EROTISMO E RISCO NA POLÍTICA

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Tatiana Roque

EROTISMO E RISCO NA POLÍTICA


O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.

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Gilles Deleuze e Félix Guattari


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Mulheres, brancas ou negras, e homens negros têm reivindicado mais espaço na política. Acontece em diferentes esferas, desde cargos eletivos até mesas de debate e veículos de mídia. Espanta que cause tanto incômodo, pois, por princípio, ninguém é contra (ao menos, dentro do campo democrático). Ainda assim, provoca reações. É particularmente intrigante que alguns homens brancos – do alto de suas posições de poder, gozando de bastante visibilidade – reclamem de estar sendo calados. Reclamações que talvez exprimam certa dificuldade para habitar o desconforto. Desconforto e risco precisam ser reivindicados no fazer político, não colocados debaixo do tapete. Criar mecanismos para isso é uma urgência em nossos dias. Tento, assim, destrinchar aqui alguns motivos que podem estar causando incômodo, justamente dentro de um campo que julgávamos homogêneo na defesa de igualdade e justiça social: o campo progressista, ou de esquerda. A hipótese é meio clínica, meio política. Busco entender processos psicossociais


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deslanchados pelo abalo de estruturas arraigadas, o que também provoca impasses conceituais. Ao reivindicar a cena política, novas personagens afirmam o desejo de participação a partir do lugar que ocupam. Ou seja, a partir de suas singularidades, das marcas inscritas em seus corpos e em suas histórias. Essas pessoas não querem estar lá como se viessem de qualquer lugar, como se suas histórias não importassem, como se suas vidas não fossem impregnadas de injustiças. Lugar de fala tem a ver com isso, não com calar ninguém, como mostra Djamila Ribeiro no livro O que é lugar de fala?. Novas subjetividades entram na arena pública exigindo mais do que representação. Bem mais. Querem tornar visíveis suas trajetórias, seus corpos e suas marcas, silenciadas por tantos séculos. A intrusão desses elementos fissura os alicerces do espaço público e desestabiliza o próprio lugar do poder e da representação, pois esse lugar sempre se escondeu atrás de uma falsa neutralidade. “Podem chegar, contanto que se portem como de hábito, contanto que


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sigam o protocolo e a etiqueta do poder, contanto que não desafiem os costumes dominantes, contanto que não abalem as estruturas.” Jovens Negras Movendo as Estruturas era o título do evento em que estava Marielle Franco antes de ser executada. “Quando as mulheres negras se movem, toda a sociedade se move com elas”, lembrava Angela Davis na Bahia. Quando algo se move lá embaixo, tudo o que está montado por cima é abalado. Um fenômeno geológico. É a partir dessa perspectiva que enxergo o efeito da entrada em cena de tantas novas personagens. Surgiram mulheres expressivas na política recentemente, como Dilma Rousseff, Michelle Bachelet e Angela Merkel. Mulheres que também deixaram transparecer a necessidade de seguir uma cartilha que não desafiasse em demasia os modos dos homens no poder. Não que sejam “masculinas”, mas essas mulheres explicitaram a relação intrincada entre poder, autoridade, autossuficiência e enrijecimento – uma relação em que, por ocupar um cargo, a pessoa deve se mostrar infalível. Algumas reações


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raivosas contra essas mulheres devem-se a isso. É diferente o estilo de Ada Colau ou Manuela Carmena, prefeitas de Barcelona e de Madri. No discurso de posse, Carmena prometeu uma política de cuidados ligada a uma cultura das mulheres, com foco no valor social das políticas públicas, ou seja, visando combinar recursos, processos e decisões de governo para melhorar a vida de cidadãs e cidadãos. Sem esquecer de levar em conta o valor afetivo do trabalho, da inserção do trabalho em zonas de proximidade e do engajamento concreto no dia a dia da cidade. Ou seja, foi uma forma de reivindicar a ocupação do espaço de poder a partir de uma cultura das mulheres. Obviamente, isso é muito mais fácil na esfera municipal do que na presidência da república de um país machista. Sobre negros na política, impossível não ver algum significado na eleição de Obama. Yes, We Can! Com todas as contradições de sua gestão, criticada até pelo movimento Black Lives Matter, devido a concessões neoliberais que prejudicaram os negros, houve


