O GOVERNO DO HOMEM ENDIVIDADO

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O Governo do Homem Endividado

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O Governo do Homem Endividado Maurizio Lazzarato Maurizio Lazzarato © 2014 n-1 edições © 2017 isbn 978-85-66943-45-0 Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada. coordenação editorial Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes tradução para o português Daniel P. P. da Costa preparação Ronald Polito revisão de prova Fernanda Perniciotti projeto gráfico Érico Peretta A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.

Impresso em São Paulo | Outubro, 2017 n-1edicoes.org 2


O Governo do Homem Endividado Maurizio Lazzarato

tradução daniel p. p. da costa 3


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Léxico introdutório

1 27 aptura

capítulo 1 Renda, lucro e imposto — três aparelhos de captura

2 59 dívida

capítulo 2 A universidade americana — modelo da sociedade da dívida

capítulo

capítulo

3 89 liberal existiu?

capítulo 3 Crítica da governamentalidade I: a governamentalidade liberal alguma vez existiu?

4 125 s fluxos

capítulo 4 Crítica da governamentalidade II: o capital e o capitalismo dos fluxos

capítulo

capítulo

5 167 que e como?

capítulo 5 Crítica da governamentalidade III: quem governa quem, o que e como?

6 201 ontem e hoje

capítulo 6 Relendo Lênin: o capital financeiro ontem e hoje

capítulo

capítulo

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Conclusões para um começo: partir da recusa do trabalho


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Léxico introdutório

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AUSTERIDADE: “A fortuna dos 500 mais ricos da França

cresceu 25% em um ano. Sua riqueza quadruplicou em uma década e representa 16% do produto interno bruto do país. Ela também equivale a 10% do patrimônio financeiro dos franceses, quer dizer, um décimo da riqueza está nas mãos de um centésimo milionésimo da população” (Le Monde, 11/7/2013). Enquanto as mídias, os especialistas e os políticos reiteram encantamentos exaltando o equilíbrio orçamentário, realiza-se uma segunda expropriação da riqueza social, depois daquela praticada a partir dos anos 1980 pela finança. A especificidade da crise da dívida reside no fato de que suas causas são elevadas ao estatuto de remédio. Esse círculo vicioso não é o sintoma da incompetência das nossas elites oligárquicas, mas do seu cinismo de classe. Elas perseguem um objetivo político preciso: destruir as resistências residuais (salários, rendimentos, serviços) à lógica neoliberal. DÍVIDA PÚBLICA: com a austeridade, as dívidas públicas

atingiram um nível recorde em todos os países que as praticam, o que significa que as rendas dos credores também atingiram níveis recordes. IMPOSTOS: a arma principal do governo do homem endivi-

dado é o imposto. Ele não é um instrumento de redistribuição que viria depois da produção. Como a moeda, o imposto não tem uma origem mercantil, mas diretamente política. Quando, assim como nas crises da dívida, a moeda não circula mais como instrumento de pagamento, nem como capital, e quando o mercado não garante mais suas funções de avaliação, de medida e de alocação de recursos, então o imposto intervém como arma de governamentalidade política. Ele garante a continuidade e a reprodução do lucro 9


e da renda bloqueadas pela crise e ele exerce um controle econômico e disciplinar sobre a população. O imposto é a medida da eficácia das políticas de austeridade sobre o homem endividado. CRESCIMENTO: os Estados Unidos estão hoje em ponto

morto, como se fala a respeito de um carro. O motor gira, mas não avança. Ele gira apenas porque o banco central compra todo mês 85 bilhões em títulos do Tesouro e em obrigações imobiliárias e garante, desde 2008, um custo zero do dinheiro. Os Estados Unidos não estão em recessão apenas porque eles estão submetidos a uma perfusão monetária. Eles são incapazes de tirar o resto do mundo da crise que eles mesmos provocaram. A enorme quantidade de dinheiro injetada por mês pelo Fed apenas aumenta ligeiramente o volume de emprego que, aliás, em sua maior parte é constituído por serviços de baixíssimo salário e por empregos part time. Eles reproduzem as causas da crise e isso não apenas porque eles aprofundam as diferenças de rendimentos na população, mas, também porque eles continuam a financiar e a reforçar a finança. Se a política monetária fracassa em relançar a economia e o emprego, arriscando-se a alimentar outra bolha financeira, ela favorece o boom econômico de um único e mesmo setor — a finança. A enorme quantidade de dinheiro disponível para financiar a economia passa em primeiro lugar pelos bancos que, nesse processo, enriquecem. Apesar do crescimento anêmico dos outros setores da economia, os mercados atingiram um nível recorde. Todo mundo espera o crescimento, mas é algo completamente distinto o que se perfila no horizonte. O primado da renda, as desigualdades abissais entre os salários e seus administradores, as diferenças monstruosas de patrimônio 10


