Novos espartaquismos

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Jonnefer Barbosa

NOVOS ESPARTAQUISMOS


O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.

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Gilles Deleuze e Félix Guattari


Jonnefer Barbosa

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NOVOS ESPARTAQUISMOS


REVOLTAS E REVOLUÇÕES

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Por que as revoltas, e não as revoluções, passaram a desempenhar protagonismo político e conceitual no século XXI? Há algum motivo de fundo que possa explicar a emergência das revoltas como campo de tensões e expressões da política em nosso tempo? Em Spartakus: simbologia da revolta, texto finalizado em 1969, mas só publicado na Itália vinte anos após a morte do autor — ocorrida prematura e acidentalmente em Gênova, em 1980 —, Furio Jesi afirma que a revolução está “inteira e deliberadamente imersa no tempo histórico”. A temporalidade da revolução, para usar um termo de Braudel, é a longa duração; está situada em uma inscrição histórica. O conceito de revolução abarca estratégias em longo prazo, correlações de forças, programas de mudança que se vinculam a estruturas históricas, não dispensando a gramática institucional de Estado. As revoltas, ao contrário, pressupõem uma suspensão do tempo histórico, suscitam outras intensidades temporais, estão circunscritas a um tempo e espaço


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especiais. Precede-as o tempo cotidiano, o “tempo normal” que, mais do que um conceito burguês, é resultado de uma manipulação burguesa do tempo, garantindo-se um transcorrer homogêneo e vazio à tranquilidade e segurança burguesas. “Tempo normal” que retornará após o fim da insurreição, seja esta vitoriosa ou derrotada, estejam os insurrectos no cárcere ou em seus lares, em desassossego ou atordoados pelos resquícios da mitologia verdadeira, a insurrecional. Pois Jesi supõe uma mitologia que rege o cotidiano. E só mediante falsas suspensões periódicas, como guerras, festividades ou Copas do Mundo, é que o tempo normal pode ser restabelecido com seus cronogramas e suas falsas urgências, devidamente registradas no dispositivo dos prazos. Há, dessa forma, na filosofia de Jesi, uma governamentalização do tempo a partir de máquinas mitológicas, em que o tempo normal e sua suspensão vinculam-se, quando toda “verdadeira mudança de experiência do tempo é um ritual que requer vítimas humanas”. Em Spartakus, revolta e revolução se distinguem, portanto, por uma diferente experiência do tempo. Por


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seu caráter de irrupção e pela indiferença a programas e estratégias de longo prazo, é difícil catalogar e explicitar os devires de uma revolta, delimitada a um “espaço circunscrito em que o tempo histórico está suspenso e todo ato vale por si mesmo, nas suas consequências absolutamente imediatas”. Para além das polêmicas com o antigo mestre, o mitólogo romeno Károly Kerényi, e das ironias cáusticas contra Mircea Eliade, é possível perceber em Jesi leituras atentas e críticas a Lukács, de História e consciência de classe, às Reflexões sobre a violência, de Sorel, bem como a presença de um Benjamin enragé, pensador da revolta. Esta singular leitura das Teses sobre o conceito de história, de Benjamin é um dos planos principais para a caracterização jesiana do levante espartaquista de 1918-1919. Na tese XII, após a epígrafe extraída da Segunda consideração extemporânea, de Nietzsche, segundo a qual “precisamos da história, mas de outra maneira que a do mimado caminhante ocioso no jardim do saber”, escreve Benjamin:


O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida, a classe combatente. Em Marx ela se apresenta como a última classe escravizada, a classe vingadora que, em nome de gerações de derrotados, leva a termo a obra de libertação [Befreiung]. Essa consciência, que, por pouco tempo [für kurze Zeit], se fez valer ainda uma vez [noch einmal] no “Spartacus”, desde sempre escandalizou a socialdemocracia. No decurso de três decênios, a socialdemocracia quase conseguiu apagar o nome de um Blanqui, cujo som de bronze abalara o século anterior. Ela teve comprazer em atribuir à classe trabalhadora o papel de redentora das gerações futuras. Com isso ela lhe cortou o tendão da melhor força. Nessa escola a classe trabalhadora desaprendeu tanto o ódio quanto a vontade de sacrifício. Pois ambas se nutrem da visão dos ancestrais escravizados e não do ideal dos descendentes libertados.1

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1. Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito de história”. Trad. Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller. In: Michael Löwy. Walter Benjamin, aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 108.


