JacareZine
COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS A Coleção de Zines das Clínicas de Borda Psicanalíticas Brasileiras, aberta a novos fascículos, nasce da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadas e inconformados com a resposta clínica de seu fazer e de sua formação face à realidade nacional brasileira, exposta à brutalidade e à violência estrutural. Trazem experiências múltiplas e plurais, sem necessariamente criarem um mínimo comum, nas quais experimentam o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, meios de formação. Nasceram da resistência dos movimentos sociais, em reação a genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, deslocamentos migratórios, nas periferias, praças, estações, ocupações, quilombos. Seu fazer é produto da rua e dos modos possíveis de cuidado a que o enlace transferencial na direção do tratamento psicanalítico dá visibilidade e nome a corpos apagados no cotidiano. Instituem elementos necessários na teoria e na prática, revisitando as clínicas públicas e populares, datadas dos tempos de fundação do campo psicanalítico com Sigmund Freud. Reviradas pela experiência do Sul Global, em elipse, olham o avesso do espelho e atravessam suas fronteiras. Marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos modos de partilha e de presença. Saem definitivamente do modelo burguês do consultório individual. Recebem os analisantes, tanto online, quanto em cadeiras expostas ao sol, a fim de escutarem seu sofrimento. Colocam o pagamento em xeque, não mais no cheque. Trazem a marca de sua região, de sua língua, das ricas expressões dos dialetos brasileiros. Distribuem-se em cada canto do país e questionam o modo de circulação do capital e de resposta do inconsciente às violações cotidianas. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica psicanalítica e da lógica excludente da formação do psicanalista, enfim, sua presença na polis. Elas não estão todas reunidas aqui. A coleção, aberta, aguarda novas presenças nessa escrita histórica. A psicanálise mudou. A gente queria que você soubesse.
Zine Clínicas de Borda Psicanálise no Jacarezinho Psicanálise no Jacarezinho , 2023 Editora n-1, 2023 ISBN: Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagem e a especificidade de cada obra publicada. COORDENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes DIREÇÃO DE ARTE Ricardo Muniz Fernandes CAPA E DIAGRAMAÇÃO Thata Oliveros COMITÊ EDITORIAL DA COLEÇÃO CLÍNICA DE BORDAS Andréa M C Guerra Augusto Coaracy Daniel Mondoni Marta Togni Ferreira Pedro O. Obliziner A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessário a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. 1° edição | outubro, 2023. n-1edições.org
Título: Coleção Clínicas de Borda Autor: Psicanálise no Jacarezinho Medidas: 14x21 Número de páginas: Assunto geral do livro: Psicanálise de rua Palavras chave: Psicanálise; Clínica pública; Política; Clínica de borda ISBN:
Zine Clínicas de Borda COLEÇÃO: 1. PsiMaré (Rio de Janeiro/RJ) 2. MOVE: Movimentos Migratórios e Psicologia (Curitiba/PR) 3. ClínicAberta de Psicanálise de Santos (Santos/SP) 4. Falatrans (Juiz de Fora, UFJF/MG) 5. Ocupação Psicanalítica (Belo Horizonte/MG; Rio de Janeir/RJ; Vitória/ES; Santo Antônio de Jesus/BA) 6. Estação Psicanálise (Campinas/SP) 7. Coletivo Margem Psicanálise (Fortaleza/CE) 8. Intervenção Psicanalítica Clínico - Política às demandas da População LGBT (Rio de Janeiro/RJ) 9. Rede Sur (São Paulo/ SP) 10. Roda de escuta/grupos flutuantes LGBTQI+ (Aracajú/SE) 11. Clínica Periférica de Psicanálise (São Paulo/SP) 12. Clínica do Cuidado (Altamira/PA; São Paulo/SP) 13. Coletivo Psicanálise e Política e Cotidiano Refugiado (Rio de Janeiro/RJ) 14. Projeto Gradiva (Porto Alegre/RS) 15. Museu das Memórias (In)Possíveis (Porto Alegre/RS) 16. Psicanálise na Rua (Cuiabá/MT) 17. Coletivo Testemunho e Ação/SIG (Porto Alegre/RS) 18. Margens Clínicas (São Paulo/SP) 19. Coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt (São Paulo/SP) 20. Psicanálise no Jacarezinho (Rio de Janeiro/RJ) 21. Mutabis (São Paulo/SP) 22. Clínica Aberta de Psicanálise (São Paulo/SP)
1. UMA HISTÓRIA EM DOIS TEMPOS TEMPO 1 (SÓ-DEPOIS DO TEMPO 2) – A PRÉ-HISTÓRIA Na história do proponente da PJ, o bairro do Jacarezinho tinha, no ano de 1967, o nome de Vieira Fazenda, estação de trem da Linha Auxiliar da Central do Brasil, destino Belford Roxo (na Baixada Fluminense), estação que hoje tem o nome de Jacarezinho. Era uma região meio rural, que aparecia no mapa da cidade do Rio de Janeiro da época – que está abaixo – em verde e com uma só rua interrompida, a Comandante Gracindo de Sá. Este mapa aparece aqui com as marcas do tempo e os traços que nele inscrevia diariamente este menino de 11 anos, sempre tarado por mapas de cidades, reais e inventadas. Exatamente nele, o menino situou a sede de uma instituição imaginária que ele criara em seus devaneios (ou delírios), chamada justamente de COTRAFE (sigla de “Companhia de Transportes Ferroviários) e ele a desenhou no tal mapa, ao lado, a lápis. Como gostava também de estações de trem, sabia que havia uma estação que precedia, para quem vinha da Central, a Vieira Fazenda/Jacarezinho, e que chamava-se Heredia de Sá, desativada nos anos 70, nome que muito lhe agradava, embora nunca tivesse ido a nenhum desses lugares. Esta estação e seu nome terão grande importância na conexão inconsciente de toda essa história.
