Agnes Horvath e Arpad Szakolczai
O TRAPACEIRO
na antropologia polĂtica
O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.
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Gilles Deleuze e Félix Guattari
O TRAPACEIRO
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na antropologia polĂtica
A surpreendente irrealidade da política moderna
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Em certo sentido, nada pode ser mais real do que a política. Ela tem a ver, em primeiro lugar, com poder, e evidentemente nada é mais real do que o poder, tanto que teorias importantes, de Nietzsche a Heidegger e depois deles, possivelmente incluindo Foucault, relacionaram poder com realidade, mesmo com o Ser. A política lida com o poder no nível da comunidade como um todo, até mesmo do mundo em geral – em especial com a globalização. Assim, dificilmente faz sentido questionar a realidade da política. No entanto, vários fenômenos políticos do século xx ampliaram os limites da realidade. Para começar, as guerras do século xx, chamadas pela primeira vez de “guerras mundiais”, já que superaram, em número de vítimas e modos de proceder, quaisquer outras em qualquer período da história. Elas com certeza foram reais; aconteceram, suas vítimas morreram; porém, não eram apenas imprevistas, mas também absurdas, inacreditáveis, impossíveis de conceber como coisas que de fato aconteceram. Inúmeros soldados no front se depararam com experiências com as quais simplesmente não conseguiram lidar, levando ao surgimento
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de uma série de novos transtornos psicossomáticos. E, embora esses conflitos fossem absurdos, seus efeitos mais profundos foram muito reais, duradouros, indeléveis, tanto que importantes pensadores políticos consideraram que eles nunca terminaram; que, em vez de falar das guerras do século xx, caberia dizer: o próprio século xx foi uma guerra. Se nada é mais real do que o conflito permanente, ainda assim nada é mais absurdo, portanto, ao mesmo tempo, irreal. Essa irrealidade continua com as figuras que provocaram tais guerras – ou que foram trazidas por elas para o centro da cena política e ali permaneceram. Hitler era um indivíduo muito concreto, mas também absurdo, impossível, irreal. Karl Mannheim, um dos mais importantes sociólogos do século xx, embora muito afetado por sua política, simplesmente não podia levar Hitler a sério, mesmo em novembro de 1932. O mesmo pode ser dito acerca do comunismo: a monotonia da vida em um país comunista era muito real e, ao mesmo tempo, completamente absurda; uma pessoa poderia chorar sem parar, estar contínua e totalmente deprimida ou fazer piada sobre o completo absurdo de tudo o que acontecia todos os dias.
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Em contraste com o idealismo do “fim da história”, o problema subjacente desses regimes ainda não acabou. Como tantas vezes, Michel Foucault (1982) se revelou profético: em seu último e conclusivo ensaio sobre o poder, ele alertou as democracias liberais de que se consideram o poder totalitário como matéria do passado e de outros lugares, estão redondamente enganadas. De fato, um dos principais e discutíveis problemas da política democrática contemporânea é que ela alcançou um nível crescente de irrealidade. Para citar apenas dois dos exemplos mais evidentes, um olhar casual nas eleições americanas ou italianas confirma essa irrealidade cotidiana. Há uma razão muito simples, e que diz respeito ao teatro. É claro que a política eleitoral, empreendida por meio da mídia, é um teatro. A política da mídia não é “como” um teatro – é um teatro. Por isso, não é de surpreender que a disputa seja cada vez mais vencida por atores ou por pessoas que conseguem atuar, fazendo uma encenação de si mesmos. Dificilmente uma pessoa consegue entrar na política contemporânea se não estiver disposta a renunciar a si mesma; e nisso poucas pessoas conseguem vencer um comediante de verdade. Assim, os políticos-atores, como Ronald Reagan ou
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Arnold Schwarzenegger, como se guiados por uma inexorável “lógica de ferro” da história, são seguidos por políticos-comediantes, liderados por Al Franken ou Beppe Grillo, e permanecem em nossos dias com o comediante ucraniano Volodymyr Zelensky, que ganhou a eleição presidencial com uma vitória esmagadora. As ligações com os regimes totalitários são estreitas. Em palestras proferidas em 1964, Eric Voegelin (1999) afirma que Hitler era um ator hilário – na verdade, poderia ter sido o melhor ator alemão do século; e as qualidades de atuação de Mussolini também são amplamente reconhecidas. Essa irrealidade está muito conectada com o papel desempenhado pela mídia na política. Em que medida podemos falar sobre “realidade” se os eventos são ao mesmo tempo “mediados” e “construídos” por várias “mídias”? É aqui que uma série de conceitos antropológicos pode ser vital para se distanciar de uma subestimada irrealidade cotidiana conjurada pelos meios de comunicação e para voltar a apreender o aspecto humano vital da política.