Há aqui dois enunciados-chave na caracterização benjaminiana do Spartakusbund que serão determinantes na leitura de Jesi: für kurze Zeit (por um curto tempo) e noch einmal (mais uma vez). “Por um curto tempo”, für kurze Zeit, exige um: “Agora ou nunca!” Tratava-se de agir de uma vez por todas, e o fruto da ação estava contido na própria ação. Cada escolha decisiva, cada ação irrevogável, significava estar em acordo com o tempo. Quando tudo acabou, alguns dos verdadeiros protagonistas haviam saído de cena para sempre.2

“Mais uma vez”, noch einmal, traduz um tipo especial de rememoração, o contato relampejante na ocasião da revolta que, ao suspender o tempo histórico, abre outras relações políticas com o passado:

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2. Furio Jesi. Spartakus: simbologia da revolta. Edição sob os cuidados de Andrea Cavalletti. Trad. Vinícius Honesko. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 64.


O fato de assumir o nome Espártaco por parte da ala extrema da oposição cindida do partido socialdemocrata alemão no estourar da Primeira Guerra Mundial é uma referência ao mito ou, em outros termos, uma cristalização estratégica do presente histórico de modo a evocar a epifania do tempo mítico: dos dias em que o antigo Espártaco guiava a revolta dos escravos.3

Não se trata de vincular os gestos de Karl Liebknecht e de Rosa Luxemburgo (que inicialmente não defendeu o levante, mas aceitou a decisão do congresso do Spartakusbund) ao plano de um equívoco estratégico, e muito menos a um ambíguo sentimento de honra. Suas mortes “se impõem como testemunho de genuína propaganda política”: são simbolicamente análogas ao gesto do monge vietnamita que ateou fogo em si mesmo como protesto contra a invasão ianque, em 11 de junho de 1963, ou ao autoflagelo de Mohamed Bouazizi, em 4 de janeiro de 2011, cujo suicídio constituiu o estopim dos protestos na Tunísia.

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3. Furio Jesi, Ibid, p. 55.


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Os insurgentes espartaquistas escolhem comprometer sua própria individualidade em uma ação cujas consequências são desconhecidas e imprevisíveis. Analisada em uma perspectiva historicista, a revolta espartaquista alemã encontrou a derrota, grave retrocesso na estratégia revolucionária a longo prazo. Mas a revolta, ao contrário de um ontem ou de um amanhã, parte de um inatual e cindido depois de amanhã. Para Jesi, consciência de classe não significa apenas consciência das relações econômicas que estruturalmente determinam a diferenciação entre dominantes e dominados. Significa, especialmente, consciência da experiência humana que caracteriza o pertencimento à classe dos explorados. Uma das principais dificuldades na luta contra o capitalismo é justamente o poder simbólico das estruturas capitalistas: os institutos do capitalismo se manifestam como símbolos não contingentes do poder, naturalizados. A estratégia revolucionária arrisca vê-los como símbolos inerentes de força, embora próprios do inimigo, dos quais seria necessário apropriar-se para a vitória.


A revolta, mesmo que no breve momento de sua duração, é a exposição inconciliável da constitutiva contingência dos poderes que regem o mundo.