OS DOIS TEMPOS DE UM MESMO MAPA
Estado do mapa de 1969 em 2017
O mesmo mapa recuperado e emoldurado, por iniciativa da companheira do Luciano, Nympha Amaral, que o presenteou com esta preciosidade no Natal de 2017.
TEMPO 2: A HISTÓRIA ATUAL
A favela vista do nosso terraço
Pois bem, passados 50 anos exatamente – estamos em 2017 – ouviu, na sessão de um analisante seu, jovem advogado, branco, classe média alta, em seu consultório particular situado no bairro do Flamengo, uma referência a um colega seu, também advogado, negro, que estava desenvolvendo um projeto de trabalho social, envolvendo assistência jurídica, alfabetização, entre outras atividades, no atual bairro-favela do Jacarezinho, onde nasceu. Seguiu ouvindo seu analisante em suas demais associações e, no final da sessão, antes de despedir-se dele, e sem saber exatamente porque, perguntou-lhe se ele poderia dar o contato do seu amigo advogado. Deu como razão para este pedido o fato de estar querendo criar um projeto de trabalho com a psicanálise na Favela do Jacarezinho, sem contudo jamais ter pensado antes nisso, ou pelo menos formulado para si mesmo, conscientemente, algo assim. O seu analisante prontamente lhe passou o contato, e imediatamente este psicanalista procurou o advogado do Jacarezinho, recebendo-o na UERJ com alguns orientandos de mestrado e doutorado, e colegas de sua Escola de Psicanálise.
Marcou-se uma visita no escritório do advogado, situado no coração da favela (na qual pessoas brancas e estranhas ao território não devem adentrar sem algum anfitrião local). Ouvimos sua história: filho de um líder do tráfico de 30 anos atrás, quando nasceu na favela, foi enviado pelo pai ao interior do estado do Rio de Janeiro para ser criado por uma tia, sendo assim preservado da vicissitude de crescer no ambiente de tráfico de drogas na favela. Nosso parceiro formou-se em Direito, é muito bem sucedido como advogado em seu escritório no Centro do Rio mas decidiu, ao retornar a esta cidade, que dedicaria parte do seu tempo a exercer advocacia gratuita aos moradores do Jacarezinho e desenvolver um projeto de alfabetização com o nome de sua avó, NICA, que é também a sigla do projeto: Este é o segundo fator, contingente, da história atual e não do passado histórico, que fundamente a escolha do Jacarezinho. O inconsciente está entre esses dois fatores, e o atual redescobriu o anterior.
Nova denominação da estação e suas direções
Rua Vieira Fazenda: o antigo nome agora é só uma rua
Visão da plataforma da estação
O trem passa sobre a rua
O prédio
Vista da nossa varanda
Equipe (2017) com Joel Costa, nosso “introdutor” na Favela
A DESCOBERTA DO ESPAÇO OCULTO Esta primeira visita ao escritório do advogado parceiro foi muito interessante. Ele tinha duas salas de trabalho, uma de apoio administrativo e outra dele, onde nos recebeu, além de grande sala que servia de acesso a essas duas. Ele nos ofereceu esta sala grande de acesso, gratuitamente, para atendermos clinicamente os moradores da favela ali. Isso era obviamente inviável, pois não poderíamos atender pessoas num ambiente de passagem, o que atrapalharia nossos atendimentos e os dele. A possibilidade, por ele aventada (tal era seu desejo de que trabalhássemos em suas instalações) de que só atendêssemos após as 18 horas era igualmente inviável, por diversos motivos. Este que lhes escreve viu que havia um corredor que seguia para a parte de trás do andar, e perguntou o que havia lá atrás. O nosso anfitrião respondeu que esse corredor levava ao banheiro, já situado em uma área posterior, descoberta. Pediu então para ir ao banheiro, mais para explorar o espaço do que por alguma necessidade de usar o banheiro, e viu que, no meio do corredor, havia uma porta meio quebrada e trancada, e uma grande grade de ventilação no alto da parede acima da porta. Ao voltar “do banheiro”, perguntei que porta era aquela. Nosso amigo, habitante do local, não sabia dizer: “Acho que não dá em lugar nenhum, está fechada há muito tempo, e quebrada”. “Eu vi”, respondi, “mas queria saber o que tem ali”. Ele então telefonou para o proprietário do imóvel e perguntou o que era, descobrindo que havia uma sala ali, e, mais do que isso, sabendo que as chaves estavam no molho que ele recebeu ao alugar as 3 salas da frente. Imediatamente pedi que abrisse para nós e, qual não foi a nossa surpresa ao entrar: duas salas e um banheiro, sendo que a segunda sala abria para uma pequena área ao ar livre com um tanque e que pertencia ao conjunto. Voltamos à sala da frente e pedimos que o nosso amigo telefonasse novamente ao proprietário dizendo que queríamos alugar aquele espaço “inexistente”. Ali mesmo decidimos tudo e instalamos o Psicanálise no Jacarezinho nesse espaço, onde ele funciona até hoje. Era novembro de 2017.