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acenos para a proteção social. Ainda que tímido, o Obamacare trouxe de volta antigas reivindicações do movimento pelos direitos civis, bastante ligado à cultura do welfare nos eua. Barack e Michelle conseguiram levar suas histórias à Casa Branca. Piedad Córdoba, candidata na Colômbia, tem chances de virar a primeira negra presidente de um país da América Latina. Tudo isso é pouco. Surpreendente é que esse pouco incomode tanto. São fenômenos sutis que acontecem no plano das sensações, dos afetos e dos desejos, e que se expressam de modo incipiente. O plano das subjetividades lida com essas camadas invisíveis, e é aí que os lugares de poder estão sendo questionados. Subjetividade é um modo de dizer que as pessoas nunca terminam de se constituir como indivíduos. Somos atravessados por processos psicossociais e encontros políticos o tempo todo, tornando a alteridade parte de nós. Os efeitos nas correlações de forças, que constituem a ação política, são visíveis. Acredito que a atual ascensão conservadora é, dentre outras coisas, uma reação à fissura que


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vem se produzindo nas estruturas profundas dessa longa e cruel construção histórica chamada “civilização ocidental”. Costumo dizer, talvez com excesso de otimismo: piorou porque melhorou. É verdade que piorou muito, mas se olharmos para o plano das relações de força, nada mais será como antes: machismo, racismo, homo ou transfobia, mesmo em suas manifestações mais sutis, nunca mais serão tolerados em silêncio. Isso não tem volta. Resta habitar o incômodo provocado pela fissura, falar e pensar a partir do desconforto. Sem rechaçar de imediato o mal-estar, permitir que seja tomado como signo de um mundo que não admite mais se dobrar ao neutro. Pois o neutro é macho, adulto, branco e heterossexual. Historicamente, o campo semântico do universal serviu mais para dividir do que para aproximar, o próprio Étienne Balibar diz isso no livro Des Universels. Isso se reflete em uma atenção ao uso das referências na academia. Como diz Tatiana Oliveira, além de procurar autores e autoras fora do quadro eurocêntrico, pode ser interessante


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usar autores considerados canônicos a partir de trabalhos deles que marcam momentos de desconforto: “Encontrar uma disposição para dialogar de igual para igual com os autores, operando, inclusive, o desconforto deles mesmos a nosso favor, para contar uma outra história do pensamento”. Concretamente, é a partir de histórias singulares que os grupos hoje se constituem. Logo, é preciso contar essas outras histórias e escapar ao perigo de uma história única, como alerta Chimamanda Ngozi Adichie. O gueto é produto da recusa do establishment em incorporar essas outras histórias aos espaços de poder. Não espanta que os conflitos se acirrem. O apelo ao Estado e às instituições da democracia liberal – em franca decadência – já não garante respostas à altura da dissolução de parâmetros que vivemos. Por isso, interpretar as demandas dessas novas personagens em termos de “representatividade” é reduzir sua força. Em meio à crise da democracia representativa, esses novos movimentos querem (e podem) transformar as bases conceituais,


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as dinâmicas materiais e os imperativos morais sobre os quais se construiu o cânone político do mundo ocidental. Mesmo sem saber muito bem como fazer isso. Mas, afinal, quem sabe? Seria um pouco demais exigir respostas nítidas de quem está questionando o lugar do homem branco, que ocupa o poder há tantos séculos e deixou as coisas chegarem ao ponto em que chegaram. Esperava-se da esquerda, por ser o campo mais identificado com a igualdade e com a crítica da ordem vigente, que se colocasse de modo mais aberto, que ouvisse mais e que acolhesse os desafios colocados pelos novos movimentos. Sem tentar isolá-los designando suas lutas como “identitárias”. Assistimos, contudo, a reações mal-humoradas, para não dizer agressivas, por parte de quadros da esquerda, principalmente quando o questionamento toca fundo em categorias arraigadas e interpela a inércia conceitual do campo. A própria designação “lutas identitárias” é uma tentativa de diminuir o que está em jogo. No fundo, não se trata de reivindicar identidades para