CARTÉIS E SATRAPIAS

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Em uma tentativa de resposta à pergunta lançada no início deste texto, tentaremos fazer uso e polemizar com os conceitos de Spartakus, principalmente buscando compreender impasses e singularidades dos movimentos políticos do presente. Ao aplicarmos, de forma prévia, as categorias jesianas para compreender as multiplicidades políticas do século XXI, inevitavelmente confrontamos boa parte do senso comum teórico de esquerda baseado na dicotomia reforma-revolução. Nos contextos brasileiro e mundial, o movimento feminista pode ser caracterizado como revolucionário, pois envolve batalhas e estratégias em longo prazo, cujas conquistas vinculam-se a um plano de historicidade e exigem


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mudanças institucionais e culturais, transformações nas práticas do cotidiano. Não há uma primavera feminista, mas uma luta histórica contínua que não se interrompe e não se neutraliza facilmente como um levante, mesmo que possa evocar e gerar inúmeros levantes. Tamanha a guinada revolucionária suscitada pelo movimento feminista que hoje é impensável a tolerância a atos machistas ou misóginos até então aceitos como parte da “cultura popular”. Do mesmo modo, o movimento negro, em sua luta mundial contra as várias formas de apartheid e racismos institucionais, é manifestamente revolucionário. Movimentos de longa e difusa estratégia, ligados a programas históricos, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), não podem mais ser chamados de reformistas; são revolucionários, por todos os atributos até aqui elencados. Existe uma persistente ressalva de certa tradição da esquerda em vincular a característica de revolucionários a movimentos que não se enquadram no panorama do vanguardismo partidário, não raro um dos


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principais sabotadores das potências revolucionárias de um movimento. Para além do diagrama de conceitos jesianos esboçados em 1968, podemos dizer que a opacidade do discurso revolucionário no século XXI e a emergência e simultânea pulverização das revoltas estejam vinculadas ao próprio estilhaçamento da noção e da experiência de institucionalidade, um dos elementos importantes para a definição do gesto revolucionário. Não há mais uma gramática institucional que assegure de per si uma configuração de forças aptas a mudanças radicais ou à garantia de direitos. Tome-se a financeirização do direito à moradia como paradigma. No momento em que se estabelece como política de moradia a concessão de créditos de caráter financeiro para a compra de imóveis, não somente devedores são produzidos — é evidente a contemporânea substituição do papel do cidadão pelo de consumidor endividado, ressaltada por Lazzarato —, mas também modifica-se a própria inteligibilidade de algo garantido constitucionalmente como “direito à moradia”: o banco,


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de intermediário, passa a atuar como o principal beneficiário da relação, mesmo na hipótese de violação do próprio direito original, quando a instituição financeira, por exemplo, despeja uma família, situação vista como simples caso de inadimplência. O papel do Estado é substituído por uma miríade de agentes: surgem empresas de securitização, construtoras, agenciadores diversos etc. Pensada por Foucault como série descontínua de procedimentos, dispositivos, instituições, análises, cálculos e táticas que permitem exercer uma forma bastante específica de governo, a noção de governamentalidade é um conceito elucidativo para entender a operacionalidade randômica das instituições contemporâneas. Atravessadas pela volatilidade imprevisível dos fluxos de especulação, incorporaram sua própria destituição como elemento habitual e constitutivo de suas práticas de institucionalização. Os processos randômicos de financeirização não impõem apenas um modelo governamentalizado e fragmentado de poder. Paralelamente, implicam o fortalecimento de um tipo específico e novo de imperialismo


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mundial, capitaneado por gestoras de fundos como a BlackRock, que possui participação em mais de 17 mil multinacionais no mundo, como Apple e Monsanto, além de milhares de programas de previdência privada. Trata-se de imperialismo estratégico e concentrador, índice de um capitalismo globalmente monopolizado que facilmente reduz Estados-nações à condição de satrapias: fluxos geopolíticos de violenta reterritorialização, protagonistas do golpe jurídico-parlamentar contra Dilma Rousseff em 2016. Satrapias eram territórios submetidos ao poderio do antigo Império Aquemênida, com líderes locais (sátrapas) autóctones, governadores de província que prestavam juramentos ao poder imperial. No vocabulário persa, satrápēs eram, literalmente, os protetores do poder. Após 2016, com Michel Temer, o Brasil se tornou a maior satrapia do mundo. A tão propalada fragmentação em curso é apenas a face visível de uma governamentalidade imperial cibernético-militar que gere o insustentável de uma crise ambiental e social sem precedentes, mantendo-se