A recuperação do espaço que estava depredado
Sala de espera só com sofá e poltrona
Depois chegou o tapete
O CONSULTÓRIO – OU PSICANALISORIUM
O divã
A estante e a poltrona do analisante
Outro ângulo: a poltrona do analista
UMA BREVE HISTÓRIA DO JACAREZINHO O espaço que conhecemos hoje como a favela do Jacarezinho passou a ser urbanizado e assim ocupado a partir da primeira década do século XX, com o estabelecimento das fábricas na região da Avenida Dom Hélder Câmara. Na década de 1920 ocorre a chegada de grandes empresas como a GE (General Electric), conglomerado multinacional que tinha seus muros como divisa com o Jacarezinho em quase toda a sua extensão e onde existia uma fábrica de lâmpadas. Hoje encontra-se desativada mas foi responsável no passado por empregar grande parte dos trabalhadores do Jacarezinho, outrora também conhecida por Cidade Proletária do Jacarezinho. Na década de 1950, ocorre uma expansão da população do Jacarezinho devido à migração de inúmeras pessoas vindas de diversas regiões do Estado do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Sergipe. Os migrantes nordestinos constituíam a maior parte dos que vieram para o Jacarezinho para trabalhar nas fábricas da região. A presença de um grande número de trabalhadores fez com que diversos movimentos políticos e sindicatos surgissem neste bairro de origem operária que é o Jacarezinho. Hoje o Jacarezinho, com população estimada de trinta e sete mil moradores, é considerada a favela mais negra do Rio de Janeiro. Imprescindível, então, introduzir a sua história negra e aqui contaremos com a ajuda do Rumba Gabriel, jornalista, fundador do Movimento Popular de Favelas, membro do TV Portal Favelas e morador do Jacarezinho há sessenta e cinco anos. Segundo Rumba, o Jacarezinho pode ser considerado um quilombo urbano: Muitos acham que quilombos só são os que ficam no interior, mas se esquecem dos negros que vieram para o centro. O Rio de Janeiro recebeu mais de 1 milhão de negros para serem escravizados ali no Cais do Valongo, que foi abandonado como tudo o que é nosso é abandonado. Esses negros que chegavam ao Rio não iam para o interior. Eles iam para lugares como Jacarezinho, onde ocorreu a maior concentração de negros em favelas no Rio de Janeiro. Continua explicando que as primeiras ocupações surgiram por volta de 1920, na parte mais alta do morro chamada de Azul: “Essa característica dos negros de fazerem suas casas no alto dos morros era justamente pelo medo da polícia, que passou a desempenhar o papel dos Capitães do Mato, prendendo essas pessoas.” Rumba argumenta que, antes de tratar dos processos de migração na construção da história do Jacarezinho, é preciso dizer que a favela do Jacarezinho sempre foi muito negra e que o mito da “democracia racial”¹ também é uma falácia na favela. Negros e descendentes de nordestinos brancos possuem lugares distintos embora
ambos identificados hoje como “favelados”, outrora “operários”. Em 1992 o Jacarezinho recebe o estatuto de bairro, o que não impediu que continuasse a ser identificado como uma favela que faz parte do bairro do Jacaré. Na mesma década de 1990, várias indústrias do complexo industrial que compreendia os bairros do Jacaré, Jacarezinho e adjacências foram fechadas ou tiveram suas atividades reduzidas e cerca de 40 mil pessoas perderam seus empregos nas fábricas do Jacarezinho. A partir de então, o declínio do complexo industrial marca uma série de transformações naquela região: Problematizamos a questão do espaço como referencial importante para a construção da memória e identidade dos grupos sociais. Por outro lado, mostramos como as novas demandas impostas aos trabalhadores, desempregados e subempregados a partir da década de 1990 trouxeram grandes rupturas com espaços antes privilegiados por um grupo de operários. Diferentes desafios em termos da construção da identidade e de novas relações com o espaço são colocados para essas pessoas. Se historicamente o Jacarezinho surge a partir de vilas operárias que marcavam politicamente aquele espaço com o movimento sindical e comunitário, hoje são outras identidades que compõe os espaços de organização na favela do Jacarezinho. Trataremos desta questão ao longo do texto.
¹ Conceito frequentemente associado ao escritor Gilberto Freyre, autor de “Casa-Grande & Senzala”, que nega ou suaviza a existência do racismo no Brasil.
O PODER NA FAVELA O saber seduz porque carrega um poder que pode ser exercido sobre o outro. A lógica do nosso trabalho precisa ser outra, subversiva: permitir ao sujeito podersaber a própria verdade. Esse capítulo será dedicado à verdade que é alcançada pelo favelado a partir de sua própria realidade, organização e luta. Se a direção da psicanálise é a emancipação do sujeito, em seu caráter libertário, um olhar sobre a favela e as pessoas que ali vivem não poderia ser em outro tom. Para isso, tomo emprestado, através do livro O Direito dos Oprimidos, a aventura de Boaventura de Sousa Santos, que há cerca de cinquenta anos esteve no Jacarezinho em trabalho de campo para a sua pesquisa de doutoramento na University of Yale e onde morou por três anos, adentrando a realidade da favela naquela época, sempre como estrangeiro, ou “o portuga”. O seu estudo mostra a existência de um direito próprio na favela. Um direito autônomo que chamou de “ordenamento social mínimo das relações comunitárias” ou “uma constelação de direitos que varia de composição, de caso para caso segundo uma multiplicidade de fatores”. Uma situação de interlegalidade, um direito híbrido que é refratário à normatividade do Estado. Uma “fragmentação dos poderes-saberes”: São muitas instâncias de resolução de conflito em Pasárgada. Para além da AM (Associação de Moradores), podem contar-se padres católicos, pastores protestantes, líderes comunitários, pais de santo da umbanda, cabos eleitorais, comerciantes, advogados, a polícia, a Fundação Leão XIII, etc. Esta proliferação não significa que todas as instâncias estejam disponíveis para todos os moradores em todas as situações. Pelo contrário, é grande a segmentação segundo o estrato social, a natureza de litígios, o local de residência, a filiação religiosa, a simpatia política. Mesmo assim é frequente que para um dado litígio os moradores tenham à sua disposição várias instâncias, podendo escolher entre elas. E também é possível recurso sequencial a várias instâncias, podendo escolher entre elas.
