RESISTIR É PRECISO!

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Igor Mendes


O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.

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Gilles Deleuze e Félix Guattari


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As Jornadas de Junho e a condenação dos 23


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Ao revolucionário e ex-preso político Alípio de Freitas (in memoriam), cujo trabalho é uma grande contribuição aos que lutam contra a opressão. Seu livro Resistir é preciso foi o mais importante depoimento que li, e aquele que mais me ajudou a encarar e a vencer a prisão.


Todos os 23 ativistas processados por, supostamente, organizar protestos violentos em 2014, durante a Copa do Mundo no Brasil, foram condenados, pela Justiça do Rio de Janeiro, a penas que variam de cinco a treze anos de prisão. O mesmo juiz que agora nos condenou me enviou para a cadeia por ter cometido o terrível “crime” de comparecer a uma manifestação. Embora o Ministério Público Federal e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tenham entendido que a proibição era ilegal, ela foi reafirmada na sentença, num exemplo clamoroso de abuso de autoridade que, como todos os outros, ficará impune. Dessa experiência nos porões de nossa sociedade, nasceu o livro A pequena prisão, publicado há um ano. Nele, eu dizia:

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Por que falo em “pequena prisão”? Exatamente porque, iludidos com uma sociedade autoproclamada “livre”, vivemos na verdade numa imensa, cada vez maior prisão. Não creio que possamos nos considerar realmente livres os que têm de enfrentar a rotina de um trabalho extenuante e embrutecedor, coagidos pela


fome e pela ameaça de desemprego. “Livres” para ir ao supermercado e assistir televisão. “Livres” para acordar ainda de madrugada, atravessar a cidade em transportes caros e precários. “Livres” nas nossas prisões domiciliares, cheias de pequenos luxos desnecessários, pelos quais pagamos o equivalente a uma vida inteira de trabalho - isso quando temos o “privilégio” de ter um teto sob o qual nos abrigar. Desse ponto de vista, o que chamamos de prisão, a cadeia, é apenas uma fração da prisão maior em que vivemos – um pouco mais pobre de vida, mais descaradamente odiosa, é verdade, mas, ainda assim, uma fração se comparada ao grande presídio de povos em que se converte nossa sociedade no princípio do século XXI. Não me julguem pessimista: há um ditado penitenciário que diz “a cadeia é longa, mas não perpétua”, e creio firmemente que isso é válido tanto para a pequena quanto para a grande prisão.1

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1. Igor Mendes, A pequena prisão. São Paulo: n-1 edições, 2017, p. 34 e 35.


Desde então, foi decretada a intervenção militar no Rio, que já carrega atrás de si um assombroso rastro de chacinas e violações de direitos. Marielle foi assassinada a tiros, num crime abertamente político que chocou a opinião pública nacional e internacional. O comando do Exército emparedou o Supremo Tribunal Federal (STF), em rede nacional de televisão, para que julgasse a execução das penas a partir da condenação em segunda instância. No campo, recrudescem os ataques contra os camponeses, quilombolas e povos indígenas, ensanguentando a terra nos rincões do país. Agora, a condenação dos 23. Difícil mesmo não pensar no Brasil de 2018 como uma grande prisão. * A sentença que nos condena é uma profissão de fé de extrema-direita. Tem, nesse sentido, um mérito: escancara o caráter político desse processo. Em um trecho significativo,2 já várias vezes destacado, diz:

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2. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), processo número 0229018262013.8.19.0001.


A ré [Elisa Quadros, sobre a qual o monopólio de imprensa e a polícia fabricaram a personagem “Sininho”] tem uma personalidade distorcida, voltada ao desrespeito aos Poderes constituídos, o que pode ser constatado, no tocante ao Judiciário, por ter descumprido uma das medidas cautelares impostas pela 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (proibição de frequentar manifestações e protestos), o que acarretou a decretação de sua prisão preventiva [...]. Já o desrespeito ao Poder Executivo pode ser evidenciado, por exemplo, pelo enfrentamento aos policiais militares nas passeatas (as imagens de TV dizem mais do que mil palavras [...]) e ao “Ocupa Cabral” (é inacreditável o então Governador deste Estado e sua família terem ficado com o direito de ir e vir restringido). O desrespeito ao Poder Legislativo, por sua vez, pode ser verificado, por exemplo, pelo “Ocupa Câmara”. (grifos meus)