intactas as desigualdades e injustiças. Esta reterritorialização, com a consequente perda da referência das instituições, tem como um de seus desdobramentos girar no vazio das revoltas. Marcos Nobre, no texto “Junho, ano V”,4 depois de estabelecer diagnósticos e criticar avaliações negativas sobre as Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, afirma que estas devem ser consideradas na perspectiva de um ciclo de irrupções democráticas de caráter global (semelhantes, nisso, ao Maio de 1968), e que muitos dos resultados regressivos, sinalizados no retorno aos conservadorismos e fascismos manifestos, provêm das tentativas de bloquear os potenciais democráticos que eclodiram nestas revoltas, e não propriamente delas. No entanto, à diferença de 1968, com revoltas identificadas amplamente com a esquerda, em junho de 2013, no Brasil, não só estiveram lado a lado nas ruas pautas da esquerda e da direita, mas sobretudo espectros ideológicos muito mais difíceis de descortinar, sintomas de um tempo que superou a

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4. Revista Piauí, n. 141, junho de 2018. pp. 26-32.


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lógica da hegemonia até então explicativa da cultura política de 1968. A dificuldade de se cartografar 2013 provém não apenas da ambiguidade não estratégica e do caráter eventual de todo e qualquer levante, ela vem acrescida de um tipo de fragmentação política abissal que 1968 não testemunhou. Uma das conclusões da análise de Nobre ancora-se no argumento de que o grande impasse de nosso tempo no Brasil é o amálgama entre sistemas políticos caducos e Estado nacional, cuja crise de legitimação — do Estado e não apenas dos sistemas políticos — geraria, em tese, a desorientação política em que nos encontramos. Entretanto, apesar dos acertos da análise do filósofo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), falar do Estado brasileiro como entidade monolítica é não dar conta de algo muito específico que também não estava presente nas coordenadas dos levantes de 1968: os Estados contemporâneos foram governamentalizados de uma maneira muito peculiar pelo modelo de capitalismo financeiro cibernético-especulativo. Não se trata apenas de endividamento de


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Estados, mas de sua dissolução em uma miríade de aparelhos e dispositivos governamentais, muitas vezes independentes e sem vasos comunicantes: a polícia, com seus códigos de conduta e atuação próprios; o judiciário corporativo; os parlamentos atravessados por inúmeras injunções de lobbies; as agências regulatórias; os sistemas prisionais; as instâncias e regulações bancárias; os poderes executivos e suas ramificações mais comezinhas; os gerenciamentos dispersos do cotidiano. Após décadas de governamentalidade neoliberal, não há mais a separação clássica entre sociedade e governo civil. Isso sem falar na transformação paulatina dos aparatos de Estado, forjados por séculos de justificação iluminista, em instituições que se assemelham a organizações mafiosas — vide a extrema facilidade com que o governo eleito democraticamente em 2014 foi retirado do poder sem qualquer possibilidade de resistência institucional de milhões de brasileiros afetados, ou a rapidez com que programas que interessavam aos oligopólios financeiros internacionais foram aprovados, alguns com o estatuto especial de emendas


à constituição (o paradoxo de emendas constitucionais manifestamente inconstitucionais). Fabio Armao, em Il sistema mafia: dall’economia-mondo al dominio locale, publicado na Itália em 2000, assinala que as máfias atuam, hoje, como um elemento de funcionalidade do capitalismo contemporâneo, desempenhando o papel de “estruturas de intermediação com o capitalismo em nome do Estado, de um modo não totalmente novo, embora certamente em grande parte reinventado”.5 O capitalismo financeiro especulativo expressa um momento exemplar naquilo que Armao chama de fases sucessivas de “integração mafiosa no sistema estatal”. Portanto, uma das razões deste impulso contestatório de 2013 não ter sido permeabilizado na política institucional brasileira está relacionada à hipertrofiada governamentalização e espectralização desta.