O interesse de seu trabalho de campo é conceber os mecanismos de prevenção e resolução de conflitos paralelamente à ordem jurídica oficial do Estado. Traz a preocupação de não compreender a favela como uma comunidade isolada, mas de conceber seus mecanismos próprios que se relacionam com o Estado, ainda que em regime de exclusão. O que nos interessa aqui é como isso que se exprime no direito da favela pode dizer de sua organização coletiva. Trago aqui as palavras de Freud, atual em todos os tempos:
A vida humana em comum se torna possível apenas quando há uma maioria que é mais forte que qualquer indivíduo e se conserva diante de qualquer indivíduo. Então o poder dessa comunidade se estabelece como “Direito”, em oposição ao poder do indivíduo, condenado como “força bruta”. Tal substituição do poder do indivíduo pelo da comunidade é o passo cultural decisivo. (FREUD, 1930, p. 56-57)
Mas estamos em dois mil e vinte e um e o Jacarezinho é outro. Os atores mudaram e é inevitável citar a ação do tráfico e a sua influência na organização comunitária hoje. Entrar no Jacarezinho não é sem o seu olhar e vigilância, o que para alguns de nós serviu de obstáculo imaginário, apenas. Aqui também trago algumas palavras do Boaventura, mas em um outro momento, quando retornou ao Jacarezinho em dois mil e dez para devolver o livro que escreveu à favela: Dantes, como não havia o problema do narcotráfico e havia eleições, as lideranças comunitárias eram muito mais fortes. Isso foi o que mais mudou. Pouca gente apercebeu-se disso, mas o lugar mais democrático no Brasil durante a ditadura eram as favelas, porque havia eleições. Havia discussão, havia debate. (COSTA, 2015)
Algumas palavras sobre o tráfico mostram-se necessárias. Se para nossa experiência no Jacarezinho o tráfico não ofereceu obstáculo, a não ser o obstáculo de nosso próprio medo e do preconceito que desse medo é a causa, em muitos casos o tráfico pode servir de ator importante nessa miscelânea jurídica que é a ordem na favela. Em experiência também compartilhada por nós em outras favelas, através do trabalho no CAPS Neusa Santos Souza², em muitos momentos o tráfico é um ator decisivo no trabalho com casos psicossocialmente graves e em muitos momentos nos pede ajuda. É, frequentemente, um ator que tem efeito de lei. O que sustentamos aqui é que não é possível relacionar univocamente o tráfico como vetor determinante da violência. Mais uma vez, não se trata de romantizar: em seus atos, costumam ser implacáveis no exercício da lei na favela. E também não se trata de homogeneizar o tráfico enquanto entidade metafísica: em cada espaço uma dinâmica se estabelece de forma mais ou menos específica. Mas se a figura do traficante, negro e armado, denota a imagem de uma “violência com requintes de crueldade” na favela, quando se trata da violência no asfalto a imagem é menos clara. Ou mais clara. A burguesia esconde bem a violência na privacidade de seus condomínios, violências estas que nós psicanalistas talvez estejamos mais acostumados a escutar no íntimo dos consultórios. E à violência do Estado, cabe dar o seu lugar central e discrepante quando comparada à violência do tráfico exercida aos moradores da favela. É essa que escutamos repetidamente no íntimo do Jacarezinho. O caso que trazemos a seguir nos dá notícias disto. ² Centro de Atenção Psicossocial Neusa Santos Souza, dispositivo clínico-territorial de atendimento à crises em saúde mental e atenção psicossocial, localizado na zona Oeste do Rio de Janeiro.
NOSSOS PRINCÍPIOS E FINS 1. O inconsciente não é erudito, elitista e individual, mas leigo, popular e coletivo O inconsciente, se bem lido em Freud, sobretudo with a little help from Lacan, é uma estrutura transindividual e coletiva. Não, é claro, no sentido em que coletivo se aproxima de grupal - conjunto de indivíduos – mas no sentido de coleção de traços, fragmentos, estilhaços, cacos, enfim, o que, na teoria moderna da linguagem, chama-se de significantes, elementos discretos, diacríticos, assemânticos. Digamos esses mesmos conceitos em língua corrente, bem no estilo de Freud e de Lacan, que sempre usam termos da língua comum, embora em sentido incomum – e para respeitar uma publicação ZINE, um papo que precisa ser reto, sem curva demais. Discretos quer dizer separados, distintos, um do outro, e até de si mesmos: sabe quando a gente diz uma palavra, e a gente quer dizer uma determinada coisa com essa palavra mas ao mesmo tempo percebe que ela também significa outra coisa? Já diacrítico quer dizer que cada um desses significantes se define justamente por sua diferença em relação a todos os outros: por que a letra b é b? Porque ela não é d, nem p, nem qualquer outra. E assemântico quer dizer que os significantes, em si mesmos, não significam nada, é preciso que eles se associem, se misturem na fala de um sujeito, para começarem a produzir sentido. O significante é material, não conceitual, é som, ou letra, mas não é significado. E, como somos materialistas e não espiritualistas ou filósofos metafísicos, o significante precede e prevalece sobre as significações que ele engendra, e que são, assim, sempre secundárias e ele primário. Pois bem. O inconsciente é assim, sem o que não haveria nenhuma razão para ser inconsciente. Freud descobriu que cada um de nós, os falantes (precisa estar na linguagem – os bichos não funcionam assim não) tem um espaço enorme na “cabeça” que não sabe que tem. Escrevemos “cabeça” entre aspas porque esse espaço não está “dentro da nossa cabeça”, não faz parte de nosso organismo, nem mesmo de nosso cérebro. Não é difícil entender isso, sobretudo para quem segue religião de matriz africana, como umbanda e candomblé. Essas pessoas tem muito mais condição de entender que algo importante em nosso “espírito” não esteja dentro de nosso crânio do que quem é formado no cientificismo positivista norteamericano, por exemplo. Imaginem que as entidades, os orixás, que povoam os centros e os terreiros de candomblé, possam ser comparadas ao nosso inconsciente, mas sem um sentido religioso, e sim como elementos de uma rede muito mais ampla do que nosso eu consciente, da vigília, do dia-a-dia, que vive e trabalha fora do transe.
