elassim#

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Jeanne Marie Gagnebin Tatiana Roque Carla Rodrigues

ELASSIM#


O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.

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Gilles Deleuze e Félix Guattari


FRAQUEJADA(S) Jeanne Marie Gagnebin

A REVOLTA DA ZONA CINZA Tatiana Roque

DO CAPITÃO AO CAPITAL

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Carla Rodrigues


FRAQUEJADA(S)

Jeanne Marie Gagnebin

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Ansiosos, meus amigos lá fora, em Paris, Lausanne ou Berlim, me perguntam o que acontece aqui. Muitos que vieram ao Brasil lembram um país exuberante, uma acolhida generosa, frutas deliciosas. Não entendem como essa onda de violência aconteceu. E, naturalmente, perguntam se não seria melhor eu voltar para lá. Desolados, muitos amigos aqui, em São Paulo ou no Rio, em Belo Horizonte ou em Porto Alegre, dizem que não conseguem entender como tanta gente se revela “fascista” ou, pelo menos, sem crítica ao “Helenão”, com certo júbilo provocado por suas tiradas machistas, violentas, racistas, homofóbicas etc. Tento juntar alguns elementos não só para alcançar uma compreensão mínima, mas também para evitar cair no desespero ou na resignação. E corro um duplo risco: o de ser taxada de feminista esquerdista sem vergonha pelos inimigos e o de ser chamada de estrangeira loira e imperialista pelos amigos. Mas vamos lá. Deveríamos ter ficado alerta há mais tempo. Um deputado desconhecido, que nunca propôs algo relevante, ficou


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de repente notável. Por quê? Porque dedicou seu voto a favor do impeachment da presidenta Dilma Rousseff à memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que a tinha torturado. Ustra foi o comandante do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) de São Paulo entre 1970 e 1974. Oficialmente, morreram 47 pessoas nesses quatro anos nas dependências do DOI-CODI de São Paulo – a Comissão Nacional da Verdade (CNV) chegou a um número muito maior. Entre 1972 e 1973, Maria Amélia, César, Criméia Teles (grávida de quase oito meses) e as crianças de cinco e quatro anos, Janaína e Edson Luis, filhos de Maria Amélia e de César, foram sequestrados e torturados nesse centro. As crianças não sofreram tortura física, mas psíquica, e só reconheceram sua mãe, desfigurada pela violência, quando perceberam sua voz. Hoje, Janaína (historiadora) e Edson (professor de filosofia) continuam lutando para lembrar o que aconteceu e conseguiram, pelo menos, o reconhecimento do coronel Ustra como um dos maiores responsáveis pela tortura durante a ditadura: em setembro de 2006, o juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, acolheu uma Ação Declaratória impetrada pela família Almeida Teles contra Carlos Alberto Brilhante Ustra por entender que a


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ofensa aos direitos humanos não está sujeita a prescrição, apesar da famosa Lei da Anistia, invenção que pretende “reconciliar a família brasileira”. Ustra morreu em 2015 sem ter sido punido. Muitos outros torturadores ou responsáveis pela tortura não foram nem reconhecidos como tais e permanecem anônimos, malgrado os esforços da CNV. Que esse deputado possa dedicar seu voto ao coronel Ustra – sem sofrer nenhum processo, nem mesmo uma reprimenda pública – deveria nos ter alertado. Bolsonaro começou ali uma carreira fulgurante baseada na desfaçatez que seus seguidores louvam como sendo sinceridade ou minimizam como piada. Ele se apoia na desmemória da ditadura, desmemória crassa e cultivada pelos meios de comunicação, pelos programas escolares, pelos sucessivos governos civis e pela nossa covardia também. E agora, também por José Antonio Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta corte jurídica do país: numa palestra sobre os trinta anos da Constituição de 1988, afirmou não querer falar mais nem em “golpe” nem em “revolução” de 1964, mas, simplesmente, em “movimento”. Tudo sempre em nome do “otimismo” tropical, da cordialidade brasileira (já criticada por Sérgio Buarque de Holanda) e da necessidade de esquecer o passado