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Temos aqui uma série de questões. Vejamos: 1. Sendo verdadeira a primeira assertiva grifada, concluímos que todos os que lutaram, ao longo da história,


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contra os “poderes constituídos” fizeram-no por terem uma “personalidade distorcida”. Os que tomaram a Bastilha, o Palácio de Inverno; os que conspiraram, no Brasil, contra a escravidão e a monarquia (houve tempo em que eram estes os poderes constituídos); eram todos, segundo essa singular lógica... pessoas más, as quais se deve separar do convívio dos demais. Como não recordar, diante disso, o título do jornal da Ku Klux Klan: The Good Citizen, isto é, “cidadão de bem”? 2. Descobrimos que as imagens de TV dispensam comentários (e fundamentações, inclusive indicando o papel concreto exercido pelos ativistas em questão em meio à multidão). A TV sempre diz a verdade, não é mesmo? 3. Passo por alto a consternada menção ao direito de ir e vir de Sérgio Cabral. Mas não posso deixar de anotar que o “Ocupa Câmara”, movimento que combateu a máfia dos transportes instalada no município do Rio de Janeiro (os empresários do setor foram presos há pouco tempo, acusados de toda espécie de desvios), e que, por isso, angariou amplo apoio popular à época, não passou de “desrespeito ao Poder Legislativo”. Generalizando o


raciocínio, deveriam ir presos os ocupantes da Praça Taksim, na Turquia (na verdade, boa parte deles foi), e até mesmo o pessoal do Occupy Wall Street, que atentou contra o mais poderoso dos podres poderes: o financeiro. Essas caracterizações se repetem, lauda após lauda, sobre todos os processados. Não são fortuitas: justificam o agravamento das penas impostas. Sobre a Shirlene Feitoza, condenada nos mesmos termos dos demais, lemos: Outrossim, a ré em comento tem uma conduta social reprovável, pois, apesar de ser uma estudante de curso superior e de fazer estágio [...], ou seja, apesar de sua condição social, não trilha o caminho da ética e da honestidade [...].3

A Shirlene Feitoza da vida real é estudante cotista da UERJ, moradora do complexo de favelas da Maré (o que o juiz não desconhece, pois emitiu mandado a ser

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3. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), processo número 0229018262013.8.19.0001.


cumprido na sua residência, fato ocorrido com escolta do Exército, que, na época, ocupava a comunidade). Se essa condição, acrescida a de estagiária (recebendo uma bolsa de quatrocentos reais, que é o que a UERJ paga aos seus bolsistas), coloca-a numa condição social privilegiada, resta perguntar como chamar, então, os que são efetivamente beneficiários da ordem econômica brasileira, uma das mais desiguais do mundo. Seriam reis? Por se levantar contra um poder que mantém seus amigos de infância na miséria, que ceifa a vida de seus vizinhos, Shirlene Feitoza, que estuda e trabalha, “não trilha o caminho da ética e da honestidade”. O que seria ética e honestidade neste caso? Faço minha a indagação, ao mesmo tempo perplexa e indignada, de Vladimir Safatle:4 Nesse caso, podemos nos perguntar o que seria uma personalidade não distorcida. Alguém para quem os

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4. Vladimir Safatle, Uma personalidade distorcida. Folha de S. Paulo, 20 jul. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2018/07/uma-personalidade-distorcida.shtml. Acesso em 28 jul. 2018.


ditos Poderes nunca devem ser criticados de forma aberta e através de manifestações populares? Alguém que faz deferência quando um governador passa na rua?