Enfim, o inconsciente freudiano é transindividual, comporta elementos simbólicos, fragmentários, que derivam de muitas relações, de muitas gerações, ancestrais, mas que nos são transmitidos (sempre sem que nossa consciência saiba disso) como marcas e não como “pessoas” ou entidades inteiras. Freud afirmou que somos habitados por uma “entidade” que ele chamou de “isso” e que é um “precipitado de incontáveis eus”, ou seja, contém elementos do que foram muitas pessoas, eus, indivíduos, mas agora são como que fósseis “desencarnados”, elementares, fragmentários, que nos marcam sem que saibamos seu significado. Ora, dissemos tudo isso (que, convenhamos, dá prá entender, não é?) com o objetivo de lançar uma pergunta: como é que uma estrutura como o inconsciente, assim entendido, poderia ter alguma relação com os valores de uma determinada classe social, a classe média e média, alta, a elite econômica, eivada de ideais, valores e significações ideológicas, preconceitos, privilégios e interesses? Mas, do mesmo modo, o inconsciente não poderia identificar-se com valores de qualquer outra classe social, por exemplo, os pobres, os que sofrem muito e lutam para sobreviver numa sociedade comandada pelos que tem poder e dinheiro. Não há o inconsciente do rico ou do re-media-do (classe média), mas tampouco há o inconsciente do pobre. Pois o inconsciente não é “de ninguém”, no sentido de uma antiga canção política dos anos 60, quando se chamava “música de protesto”, chamada Terra de ninguém. O inconsciente é terra de ninguém, não tem proprietário. Do mesmo modo, não há o inconsciente do homem, da mulher, do transexual, do gay, do negro, do branco, do culto, do inculto. Em relação ao inconsciente, todos estão radicalmente em pé de igualdade, e isso impede, em todos os níveis (conceitual, clínico, ético, metodológico, ideológico, político, etc.). As valorações do chamado mundo privado, portanto, não lhe convirão, não lhe convém. Ora, o mundo privado, em nossa sociedade, coincide com o chamado mundo burguês, classe média e média alta, e assim todo ELITISMO em Psicanálise coincide com uma distorção metodológica em relação ao discurso analítico. É preciso desconstruir todo elitismo como impossível à luz e por força mesma do discurso psicanalítico. Valores a priori e qualidades atribuídas ao sujeito do inconsciente, que não admite qualidades em sua feição e filiação científicas. Então, um primeiro mote, muito antigo, era já o de fazer a demonstração desta afirmação fundamental: a práxis psicanalítica é perfeitamente realizável em qualquer ambiente, estrato ou segmento social, transcende e atravessa as classes sociais e suas configurações valorativas. O psicanalista pode e deve ocupar seu lugar, sustentar seu ato, operar a partir de seu desejo de psicanalista em um espaço social como é uma favela, por exemplo. A escolha do Jacarezinho tem determinantes e particularidades importantes, mas não a ponto de precisarem ser
expostas aqui, onde outras questões sobressaem como mais relevantes e de interesse dos aqui presentes. 1. O Jacarezinho é “ todo” lugar, mas não “qualquer um” A melhor resposta a esta pergunta - pelo menos a mais psicanalítica -, que dá fundamento a esta proposta, é: Porque Psicanálise em todo lugar em que puder haver psicanalista instaurando o dispositivo psicanalítico, inventado por Freud, para que sujeitos que vivem neste lugar possam, dirigindo-lhe uma palavra dita em nome próprio, dar às suas questões, sobretudo àquelas que os fazem sofrer, um novo encaminhamento, libertário. Respondendo assim, afastamo-nos de qualquer espécie de particularização operada a priori, do tipo: psicanálise para pessoas que vivem "em comunidades", ou "que sofrem a violência urbana e policial maciçamente", ou para "desfavorecidos sociais", ou ainda: "para jovens usuários de drogas". Não é isso que propomos. Não acreditamos em psicanálises diferenciadas segundo configurações sociais, econômicas, intelectuais, raciais, sexistas, etárias ou outras. Psicanálise é uma só, e para todos - não-todos, mas aqueles que, independente e indiferentemente quanto à sua condição social, de instrução, orientação sexual, raça, cor ou idade enderecem o desejo de falar a alguém em posição de analista a partir de algum ponto de sofrimento psíquico. Então poder-se-ia perguntar: Se a práxis psicanalítica é a mesma e indiferente a essas configurações sociais e urbanas, por que justamente o Jacarezinho, ou uma comunidade do tipo "favela"? E neste ponto temos que dizer uma palavra que particularize esta escolha, mas que não particulariza a psicanálise que vamos praticar ali. A Psicanálise é a mesma no Leblon, em Madureira, em Paris, Manhattan, Shangai ou no Jacarezinho. Mas, em nossa cidade, ela já é demasiado praticada nos bairros de classe média e elite, e queremos sim levá-la onde ela nunca chega, e onde as pessoas encontrariam as mais intransponíveis dificuldades para chegar até um psicanalista. E queremos também fazer a verificação em ato, concretamente, desta tese da unicidade da psicanálise para todo sujeito, situando as únicas variáveis reais na posição subjetiva de cada um, e não em sua condição sócio-econômica e cultural: não basta afirmar esta tese, é preciso prová-la, ou, em uma linguagem mais elaborada, torná-la tese realizada. A escolha do bairro do Jacarezinho tem, por outro lado, outras razões menos importantes em termos ético-conceituais, mas não menos significativas em termos
