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Fernando Pessoa, ou a Metafísica das sensações josé gil
Título original: Fernando Pessoa, ou la Métaphysique des sensations ISBN 978-65-86941-11-1 © Éditions de la Différence © n-1 edições, 2018 Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada. coordenação editorial Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes direção de arte Ricardo Muniz Fernandes assistente editorial Inês Mendonça tradução Miguel Serras Pereira e Ana Luisa Faria preparação Diogo Henriques revisão Flavio Taam projeto gráfico Érico Peretta
A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. 1a edição | São Paulo | maio, 2020
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Fernando Pessoa, ou a Metafísica
das sensações José Gil
tradução Miguel Serras Pereira e Ana Luisa Faria 3
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À memória de François Châtelet
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Arre, acabemos com as distinções, As sutilezas, o interstício, o entre, A metafísica das sensações álvaro de campos
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07 Abreviaturas utilizadas das obras de Fernando Pessoa
12 prefácio 17 I o laboratório poético 37 II o analisador de sensações 1. As “sensações do abstrato” 2. O interior e o exterior: abrir e desfiar uma sensação 3. Transformação do espaço (e do tempo): o engendrar do infinito 4. Espaço abstrato e corpo sensível: as sensações e os órgãos 5. Ritmos e intensidade: a velocidade abstrata
95 III a metafísica das sensações 1. A “emoção metafísica” 2. A chave do mistério 3. Caeiro, o metafísico sem metafísica, e o seu discípulo Reis
131 IV devir-outro e “devir-si próprio” 1. Nas origens da heteronímia: o trabalho do sonho 2. 1 = 2: o devir-“si próprio” 3. A expressão e os fluxos. singularidades e multiplicidades 4. No limiar da heteronímia: o devir-outro
183 V poesia e heteronímia 1. A constelação heteronímica 2. O que é um heterônimo? 3. A arte da insinceridade 4. A vida
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abreviaturas utilizadas das obras de fernando pessoa opp Obra poética e em prosa (introdução, organização e notas de António Quadros e Dalila Pereira da Costa), tomos i, ii e iii. Porto: Lello & Irmãos, 1986. ld Livro do desassossego (organização de Jacinto do Prado Coelho), tomos i e ii. Lisboa: Ática, 1982. pi Páginas íntimas e de autointerpretação (textos estabelecidos por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho). Lisboa: Ática, 1966.
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prefácio “A absurda excitabilidade de seu sistema, que o faz criar a partir de cada experiência e introjeta à força o elemento dramático nos mínimos acasos da vida, não permite que se possa de algum modo contar com ele; não é mais uma pessoa, no máximo um rendez-vous de pessoas, dentre as quais ora uma ora outra aparecem com segurança descarada. Justamente por isso é um grande comediante: todos os pobres seres sem vontade, que os médicos estudam de perto, surpreendem pelo virtuosismo de sua mímica, pela capacidade de transfigurar, de entrar praticamente em qualquer caráter que desejem.” Alguém poderia tomar as palavras acima como uma descrição particularmente aguda do poeta que inventou os heterônimos. No entanto, elas fazem parte de um fragmento póstumo de Nietzsche sobre o artista moderno, escrito à beira de sucumbir, em 1888 – ano que vem a ser, justamente, o do nascimento de Fernando Pessoa. Naquele transe crucial entre o comediante e o homem dionisíaco, Nietzsche encetaria, segundo Roberto Calasso, o “monólogo fatal” de uma metamorfose sem volta cuja borda é o abismo e o silêncio. A passagem insere-se numa caracterização polivalente da décadence como o “lugar arrebatador” em que se ocultam “os tesouros da modernidade” e a “embriaguez do niilismo”, a ser vivida até a sua superação por exaustão. Entraria aí o dilema extremo do pensamento que mata o sujeito que o pensa, desvelando-o como simulação, se pretende o todo, ou mata a vida, por reduzi-la a representação, se renuncia ao todo.1 Não deixa de ser impressionante a afinidade entre o diagnóstico nietzscheano do artista moderno e a arquitetura da poesia, do pensamento e da personalidade em Pessoa. Não bastasse a cifra de seu próprio nome (persona, máscara e ninguém), Pessoa faz do próprio rendez-vous de pessoas (heterônimos que se alternam na “segurança descarada” com que comparecem, não obstante a incerteza intersticial em que se movem) o cerne do seu “drama em gente” e de sua constelação des/personalizante. Se a descrição nietzscheana caracterizaria o artista moderno como figura sintomática da decadência e do niilismo, 1 Ver Roberto Calasso, “Monólogo fatal”, em Os 49 degraus, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 11-50. O citado texto de Nietzsche encontra-se na página 44.