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Do ponto de vista estritamente jurídico, não é difícil demonstrar a inexistência de qualquer individualização das condutas no interior da suposta organização criminosa. Temos uma ideia preconcebida (aquela contada no inquérito policial) na qual os personagens são encaixados de modo a justificar o enredo. Por um motivo simples: o que havia, ainda assim de maneira precária - grande parte dos 23 só veio a se conhecer e se reunir na cadeia - era uma articulação política, nascida no calor dos acontecimentos de junho de 2013, chamada Frente Independente Popular (FIP), que congregava, em reuniões abertas, movimentos populares dos mais diversos espectros político-ideológicos. É essa articulação que se tenta criminalizar, porque os verdugos só toleram um movimento social amestrado, que diga amém às imposições policiais. Para eles, qualquer coisa fora disso não é política, é banditismo. Daí, para ressuscitar o famigerado Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), não resta mais do que um passo.


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O caso da Elisa Quadros é emblemático. Foi o próprio processo de perseguição que criou a personagem “Sininho”, uma figura quase divina, porque onisciente, onipresente, onipotente. Segundo a narrativa policialesca, corroborada e amplificada pelos monopólios de imprensa, tudo o que se discutiu, se deliberou e se fez em 2013 e 2014 partiu de modo inequívoco das ordens da “Sininho”. Nela, nossos inquisidores traem seu cacoete de classe: acostumados a decidir os rumos do país a portas fechadas, nos seus clubes e cúpulas exclusivos, pensam que entre nós também é assim. Como se enganam! Uma das características das Jornadas de Junho foi, exatamente, a sua heterogeneidade. O grande responsável pela unificação do movimento foi, na verdade, o próprio Estado brasileiro, pois foi o repúdio à repressão brutal que o nacionalizou. Não se ergueram barricadas apenas no Rio, mas também em São Paulo, Curitiba, Recife, Goiânia, Porto Alegre, Brasília. Em Juazeiro do Norte, no Ceará, oito mil professores em greve mantiveram o prefeito sitiado dentro de uma agência bancária, só saindo após confrontos com a polícia.


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É evidente, portanto, que essas ações não se deram como parte de um plano pré-concebido. Caso tal nível de articulação existisse, teríamos de supor a presença, no Brasil, do exército clandestino mais organizado do mundo, o “exército dos black blocs infiltrados”. Na verdade, ao construir essa narrativa, a reação busca retirar das Jornadas de Junho aquilo que elas tiveram de mais essencial: a expressão das insatisfações mais profundas do povo brasileiro. Colocar, sobre os ombros de uma pessoa ou de um punhado de pessoas, toda a responsabilidade por aquele movimento gigantesco é pretender artificializá-lo quando ele foi justamente o contrário disso, isto é, algo radicalmente popular, espontâneo, multitudinário. Pretender “artificializar” aquele movimento - algo que, inclusive, parte da opinião pública de esquerda faz (a que estava no governo federal à época) é dizer que nós não tínhamos e não temos, afinal, motivo de sobra para nos rebelar. Se isso acontece, só pode ser por obra da “infiltração” de alguns indivíduos malévolos, não é mesmo? Não fossem os efeitos práticos muito sérios, tal raciocínio seria apenas um delírio ridículo, que beira o misticismo.


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Uma das maiores iniquidades da sentença é a condenação de Caio Silva e Fábio Raposo. Acusados de disparar o rojão que vitimou, acidentalmente, o cinegrafista Santiago Andrade, eles já estavam presos no período de junho a julho de 2014, quando ocorreu a Copa no Brasil. Ora, o centro do processo dos 23 é, justamente, a suposta realização de “atos violentos” durante a farra da FIFA. Na verdade, a contradição é tão flagrante que o próprio Ministério Público pediu, nas suas alegações finais, a absolvição de Caio e Fábio por absoluta falta de provas. Ignorando essa constatação, o juiz Flávio Itabaiana os condenou. Não se trata de algo despropositado. A inclusão de ambos no processo dos 23 é uma clara manobra oportunista, da qual participa a imprensa, visando usar a morte de Santiago para criminalizar as justas manifestações de 2013 e 2014. Na verdade, a falsa relação é praticamente a única arma de que dispõe a reação para nos condenar perante a opinião pública. Assim como as vidas nas favelas não importam, também não importam as várias mortes ocorridas nos protestos em decorrência