A relevância da antropologia para a compreensão da política
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A antropologia política é um subcampo interdisciplinar entre a antropologia, a sociologia, a política e a filosofia clássica, que tem por objetivo aplicar conceitos antropológicos, desenvolvidos principalmente durante o trabalho de campo em sociedades não modernas, ao estudo dos desdobramentos na modernidade. Essa ideia foi aprofundada em uma série de publicações recentes (ver Horvath, Thomassen e Wydra, 2015; Horvath e Szakolczai, 2019, em breve; Szakolczai e Thomassen, 2019; Thomassen e Wydra, 2019), assim como no periódico International Political Anthropology. Parece adequado analisar especialmente o déficit de realidade da política contemporânea, pois a antropologia, desde sua institucionalização acadêmica, esteva singularmente preocupada em apreender, de maneira metódica, o realismo da realidade cotidiana. No entanto e além disso, esses conceitos têm uma afinidade notável com algumas das ideias centrais da filosofia clássica, em especial o pensamento de Platão.
O primeiro desses conceitos, e de certa forma antropologicamente mais central, desenvolve uma ideia que ajuda a apreender e analisar uma realidade irreal: a liminaridade. Liminaridade
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A liminaridade apreende, com um grau de precisão analítica, o que acontece sob as condições efêmeras e fluidas de transição. Ritos de passagem são rituais que auxiliam na passagem de um grupo de indivíduos ou de uma comunidade pelos principais limiares da vida: nascimento e morte, vida adulta e casamento, doença ou outros tipos de crises ou simplesmente o ritmo das estações (van Gennep, 1960; Turner, 1967; Thomassen, 2014). Eles têm três fases: ritos de separação; o rito em si, uma performance ou prova; e os ritos de reagregação. Durante esse ritual, não apenas os iniciados são afastados de seu ambiente normal, mas toda a comunidade entra em estado de suspensão, como um estado de exceção, evocando evidentes afinidades com o pensamento de Carl Schmitt ou Giorgio Agamben.
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A ordem normal só é restaurada após o banquete, com as celebrações logo se tornando desordenadas. Esses rituais só podem ser realizados sob a orientação de “mestres de cerimônias”, comparáveis aos “governantes absolutos” do início da Europa moderna (Turner, 1967, pp. 99-100). A história conceitual do termo liminaridade tem três etapas principais. Ele foi introduzido em um livro clássico de 1909, de Arnold van Gennep, um conhecido íntimo de Marcel Mauss desde a época universitária, que o escreveu para servir de fundamento à antropologia social e até à sociologia. No entanto, devido a um confronto amargo com Durkheim, van Gennep, sua obra e seu conceito foram marginalizados e praticamente ignorados. Em uma segunda etapa, o livro foi por acaso resgatado por Victor Turner em meados da década de 1960. Mas Turner limitou o uso do termo a configurações tribais e passou a lhe atribuir um sentido exclusivamente positivo, celebrando a ambivalência, o fluxo, a incerteza, a criatividade e o desmantelamento das estruturas. A terceira etapa foi a extensão do conceito para as ciências sociais, lançada por Zygmunt Bauman e S. N. Eisenstadt, e continuada por Jeffrey Alexander e Bernhard Giesen e em trabalhos
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de estudiosos na International Political Anthropology. Essas últimas obras e publicações relacionadas contêm duas inovações conceituais básicas. Por um lado, enquanto Victor Turner veio celebrar a liminaridade como uma quebra da rotina estabelecida e fonte de criatividade, Horvath (1998, 2013) argumentou que a liminaridade representa uma ruptura no nível da vida cotidiana, portanto, uma fonte de incerteza e ansiedade que pode ser usada e abusada com facilidade; e, mais, artificialmente provocada. Assim, podemos falar sobre “liminaridade forçada”. Por outro lado, enquanto em condições normais a liminaridade é idêntica a um período temporário de transição, o retorno à normalidade pode ser suspenso, com a liminaridade se tornando uma condição duradoura, quase permanente (Szakolczai 2000, 2017). A liminaridade tem uma gama de aplicações potenciais na vida política. Eleições políticas são exemplos primordiais de um ritual liminar: a dispensa do Parlamento sendo um rito de separação; as eleições, o momento de suspensão em que o consumo público de bebidas alcoólicas é proibido; e a celebração dos vencedores, os ritos carnavalescos de reagregação. Assim, se uma eleição coincide com outro evento liminar, o resultado pode ser errático.