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nenhum artista moderno terá encarnado seus traços característicos de uma maneira tão cabal e, ao mesmo tempo, dado a eles o caráter de uma invenção e de uma resposta à decadência e ao niilismo, nascida do próprio decadentismo, como o fez Pessoa. 2 Nele, a histeria e a neurastenia, aventadas a certa altura como causas psiquiátricas da heteronímia (“a absurda excitabilidade de seu sistema” levando-o a “entrar praticamente em qualquer caráter que deseje”, se usarmos ainda as palavras de Nietzsche), deixam de se apresentar como sintomas individuais para remeterem ao próprio sentido enigmático da cultura. Mais que isso, o sintoma é elevado à condição de uma fulgurante formulação poética e pensante que transforma o problema em solução artística originalíssima. Em Fernando Pessoa, ou a Metafísica das sensações, José Gil vai ao núcleo dessa questão, examinando com fenomenal argúcia a prática da heteronímia como ficção instalada no cerne do sujeito poético. Para tanto, leva a sério, e às suas devidas consequências, a “doutrina das sensações” pessoana, o sensacionismo. Segundo essa teoria, nada é para nós – seja a realidade externa ou interna, percepções, sentimentos, pensamentos – senão sensações. A obra de Fernando Pessoa seria a extensão proliferante desse fundamento: o poeta se transformará ele próprio, e sua poesia, num laboratório de sensações, num campo de experiências em que se desdobrará em experimentador e experimentado, em um provocador observador de sensações que toma como programa de vida e obra o “sentir tudo de todas as maneiras”. As sensações, em seu primeiro jato, serão já objeto de uma consciência delas, e a consciência das sensações será objeto, por sua vez, de uma vertiginosa consciência da consciência. É nessa cadeia que se desenha o processo artístico e a projeção de seu “plano de consistência”. Diz José Gil que “se o objetivo da poesia é suscitar, com palavras e ritmos, sensações que exprimem a vida bem melhor do que a vida exprime a si própria, o poeta tenderá a transformar-se em máquina de sentir literariamente”, fazendo com que suas sensações, já analisadas e trabalhadas ao nascer, convertam-se num artifício ficcional que se torna conatural à sua maneira de sentir. Nas palavras de Pessoa, “qualquer sentimento natural, que eu tenho, desde logo, desde que nasce, se me transforma num sentimento da imaginação”. 2 As vicissitudes desse gesto fundamental em Pessoa são acompanhadas por dentro no belo livro de Haquira Osakabe, Fernando Pessoa – Resposta à decadência, São Paulo, Iluminuras, 2013.