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da brutal repressão policial, inclusive a chacina no complexo da Maré, no auge das Jornadas de Junho, quando um protesto ali realizado foi reprimido à bala pela PM. Segundo relatório publicado pela organização Artigo 19, nos 696 protestos registrados especificamente em junho de 2013, houve oito mortes, 837 pessoas feridas, 2.608 pessoas detidas e 117 jornalistas agredidos ou feridos. Lista, como algumas das principais violações perpetradas pelo Estado: 1. Falta de identificação dos policiais. 2. Detenções arbitrárias, como detenção para averiguação, prática extinta desde o fim da ditadura militar. 3. Criminalização da liberdade de expressão por meio do enquadramento de manifestantes em tipificações penais inadequadas às ações do “infrator”. 4. Censura prévia, por meio da proibição, legal ou não, do uso de máscaras e vinagre por manifestantes no protesto. 5. Uso de armas letais e abuso das armas menos letais. 6. Esquema de vigilantismo nas redes sociais montado pelas polícias locais, pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e também pelo Exército, assim como


gravações realizadas pelos policias durante os protestos. 7. Desproporcionalidade do efetivo disposto para o policiamento do protesto com o número de manifestantes. 8. Policiais infiltrados nas manifestações que, por vezes, causavam e incentivavam tumulto e violência. 9. Maior preocupação policial com a defesa do patrimônio do que com a segurança e integridade física dos manifestantes. 10. Ameaças e até mesmo sequestros foram relatados.5 Creio que, ainda assim, esses números estão subestimados. Neles, não estão incluídos, por exemplo, os dez assassinados na chacina da Maré, no episódio já citado (o recado da polícia foi claro: na favela não se pode protestar). Outro caso que queria destacar é o do fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, que, no dia 14 de junho de 2013, foi ferido no olho por um tiro de bala de borracha disparado pela Tropa de Choque durante uma manifestação em São Paulo. Ele terminou por perder a

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5. Artigo 19, Protestos. Disponível em: http://protestos.artigo19.org/ panorama.php Link. Acesso em 30 jul. 2018.


visão do olho ferido. Além dele, no mesmo ato, outros sete repórteres foram atingidos no rosto, inclusive a jornalista Giuliana Vallone, cuja imagem no hospital causou enorme repercussão na época. Sérgio processou o Estado de São Paulo, e a decisão do Judiciário foi implacável: o juiz Olavo Zampol Júnior negou a indenização ao jornalista, consignando na sentença: “No caso, ao se colocar o autor entre os manifestantes e a polícia, permanecendo em linha de tiro, para fotografar, colocou-se em situação de risco, assumindo, com isso, as possíveis consequências do que pudesse acontecer [...]” (p. 1, grifo meu).6 Posteriormente, esse entendimento foi confirmado em segunda instância. Com isso, não apenas o Judiciário nega um direito básico a Sérgio, como legitima a violência de Estado contra as manifestações. Na verdade, não houve “linha de tiro” alguma, porque não existe qualquer relato de que manifestantes tenham disparado contra as tropas:

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6. Alcides Mafra, Fotógrafo que ficou cego por tiro da PM teve culpa exclusiva, decide juiz, iPhoto channel. Disponível em: http://iphotochannel.com.br/fotojornalismo/fotografo-que-ficou-cego-por-tiro-da-pm-teve-culpa-exclusiva-decide-juiz. Acesso em 30 jul. 2017.


o que houve, sim, como quase sempre, foi o uso desproporcional da força pela polícia. A analogia desse episódio com o que vitimou Santiago Andrade, em fevereiro de 2014, é evidente. Mas, como, aqui, os acusados são os manifestantes, aplica-se outro peso e outra medida. Ora, para além do fato inequívoco de se tratar de uma fatalidade que Santiago tenha sido atingido (poderia ser qualquer um, inclusive pessoas que participavam do protesto), causa espanto o silêncio cúmplice dos que histericamente clamam “punição” aos dois ativistas sobre a responsabilidade da rede de TV Bandeirantes no caso, uma vez que seu profissional cobria um evento conflituoso desprovido de qualquer equipamento de proteção individual, o que certamente teria lhe poupado a vida. Ao cabo e ao fim, não é a “verdade” ou a “justiça” que importam, e sim, a criminalização a qualquer custo, da forma mais hipócrita, das manifestações e dos manifestantes. É preciso dizer com firmeza: Caio e Fábio não são assassinos. ASSASSINO É O ESTADO.