Liminaridade é um termo fundacional que revela os fundamentos paradoxais da política moderna. Isso deriva da análise anterior, baseada no problema de uma perda da realidade. É essa perda que só pode ser analisada com sua ajuda – na verdade, somente por meio de uma perspectiva genealógica, que, em vez de dar como certos o presente (impossível de qualquer forma, devido a sua irrealidade) e conceitos contemporâneos, tenta reconstruir como chegamos até aqui –, ao invés de postular qualquer realidade genuína, em que a característica central da vida é, de fato, seu caráter garantido, como um dom, e, portanto, “naturalmente” significativo. No entanto, uma vez que consideramos essa irrealidade e seu caráter liminar, uma série de outros conceitos antropológicos vem à tona, ajudando a levar a análise adiante, como o de “trapaceiro”, “imitação” e “cismogênese”. O trapaceiro
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Na linguagem da sociologia política de Max Weber, os momentos liminares são situações fora do comum. Essas instâncias de desordem e ansiedade, como
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guerras, revoluções, desastres naturais ou crises econômicas, podem ser resolvidas com o surgimento de líderes carismáticos. No entanto, como Weber bem sabia, não é de modo algum garantido que, no caso de um colapso da ordem, essas figuras apareçam de maneira automática. Mas a eventualidade de um fracasso nunca foi devidamente discutida por Weber, levando à evocação já rotineira, pela maioria dos sociólogos e cientistas políticos, das figuras genuinamente monstruosas da política do século xx, tais como Hitler, Stalin, Lenin ou Mussolini, enquanto “líderes carismáticos”, sem perceber quão pouco correspondiam ao carisma weberiano como dom da graça. O trapaceiro como uma figura na antropologia foi cunhado por Paul Radin (1972). Por uma série de razões, demorou muito para que o termo obtivesse aceitação mesmo na antropologia (ver Szakolczai e Thomassen, 2019), e ainda hoje há uma relutância em aceitar a legitimidade de sua aplicação na política contemporânea. A questão principal não é tanto rotular os políticos concretos como “trapaceiros”, mas sim reconhecer um modo particular de comportamento, mesmo lógico, que pode se tornar infeccioso na vida política.
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A característica mais importante dessa figura é que ela é externa a qualquer laço social ou humano. Um trapaceiro não pertence a lugar algum, não participa de nada, não se importa, não sente. Ele ou ela – o trapaceiro é com frequência do sexo masculino, quase nunca feminino, mas mais caracteristicamente ambissexual ou assexuado – tem uma posição exterior a qualquer comunidade humana, sendo, portanto, o eterno outsider. É por isso que o trapaceiro tem de inventar alguma artimanha para entrar, ganhar atenção e até confiança, apesar de seu caráter duvidoso, e mesmo ameaçador e desconhecido. De forma paradoxal, é aqui que ele é ajudado por seu grande defeito. Sendo um outsider, sem quaisquer apegos e sentimentos, nele as emoções e o raciocínio, conectados entre si em qualquer ser humano até o âmago da personalidade, como “coração” ou “alma”, se separam, levando a um excesso patológico de poder de raciocínio, derivado da posição de exterioridade. Desta posição, o trapaceiro assume qualquer emoção humana como um “objeto” a ser “estudado”, o que o capacita a guiar os seres humanos exatamente quando estão sobrecarregados pelas emoções, e dessa forma, até mesmo
obtendo controle sobre eles. E mais, ele pode estimular emoções nos outros, brincando com sentimentos humanos como se o fizesse com um instrumento musical.
