizado e universal dos direitos humanos um processo de disciplinarização e anexação dos saberes menores e artesanais, industrializando-os através de uma intensa luta político-governamental. Esse processo incidiria sobre os saberes locais, múltiplos e independentes, inúteis e desqualificados, segundo a lógica de governo, por meio de sua normatização. É o caso da Lei de Anistia, cujos momentos originários foram as várias encenações do discurso pelo direito à vida, ao corpo e à verdade histórica sobre os crimes de ditadura. Tão logo se detectaram potências disruptivas no movimen-


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to e na proposta, o governo militar impôs à definição final da Lei um dispositivo de controle. Segundo a interpretação do sistema jurídico-político, os opositores precisariam ser nomeados, criminalizando-os (condição para usufruir da Lei). Contudo, não se indicou os agentes do Estado envolvidos em violações e nem mesmo foram descritos os crimes cometidos pelos aparelhos repressivos do regime, atitude mantida ainda hoje pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão tomada em maio de 2010, em meio às discussões para a criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV). As lutas por uma “anistia ampla, geral e irrestrita” foram silenciadas e, por imposição da força, capturadas por uma lógica governamental que seria acionada em diversos momentos do período pós-ditadura. O dispositivo funcionou tanto como bloqueio jurídico-político das possibilidades de transformações nas estruturas estatais, quanto como mecanismo de subjetivação das memórias da violência passada ao produzir os afetos do silêncio e do esquecimento. São estratégias que ativam técnicas de classificação dos conteúdos e também das subjetividades que os produzem e disseminam, ajustando-os a um saber unificado, eliminando diferenças, qualidades próprias, incluindo-os nos parâmetros de um conhecimento universal.


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Poucos anos mais tarde, nos acontecimentos do Quebra-quebra de 1983, o dispositivo memorialístico da anistia foi acionado como pano de fundo dos processos de anulação e contenção da revolta. Quando os protestos por emprego e qualidade de vida no território urbano de São Paulo se alastraram para outros centros populacionais, os partícipes dos acordos da transição mobilizaram o discurso dos riscos para a redemocratização. Acusados de desordeiros, provocadores, infiltrados, os manifestantes e seus atos foram amplamente desqualificados, pois representavam um desequilíbrio aos escusos pactos, explícitos ou implícitos, da transição. Enquanto populares entravam em batalha campal com a Polícia Militar por cinco horas na Praça da Sé, no dia 6 de abril, os partidos políticos e governadores de oposição ao governo militar se articulavam para, em uníssono, condenar o acontecimento fora do controle. Aquele “povo”, de acordo com a política tradicional, seria um bando de inconsequentes incitados por radicais contrários às mudanças institucionais em andamento. Não se trata de saber prioritariamente quem foi o vencedor e o vencido, mas, sim, como, quando e sob qual contexto os coletivos dispersos se conectaram com estratégias


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e saberes dos movimentos sociais mais tradicionais. Nos atos do Quebra-quebra de 1983, se sabia de modo autônomo que as vias de grande circulação deveriam ser bloqueadas e o comércio saqueado. Junto a essas estratégias, articulavam-se discursos tradicionais de direitos humanos em defesa de uma vida mais digna, como a demanda por emprego e custo de vida menor no combo do Estado de Direito por vir. Evidenciou-se o conflito sobre qual projeto de democracia seria desenvolvido, com as ruas tentando participar da elaboração. Lia-se, em uma faixa com dizeres escritos à mão, “queremos democracia com emprego”. São movimentos que fazem aparecer, a partir de elementos simples e de um ambiente peculiar, agenciamentos coletivos complexos. Tais saberes não pertencem a nenhum dos elementos ou coletivos em particular, emergindo das conexões dos singulares e, por isto, dificilmente predizíveis. Quanto mais elementos e maiores aberturas para as potências criativas e disruptivas, maior o surgimento de saberes e deslocamentos. Em contexto similar de transmissão de saberes e estratégias, é interessante notar como toda uma tradição de luta dos movimentos feministas no país, desde meados dos anos 1970, emerge em uma imensa multiplicidade de


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coletivos em escolas, universidades, bairros, regiões, cidades, instituições, locais de trabalho, na segunda década do século XXI. Poderíamos mesmo levantar a hipótese de que a perda de potência de parte dos movimentos sociais tradicionais, especialmente durante o governo Lula, a partir de 2003, pode ter sido a abertura para a criação ou o fortalecimento de coletivos autônomos e paralelos à política representativa institucional. Acontecimentos emblemáticos das conectividades de saberes e práticas foram evidenciados na temporada 2015-2016 das ocupações secundaristas, em defesa da escola pública de qualidade e da participação dos estudantes nas decisões. Em São Paulo, os secundaristas gestaram as ocupações, a partir de certo momento, apoiados no manual Como ocupar um colégio?, distribuído via aplicativo de comunicação nos smartphones. Originariamente, as indicações de como organizar e garantir a ocupação veio da tradução de documentos similares de experiências dos secundaristas chilenos, os quais aprofundaram suas técnicas e tecnologias de luta nas ocupações de 2011. Aparentemente, a versão em língua portuguesa se fez por meio do tradutor de um sistema global de buscas na internet e rapidamente o material circulou pelas escolas do país.