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para poder ir em frente. Mas esquecer sem elaborar, todos nós sabemos, significa ficar preso na violência latente e ameaçado pelo retorno do recalcado – 63 mil mortos por morte violenta por ano, a grande maioria de jovens negros ou pardos (cor esquisita, não a conhecia antes de chegar ao Brasil) e inúmeras mulheres, muitas também negras. O racismo e o machismo ficam evidentes. Sempre existiram, mas agora existem sem vergonha. Como pudemos acreditar que um governo de “esquerda” podia realmente existir sem que essa falta de memória fosse elaborada? Elaborada por todos brasileiros, não confinada ao relatório corajoso, mas pouco difundido e pouquíssimo discutido da CNV, formada por sete membros que trabalharam até à exaustão. Entregaram o relato em dezembro de 2014. Parece que não se pode fazer nada de relevante antes do Natal e do Carnaval. Depois das férias vieram as denúncias do “Petrolão” e o impeachment, esquecemos do relatório e da CNV, também dos mortos e dos desaparecidos, da tortura passada e permanente? Hoje conversei com uma senhora de 78 anos na minha aula de ginástica. Ela quer votar em Bolsonaro porque desconfia de todos outros políticos. Eu disse que nunca votaria em alguém que defende a tortura e começamos a


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conversar. Ela nem sabia quem era o coronel Ustra. Contei para ela. Como é que não sabia? Por que não lembramos (nós de esquerda) a todos, não gritamos por justiça e memória na praça pública, nas ruas, nas escolas, antes de querer defender qualquer candidato(a)? Na mesma aula de “musculação”, na qual luto contra osteoporose e câimbra, não converso com os homens, todos eleitores de Bolsonaro. Sei que nenhum argumento vai convencê-los. Durante muito tempo, acreditamos que argumentos racionais são capazes de convencer. Talvez convençam uns poucos privilegiados que estudaram bastante, como já sabiam tanto Platão quanto Spinoza. E os poucos são pouquíssimos no Brasil, mesmo entre os mais ricos e estudados, a tal da “elite” (essa palavra, para mim, somente poderia designar uma marca de sapatos feitos à mão). Somos movidos por paixões nada nobres, ódio, inveja, ressentimento, às vezes também compaixão, ternura. Por que acreditar que nós, intelectuais de esquerda, que tiveram tempo para viajar, pensar, refletir, aprender outra língua, tomar um bom vinho, portanto, ter uma “consciência crítica”, seremos capazes de convencer aqueles que, muitas vezes, não tiveram tantos privilégios nem tanto tempo, ou, então, têm dinheiro demais? Adorno


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e Horkheimer, os velhos antifascistas judeus, já falaram dos limites da “Aufklärung” quando se debruçaram sobre os elementos do antissemitismo. Não precisamos desistir da razão, da emancipação, da solidariedade e da liberdade, da ternura e do amor, mas perceber melhor o quanto nossas palavras podem soar como afrontas, que nos fortalecem em nossa posição e desprezam o interlocutor. Não precisamos dar razão a ele ou concordar, mas escutar o que o move para tentar iniciar um deslocamento. Volto à senhora da minha aula de musculação. Com efeito, ali conversei com muitas mulheres, indecisas ou contra o PT, portanto (????), a favor de Bolsonaro. Talvez porque ouso mais conversar com mulheres, já que, geralmente, sabem mais da força dos afetos e das pulsões, sem necessariamente serem irracionais! Conversamos antes e depois das grandes passeatas das mulheres contra o Bolsonaro. Estranho que ninguém sabe quantas eram, como apontou Eliane Brum. Parece que a polícia desistiu de contar ou, mais simplesmente, não quis. Eram muitas. Desde sábado, fotografias (“fakes”) foram enviadas por WhatsApp, sobretudo a grupos de igrejas evangélicas ou/e de partidários de Bolsonaro, mostrando mulheres se beijando ou com seios para fora. Seria o suficiente para