A dinâmica do trapaceiro
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A importância de usar o termo “trapaceiro”, antropologicamente desenvolvido, para a política (moderna) consiste em especificar uma lógica, ou dinâmica, particular. Isso foi especificado por Radin e, desde então, mais explorado numa série de estudos (ver, por exemplo, Hyde, 1999). O trapaceiro, não pertencendo a lugar algum, vivendo num vazio, um “não lugar”, decide se
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aproximar de uma comunidade. Sendo desconhecido, ele é tratado com apreensão, por isso deve encontrar uma maneira de se “conectar” ao povo, para despertar seu interesse. Ele começa contando histórias e piadas, atento às crianças em particular, tentando se tornar amigo de todos. Assim, lenta, mas de maneira contínua, obtém reconhecimento e acaba sendo admitido na comunidade. No entanto, quanto mais o trapaceiro se instala em seu interior, mais a própria comunidade começa a se desintegrar. Isso ocorre porque as piadas e histórias contadas por ele se tornam cada vez mais ambivalentes, sombrias, até violentas, dirigindo-se a grupos vulneráveis, usando a súbita popularidade do trapaceiro, que – como “amigo de todos”, portanto de ninguém em particular, usando o jogo do zero e o infinito – consegue obter informações sobre todos, identificando com facilidade os conflitos e os pontos fracos entre membros da comunidade. Conflitos emergem e proliferam, com o trapaceiro brincando de forma impiedosa com as emoções humanas, até que a situação se degenera em um pandemônio generalizado, ameaçando a própria sobrevivência da comunidade. A menos que, de algum modo, as pessoas retomem os sentidos, o trapaceiro desapareça e a
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situação volte ao normal, as pessoas têm dificuldade até mesmo de recordar o que aconteceu e por que, como se tudo tivesse sido apenas um pesadelo. Essa trama é apenas a essência condensada de vários relatos antropológicos, coletados dos mais diversos lugares do planeta; no entanto, sua relevância direta e vital para a política contemporânea é evidente. Adolf Hitler foi uma nulidade e um fracasso em
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todos os níveis da vida, até mesmo como austríaco. Por muitos anos, ninguém o levou a sério – até a polícia relutava em prendê-lo, temendo que isso lhe desse notoriedade. No entanto, com o aprofundamento da crise econômica, cada vez mais pessoas prestaram atenção às suas excentricidades, seus votos aumentaram; em uma situação confusa, ele conseguiu obter um grande avanço e, em poucos anos, praticamente levou o mundo inteiro à beira do colapso. A situação é muito parecida com a do comunismo, um movimento radical dissidente dificilmente levado a sério, mas que, de alguma forma, por volta do fim da Primeira Guerra Mundial, conseguiu se insinuar no centro da ação, tornando-se o favorito dos intelectuais de avant-garde, e de modo igualmente ameaçador em relação ao domínio mundial. Depois, repentina e inesperadamente, o balão estourou e o comunismo desapareceu sem deixar muito vestígio – embora com um legado bastante pesado e, na verdade, talvez apenas recuando para a clandestinidade, esperando que a próxima ocasião se apresentasse: o “momento revolucionário” ou, a mesma coisa, outra crise liminar.
Variedades de trapaceiros
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Além da antropologia, trapaceiros estão presentes nas mais variadas mitologias, incluindo o pensamento religioso. O mais intrigante é que os trapaceiros desempenham um papel fundamental na mitologia grega (embora muito menos na romana), com vários dos mais importantes heróis mitológicos enquadrando-se na categoria, incluindo Prometeu, Dionísio e em especial Hermes. O mitólogo Károly Kerényi, que esteva em contato próximo com Paul Radin, escreveu importantes estudos sobre três dessas figuras. Embora Prometeu e Dionísio tenham evidente relevância para a modernidade, para a antropologia política Hermes é a figura mais pertinente, também discutida com destaque por Michel Serres. Hermes é, antes de tudo, um mensageiro dos deuses e guia das almas. Seus interesses se estendem a todas as esferas da “comunicação”: economia e comércio, transporte e tráfego, linguagem (ver hermenêutica) e eloquência. Suas atividades são totalmente ambivalentes. Hermes é o deus do comércio, mas também um ladrão mestre; o deus do discurso, mas também um mentiroso. Ele não apenas guia as almas, mas também as rouba,
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levando-as para o submundo, que é o lugar onde a ambivalência brincalhona da figura termina. Hermes é uma divindade letal, sendo rápido e impiedoso, até mesmo rindo de suas infelizes vítimas. A ambivalência pertence ao coração de Hermes, inclusive a da idade: Hermes é retratado como um jovem, mas também como um homem barbudo; e de gênero: Hermes sintetiza a virilidade, com representações fálicas, mas também é hermafrodita. Essa ambivalência é mais visível em sua ligação íntima com a noite. Por meio de Hermes, Kerényi adverte sobre os perigos envolvidos na abertura de forças inconscientes. Hermes, o deus dos limiares “abandonados”, é a divindade da liminaridade por excelência; mas também, como uma deidade de comunicação, comércio, linguagem, velocidade e sexualidade, personificando a ambivalência, é um paradoxal “deus da modernidade” – ajudando a entender a permanente liminaridade da modernidade. O trapaceiro, como a análise anterior indicou, prospera em particular sob as situações liminares caóticas e incertas. Uma importante característica dessas condições é que os processos imitativos proliferam.