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Em política, frequentemente é preciso saber aprender com os inimigos. Neste sentido, é esclarecedor o editorial publicado pelo O Estado de S. Paulo, no dia 20 de julho, intitulado: “A condenação dos black blocs”.7 Neste texto, diz-se: No rol de condenados estão nomes bem familiares aos que sofreram com o pandemônio e acompanharam o noticiário da época, como Elisa Quadros Pinto Sanzi, conhecida no meio da baderna como “Sininho”, e Luiz Carlos Rendeiro Júnior, vulgo “Game Over” [...]. Já não era sem tempo uma resposta do Poder Judiciário à altura daquela balbúrdia. (grifo meu)

Se a alguém poderia escapar o significado da nossa condenação, como uma punição exemplar a todos que foram para as ruas em junho de 2013, aí está. As maiores manifestações de massas da história recente do país, aquele “sopro de ar puro”, como fala a professora

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7. A condenação dos black blocks, O Estado de S. Paulo. Disponível em: https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,a-condenacao-dos-black-blocs,70002408318. Acesso em 28 jul. 2018.


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Vera Malaguti Batista, são aí caracterizadas simplesmente como um “pandemônio”, uma “balbúrdia”. As pessoas influenciadas por certa opinião pública dita de esquerda, propensas a creditar às Jornadas de Junho a responsabilidade por uma escalada do fascismo, devem refletir seriamente, porque a reação mais consciente não parece ter qualquer dúvida sobre a atitude a tomar: ela odeia junho de 2013 com todas as suas forças, como odeia toda e qualquer manifestação que venha do povo. Respondamos agora positivamente: que foram, afinal, as Jornadas de Junho? As Jornadas de Junho foram um movimento essencialmente político. Se a luta contra o aumento abusivo das passagens atuou como motivação inicial, foi o repúdio à repressão brutal da polícia que o generalizou. E, neste repúdio à ação das forças “da ordem”, se encontrava, ainda que latente, um questionamento à própria ordem que aquelas forças defendiam. É falso dizer que, em junho de 2013, não havia pautas ou que elas eram “difusas”. Quando um gigantesco movimento de massas se recusa a fornecer interlocutores para reuniões em palácios oficiais; quando um gigantesco movimento de


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massas recusa os caminhos ditos tradicionais de representação (os partidos políticos e os sindicatos); quando um gigantesco movimento de massas não conduz suas supostas lideranças ao parlamento, mas à cadeia, ele não está deixando de se posicionar politicamente, pelo contrário: ele está dizendo de modo bastante eloquente que esta política institucional, este arremedo de democracia que nos oferecem não nos representam. A negação do que está posto é o seu próprio posicionamento, a sua afirmação mais contundente. Só o mal-intencionado ou aquele cujo raciocínio embotado perdeu a capacidade de captar o novo pode ver neste recado das ruas a “antipolítica”. Como dizia Marx, aqueles poucos dias concentraram uma vintena de anos nas lições que deixaram, e o seu principal legado, para usar o termo da moda da época, foi o despertar de toda uma nova geração de militantes, libertos dos preconceitos reformistas. Limites que supostas lideranças afirmaram por décadas serem intransponíveis foram ultrapassados. Junho não é um marco zero da luta popular, porque ela jamais cessou, mesmo nos anos de ouro do crédito fácil e da febre consumista. Não cessou