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Dentre as indicações do manual, havia a de criação de uma série de comissões internas à ocupação, visando dar conta da gestão do espaço, da infraestrutura e da comunicação. No cotidiano da ocupação, a defesa de uma escola de qualidade despertou a necessidade de encarar outras dimensões da vida. Logo se percebeu que as comissões de alimentação, tendenciosamente destinadas às garotas, deveriam ser compostas por garotos e garotas. Tomados por questões fundamentais dos direitos humanos das mulheres, as ocupantes e os ocupantes colocaram em lugar central das suas formas de organização e atuação as questões de gênero. Pouco a pouco, muitas garotas começaram a aparecer como porta-vozes das ocupações. Não à toa, um dos lemas que se herda das ocupações é o “lute como uma menina”. Nesse percurso das ações políticas em direitos humanos, as lutas se constituem no chão dos conflitos sociais, animadas pelas demandas locais, diversas e específicas. São ativadas não pelo protagonismo de quem iria figurar como ator de uma encenação, mas como resultado da ação dos não qualificados, dos vitimizados, de quem está em condição de paciente e carente do remédio das políticas institucionais, os que seriam seus objetos de incidên-


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cia. Nas lutas, o próprio sujeito “menorizado” assume para si a condução autônoma de seus atos. De modo paradoxal, as movimentações em direitos humanos parecem seguir dois percursos, em paralelo, mas sempre estabelecendo alguma forma de conexão. Por um lado, produzindo, por meio dos conhecimentos históricos, das teorias e da institucionalização, as políticas públicas. A ação institucional funciona via captura das reivindicações, mas também opera modificações nas subjetividades envolvidas. De outro lado, as movimentações em direitos humanos se conectam aos efeitos das políticas públicas e reelaboram suas próprias experiências e seus saberes. É notável como reivindicações surgidas de lutas específicas, locais, com estratégias e saberes memorizados pela política representacional e das instituições, se transformam em políticas públicas e leis. Foi o caso da criação da Lei Maria da Penha, de 2006, surgida do encontro de lutas históricas dos movimentos de mulheres com o caso específico de uma vítima da violência contra a mulher, que daria nome à Lei. Maria da Penha, junto com organizações feministas e de direitos humanos tradicionais, conquistou o reconhecimento de seu caso na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), da Organização dos Esta-


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dos Americanos (OEA), pressionando o Estado brasileiro a criar mecanismos de proteção à mulher. Entretanto, o feminicídio, anos após a criação da Lei que fez diminuir a morte entre mulheres brancas, sofreu um forte crescimento entre as mulheres negras. Segundo pesquisa da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), entre 2003 e 2013, a morte violenta de mulheres negras aumentou 54%, enquanto a de brancas diminuiu 9,8% (Cf. “Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil”). Mesmo quando as lutas específicas e menores não são institucionalizadas ou, ao contrário, são negadas nas esferas da política tradicional, ocorre um processo de transferência e conexão entre ricas experiências políticas. É o caso da campanha pela legalização do aborto na Argentina (2018). Após momentos emocionantes de mobilização, o projeto que transformaria em lei a reivindicação foi recusado pelo Senado. Contudo, permaneceu o sentimento de que os múltiplos coletivos e as subjetividades envolvidas em movimentos e atos transformaram profundamente o cotidiano do país. Não é mais possível, dali em diante, discutir políticas de saúde pública e de educação sem levar em conta as ques-


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tões de gênero. Também a relação, até então canônica entre Estado e religião, foi desnudada como nunca antes. Além disso, em microespaços de sociabilidade, falar de aborto deixou de ser um tabu. Avós, mães, netas e filhas passaram a conversar sobre uma dimensão de suas vidas até então contidas na clandestinidade de uma moral patriarcalista. Também mostrou ao mundo o quanto os direitos institucionalizados nas democracias liberais são precários e mantêm as mulheres sem o acesso pleno à cidadania. Em 15 de janeiro de 1980, ocorria aquela que foi a última greve de fome de presos políticos, já contra os limites da Lei de Anistia. Não haviam sido libertados os condenados envolvidos na luta armada contra o regime ditatorial. A edição do Jornal do Brasil com as informações sobre a situação dos presos, também noticiava na capa que uma pequena multidão havia cercado o Instituto Médico-Legal (IML) fluminense. Eram centenas de corpos memorizados, vindos da favela do Vidigal após o assassinato de um adolescente negro. A manchete dizia: “Favelas se unem ao Vidigal por jovem que tenente matou”. Amauri, de 18 anos, morreu com um tiro nas costas. No boletim de ocorrência, constava que teria resistido à prisão e, supostamente, portava maconha e um revólver. A repetição dessa narrativa