Imitação
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Imitação é um termo quase expurgado do pensamento contemporâneo, na esteira da ênfase kantiana na “racionalidade”, a pedra angular do “indivíduo autônomo”. No entanto, é um termo central da filosofia clássica. Segundo Platão, e também Aristóteles, a imitação é uma característica importante da vida social, e o raciocínio é uma força a ser desenvolvida para combater processos imitativos. A presença e efetividade dessa força não estão garantidas, e dependem do “cuidado de si” ou da “alma” e sua devida ordem, elemento primordial do pensamento de Platão, segundo Foucault, Patočka ou Voegelin. A proibição kantiana da imitação foi levantada por duas das figuras mais interessantes e inovadoras do pensamento social contemporâneo, cada uma com afinidades antropológicas vitais: Gabriel Tarde e René Girard. Para Tarde, a imitação é um aspecto fundamental da vida social, e é a razão pela qual – apesar de Kant – a vida social é apenas aparentemente caótica. A imitação é ação ou geração à distância, o que significa que um ser concreto pode exercer um impacto no tempo e no espaço. Deste modo, alguns dos maiores avanços do
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intelecto humano podem ser reavaliados como marcos na história da imitação, e um bom exemplo é a linguagem, tanto a falada quanto a escrita. Por outro lado, Girard desenvolveu sua teoria social por meio do estudo de romances do século xix. Para seu grande espanto, ele descobriu que esses romances revelam o caráter imitativo do desejo humano, identificando a ideia de autonomia subjetiva de RousseauKant como uma ilusão romântica (Girard, 1961). Central para a posição de Girard é a ideia do desejo triangular, problematizada igualmente pela libido freudiana. De acordo com ele, não são as qualidades de um “objeto” que evocam o desejo, mas o caráter exemplar da pessoa que já possui os objetos desejáveis, induzindo outros a imitarem-no. Isso apreende o mecanismo de efeito dos comerciais, assim como do marketing político, daí a relevância das ideias de Girard para a vida política contemporânea. No estágio seguinte de seu trabalho, baseado na mitologia comparada e na antropologia, Girard (1972) estendeu a imitação à compreensão de rituais de sacrifício, identificando o mecanismo sacrificial e o bode expiatório como centrais para a história política.
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A imitação desempenha um papel fundamental na análise da política de Platão, visível em particular no diálogo tardio O político. Platão também diagnosticou um problema na ação de imitar, intimamente ligado a trapaceiros e à liminaridade: o problema da teatralização na Atenas democrática. Em As leis, Platão identifica a forma de governo característica da Atenas “democrática” como uma “teatrocracia de base” (700E-701B). A impressionante inferência, disponível por meio de Platão, é que, apesar de Habermas, a esfera pública livre e aberta, sendo idêntica a um vazio que qualquer trapaceiro pode preencher, utilizando-o para inculcar modos de conduta que podem ser infinitamente imitados e multiplicados, não é a solução, mas a causa de males políticos. Eis aí uma fonte central da destruição dos significados, através do anonimato e da despersonalização, ocultados pela proliferação de “personalidades” falsas nas mídias eletrônicas, que por sua vez estão perdendo contato com a realidade cultural viva e concreta. A esfera pública como teatro é uma cena de jogos mascarados, sendo a “máscara” outra ferramenta para a antropologia política. A centralidade do uso de máscaras para formar identidades políticas foi explorada por
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Pizzorno (2010). As eleições americanas, em particular, fazem sérios jogos de trapaça, ajudadas pela glorificação não problematizada de mercados livres e tecnologias de comunicação. O cosmopolitismo e a globalização são elementos de uma genuína alquimia política, com seres concretos sendo dissecados e depois reintegrados a uma nova entidade despersonalizada. Os candidatos estão se formando de forma proposital como trapaceiros da maneira aqui definida, mas mascarando sua essência de vazio interior, transformando-a em uma bola de destruição pela especulação sobre o desconhecido ou mesmo o conhecido, e fazendo de qualquer desvio da estrutura política existente, favorável a alimentar os trapaceiros, um ato de divergência. Cismogênese
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Se a ordem social se rompe, os processos imitativos aumentam, a liderança é sequestrada pelos trapaceiros, a normalidade pode não ser restaurada e a unidade da comunidade corre o risco de perder-se de maneira irremediável, dilacerada por processos “cismogênicos”.