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manter a fragmentação ou para reforçar o gueto. Como sugere Thais Ferreira, a ideia de “ponto de partida” talvez traduza melhor do que “lugar de fala” o que está sendo reivindicado. Partir de histórias singulares, cujas marcas o corpo não esquece, para questionar a neutralidade em nome da qual o poder teve carta branca para construir o mundo que está aí. A esquerda parece colocar de lado o plano, também político (mesmo que dificilmente reconhecido como tal), da experiência e dos desejos. Sua crise tem a ver com isso. Só lembrando que a noção de classe foi criada para responder à questão sobre o, assim chamado, “sujeito político”. A tradição marxista sempre buscou identificar quem estava em condições mais propícias para ser o agente da transformação social. O proletário foi a principal resposta. O sujeito político era o proletário, constituído coletivamente como classe trabalhadora, apta a destituir a classe burguesa do lugar que ocupava nas relações de produção. É essa aposta que está em crise hoje, levando com ela todo o aparato conceitual e organizacional


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da esquerda. A história das lutas dos trabalhadores, permeadas de momentos potentes e vitoriosos, vem sendo atravessada, ao menos desde os anos 1960, por outras histórias: as que foram deixadas de lado na grande narrativa da civilização ocidental. Novas personagens desafiam a aposta canônica no sujeito político que construiu o elaborado arcabouço, teórico e prático, da esquerda. Hoje é incômodo continuar usando a alcunha de “sujeitos políticos”, por isso prefiro falar de novas personagens. Vou tratar de aspectos que considero indissociáveis do que se poderia chamar de crise do sujeito político: a necessidade de incluir ingredientes como erotismo, risco, alteridade e singularidade à práxis contemporânea. Habitar o desconforto é uma condição para se recolocar o problema da subjetividade política nos dias atuais, acolhendo novas personagens, incorporando suas pautas, histórias e marcas.


Erotismo, o devir-mulher da política

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A mulher querer ocupar os espaços de poder não é novidade. Só que, hoje, ela não quer apenas ocupar esse espaço, ela quer estar lá como mulher. Ou seja, ela não vai se esconder para ter esse direito, nem vai esperar que lhe ofereçam oportunidades. Seu desejo está visível, escancarado e transparente. Só isso já incomoda, pois os homens brancos sempre ocuparam os lugares de poder como se tivessem nascido para a tarefa. Impressiona a naturalidade com que se instalam no espaço público. Chega a ser convincente, às vezes – mas cada vez menos. Eles contam piada, falam bobagens, alisam-se os egos. De repente, mulheres chegam dizendo: quero estar aí também! E sem fingir que não querem (muito menos querendo entrar ali como suas mulheres). Chegam com pautas e urgências de concretude. Quem já participou de intermináveis reuniões políticas com homens sabe o quanto se fala sem que nada de concreto aconteça. Pois concretude tem a ver com desejo. Desejar é


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olhar fixo para as estrelas, saber para onde ir, conhecer a direção. Faz tremer. O desejo da mulher – assim, cru – mete medo. Esse desejo, ao irromper na cena pública, é uma forma de erotismo na política. Não tem mais aquela parte que deve ser deixada em casa, como em tantas divisões que nos foram impostas: lady na rua e puta na cama; cuidar da casa e não do mundo; criadora de homens (maridos ou filhos) que irão – eles – se ocupar da vida pública. É erótico o momento em que tudo aquilo que estava relegado ao plano do íntimo, do privado, da interioridade ou do “subjetivo” – afeto, delicadeza, cuidado, histeria ou sofrimento – adentra a arena pública. O erotismo na política pode ser entendido como uma recusa em relegar à vida privada toda essa esfera do incontornável e do irresistível que diz respeito aos afetos. É como amamentar em público. A coisa vem, brota. Não dá para controlar. “Elas estão descontroladas”. Sim, estamos. Erotismo também tem a ver com processos de cura, com certa possibilidade de atenuação dos conflitos