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a luta pela terra, não cessou a luta grevista, não cessou a luta das novas contra as velhas ideias. Mas junho marcou o encontro, em outro patamar, dos que persistiram nos marcos do pensamento revolucionário com o amplo movimento de massas. Aqueles que, por décadas, foram tachados como “radicais”, “esquerdistas”, “sectários”, de repente, eram os únicos cujas vozes eram ouvidas no meio da multidão em fúria. Por isso a reação teme as Jornadas de Junho: é como se a pólvora finalmente se encontrasse com o estopim capaz de detoná-la. Nesse sentido, aquele movimento significou mesmo um divisor de águas. Isso ficou claro, por exemplo, na ocupação das escolas secundaristas de 2015, protagonizada por uma juventude que viu, em 2013, a mecha que iluminou seu caminho. Leitura parecida podemos fazer da greve dos caminhoneiros. O que, há poucos anos atrás, seria extraordinário, tornou-se cotidiano. E eu suspeito seriamente que essa nova geração de lutadores, surgida nesse contexto, participará de grandes transformações que estão por vir no Brasil. Na sociedade atual, a política só pode expressar a visão de mundo e os interesses das diversas classes em


disputa. O referido editorial também é elucidativo nesse sentido, porque define política como “a arte de ordenar e hierarquizar as inquietações populares”.8 Há que se reconhecer nessas palavras uma nítida consciência de classe. Porque através delas as classes dominantes rugem: é necessário pôr o zé-povinho no seu lugar! Afinal, quem ordena? Quem hierarquiza? Eles, naturalmente. Quem são eles? Os exploradores. Qual é a sua ordem? A ordem em que os capitalistas e os latifundiários exploram e os trabalhadores são explorados, se quisermos usar uma linguagem econômica; a ordem do “saco de dinheiro”, se preferirmos a rude expressão do escritor socialista Jack London.9 O papel do Estado capitalista é diretamente proteger o saco de dinheiro não de um capitalista em particular, mas dos capitalistas coletivamente. A “ordem”, portanto, não é uma categoria eterna perante a qual devemos nos prostrar com um respeito supersticioso. A ordem burguesa, como um tipo específico de dominação política (e, como todos os outros, transitório), tem

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8. Ibid. 9. Ver o seu magnífico e atualíssimo livro, O tacão de ferro.


se apresentado historicamente de duas formas: a democrático-liberal e a fascista. Elas não são idênticas, pois expressam diferentes momentos e correlações de força entre as classes, mas ambas são, no fundo, apenas formas distintas da mesma ditadura de classe da burguesia. Levanta-se a classe operária, os camponeses, a juventude faminta e desempregada, mesmo nos lugares mais “pacíficos”, e logo os encantos de igualdade e fraternidade se rasgam; logo os tribunais, as prisões e as tropas se apresentam como as únicas constituições invioláveis. Nisso não vai nenhuma novidade, muito menos alguma “pós-modernidade”: já no Manifesto do Partido Comunista, escrito há 170 anos, Marx e Engels definiam o Estado como “o comitê para gerir os negócios comuns da burguesia”.10 No caso do Brasil, os senhores da casa-grande erigidos a classe dominante sempre trataram o país como mera extensão das suas fazendas. Esses senhores são os beneficiários da ordem vigente tal como ela está instituída e não cederão, sem luta, um palmo sequer dos

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10. Karl Marx e Friedrich Engels, “Burgueses e proletários” in Manifesto do Partido Comunista. Editora Seara Vermelha, 2008.


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seus privilégios. Esta é uma lei escrita com sangue na história deste país, em que todos os levantamentos de cunho democrático e revolucionário foram esmagados a ferro e fogo pela reação. Os grandes proprietários de terras, os donos dos bancos e demais meios de produção exercem sobre nós, há cinco séculos, a autoridade do abuso, seja no atacado, baseado nas leis e princípios “filosóficos” que seus escribas a soldo tentam nos apresentar como imparciais e imutáveis, seja no varejo, praticado nos milhares e milhões de achaques e humilhações cotidianos. Nós, ao contrário, somos os milhões sem rosto que trabalham nas lavouras, que vendem bugigangas nos trens, que cantam o futuro mesmo sem ter pão no presente. Os camponeses, os proletários, os favelados, a plebe, os intelectuais honestos que não vendem sua consciência em troca de moedas, de farelos caídos do banquete dos ricaços. Somos aqueles que não têm nada e querem tudo. Somos os insubmissos de Canudos, do Contestado, do Araguaia; somos os cabanos revividos. Nós somos aqueles que fazem a reação tremer todas as vezes que marchamos nas ruas. Entre nós e eles corre


todo um mundo, correm rios de sangue também. Entre nós e eles não há conciliação possível, e a paz mais próxima que pode haver é o intervalo entre as batalhas que se encerram e as que virão. Por isso, eles nos odeiam, e nunca perdoarão os que participaram ativamente de junho de 2013: porque, há cinco séculos, eles nos perseguem, nos oprimem, nos prendem, nos matam, MAS NÓS SEMPRE VOLTAMOS. *