Gregory Bateson (1958) desenvolveu o conceito no campo, quando, por volta de 1930, entre os iatmul, em Papua-Nova Guiné, ele percebeu que toda a sua bagagem teórica adquirida combinando funcionalismo estrutural com análise de conflito marxista era inútil para dar conta de eventos cotidianos recorrentes. Observando frequentes repetições do violento e extremamente imitativo ritual naven, ele teve a ideia de que, nessa rede de sociedades, em certa conjuntura histórica, a significativa ordem humana deve ter se rompido, entrelaçando os vários segmentos numa série de relações cismáticas de que não poderiam escapar. Essas relações eram duradouras e tidas como garantidas, mas não eram de modo algum “funcionais”, nem redutíveis a conflitos gerados por posições antagônicas na estrutura social. Reconstruindo uma vida política real: uma perspectiva da antropologia política
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Mas como evitar a política imitativa e liminar do trapaceiro e seus efeitos cismogênicos ou adversos? Essa é a questão da política hoje e, é claro, este pequeno artigo
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não pode dar uma resposta. Podemos apenas indicar uma direção, de volta à realidade real – não ao suposto realismo da escolha racional ou de jogos intelectuais infantis similares. A vida real é baseada em uma experiência de estar em casa no mundo. A política trata sobretudo de assegurar uma vida assim para toda uma comunidade, o que não é uma atitude simples, pois envolve manter o contentamento entre vários grupos e indivíduos e, antes de
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tudo, dentro das almas ou corações das pessoas envolvidas nas decisões políticas. Essa experiência da casa é, em certo sentido, idêntica para todos e, em outro, radicalmente diferente para cada comunidade. É aqui que a dinâmica adequada da universalidade pode ser apreendida, para além de qualquer apelo fácil a um “cosmopolitismo” generalizado e, portanto, vazio. “Significado” e “casa” são sempre algo concreto e pessoal; isso não é romantismo utópico, mas o próprio material da existência humana. Participar da vida política significa ser capaz (tanto externamente empoderado quanto internamente apto) de assegurar a possibilidade de viver uma vida real e em casa aos membros da própria comunidade, enquanto se reconhece e aceita a necessidade de outras comunidades de viverem da mesma forma, incluindo a questão ainda mais complexa de que os espaços vitais das comunidades podem se sobrepor ou que as pessoas podem pertencer ao mesmo tempo a diferentes comunidades. A globalização moderna e o cosmopolitismo pretendem resolver o particularismo ao custo de deixar a todos sem teto. É idêntico a resolver o problema do estupro pela castração universal. Pior ainda, o cosmopolitismo
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moderno combina isso ao saudar os mercados livres, o progresso tecnológico e a destruição do planeta. Mas é necessário retornar à realidade concreta e significativa, para além de soluções técnicas, como eleições e mercados, que apenas levaram à universalização de uma lógica teatral de trapaça. Precisamos começar a pensar em como alcançar isso, além de acenar bandeiras ideológicas que já perderam todo o sentido.
Referências
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AGNES HORVATH é doutora em Ciência Política pelo Instituto Universitário Europeu de Florença, na Itália, tendo lecionado no próprio Instituto, nas universidades de Cambridge (Reino Unido), Milão (Itália) e Cork (Irlanda). Sua pesquisa tem por foco a natureza transformadora da tecnologia, seus efeitos sobre a identidade e a fragmentação da vida social. Outros assuntos de seu interesse são: mimesis, momentos cismogênicos, formação de tricksters, peregrinação e longas caminhadas como mudança de identidade.
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ARPAD SZAKOLCZAI é professor de Sociologia na University College Cork, na Irlanda. Nasceu na Hungria, no “lado de lá” da cortina de ferro, o que foi uma fonte de “experiências inesquecíveis a respeito dos efeitos sociais de ideias bem-intencionadas e malconduzidas”, em suas palavras. Tendo estudado nos Estados Unidos e lecionado no Instituto Universitário Europeu de Florença, na Itália, seu trabalho trata principalmente das ligações entre a Europa, a modernidade e os processos de globalização. Ao analisar conceitos desenvolvidos por antropólogos, se concentra nas condições históricas de longo prazo e nos efeitos sociais da religião.
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O último livro dos dois, The Political Sociology and Anthropology of Evil: Tricksterology (Routledge, 2020), poderia ter seu título traduzido como: A Sociologia Política e a Antropologia do Mal: Trapaçologia.
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