subjetivos e no plano do desejo, portanto absolutamente importantes para psicanalistas. O Jacarezinho é um lugar como qualquer outro, e, para seguir a lógica rigorosa de Leila Diniz, em episódio de política sexual relatado por Ruy Castro, diremos que, por isso, o Jacarezinho é todo – e qualquer – lugar, mas não é qualquer um, no sentido em que, nessa expressão, o qualquer assume valor depreciativo, e portanto, alguma valoração, e o que queremos afirmar com o todo e qualquer é justamente o despojamento de qualidades, próprias ao mundo dito privado (e portanto burguês e elitista), a indiferença da qualidade à luz do inconsciente. O que nos relata Ruy Castro, no verbete dedicado a Leila Diniz em seu livro Ela é carioca, uma enciclopédia de Ipanema, é o episódio em que, tendo terminado uma de suas apresentações do musical de revista Tem banana na banda, que estreou no Cine-Teatro Poeira em janeiro de 1970, Leila Diniz recebeu em seu camarim um fazendeiro das Minas Gerais, sem qualquer noção das coisas (ou com uma noção machista, misógina, preconceituosa, numa palavra, bolsonarista avant la lettre das coisas), que a convidou para um “programa sexual”. Sem qualquer aborrecimento inicial, Leila disse-lhe educadamente (ela era de fato muito educada e tolerante com as fraquezas do mundo) que não se tratava disso, pediu que ele fosse embora, mas ele, inconformado e grosseiro, atirou um maço de notas de dinheiro sobre a penteadeira do camarim e gritou: “Está se fazendo de difícil? Você dá prá todo mundo!”. Leila, agora enraivecida, o colocou para fora a pontapés e palavrões e nos deixou esta boa lição de lógica, aos berros: “Eu dou pra todo mundo mas não dou prá qualquer um!”. De fato, todo mundo não é a mesma coisa que qualquer um, ainda que a particularidade no sentido de Aristóteles seja preservada no termo qualquer, desde que se lhe retire toda e qualquer valoração. O Jacarezinho, à luz da psicanálise e do caráter desqualificador, sem valoração, do inconsciente, é como os mil parceiros de Leila Diniz: segue este critério de ser como todo e qualquer lugar do mundo onde se pode exercer uma psicanálise rigorosa e não tendenciosa, como se exprimiu Freud acerca d que seria uma Psychotherapie für der Volk (psicoterapia para o povo), desde que um elemento peculiar – a transferência, correlato da fagulha do objeto que despertava o tesão de Leila Diniz, numa ética sem inflexão alguma – entre em jogo, singularizando o todo mundo no alguns, mas estes nunca poderão ser designados a priori, por classe, etnia, gênero, nível de instrução, cultura ou religião, mas sempre a posteriori ao encontro com um psicanalista. Montamos um consultório no coração da favela do Jacarezinho, em duas salas, uma área externa e uma copa. Temos duas poltronas, divã, estante e mesa no consultório, tudo muito bem montado e decorado, como em qualquer bairro de qualquer cidade do mundo.
Estávamos recebendo pessoas, cada um de nós por seu lado, uns mais, outros menos, de acordo com suas disponibilidades, fazendo algumas articulações de território para que nosso trabalho pudesse ser conhecido e criar laços e raízes na comunidade, e veio a pandemia. Sempre tivemos o maior cuidado de diferenciar nossa proposta de trabalho de todo tipo de projeto que se caracterize por particularizar a população a ser atendida, e portanto também e necessariamente os modos de intervenção, como um a priori, uma pré-concepção sobre o que seja a população da favela, o sujeito da favela, como se essa população constituísse um tipo de pessoa. Trabalhamos assim para que todo aquele que, experimentando o desejo de falar com um psicanalista a partir de questões pessoais, pode, a partir do dia 13 de novembro de 2017, fazer isso, dirigindo-se à nossa PJ - na Rua Amaro Rangel 31, salas 202 e 203, onde, por toda a semana, haverá psicanalista a serem encontrados. Com as matanças nas favelas, em reuniões online com coletivos e movimentos de colegas nossos que trabalham com a questão da violência de estado contra essa população, já vínhamos pensando em propor uma escuta endereçada, com o cuidado de não pré-moldar essa escuta com o que ainda não fora dito. Mas, afinal, se tantas mães e familiares que perdem seus filhos, maridos ou parentes na matança contínua pelo estado, algo à altura deste real precisaria ser feito. Seria uma imposição do real dessa violência e não o imaginário da ideologia branca e burguesa de assistência ao povo favelado que estaria norteando essa proposta. No momento em que estávamos formulando um modo de atendimento a pessoas vítimas da violência policial, aconteceu a chacina de 6 de maio de 2021, numa ironia infeliz, data do aniversário de Freud. Fomos ao ato da comunidade no dia 7, lá fizemos contatos e decidimos voltar a trabalhar imediatamente no consultório, presencialmente, o que tinha sido interrompido pela pandemia, mas agora exigia nosso retorno, já vacinados, inclusive.
A CHACINA Na manhã do dia seis de maio de dois mil e vinte e um o Jacarezinho sofreu a sua maior chacina, a segunda maior chacina do Rio de Janeiro e uma das maiores que o Brasil já viveu, em menos de um mês após a audiência pública conduzida pelo Supremo Tribunal Federal, com a participação de entidades de direitos civis e envolvidos na formulação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635 (ADPF 635)³ , onde denunciavam as operações policiais truculentas durante a pandemia. Vinte e oito assassinatos perpetrados pela operação comandada pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente foram justificados com o argumento de excepcionalidade da operação: a cooptação de jovens para o tráfico no Jacarezinho. A mesma operação que executou um homem no quarto de uma criança de nove anos, presente na cena. No dia sete de maio, em um ato de protestos que adentrou pela favela do Jacarezinho, onde pudemos testemunhar o início de um trabalho de luto convertido em falas de luta, à luz das velas que foram acesas para velar seus entes queridos brutalmente chacinados, fomos acionados por coletivos e atores importantes que pertencem ao Jacarezinho, alguns destes citados nesta dissertação. E convocados pelo Luciano Elia, retomamos ao trabalho presencial interrompido em função da pandemia do COVID-19.
³ Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 635 foi ajuizada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) com a pretensão de sanar graves lesões constitucionais decorrentes da atuação da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro marcada por sua excessiva e crescente letalidade.