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pela via da vibração. Como no tantrismo. Há um prazer profundo de estarmos juntas, entre mulheres, que tem sido difícil de sentir com homens na vida pública. Pequenas práticas, como o riso, a fofoca ou as trocas sobre a vida pessoal, atenuam as querelas que sobrecarregam o feminismo. Mulheres que fazem política juntas sempre falam da vida. Acolher o sofrimento das mulheres e recuperar uma alegria do convívio entre elas é o feminismo como prática. E se tem algo que essas novas lutas nos ensinam é a impossibilidade de separar pautas e práticas. Como o que Ana Kiffer chama de “modos barraca” de viver: tornar a borda um espaço para se viver e já não mais olhar para o outro – seja de modo altruísta, neofascista ou por compaixão – como do lado de lá da borda. Os modos de existência são políticos e a grande política não vai mudar sem incorporar as questões mais íntimas da vida, de que os homens nunca trataram porque suas mulheres o faziam – em casa! Romper as fronteiras entre o privado e o público, trazer a vida pessoal para a prática política, deixar


transparecer o terreno dos afetos em toda a sua exuberância (para o bem e para o mal) são efeitos eróticos da presença das mulheres na política. Corpo-branco em risco: o devir-negro da política

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Falo como branca. Ao entrar na cena pública, mulheres negras e homens negros põem em risco nosso lugar de conforto branco. Aliás, o lugar branco é o de conforto por tradição. Foram séculos de dispositivos de segurança e de garantias privilegiadas. Ao mesmo tempo em que o corpo negro era exposto ao risco e ao genocídio, ao esvaziamento forçado de sua singularidade e de seu território, até que fosse transformado no corpo-mercadoria do escravo. Apenas sentindo o risco, nós, brancos, podemos experimentar a entrada em cena desse passado inglório. E, pelo menos desta vez, sentir a chegada do outro como ameaça à nossa própria identidade, ao modo como essa identidade foi construída, e não como oportunidade de submeter este outro à


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nossa demanda de conforto, transformando-os em eternos serviçais. A história dos negros ameaça todas as estruturas que permitiram construir nosso pertencimento branco a este mundo. Por isso, mais apropriado do que dizer que as reivindicações dos negros são pautas identitárias, seria enxergá-las como provocação para a dissolução da nossa identidade branca. Na realidade, são movimentos anti-identitários, que não param de lembrar os terrores que assombram a construção da identidade. Necropolítica é o nome que Achille Mbembe escolheu para falar da política da morte que domina a vida e, hoje, afeta a todos. Para além de ditar quem pode viver e quem deve morrer, como na biopolítica de Foucault, o poder tem se organizado como um sofisticado poder de matar. Foucault sempre exagerou na microfísica, dando a impressão de que as relações de poder atuam principalmente em esferas invisíveis. Não é falso, mas Mbembe traz o colega francês de volta ao chão, lembrando o que há de dramaticamente físico na morte daqueles que é


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mais fácil matar. Há uma repartição explícita entre corpos poupáveis e corpos matáveis. Mesmo que o capitalismo sempre tenha esvaziado a singularidade do corpo do trabalhador, tornando-o mercadoria – a única capaz de gerar valor –, resguardava-se um terreno em que o homem podia retomar seu território existencial. Era um privilégio do homem branco, pois esse território foi negado aos negros quando, arrancados de seu mundo e de sua cultura, esvaziados de qualquer possibilidade de pertencimento, tiveram seus corpos transformados em mercadoria (e não apenas sua força de trabalho). Hoje o capitalismo mudou. Esvaziamento subjetivo e impossibilidade de pertencimento começam a afetar todo mundo, até os brancos. Esse é o “devir-negro do mundo” de que fala Mbembe. A democratização da posição subjetiva do invisível e do desterrado aterroriza os brancos, enquanto os negros buscam a potência de reverter a “quase-morte”, como diz Michelle Mattiuzzi, para “organizar o ódio e viver o amor” (entrevista ao jornal O Povo, em março de 2018).