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explicar por que o “capitão reformado” tinha subido quatro pontos e continuava subindo? Seria de novo a culpa das mulheres? Não seria mais a de Edir Macedo? Mas paro um pouco e me pergunto por que esse levante das mulheres assusta tanto e desperta tanto ódio ou tanto medo, até em muitas mulheres. Numa passagem hilariante de A Room of One’s Own, Vigínia Woolf conta como foi à biblioteca do British Museum para procurar textos que a ajudassem a redigir uma palestra sobre mulheres e romance, mulheres e literatura (já que esse assunto pede explicitação). Pede, então, a lista das obras que tratam da(s) mulher(es) e de sua enigmática natureza e recebe uma lista ENORME de títulos diversos (cito alguns: Costumes femininos nas ilhas Fidji, Fraqueza do sentido moral nas mulheres, O charme das mulheres, O pequeno volume do cérebro feminino, O menor desenvolvimento do sistema de pelos nas mulheres, etc.). Virginia Woolf conclui que “a mulher” talvez seja o bicho mais estudado da criação. Em oposição, quando ela procura livros sobre o homem, isto é, o varão, não encontra nenhum. A identidade e a natureza masculinas parecem claras e evidentes, pelo menos nessa biblioteca e na época. Essa clareza permite definir a partir de si mesma o que seriam mulher, gay,


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travesti e mesmo... quilombolas. Não haveria questionamento sobre ela – e por isso, hoje, essas mulheres, esses gays, esses militantes LGBTTQI, essas pessoas queer são, realmente, uma ameaça para homens acostumados a mandar e falar (matar e estuprar) e mesmo para muitas mulheres acostumadas a cuidar de sua beleza e seduzir (obedecer e sofrer). É difícil deixar de ser princesa/vítima, bela, recatada e do lar – e também, de ser o comandante/ carrasco, aquele que ainda tem uma parcela de poder, pelo menos em casa. Ligadas ao nascimento e, muitas vezes, à morte, as mulheres cuidam dessa finitude animal nossa, são sinal de nosso ser bicho que, muitas vezes, não cheira bem; também despertam o desejo, são belas e vivas. E também desejam, mesmo que até Freud não ouse dizer o quê. Se nós mulheres, diferentes e de todas as cores e idades, ousarmos nos levantar contra a imposição do capitão branco, machista, violento, então, realmente, poderemos inventar outro mundo, ainda que não saibamos qual – e isso assusta. Mas também nos enche de coragem e alegria.


A REVOLTA DA ZONA CINZA

Tatiana Roque

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Precisamos, com urgência, entender melhor os eleitores de Bolsonaro. E um primeiro passo é dividi-los em segmentos. Há os ricos e empresários que querem ganhar dinheiro com o ultraliberalismo de um possível governo sob comando de Paulo Guedes na economia. Há os que reagem à ascensão de pobres, nordestinos, mulheres e pretos durante os governos do PT (minorias que, por isso mesmo, tendem a votar mais no PT). O antipetismo é contra eles. Há os que reagem à saída generalizada do armário: LGBTTQI, feministas, coletivos negros e trans. A truculência e o fascismo germinam nessa reação, como se fosse possível mandar todo mundo de volta para o armário. Não é. Vamos nos fortalecer coletivamente, vamos estar cada vez mais juntos e lutar contra a violência que quer nos aniquilar. Mas há outro grupo de eleitores, bastante significativo, que está fazendo a balança pender a favor de Bolsonaro e ainda pode ser disputado: são as pessoas que ganham aproximadamente entre 1,8 mil e 4,5 mil reais (entre dois e cinco salários mínimos). Mais homens do que mulheres, em sua maioria brancos e pardos. Considero um engano


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perfilar esse contingente de pessoas ao lado dos mais ricos. Quem ganha esse valor está longe de ser rico. Pelo seu peso e sua especificidade nesta eleição, vou focar a análise nesse grupo. Da pesquisa do Datafolha divulgada em 10 de outubro, sabemos que Bolsonaro ganha entre os homens. Ganha, mas quase empata, entre as mulheres. Ganha entre quem tem renda acima de dois salários mínimos. Ganha de pouco entre os pardos, de muito entre os brancos e perde entre os pretos. Só perde de muito no Nordeste e entre quem tem renda menor que 1,9 mil reais. No restante, a disputa tende a ser equilibrada e não afeta tanto o quadro geral. As pessoas com renda entre 1,9 mil e 4,5 mil reais podem ter um peso especial no resultado. Além disso, merecem uma análise especial por serem pessoas que agem contra seus próprios interesses – considerando que Bolsonaro governará para os mais ricos e que o PT governou para os mais pobres, mas também para a classe média. Pode ser esse grupo a explicar o crescimento espantoso de Bolsonaro nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Ele pode explicar também a centralidade do tema da segurança pública: essas pessoas têm algo a perder (diferente dos muito pobres) e não têm como se