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Nossa condenação não é um caso isolado, como já disse e reitero: há que vê-la no contexto dos assassinatos no campo, da execução da Marielle, da intervenção militar que multiplicou as chacinas da população favelada no Rio como parte dos preparativos para uma intervenção militar mais abrangente no país. Inclusive, a prisão de Lula, da forma como se deu, também expressa a tendência à reacionarização do Estado, embora politicamente ele esteja tão distante do que significaram as Jornadas de Junho (objeto deste texto) como o céu da terra. O juiz que nos condenou, afinal, apenas emprestou suas mãos para que se cumprisse o ditame de punição exemplar


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reclamado pelos poderosos que temem o movimento de massas crescente. Estes são os sinais dos tempos. O que eles indicam? Tempestade. Os anos de relativa calmaria já ficaram para trás. A reação desesperada nos mostra os dentes, e justamente nisso revela a sua fraqueza. Para ela, quanto mais pacífica e parlamentar a sua dominação, melhor: isto significa que os oprimidos se deixam saquear tranquilamente. O fato de a plutocracia ter de revelar o seu tacão de ferro, ostentá-lo em praça pública, falar pela boca dos seus generais (e não dos seus hábeis politiqueiros) só facilita a percepção, por mais e mais pessoas, de que o rei está nu. Houve tempo em que os pelourinhos e as senzalas eram normais. Hoje, eles nos horrorizam. No futuro, as gerações que virão também se horrorizarão perante os caveirões, os cárceres, os gendarmes em guerra permanente contra seu próprio povo. Elas pensarão: era com a minoria dissidente, com os “criminosos” políticos da época que estava a razão. Lembro-me das belas palavras escritas por um combatente da Guerrilha do Araguaia, no calor da luta:


Os que sabem o tempo não podem ficar à margem, assistindo apenas. Decerto por fuzil e decreto é proibido cantar. Mas cantar é preciso. Quando ainda não o grito, seja o balbucio. Se não a palavra aberta, o amplo segredo. Nunca, no entanto, o silêncio. Dizem que o silêncio é de ouro. Mas de quem esse ouro? Sabemos que não do povo. Para nós o silêncio é podre. E cantar é preciso.11

Enganam-se, portanto, os que pensam que podem amordaçar o povo. Podemos cantar alto ou sussurrar, a depender das circunstâncias, mas sempre falaremos. Onde estão os reis, os juízes, os tiranos que tentaram nos calar? Que fim levaram os fascistas e o seu Reich de mil anos? As leis que consagravam a escravidão para todo o sempre, onde estão? Estão mortas, mas o povo segue vivo. Faminto, espoliado, dessangrado, mas vivo.

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11. Ver a coletânea Primeiras cantigas do Araguaia, publicada pela primeira vez no Pará, em 1979. O alcance histórico daquela experiência, que não escapava aos que dela participaram, pode ser comprovado pelo fato de que este é um tema que nunca sai da pauta de discussões da sociedade brasileira.


Pretender deter a sua marcha para a liberdade é como pretender deter a água corrente. Onde há opressão, há resistência: esta é a lei das leis da história - todas as outras passam, esta permanece. Sim, cantar é preciso, é preciso ter esperança, resistir é preciso. Hoje e sempre! VIVA AS JORNADAS DE JUNHO! LUTAR NÃO É CRIME! DEFENDER OS 23 É DEFENDER TODAS E TODOS QUE LUTAM

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Rio de Janeiro, julho de 2018.


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Igor Mendes é graduando em geografia pela UERJ, ativista político, escritor e botafoguense, não necessariamente nessa ordem. É um dos 23 condenados, no Rio de Janeiro, por participar de manifestações durante a Copa do Mundo de 2014.


agosto_2018

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