O ato consistiu em uma concentração em frente à Cidade da Polícia, situada na Avenida Don Helder Câmara a 300 metros da entrada da favela, que seguiu em passeata por esta Avenida e entrou na Favela, concentrando-se no Largo do Estuba.
Participamos de algumas reuniões com coletivos empenhados no apoio psicológico a essas pessoas que perderam filhos, maridos, parentes na chacina. Mas vimos que algumas diretrizes não eram compartilhadas, como por exemplo a preocupação com o fato de sermos, nós mesmos, agentes da violência institucional, recomendação de atendimentos em grupo, na suposição de que em atendimentos ditos individuais acentuariam o sentimento de solidão dos atendidos e reforçaria nosso poder de terapeutas, etc. Não consideramos que o atributo individual seja apropriado para o que fazemos, quando trabalhamos na forma de um analista que recebe um único sujeito na sala, e aqui retomamos alguns princípios desenvolvidos na seção de Fundamentos desta proposta, de modo a demarcar as coordenadas de nosso trabalho particularizandoas em relação a outros modos de fazer clínica nos territórios periféricos da sociedade: a) o sujeito do inconsciente é sempre transindividual; b) este termo – individual – é demasiado comprometido com valorações
do mundo privado, incompatíveis com a práxis psicanalítica tal como a entendemos e praticamos; c) o registro do íntimo deve ser rigorosamente distinto do registro do privado, e se revela afinado com o registro do público. Esta é uma formulação de Diana Rabinovich, psicanalista lacaniana argentina que morreu recentemente de COVID, e que nos transmitiu isso no memorável chamado CONLAPSA, que realizamos na UERJ em 2011.
Luciano (de camiseta vermelha e máscara anti-covid branca) e André, logo atrás, de máscara preta. Nesta foto, assistem a um impactante ato, com velas e depoimentos indignados e angustiados, de mulheres que perderam companheiros, filhos e parentes na chacina, em vídeo para o qual remetemos o leitor e link no rodapé. Fizemos então contatos com movimentos mais enraizados na comunidade da Favela do Jacarezinho, e que nela realizam ações importantíssimas, que representam o que a favela já é, no sentido da imanência, ou seja, a posição éticometodológica (e também epistemolológica) que consiste em tomar em conta o real
como o que ele é, com os seus elementos constitutivos todos “ali junto”, sem abstrações e sem a introdução de elementos exteriores na leitura do que se apresenta, sobretudo sem juízos de valor ou portadores da moral A imanência é uma postura discursiva, muito cara a Espinosa, mas também a Marx. E Gilberto Gil, em uma live que ocorreu no momento de lançamento do Portal Favelas, falou, à sua maneira, sem conceitos nem teorias, da imanência: “A favela não tem que ser outra coisa diferentes do que ela é, ali, no chão da favela, já caem as cotas da sua chuva, ela já é o que ela é”. Entramos no circuito de encaminhamentos, de familiares e pessoas próximas e impactadas pelo horror da chacina, não sem o trabalho que já sustentávamos naquele espaço e as relações de confiança, porque não transferenciais, que cada um de nós enquanto coletivo pudemos forjar.
FRAGMENTOS CLÍNICOS PÓS-CHACINA No momento pós-chacina, nossa clínica sofreu uma inflexão, na medida em que priorizamos os encaminhamentos de pessoas que perderam parentes de forma brutal. que confirmam esta que é a nossa aposta desde o começo: a de tomar cada sujeito a partir de sua posição subjetiva própria, na trama de significantes que os representam, rejeitando a ideia de uma psicanálise própria para favelados ou de qualquer preconceito que diga, a priori, o que devemos escutar do que se diz. Trazemos três casos atendidos logo após o retorno ao trabalho presencial, determinado pela urgência em receber pessoas que perderam filhos, companheiros e outros parentes na chacina de 6 de maio de 2021. Os dois primeiros foram atendidos por André, o terceiro e último por Luciano. 1. O primeiro caso é o do José, que foi preso assim que completou sua maioridade legal por envolvimento ao tráfico, onde esteve envolvido desde a morte de seus pais ainda em sua adolescência. Na cadeia permaneceu por 4 anos até o ano presente, saindo em liberdade condicional. No momento faz uso de uma tornozeleira eletrônica que chama de "pulseira" até que a pena seja cumprida. José chegou ao nosso consultório por meio de um encaminhamento do coletivo LabJaca. No início parecia desconfiado, com poucas palavras e então começa a me justificar o que estava fazendo ali: as pessoas estão lhe chamando de maluco desde que saiu da cadeia, porque, segundo ele, se tornou uma pessoa mais calada. Questionado sobre isso, José me diz que na cadeia ele aprendeu a falar menos e observar mais, porque quem fala muito na cadeia arruma confusão. E lá passou a pensar muito na sua vida. Aos poucos José traz a questão que de fato o trouxe para a análise, uma questão sobre o desejo de retornar ao tráfico ou poder procurar um outro modo de trabalhar e sobreviver. Pensa em retornar para o tráfico depois de retirar a “pulseira” por conta de suas dificuldades financeiras, mas diz que quer mesmo é arrumar um emprego. Sabe que ninguém quer contratar alguém com passagem pela polícia. Diz ainda que não é maluco e que está gostando muito de poder falar naquele espaço, então digo que neste lugar ele pode falar sem medo das confusões. Pede então pela minha ajuda, para que possa entender o que quer para a sua vida. Trouxe-me também a sua revolta depois da chacina e que perdeu vários amigos, todos muito novos, podendo citar um-a-um. E que isso mexeu muito com a sua cabeça e que também é motivo para repensar o seu retorno para o tráfico.