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proteger (diferente dos mais ricos). São pessoas que se sentem completamente abandonadas. Como diz a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, que pesquisou a fundo o perfil dos eleitores de Bolsonaro, “precisamos confrontar sujeitos contraditórios e complexos que hoje são seduzidos pela narrativa fácil do autoritarismo. São sujeitos muitas vezes pobres ou empobrecidos, mas não paupérrimos”. Em sua coluna no The Intercept, ela acrescenta ainda que eles se sentem injustiçados por “ralar”, vivem na insegurança das grandes cidades e percebem o governo como uma grande farsa que atua para seu próprio enriquecimento ou apenas para o benefício de “minorias”. Durante o segundo governo Lula, o crescimento do país foi impulsionado pela inclusão de um grande contingente de pessoas no consumo e nas políticas públicas. Com o aumento do consumo interno, com os programas de transferência de renda e de valorização do salário mínimo, houve um crescimento expressivo do setor de serviços. Isso gerou crescimento econômico, aumentou os empregos em serviços e aumentou a arrecadação. Laura Carvalho, em Valsa brasileira, chega a chamar de “milagrinho” econômico o que aconteceu no Brasil nesse período. Não à toa, Lula acabou seu segundo governo com quase 90% de aprovação.


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Pois então: essas pessoas que ganharam algo provavelmente estão perdendo tudo nos últimos anos. Devem estar justamente entre as 11 milhões de pessoas que votaram na Dilma em 2014 e agora declaram a intenção de votar em Bolsonaro. Perdemos essas pessoas e são elas que precisamos ganhar de volta nesses últimos dias de campanha antes do segundo turno. É para elas que a esquerda deve ter projeto. Causa perplexidade que a esquerda não dê a mínima para essas pessoas. E não se trata de uma limitação de um ou outro partido. O PT criou as condições para que melhorassem de vida, mas não para que fossem incorporadas à política, não para que fossem ouvidas. Com raras exceções, o PSOL é visto como um partido excessivamente voltado para as pautas identitárias e com soluções pouco convincentes para a economia. Só quem conversa e acolhe essas pessoas é a igreja evangélica. O que só confirma nossa hipótese: entre os evangélicos, a intenção de votos em Bolsonaro dispara. Difícil categorizar essas pessoas ao lado dos opressores, ainda que também não sejam tão oprimidas quanto os muito pobres, nem tão oprimidas quanto aqueles que fogem do padrão de dominação macho e branco. São pessoas que pertencem a uma zona cinza: uma zona com contornos mal definidos que ligam e separam, ao


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mesmo tempo, opressores e oprimidos. Zona cinza é um conceito que Primo Levi cunhou para designar uma zona nebulosa de compromisso entre opressores e oprimidos, na qual alguns privilégios podem ser obtidos ao preço da colaboração com o que há de mais abjeto. Inicialmente, a expressão é usada para designar brigadas especiais, compostas pelos próprios judeus, que trabalhavam nos fornos crematórios. Mas Levi estende a noção, no livro Os afogados e os sobreviventes, para pensar a própria incitação à colaboração, relacionando-a à pressão exercida sobre os deportados. Este é o pano de fundo a partir do qual se forma uma classe híbrida de prisioneiros que ocupam funções na administração dos campos. São vítimas que esperam ser favorecidas e continuam, por isso, a executar funções que oprimem outras vítimas. Levi admite ser possível o surgimento de zonas cinzas em outros espaços, como nas indústrias, dependendo das condições. Uma zona cinza pode surgir sempre que um poder opressor é exercido sobre muitos sujeitos, havendo um grupo restrito que detém mais poder do que outros em uma estrutura complexa e vasta. Nesse quadro, um grupo de pessoas pode ter a impressão de que, colaborando com o poder, poderá obter privilégios para si mesmos. Não se trata de