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5. Fabio Armao, Il sistema mafia: dall’economia-mondo al dominio locale. Turim: Bollati Boringhieri, 2000, p. 119.


NOVOS ESPARTAQUISMOS

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A história política do Brasil é também marcada pelos mecanismos para evitar e debelar levantes populares. No dia 25 de janeiro de 1835, africanos e escravos libertos tomaram a cidade de Salvador. O levante durou apenas três horas, mas acendeu um rastilho de pólvora nas demais cidades do Brasil escravista, assombrado pela mais importante revolução moderna, a Revolução Haitiana (1791-1804). Vale dizer que a prática do haitismo, entendido como conspiração ou incitação à revolta, podia levar escravos ao cárcere (ou calabouços) no Brasil do início do século XIX. A revolta dos Malês, termo nagô para os escravos muçulmanos, suscitou novas práticas policiais contra os africanos na monarquia brasileira. Revolta expressiva, ao considerarmos que ocorreu em uma cidade onde apenas 25% da população era branca, e que suscitou uma sintonia de luta entre escravos africanos e afro-brasileiros, nascidos livres ou escravos. Em uma sociedade na qual a escravidão era um modo de produção e em que não apenas


senhores de engenho possuíam escravos, mas também pequenos comerciantes e profissionais liberais, com o acentuado aumento de uma população pobre de descendência africana, ex-escrava ou liberta, o espartaquismo assumiu aqui a sua dimensão mais intensa. A história da Revolta dos Malês, que só veio à tona por intermédio dos registros policiais da época, mereceu uma das mais importantes pesquisas sobre revoltas políticas no Brasil: a obra de João José Reis, Rebelião escrava no Brasil: A história do levante dos Malês em 1935. Entre inúmeros desterrados para a África, Malês teve mais de 70 mortos, como Flamé, Batanho, Combé, Vitório Sule, Nicobé, Gustard, Noé, Hipólito, Constantino, Mama Adeluz, Gertrudes. Se o direito romano punia escravos revoltosos com a crucificação (Apiano de Alexandria, em sua História Romana, conta que milhares de espartaquistas foram crucificados e colocados no caminho de Cápua a Roma),6 os corpos dos espartaquistas da Revolta dos Malês foram lançados em valas

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6. Apiano de Alexandria (95 – 165). Cf. The Histories of Appian. Vol. III. Cambridge: Harvard University Press. p. 523 (Loeb Classical Library).


comuns do cemitério do Campo da Pólvora, tratamento fúnebre dispensado à maior parte dos escravos no Brasil. A origem de um conceito não se situa em um início arquetípico, mas acompanha o devir deste conceito em suas variações na história. Se a política e a democracia são espólios greco-romanos, as primeiras revoltas que conhecemos são as de escravos contra seus senhores, a contratradição dos oprimidos que nos chega pela via latina. Devemos a Plutarco uma caracterização de Espártaco e da Revolta Espartaquista, liderada por um escravo gladiador, mais helênico que trácio:

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A insurreição dos gladiadores e sua devastação na Itália, geralmente chamada de guerra de Espártaco, teve sua origem como segue. Um certo Lentulus Batiatus possuía uma escola de gladiadores em Cápua, a maioria dos quais eram gauleses e trácios. Não por má-conduta destes, mas devido à injustiça do seu dono, eles foram mantidos em confinamento e reservados para combates. Duzentos destes planejavam fugir, mas foram denunciados, aqueles que


ficaram sabendo disso conseguiram escapar, setenta e oito em número, agarraram cutelos e espetos de alguma cozinha e saíram em disparada. Na estrada eles se depararam com carroças transportando armas de gladiadores para outra cidade; saquearam-na e se armaram. Então eles assumiram uma posição forte e elegeram três líderes. O primeiro deles foi Spartacus, um trácio nômade, possuidor não apenas de grande coragem e força, mas também de sagacidade e cultura superior à sua fortuna, mais helênico que trácio.7