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O pensamento político não pode deixar de incluir esse desconforto, com a perspectiva de reverter o cogito branco. O cogito branco é o que permite pensar ou falar sem se implicar. “Penso, logo existo” remetia a uma necessidade de ir além das sensações, da hesitação, da confusão, do obscuro. O cogito cartesiano foi determinante na busca incessante da filosofia pelo claro e distinto. Reverter o cogito implica, portanto, expor o enunciado ao risco da hesitação (que não é sinônimo de confusão, apesar de parecer que sim). Denise Ferreira da Silva insiste que, partindo do cogito cartesiano, a modernidade se constituiu a partir do princípio da inexistência do outro. Só era possível pensar assumindo o outro como inexistente, diz Ferreira da Silva em palestra recente em São Paulo sobre “O evento racial”. O próprio lugar da determinação, que permite separar e identificar, é, portanto, branco. Sair desse lugar é incorporar o risco ao próprio enunciado, abraçando a hesitação e o não saber como ingredientes necessários da política. Mariana Patrício fala de um risco similar na escrita, “A escrita


da vida como risco”, o que ressalta o aspecto performático da enunciação. Digo algo, e isso suscita reações – aproxima ou afasta alguém. No lugar de uma ética do certo e do errado, uma prática do aprendizado e um cuidado das conexões. O individual, o coletivo e o universal

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Há muitas maneiras de tratar o universal. Uma, muito comum, é a união acima das diferenças. Uma visão do universal como conjunto, em que se reúnem seres distintos que têm algo em comum. É o esquecimento do que eles têm de diferente que permite reuni-los sob uma mesma categoria. Só que esse modo de pensar o universal é abstrato demais. É a normatização que dita os padrões de comportamento no mundo em que vivemos. Costumamos pensar que a norma existe para fazer com que as pessoas se adequem a um padrão estabelecido. Afinal, normas seriam como regras, que são feitas para serem seguidas. Foucault sugere algo diferente.


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A norma não é feita para ser seguida e sim para avaliar aqueles que não a seguem – e compará-los. Nos modos de constituir a sociedade que o governo neoliberal instala, as pessoas passam a ser avaliadas pela distância em relação à norma. Em outras palavras, a norma funciona como um referencial que permite medir o quão longe se está dela, e isso exerce uma força de atração para que cada pessoa escolha livremente incorporar os padrões. Por isso, a norma está nos detalhes. Como não é feita para ser imposta, e sim para dar margem à liberdade de escolha, a norma se desdobra em características sutis. Por exemplo, a norma homem-branco inclui: bem-sucedido, proprietário de carro grande, casado com mulher mais jovem. Ninguém é obrigado a reproduzir esse padrão, mas a maioria dos homens se sente impelido a fazê-lo. Assim como as mulheres, a se guiar pelo padrão correspondente, que permitirá uma adequação mais fácil ao padrão do homem. A norma mulher inclui, por exemplo, magra e de cabelo liso. Nenhuma mulher é obrigada a alisar o cabelo ou a fazer regime, mas