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um simples desejo individual momentâneo de melhorar de vida, e sim de uma reação a uma pressão duradoura e generalizada sobre um grupo amplo de pessoas. Algo assim pode estar surgindo entre nós. Um número expressivo de pessoas vêm habitando uma zona cinza na sociedade brasileira e desequilibra a balança em favor da direita. Ao focar nos mais pobres, nos mais oprimidos, a esquerda tem tido dificuldade em enxergá-las. A dicotomia entre classe trabalhadora e classe burguesa não ajuda. Pode até estar impedindo que enxerguemos pessoas que, precisamente, habitam uma zona intermediária. Acusá-los de burgueses não vai ajudar em nada. Além disso, essas pessoas também não se reconhecem como trabalhadores – inclusive porque não têm emprego formal assalariado e estável. No Brasil, além de tudo, essas pessoas estão empobrecendo demais. Mesmo que sejam menos pobres do que os muito pobres, elas precisam ser incluídas urgentemente nos projetos da esquerda. Continuar dizendo que são burgueses que se incomodam porque os pobres passaram a andar de avião não vai ajudar. Até porque não é verdade: essas pessoas também passaram a andar de avião, só que não podem mais. Mas elas não acreditam, como os mais pobres, que o PT vai ser capaz de devolver-lhes


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a condição que tinham. As razões da descrença são muitas. Sim, grande parte pode ter comprado o discurso da mídia e da Lava-Jato de que toda a culpa é da corrupção e, portanto, do PT (partido que, segundo eles, inventou a corrupção no Brasil). Há tempo ainda de desconstruir essa crença? Como fazer isso? O que temos diante de nós é um grito, uma tentativa de chamar atenção por parte precisamente desse grupo de pessoas. Elas estão tentando nos dizer: estamos aqui e vamos assombrar vocês. Elas não são fascistas – ainda. Mas podem, sim, colaborar com o fascismo, fazendo vista grossa. Podem ser designadas como colaboracionistas. Meu ponto aqui é um pouco difícil, pois estou dizendo que pode ser pior designá-las de imediato como fascistas. Essa precipitação pode, inclusive, jogar mesmo essas pessoas no colo do fascismo. Para interromper essa tendência, precisamos entender sua psicologia. Ninguém melhor do que Wilhelm Reich traçou caminhos para entender a psicologia das massas que aderiram ao nazismo. Quando usa a palavra “massa”, Reich está falando justamente de parcela da população que ainda não compreendeu como o capitalismo a oprime. Essa parte da população não possui “consciência de classe”, mas tem muita energia de vida represada pela opressão capitalista. No


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belo texto “O que é a consciência de classe?”, escrito em 1934, Reich tenta entender a ascensão do nazismo a partir do abandono dessas pessoas que deveriam ser foco do trabalho revolucionário, mas foram deixadas à própria sorte. A derrota da socialdemocracia para o nazismo teria sido fruto do distanciamento da direção revolucionária do cotidiano da vida das massas. Ou seja, o sectarismo político dos revolucionários e sua incapacidade de conquistar as massas abriu terreno para os nazistas manipularem a seu favor os anseios e as necessidades de boa parte da população alemã. Aquelas pessoas não foram enganadas, elas desejaram o nazismo. Há uma questão difícil a partir daí que é a de compreender como as massas podem agir contra o seu próprio interesse. Por exemplo, compreender que mulheres defendam o machismo, que trabalhadores queiram ser explorados, que jovens defendam a repressão sexual. No caso do Brasil de hoje, mulheres e pretos conseguiram desenvolver uma certa “consciência de classe”, ou seja, uma consciência de seu lugar de opressão e de que ficam mais fortes junto com outras pessoas que ocupam esse mesmo lugar. Por isso, as mulheres feministas e os pretos votam realmente contra o candidato machista e racista. As classes médias empobrecidas não encontraram