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Se me transforma: a forma oblíqua, tão pessoana, indica que o próprio sentimento é vivido como o sentimento de um outro, e esse outro é um eu. “Ele (a singularidade Pessoa) foi levado a tomar como objeto esse sujeito que tomava como objeto as suas próprias sensações”. Por isso mesmo, diz ele, “me converti na ficção de mim mesmo”, alguém capaz, segundo José Gil, de transformar radicalmente a própria sensibilidade “de modo a poder sentir tudo artisticamente e de modo a que todo o sentir seja imediatamente artístico”. O ser-estar, o pensar e o sentir, tornam-se o laboratório poético em que objeto e sujeito estão reciprocamente obliquados, e viver é estar obliquado no campo de uma espécie de ficção do interlúdio geradora de ficções.3 Assim, no Livro do Desassossego, do heterônimo Bernardo Soares, que José Gil toma como matricial de todo esse processo, um alguém atenta para as mínimas sensações intersticiais que lhe sobrevêm, sensações estas tomadas como ondas transportadoras de outras sensações que se lhes associam, sensações transformadas em arte, que são também sensações de um outro, múltiplo gerador de outros. “Escrever poemas”, diz José Gil, “é escrever segundo a lógica da heteronímia, é iniciar um processo de devir-outro que deverá necessariamente levar à produção poética dos heterônimos”. Sentir-se outro, ser outro desde o primeiro ato poético da sensação, implica fazer-se (poeticamente) outros. E só existirão os heterônimos, esses outros, porque cada um deles já é outro para si mesmo, e participando todos de um vertiginoso jogo caleidoscópico. Assim, Alberto Caeiro, tomado como o mestre dos demais, “transforma-se em cada uma das partes desse conjunto sem totalidade que é a Natureza”. Desprezando qualquer invocação metafísica do todo, e recusando-se a confundir as coisas, reconhecidas em sua simples presença, é como se dissesse: sou cada coisa a cada vez que a olho. Em outras palavras: isto é isto (embora a identidade de cada coisa só se segure no fato de ela não ser todas as outras). Ricardo Reis, assumido discípulo de Caeiro, mas incapaz de sustentar a mesma transparente (ou aparente) afirmatividade, “é um outro em cada presente que surge, para depois se desmoronar no fluxo do tempo”. É como se dissesse: sou cada coisa a cada momento que vivo, mas tudo luta contra a morte e o tempo, 3 A ideia de obliquação como constitutiva da ficção é desenvolvida por Alexandre Nodari em “A literatura como antropologia especulativa”, Revista da ANPOLL, n. 38, pp. 75-85. Disponível em: https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/viewFile/836/791. Acesso em 07/10/2018.
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“desdobrando e fixando cada um dos múltiplos instantes presentes”. Não é, no entanto, a multiplicidade dos instantes que nele prevalece, mas a “unidade da singularidade”, isto é, a possibilidade de cada instante reverberar tudo. Em outras palavras: tudo, nisto (neste agora). Bernardo Soares experimenta as menores sensações de um cotidiano sem relevo, e as eleva, de camada em camada reverberantes, a instantâneos vislumbres de algo que se poderia dizer: nisto (neste quase nada), tudo. E Álvaro de Campos, que assoma como campeão das multiplicidades, contém em si, “prontos a desencadearem-se, os ritmos e os estilos de Reis, de Pessoa ‘ele mesmo’, de Caeiro e até de Bernardo Soares”. Nele, sob todos os aspectos, do detalhe formal à convulsão existencial, trata-se de uma espécie de tudo vezes tudo. Um gesto afirmativo final coroa a cerrada análise interpretativa que José Gil sustenta durante todo o livro, ao rechaçar aquelas exegeses que, incapazes de “aceitar que a lógica das multiplicidades seja uma lógica do pleno (porque sempre pressupunham um eu por trás dela)”, fizeram de Pessoa “o poeta do não ser, do nada, do ‘não amor’, da ausência”, um “fantasma” “habitado por um vazio central ‘ontológico’”. Evoca, em vez disso, a evidência do extraordinário “poder de vida” que emana dessa obra, das “experiências extraordinárias” que a habitam, das inumeráveis existências que nela se concentram, das “regiões incríveis da alma” em que ela mergulha, da festa da inteligência com que ela cria dispositivos “de plenitude e de vazio”, “de amor e de desertificação”, de ternura e de crueza, da atividade sem trégua e do trabalho incessante que atestam a sua “capacidade de sentir, de pensar, de assimilar a vida para a preservar, aumentar e a recriar”. É a afirmação contida nesse gesto final que preside a longa, minuciosa e fascinante aventura percorrida pelo livro que ora se inicia. josé miguel wisnik
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
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Gil, José
Fernando Pessoa, ou a metafísica das sensações / José Gil ; traduzido por Miguel Serras Pereira, Ana Luisa Faria. - n-1 edições, 2020. 240 p. ; 16cm x 23cm.
1. Literatura portuguesa. 2. Fernando Pessoa. I. Pereira, Miguel Serras. II. Faria, Ana Luisa. III. Título.
Tradução de: Fernando Pessoa, ou La metaphysique des sensations Inclui índice. ISBN: 978-65-86941-11-1
2020-1341
CDD 869 CDU 821.134.3
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índice para catálogo sistemático: 1. Literatura portuguesa 869 2. Literatura portuguesa 821.134.3
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O livro como imagem do mundo é de toda maneira uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira mais simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Gilles Deleuze e Félix Guattari
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