Esse recorte me colocou diante do meu próprio preconceito: Se, nas falas do Joel Costa, advogado do Jacarezinho, “a vida privada é só no asfalto”, podemos verificar que a escuta e o lugar para o íntimo podem se fazer presentes, mesmo quando se trata de alguém que tem relações com o tráfico. É possível a confiança e a transferência acontece. É possível dizer sem medo da confusão. 2. O segundo caso é o da Priscila, também encaminhada para nós pelo coletivo LabJaca. Priscila perdeu um irmão na chacina, executado sumariamente pela polícia mesmo após se render. Ela começa a me contar detalhes do que viveu naquele dia e que estava em contato com o irmão durante a operação. Pede para que o irmão permaneça na casa onde estava se abrigando do massacre, pensando que ali ele poderia estar seguro. Mas, retomando a fala do Joel, “a vida privada é só no asfalto”. Seu irmão parou de responde-la pelo Whatsapp, e naquele momento ela já tinha certeza de que ele estava morto. Diz que seu enterro teve que ser com o caixão fechado, porque o corpo não foi refrigerado e "inchou", ficando irreconhecível, e que esta foi a imagem que ficou de seu irmão para ela. Fala sua culpa por não estar presente na favela no momento da chacina, fala de sua culpa ao dizer que talvez seu ente querido estivesse vivo se não fosse o seu pedido protetor de permanecer naquela casa, na esperança de que estivesse seguro naquela propriedade. Tomou uma cartela de Diazepam para morrer pouco tempo depois do ocorrido. No primeiro atendimento, é a cena do horror que ela constrói, algo que ainda não havia feito para ninguém. Mas ela retorna mais vezes, e pode aos poucos construir para ficar com uma outra imagem desse irmão, dos momentos juntos e da sua história. Conta que a sua família veio morar no Jacarezinho porque antes moravam em um território dominado pela milícia e, por isso, seu irmão estava ameaçado por fazer uso de drogas. No Jacarezinho, acabou entrando para o tráfico. Com o passar do tempo me diz que sentia-se bem mas que era só pisar no consultório para toda a cena retornar em sua cabeça. Mas também diz que o dia de ir para a sua análise era o dia em que podia encarar o Jacarezinho e estar na casa de seus pais, também muito sofridos com o ocorrido. A sua análise permitia acessar aquele espaço, territorial, familiar e afetivo.
3. O primeiro atendimento que eu fiz após este retorno revelou algo de muito importante de cara: uma mulher que perdeu seu filho na chacina chega com um sofrimento suplementar, preliminar a todo sofrimento possível pela perda do filho: Com muita dificuldade e um certo sentimento de inadequação e vergonha, ela me diz que tem ressentimentos e mágoas imensas com ele, e isso a impede de chorar, de sofrer por saudade. Peço que fale dessas mágoas, e ela puxa o longo fio emaranhado de mágoas, que levam do filho morto à sua mãe, e desta à sua bisavó. Passa algumas sessões – ela vem uma vez por semana – desfiando essas mágoas, até que em determinada vez ela chega um pouco diferente, parecendo mais leve, e diz que passou a semana chorando de saudade do filho, que abraça o neto e sente como se fosse o corpo do filho morto, pai dele. Diz que tem a impressão de ter desobstruído seu sentimento e agora sofre de saudade. Observando que tínhamos pintado recentemente a sala, na saída desta sessão ela diz: “gosto dessa cor de parede, é a mesma que pintei lá em casa”, no claro sinal de que me admitiu em sua intimidade, em sua casa, chegou o tempo de uma transferência analítica. A partir daí me encontra na rua, no meio da favela, quando penso que ela não vem por estar atrasada, e me diz: “eu? Não perco minha sessão não”. Fico com esse fragmento, que me parece muito expressivo e significativo, e apenas acrescento que o psicanalista tem seus modos de tratar do que pode ser violento em sua posição social e seu poder: ele se despe a tal ponto de suas roupagens identificatórias, pessoais e sociais, que, no caso do sujeito lhe dirigir alguma questão – resistência, submissão ou hostilidade – referenciadas à sua branquitude, sua posição burguesa, de “doutor” ou “do asfalto”, que são traços reais inegáveis, ainda que não estejam na proa de suas operações, ele terá que suportar isso e trabalhar com esses elementos, que não deixam de ser transferenciais por serem reconhecíveis na realidade. A realidade, inclusive a realidade social, é também interno-externa.
Esses são relatos que dão notícias da transferência e do início de um trabalho analítico. Relatos que não circunscrevem o nosso trabalho em uma psicanálise para favelados, ou uma psicanálise de chacina. Em alguns casos foi possível verificar que sim, uma escuta foi necessária diante de tais urgências subjetivas provocadas pelo horror da chacina, mas que dela não se causou, talvez por hora, o movimento do sujeito em direção a uma análise. Para concluir, é preciso aqui dizer que para nós, analistas que escutamos no mais íntimo os familiares e as pessoas próximas dos assassinados pelo Estado, muitos presentes na favela no momento mesmo da operação, não foi preciso prova alguma para sabermos que o que ocorreu foi uma chacina: execuções sumárias de pessoas que pediam para não morrer. Mas o resultado dos laudos divulgados pelos jornais, que identificaram tiros a curta distância e pelas costas, contrariando a versão da Polícia Civil de que todos foram mortos em confronto com os agentes (SOARES, 2021), produzem efeitos: na fala da Priscila, “alívio” e “revolta”. Alívio em poder provar o que sustenta perante a sociedade, de que seu irmão foi sim executado. E revolta a partir do que já sabia, mas que o efeito da prova faz retornar como verdade: seu irmão foi executado sumariamente pelo Estado. No momento de elaboração deste JacareZine, a equipe do Psicanálise no Jacarezinho é constituída pelos seguintes integrantes, em ordem alfabética: André Godinho Morse Angelica França Antonio Barkoski Sampaio Elizabeth Galdino Leander dos Santos Vianna Luciano Elia
O presente “zine” (texto e imagens) foi elaborado por André Morse e Luciano Elia.