Espartaquismo e revolta são termos sinônimos, pois a revolta, em seus primeiros marcos, foi sempre a revolta de escravos. Os espartaquismos marcaram o Brasil oitocentista. A Revolta dos Malês durou apenas três horas, mas assombrou o país pós-independência, ao ponto de suscitar a implementação de aparatos contrainsurreicionais. As posteriores reformas urbanas, ou o que depois se convencionou chamar de haussmannização de cidades

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7. Plutarch. The Parallel Lives. The Life of Crassus. Vol. III. Cambridge: Harvard University Pres, 1916, p. 337 (Loeb Classical Library).


como Salvador e Rio de Janeiro, tiveram a explícita intenção de evitar o levante de escravos. Se as revoltas são feitas não em nome dos descendentes libertos, mas dos antepassados escravizados, possibilitando um contato com o passado oprimido, é possível postular também conexões imediatas entre os extermínios e as contrainsurreições do presente e do passado. São Malês que assombram os policiais que atacaram e mataram estudantes em 1968. São os espectros dos Malês que estão nas chacinas perpetradas por grupos policialescos em 2015, em Osasco e Barueri. São Malês que assombram e amedrontam os assassinos de Marielle Franco e dos milhares de jovens e crianças mortos pela polícia nas áreas de favela no país.

TLATELOLCO – AYOTZINAPA

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Se há algo que possa relacionar as experiências de 1968 com a multiplicidade dos levantes do ciclo 2011 a 2013, é a resposta contrainsurreicional dos governos,


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na tentativa de aniquilação dos espartaquismos. O fortalecimento desse poderio para debelar insurreições, mesmo antes que aconteçam, é um dos traços evidentes da governamentalidade no século XXI. Mas só podemos mobilizar outras intensidades políticas no momento em que lutamos e pensamos em favor dos desaparecidos e dos caídos em combate, e não de um futuro luminoso que possa estar à nossa frente. Em 2 de outubro de 1968, mais de mil estudantes e trabalhadores foram assassinados em uma manifestação pacífica na Praça das Três Culturas, em Tlatelolco, na Cidade do México. O número de vítimas, mortas com tiros vindos de helicópteros e snipers, até hoje é incerto. A transcrição de algumas das memórias dos sobreviventes pode ser lida no livro de Elena Poniatowska, La noche de Tlatelolco. Foram centenas as detenções. O massacre foi antecedido pela invasão militar do campus principal da Universidade Autônoma do México (UNAM), ocorrida em setembro daquele ano. Além de um campus avançado da universidade, que na data do massacre foi fechado pelos militares para


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impedir até mesmo que famílias se abrigassem dos tiros, na Praça das Três Culturas estão as ruínas de Tlatelolco. Foi neste local, 447 anos antes, precisamente em 1521, que Hernán Cortés, com um pequeno exército de saqueadores, contando com a aliança militar dos povos Totonacas e Tlaxcaltecas, inimigos dos astecas, realizou a última batalha do cerco a Tenochtitlan, capital do Império Asteca. Foi o termo sangrento da civilização asteca e o início da colonização espanhola do México e de toda a América Latina. Em 1º de janeiro de 1994, na ocasião da entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta), firmado por México, Estados Unidos e Canadá, os zapatistas se rebelam em um levante que durou 12 dias. Formaram nas regiões de Chiapas, estado mexicano mais ao sul, na fronteira com a Guatemala, zonas autônomas com Juntas de Buen Gobierno, um conselho clandestino indígena e escolas zapatistas, a partir das lições de Luis Villoro. O levante persiste até este exato instante. Inscrevendo-se nessa contra-história das nações