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esse lugar. Passaram, portanto, a desacreditar da política. Foram vítimas do que Reich denomina “fetichismo da política” e que favorece o reacionarismo ao realizar três restrições: limitar a política às ações dos políticos profissionais que podem decidir o destino de todo mundo; limitar a política à construção de pactos entre amigos e inimigos; limitar a política ao engodo, à enganação ou à manipulação. Parece ter bastante a ver com o momento atual. Só que o que Reich chama de “consciência de classe”, eu chamaria de “subjetivação política”. A esquerda não tem tido iniciativas que permitam a subjetivação política das camadas da população de que trato neste texto. A resistência das mulheres e dos negros a Bolsonaro mostra – na verdade, escancara – o quanto projetos de subjetivação política podem fazer a diferença. As mulheres conseguiram reunir pessoas de tendências políticas distintas para dizer #EleNão. A permanência da ascensão de Bolsonaro depois da grande passeata mostra apenas que esse movimento não atinge toda a sociedade. Ao invés de insinuar que as mulheres foram responsáveis, a esquerda organizada devia tomar a iniciativa das mulheres como exemplo do que um movimento mais amplo deve conter para ter sucesso: movimentos políticos hoje precisam construir o


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sentido de pertencimento, precisam dar atenção às questões mais íntimas da vida e aos modos de existência. São os problemas dessa ordem que decidem para onde irão nossas crenças e nossos desejos. Que sentido de vida podem ter essas pessoas que estão empobrecendo em velocidade vertiginosa? Que perderam o emprego sem perspectiva de encontrar outro? Que se culpam por não garantir um futuro para os filhos? A esquerda precisa ter respostas e projetos para essas pessoas. Por isso, tenho insistido tanto sobre as mudanças no mundo do trabalho e tentado entender a crise da esquerda a partir daí. É enorme a impotência da esquerda organizada para criar políticas que impliquem processos de subjetivação e que tragam um sentido de pertencimento ao enorme contingente de pessoas que abordei aqui. O trabalho já foi um modo de dar sentido à vida, mas não tem sido assim nos últimos tempos. Há questões estruturais e conjunturais para isso. Mas é preciso tomar a sério os modos de existência como sendo parte essencial da política. É extremamente libertador e tranquilizante perceber que nossas angústias não são só nossas, que as dificuldades que experimentamos socialmente não são por nossa culpa. Nós, mulheres, estamos conseguindo isso. Se o conjunto da esquerda quiser, podemos ajudar.


DO CAPITÃO AO CAPITAL Carla Rodrigues

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Todas as tentativas de compreensão da expansão de uma candidatura de extrema direita no Brasil fracassaram. É insuficiente falar da crescente influência do pensamento de extrema-direita no Brasil; da pauta moral que avança na sociedade brasileira; do rastro dos tentáculos políticos das denominações religiosas neopentecostais; assim como me parece fraco o argumento de que são eleições manipuladas por algoritmos, movidas por um forte sentimento antipetista ou pelos interesses do mercado. Gostaria de defender a hipótese de que a candidatura do capitão reformado Jair Messias Bolsonaro está movida por um ponto fundamental e ainda intocado no inconcluso processo de redemocratização do país: evitar a punição dos torturadores do regime militar, cujos 377 nomes foram elencados no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), a fim de recuperar o caráter heroico que os militares se atribuem no combate às forças de esquerda e na salvação do país. Todo o resto ele foi absorvendo como uma esponja, onde estão depositados o ódio e ressentimento de classe, de raça e de gênero da sociedade brasileira.


Os crimes hediondos da ditadura civil-militar de 1964 estão representados pela demonstração pública de imenso apreço do capitão Jair Messias Bolsonaro pelo torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), cuja grande contribuição para o Exército foi criar novos métodos de violência, incluindo a tortura de pais diante de seus filhos. O elogio de Bolsonaro ao torturador, pronunciando seu nome no plenário da Câmara na votação do impeachment da Dilma como se fosse um herói, é prova de que ainda precisamos falar do passado e de tudo aquilo que ainda não foi dito nem enlutado na história recente. É difícil elaborar o que resta da ditadura1 – se desde a promulgação da Lei da Anistia, em 1979, vivemos sob um silêncio forçado, que nos obriga a calar sobre o passado e nos impede de combater a violência do presente. Caminhar em direção a uma sociedade mais igualitária passa por concluir o luto político pelas perdas da ditadura e pelas chacinas, pelos assassinatos e pelos extermínios que continuam a ocorrer no regime democrático brasileiro,

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1. TELES, E.; SAFATLE, V. (orgs.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.