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a maioria o faz. Além de plástica etc. O colorismo é outro bom exemplo de como a norma se decompõe em graus, no caso, em tons de pele. O padrão branco seleciona os negros mais claros como mais semelhantes, intensificando o preconceito contra os outros. Funciona assim a normatização dos comportamentos, dos corpos e dos costumes. Não adianta, portanto, culpar uma pessoa individualmente por aderir a uma norma. Quantas de nós, mulheres engajadas, fazemos regime? É na vida que a gente vai vendo onde o calo aperta. Mas, por outro lado, o problema não se reduz à dimensão individual. Ainda que não tenha sentido dizer que “precisamos nos unir contra o verdadeiro inimigo”. No caso da normatização, é óbvio que o inimigo não está em lugar nenhum. A norma atua de modo invisível e é por livre e espontânea vontade que aderimos, não por coerção. Ela ultrapassa o individual, mas não está acima do plano onde os problemas do indivíduo se colocam – problemas que deveríamos deixar de lado, dos quais deveríamos abstrair em prol de uma causa comum.


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Ainda assim, é possível ir além do individual. Ao mesmo tempo em que aderir à norma é um movimento individual, afastar-se dela é um processo necessariamente coletivo. Ou seja, os movimentos de adesão e de recusa não são simétricos (iguais, apenas com sinais trocados). Se o esforço para seguir um padrão diz respeito à vida de cada um, o sofrimento e a angústia de ser excluído, de “estar de fora”, é sempre de muitos, de todo mundo que teve essa experiência em comum. Quando essas pessoas reivindicam um lugar, tudo o que estava interiorizado como estereótipo individual torna-se imediatamente coletivo. Interiorizar a experiência que a norma produziu como fenômeno privado, íntimo ou individual é o que leva ao adoecimento, pois implica rebater sobre si uma dor coletiva. Quando entram na cena pública, as reinvindicações de mulheres, negros ou lgbtts borram a divisão entre o individual e o coletivo. “Ser mulher” deste ou daquele jeito é uma escolha individual, mas recusar traços do estereótipo que torna algumas mulheres mais aceitas do que outras


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é uma causa coletiva. A recusa do padrão branco é um acontecimento coletivo, que diz respeito a negros e negras de todos os tons de pele. Se a mulher foi relegada à casa e seu desejo restrito à intimidade, seu despertar para a vida pública traz junto um erotismo que afeta todo mundo. Se gays deviam se curar ou, no máximo, beijar-se escondido, sair do armário abala a certeza de todo mundo em relação às suas próprias escolhas sexuais. Se os negros foram postos a trabalhar à força e enclausurados na senzala, sua insistência em não nos deixar esquecer disso põe em questão a própria ideia de trabalho livre. Se pessoas trans interiorizam o sofrimento por terem nascido com um corpo que não reconhecem como seu, a possibilidade de transformar este corpo traz à tona a fragilidade da divisão entre natureza e cultura. Se, em sua onipotência, o homem se achou capaz de dominar a natureza, percebe-se agora que é a ideia de natureza que nos domina, e pode oprimir. Diante de tudo isso, não adianta clamar por paciência e união até que, enfim, derrotemos o


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capitalismo e, com ele, seus regimes normativos. Não adianta buscar uma unidade por estratégias de depuração das diferenças. Talvez seja possível, contudo, construir laços a partir da experiência comum de viver à distância do padrão, reativando memórias de quando ainda estávamos convencidos de que devíamos aderir à norma. A prática da recusa traz algo em comum. Histórias de exclusão, mesmo distintas, têm parentescos. Negros, pobres, imigrantes, mulheres, gays têm a experiência comum da distância, da separação e do abismo. Como você se sente sendo um problema? Donna Haraway propõe desenvolver habilidades que permitam que as nossas histórias sejam atravessadas por outras histórias. Se ainda não desenvolvemos tais habilidades é porque vivemos, até aqui, um processo histórico condenado. Hoje, quando o mundo e o planeta parecem ter chegado a um limite, torna-se urgente reaprender pensamentos que ajudem na criação de futuro. Em vez de todo o campo semântico ligado à emancipação da raça humana – libertar os


humanos da exploração, criar figuras universais para conduzir a revolução –, talvez seja mais efetivo “ficar com o problema” (Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene é o título do livro mais recente de Donna Haraway). A gente se sente um problema. Por isso, precisamos cuidar das conexões, tentar construir parentescos entre nossos problemas. Construir parentescos não é fazer filhos, não é constituir família por laços de sangue. É a dura e terna tarefa de construir uma esfera coletiva que não está dada de antemão. Pautas identitárias ou luta de classes?