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dura até os dias atuais e continua a ser a pá de cal na vida de muitos jovens negros e pobres das periferias. A partir da saída de amigos e familiares do Vidigal, algumas rádios da cidade começaram a noticiar o fato e, na passagem do cortejo de resistência, moradores de outras favelas espontaneamente aderiram ao protesto. O alvo daquela movimentação era o local onde o Estado guardava o corpo. Poderíamos dizer que os manifestantes reivindicavam a efetivação do habeas corpus, direito anulado pelo Ato Institucional número 5 (AI-5) da ditadura que, pouco antes, como parte da fabricação da democracia sob controle, havia formalmente retornado às regras do jogo. Em um dos vários cartazes, com letras escritas por mãos precariamente alfabetizadas, lia-se: “Queremos ajuda da secretaria de segurança porque a polícia chega nos morros dando tiro. Isto aconteceu no Vidigal matando o menor Amauri”. A polícia logo tratou de cercar o local e reprimir os manifestantes sob a alegação de que poderia gerar depredação e baderna. As estratégias e estruturas autoritárias se repetem e se sofisticam. Mas os saberes das resistências também aprendem e modificam suas formas de luta. Quando um coletivo ocupa uma avenida, toca fogo em


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pneus ou ônibus após a morte de um jovem negro e pobre, morador do bairro de vielas apertadas e com esgoto sem tratamento, o que eles pretendem? Com que direito realizam o ato? Qual a consciência política dos indivíduos desse coletivo? Haveria outro direito, outra ação política, para essas minorias paralelas? Trata-se, portanto, de compreender e analisar, sob o compromisso de trazer à tona, de fazer emergir, as lutas locais, paralelas, singulares, desqualificadas contra a política dos especialistas, da fala autorizada, do cálculo do ato possível realizado em nome de uma governabilidade do social. Não se trata de uma negação dos conhecimentos e saberes das políticas públicas de direitos humanos. Porém, observamos nas lutas sociais uma oposição à centralização do poder cujo processo se fundamenta na institucionalização de reivindicações por meio da lógica de governo. Quando os coletivos se destacam e os efeitos de seus atos colocam em circulação elementos ou estratégias políticas de ruptura, rapidamente eles sofrem a colonização na tentativa de enquadrá-los nos dispositivos especializados em direitos humanos. Se, em um primeiro momento, ignora-se ou se faz a desqualificação de suas ações, após persistirem ou se potencializarem, eles passam a serem


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alvos dos esforços de captura. Intenta-se anexá-los em sua própria esfera local e periférica, incorporando ao universal não necessariamente suas ações, mas os territórios e deslocamentos dos atos em potência. Havendo resistência por parte dos coletivos, aciona-se ciclicamente a mesma tática. Ignora-se, desqualifica-se, para depois tentar anexá-los. A captura fornece ao discurso verdadeiro dos direitos humanos a fonte de legitimidade da qual retira a força de seu poder. A potência das ações de direitos humanos parece estar justamente na fricção entre os saberes clássicos e institucionalizados e os sujeitos menores e suas experimentações singulares e locais. Os saberes emergidos nas lutas e movimentações dos direitos humanos são produzidos pelo acúmulo do saber acerca dos conflitos ou das estratégias neles envolvidos. As memórias das batalhas experimentadas formam territórios de relações políticas dos coletivos paralelos e autônomos em relação à institucionalização dos direitos, passando pelos movimentos tradicionais. Essa fricção ocorre com a contestação dos discursos especializados, dos privilégios dos técnicos, da tirania das hierarquias. E as memórias locais da violência das lutas são utilizadas nas táticas e estratégias do presente.


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Por meio de uma potente conexão entre a história das experiências políticas e as lutas sociais, buscamos refletir sobre um alargamento da ideia de ação política. Criar aberturas para a valoração das ações dos coletivos e movimentações de direitos humanos poderia ampliar as estratégias de resistência e transformação.


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Edson Teles tem experimentado a atividade docente e de pesquisa no curso de Filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde coordena o FiloPol núcleo de filosofia e política (CNPq). É militante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos da Ditadura e ativista das resistências aos modos autoritários de gestão da vida. Costuma lançar seu corpo às ruas em dias de manifestação. Interessa-se em compreender os processos políticos brasileiros e, para tanto, faz uso da filosofia enquanto instrumento de análise, assim como é afetado constantemente pelos saberes emergentes de lutas por uma vida digna.


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