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indígenas desaparecidas e prestes a desaparecer, e na contratradição dos levantes sob a simbologia de Emiliano Zapata, o zapatismo exige uma torção dos conceitos jesianos. Não se trata aqui de fazer uma história do levante zapatista, muito menos de expor uma fisionomia do movimento, mas de pensar com e ao lado dos zapatistas: inicia-se um levante, que se inscreve nas características apontadas por Jesi de irrupção e suspensão do tempo histórico, porém, este levante se desdobra em outras temporalidades-territórios, inscreve outros calendários e outras urgências. A insurreição zapatista foi uma clivagem que bifurcou para outras dimensões da política e da produção de mundos-subjetividades, que passarão a ter, mesmo sob constantes ataques, permanência e cotidianidade especial. Ou seja, não apenas suspendem, mas engendram outro tempo histórico e novas institucionalidades. O zapatismo é um dos movimentos políticos contemporâneos mais consistentes sob o ponto de vista espartaquista. Expõe uma recusa à suposta naturalidade da simbologia do poder do opressor; recusa expressa na


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potência política de outras formas de vida a partir do indigenismo (choles, mames, ojolabales, tzeltales, tzotziles e zoques são alguns dos povos que compõem o movimento), no uso político da máscara, nos caracoles e semilleros, na cultura e educação zapatistas e, principalmente, no exército zapatista de libertação — devir-guerreiro dos próprios camponeses. O levante se desdobrou em insurgência, que exige outras e novas formas de viver e de intensificar a política-economia humana — uma vez que não há uma economia separada da política. O comunalismo zapatista põe em xeque a mitologia de um Estado mexicano que nada mais significou, de 1994 até o presente momento, do que reterritorialização de forças imperiais ocupantes. Em 26 de setembro de 2014, às vésperas dos protestos marcados para o 2 de Outubro, em memória à Noite de Tlateloco, cerca de 100 estudantes da Escola Rural Raúl Isidro Burgos, em Ayotzinapa, no estado de Guerreiro, ocuparam ônibus de empresas locais para se dirigirem às manifestações marcadas na Cidade do México. Nas proximidades da cidade de Iguala de la


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Independencia, os ônibus foram atacados por forças policiais. Sete pessoas morreram nos ataques e 43 estudantes desapareceram. Em 2016, foram confirmadas suas execuções, contudo os corpos continuam desaparecidos. As Escolas Rurais foram um dos poucos resquícios da revolução mexicana de 1917. Na Escola Rural de Ayotzinapa estudaram e trabalharam guerrilheiros e líderes rurais, como Genaro Vázquez Rojas (1933 – 1972) e Lucio Cabañas Barrientos (1938 – 1974). Estes espaços comunitários foram alvos de ataques dos governos neoliberais mexicanos da segunda metade do século XX e início do XXI, com cortes de recursos e reformas curriculares. Em 2006, o Exército Zapatista de Libertação Nacional incluiu em sua luta a defesa destes locais, em atos que se iniciaram em Ayotzinapa. A simbiose e mútua implicação entre máfias e Estados é flagrante no México, mas tão-somente como caso típico de um modelo que é mundial — sejam máfias ligadas ao narcotráfico ou aos mercados financeiros, pois os bancos privados evidenciam-se, hoje, nos principais cartéis do planeta.


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A luta zapatista, sobretudo com seus mortos e desaparecidos, que se integram aos milhões de mortos e desaparecidos políticos deste continente em guerra civil chamado América Latina, é um exemplo intensivo de que são os espartaquismos as fagulhas que ainda cintilam na noite de perigo de nosso tempo: em suas resistências aos contrapoderes que pretendem seu desaparecimento e na insurgente construção cotidiana de outros possíveis, outros calendários e outros territórios.


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Jonnefer Barbosa Nascido em Guarapuava, no Paraná, é professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor convidado da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e do Núcleo de Estudios en Gubernamentalidad da Universidade do Chile. Autor de Política e Tempo em Giorgio Agamben (Educ/Fapesp, 2014) e Marginário (Associação Carcará, 2015). Coeditor do blog Flanagens.


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