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incapaz de fazer cessar a brutalidade da polícia militar na vida cotidiana. Se antes os alvos eram pessoas organizadas em movimentos contrários à ditadura, o que se vê desde os anos 1980 é a criação de novos alvos – os negros, os pobres, as mulheres, os indígenas, as pessoas LGBTTQI –, em uma guerra contra o povo em nome de um regime democrático paradoxal, onde as regras do jogo estão sempre sendo modificadas para que nunca haja lugar justamente para o povo, aquele em nome de quem a democracia deveria existir. Por acreditar que é da elaboração do passado que pode emergir nosso caminho para a mudança, acredito também que a maior realização do governo Dilma foi seu depoimento na CNV. Da grandeza daquela narrativa, começou a brotar a maior e mais silenciosa oposição à sua permanência na presidência. Como uma mulher que resistiu a seus torturadores e está viva para denunciá-los pode nos governar? Para que tipo de experiência de passado isso nos levaria? São perguntas fantasmáticas, operando como pano de fundo no discurso do candidato Jair Messias Bolsonaro, que herdou na sua estratégia de mídia todos os grupos criados em redes sociais a favor da queda da Dilma. Sua retirada do poder foi uma renovação da tortura, uma


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nova forma de matar a força política de resistência que ela representava desde a chegada à presidência, prova de que nunca as Forças Armadas aceitaram uma mulher, ex-guerrilheira, torturada, como chefe. Proteger o passado, mais do que projetar o futuro, parece ser a única pauta própria do candidato. Atuar contra as poucas iniciativas de retomada do passado que estão frutificando em políticas de memória que nos permitiriam, enfim, confrontar a história, como a criação da CNV no âmbito nacional e também das inúmeras comissões estaduais. Políticas de memória são inseparáveis de políticas de luto, como sugere a filosofia de Nietzsche: da história, é preciso saber separar o que lembrar do que esquecer. Foi durante o processo de derrubada da presidente Dilma que o candidato se autobatizou como Messias. Foi contra uma mulher, contra uma mulher ocupando um cargo de poder, uma mulher que enfrentou a violência da ditadura, que foi torturada e resistiu às torturas e continuou lutando por um país mais livre e democrático, foi contra essa mulher que Jair Bolsonaro se banhou nas águas do neopentecostalismo e ganhou o apoio de certos grupos evangélicos. É contra todas as mulheres brasileiras firmes, fortes, batalhadoras, capazes de trabalhar, cuidar de seus


filhos, lutando todos os dias contra a violência e a discriminação, que sua candidatura quer vencer. Cada item do fenômeno do neoconservadorismo moral, tal qual pensado pela cientista política Wendy Brown no seu artigo “Pesadelo americano: neoliberalismo, neoconservadorismo e desdemocratização”,2 se articula com um item econômico na sua radicalidade contemporânea, no estado atual do neoliberalismo e na sua produção de precarização e na sua necessidade de circulação de capital. Os temas econômicos chegaram mais tarde à campanha de Jair Messias Bolsonaro, quando ele se tornou porta-voz de um economista neoliberal e, com isso, expandiu a junção entre o neoconservadorismo fundamentalista e religioso e o neoliberalismo econômico, entendido como uma forma política e racional de articular o significado da vida social. O neoliberalismo já não é mais, como nos anos 1970, uma mera concepção de projeto econômico, mas “o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da

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2. BROWN, W. American Nightmare: neoliberalism, neoconservatism and de-democratization. Political Theory, v. 34, n. 6, 2006.