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Tem sido difícil conciliar. Não faltam acusações de que demandas de negros, mulheres e outros grupos por maior representatividade são, na verdade, mera expectativa de inserção na dinâmica do capitalismo neoliberal. Isso porque, entre outras coisas, esses grupos não se reivindicam como classe trabalhadora. Textos de Nancy Fraser são frequentemente


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citados com esse objetivo, por isso os considero contraproducentes. Vale a pena lembrar como surgiu a noção de proletário. Inicialmente, era o trabalhador assalariado, aquele que não detinha os meios de produção, ao contrário do burguês. Há um longo debate, contudo, entre intérpretes de Marx e Engels sobre como o proletário se torna, de fato, uma classe antagonista. Alguns tentaram mostrar que, a partir de reivindicações por melhores salários e condições de trabalho, pode se chegar a lutas que ameacem o capitalismo. O problema era, justamente, explicar como lutas que visam a inclusão dos trabalhadores podem ameaçar o capitalismo. Nesse processo, movimentos de minorias ou em proveito de minorias devem se transformar em movimento proletário, que é um movimento da imensa maioria em proveito da imensa maioria. O proletário, quando se ergue, abala os estratos superpostos que garantem proveito ao capital. Uma questão desse tipo levou Lênin a escrever Que fazer?, em 1902, bem antes da Revolução Russa.


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Tratava-se de mostrar que a mobilização operária não surgiria espontaneamente da experiência de condições econômicas adversas. Lênin apontava que o levante dos operários poderia seguir uma direção nada revolucionária, pois demandas pontuais por melhores condições de vida, no fim das contas, são demandas burguesas. Para garantir o antagonismo com a classe burguesa, portanto, era preciso ir além. Era preciso identificar aquilo que permite aos operários ultrapassarem sua condição objetiva, ou seja, recortar um componente subjetivo: o “elemento consciente”. O operário precisava adquirir a consciência de que sua condição de operário não poderia ser superada naquele regime, mas essa conversão não se daria espontaneamente. Era preciso, portanto, uma nova organização: o partido revolucionário. O partido seria um meio (um dispositivo) para transformar em desejo revolucionário o impulso do operário para sair de sua situação de exploração. Tratava-se, agora em minhas palavras, inspiradas em Deleuze e Guattari, de uma plataforma para a reconversão subjetiva dos proletários.


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Moral temporária da história: as insurgências contra as condições de exploração não se transformam em desejo revolucionário espontaneamente. Esse processo implica transformações subjetivas que somente instituições consistentes são capazes de sustentar. Nosso dilema hoje é que não sabemos se tais instituições terão a forma-partido tradicional. Também não parece que a reconversão subjetiva vá se dar pela via da tomada de consciência. Por isso mesmo, a noção de classe não é suficiente para a tarefa de construir dispositivos coletivos. Estão sendo disparados processos de subjetivação política essenciais para recolocarmos o problema da organização. Só que agora, em novos termos. Em quais termos? Não sei. Mas nada vai acontecer sem se levar em conta as novas personagens que vêm tentando ocupar a cena política – e todo o risco que trazem a crenças arraigadas dos meios de esquerda.


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Tatiana Roque é professora da UFRJ e faz mais um monte de coisas acadêmicas. Tem escrito e pensado sobre capitalismo e subjetividade, questionando o modo usual de pensar o trabalho, aproximando-se dos debates feministas e dos devires menores na política. De uns tempos para cá, desde que foi eleita presidente do sindicato docente da UFRJ, resolveu meter a mão na massa e fazer política no sentido macro. Em 2018, será pré-candidata a deputada federal pelo PSOL no RJ.


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