subjetividade”.3 É esse meu ponto de partida para articular a violência, a discriminação e o machismo de Jair Messias Bolsonaro como parte inseparável de um projeto de país ainda mais excludente. A grande novidade das lutas feministas é nos levar em direção a mais liberdades, ameaçadoras para aqueles cujo projeto de país é a segregação: as feministas negras, que subvertem a lógica da negritude como sinônimo de subalternidade, com o ingresso de jovens negras nas universidades; os coletivos feministas, que questionam a lógica patriarcal e dominadora de fazer política. As mulheres já estão em ocupações mais vulneráveis, com maior percentual de renda variável e maior fragilidade nos vínculos empregatícios. É sobre elas que deverá incidir o maior grau de perda de direitos. As mulheres negras, que enfim começam a chegar às universidades, serão de novo as que mais vão perder, recuando muito rapidamente das posições recém-conquistadas. O campo de combate aos direitos humanos traz à tona a histórica característica violenta da sociedade brasileira, onde vigora o maldito slogan “bandido bom é bandido

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3. LAVAL, C.; DARDOT, P. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo Editorial, 2017.


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morto”, onde as prisões são matadouros e a população carcerária é tida como um peso aos cofres públicos. Por trás desse discurso, há uma oportunidade de negócio, a privatização das prisões, apresentada como ampliação da capacidade de encarceramento. Há décadas, talvez séculos, quem vai para a cadeia nesse país são pobres, pretos e moradores de periferia. Os crimes da Polícia Militar contra a população civil, as execuções políticas como o assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, o alto índice de mortes de jovens negros, as torturas praticadas no presente só terão alguma chance de serem eliminados no futuro se pudermos fazer outra interpretação do passado, de modo a se tornar possível por um fim na parte da história que ainda não acabou. Embora o mercado possa estar interessado na liberação do porte de armas, e essa seja uma pauta de interesse dos fazendeiros suscetíveis ao discurso armamentista, dispostos a matar indígenas para conquistar mais terras para o agronegócio, é pela formação de milícias e contra a população pobre que essas armas vão ser disparadas ainda mais. O racismo, o preconceito contra os beneficiados pelo Bolsa Família, e mesmo contra os imigrantes, segue pelo mesmo caminho da lógica neoliberal, de acordo com a


qual certas vidas são condenadas moralmente a não existir por supostamente serem incapazes de contribuir para o crescimento econômico. Por fim, é necessário dizer que as forças políticas e religiosas de extrema-direita estão globalmente articuladas.4 É impossível ignorar que essa candidatura se apresenta como continuação da pior parte do governo Temer, tentando arrancar das urnas a legitimidade que Temer nunca teve e garantindo o apoio militar para esse projeto se as urnas sozinhas não forem suficientes. A soberania do Estado-nação e a soberania popular são o que resta de entrave ao projeto do neoliberalismo. Messias e seu discurso carregado de valores morais incoerentes com sua trajetória política cria o ambiente perfeito para a liberalização econômica total, a radical exploração das pessoas, o fechamento do acesso às universidades e para uma experiência inédita de segregação. Somos um país conectado, global, internacional e, ao mesmo tempo, colonial, pobre, periférico. Carregamos, não é de hoje, um imenso manancial de violência,

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4. A relação de Bolsonaro com a extrema direita internacional. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/10/03/A-rela%C3%A7%C3%A3o-de-Bolsonaro-com-a-extrema-direita-internacional. Acesso em 13 de outubro de 2018.


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discriminação, preconceito, ódio, arbitrariedade. A aliança entre o neoconservadorismo e o neoliberalismo é um pesadelo brasileiro que se soma à frustração de uma democracia que sequer chegou a ser experimentada por todas as pessoas. No pesadelo brasileiro, a desdemocratização da qual nos fala Wendy Brown tem outro nome há muito tempo: ditadura militar armada e assassina.


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Carla Rodrigues é filósofa, feminista, professora de Filosofia (IFCS/UFRJ) e pesquisadora da FAPERJ.

Tatiana Roque é professora da UFRJ. Tem escrito e pensado sobre capitalismo e subjetividade, questionando o modo usual de pensar o trabalho, aproximandose dos debates feministas e dos devires menores na política. Foi candidata a deputada federal pelo PSOL.

Nascida na Suíça, Jeanne Marie Gagnebin vive há 40 anos no Brasil. Professora de filosofia na PUC/SP e na Unicamp, trabalha sobre a questão da memória e do esquecimento, especialista em Walter Benjamin. Duas filhas, uma neta.


outubro_2018

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