entre os mais ricos e os mais pobres (na França, da ordem de 900 para 1), as classes sociais congeladas na sua reprodução e o bloqueio de uma mobilidade social já frágil (em particular nos Estados Unidos, onde o sonho americano não passa de um sonho) fazem pensar em uma variante do Antigo Regime, mais do que no capitalismo. CRISE: quando nós falamos, aqui, de crise, nós entendemos

com isso a crise iniciada em 2007 a partir do colapso do mercado imobiliário americano. Na realidade, trata-se de uma definição restritiva e limitada, pois a crise foi iniciada em 1973. A crise é permanente, mudando apenas de intensidade e de nome. A governamentalidade liberal se exerce passando da crise econômica para a crise climática, para a crise demográfica, para a crise energética, para a crise alimentar etc. Mudando de nome, troca-se apenas de medo. A crise e o medo constituem o horizonte insuperável da governamentalidade capitalista neoliberal. Nós não sairemos da crise (na melhor das hipóteses, nós mudaremos de intensidade) simplesmente porque ela é a modalidade de governo do capitalismo contemporâneo. CAPITALISMO DE ESTADO: “o capitalismo jamais foi libe-

ral, mas sempre foi capitalismo de Estado”. A crise das dívidas soberanas, sem nenhuma dúvida, mostra a pertinência dessa afirmação de Deleuze e Guattari. O liberalismo é apenas uma das subjetivações possíveis do capitalismo de Estado. Soberania e governamentalidade funcionam sempre juntas e em concerto. Na crise, os neoliberais não procuram governar o menos possível, mas, pelo contrário, governar tudo, até os mínimos detalhes. Eles não produzem “liberdade”, mas sua limitação contínua. Eles não articulam liberdade de mercado e Estado de Direito, mas a suspensão da já frágil democracia. 11


A gestão liberal da crise não hesita em integrar um “Estado máximo” entre os dispositivos de uma governamentalidade, que exprime sua soberania unicamente sobre a população. GOVERNAMENTALIDADE: a crise torna evidentes os limi-

tes de um dos mais importantes conceitos de Foucault — a governamentalidade — e nos leva a completá-lo. Segundo Foucault, governar não significa “submeter, comandar, dirigir, ordenar e normalizar”. Nem força física, nem proibições, nem tampouco “normas de comportamentos”, a governamentalidade incita, por meio de uma “série de regulamentações leves e adaptativas”, a gerir um meio que conduz o indivíduo a reagir de uma maneira mais do que de outra. A crise nos mostra que as técnicas de governamentalidade impõem, proíbem, normatizam, dirigem, comandam, ordenam e normalizam. A “privatização” da governamentalidade nos obriga a levar em consideração os dispositivos “biopolíticos” que não pertencem ao Estado. Desde os anos 20, foram desenvolvidas técnicas de governança a partir do consumo. Elas se exercem pelo marketing, pelas pesquisas de opinião, pela televisão, pela internet, pelas redes sociais etc., que informam a vida em todas as suas dimensões. Esses dispositivos biopolíticos são simultaneamente dispositivos de valorização e produção da subjetividade e de controle policial. LUTA DE CLASSE: o capitalismo neoliberal instaurou e

governa uma luta de classe assimétrica. Há apenas uma classe, recomposta em torno da finança, do poder da moeda de crédito e do dinheiro como capital. A classe trabalhadora não é mais uma classe. O número de trabalhadores aumentou consideravelmente desde os anos 1970 por todo o mundo, mas eles não constituem mais uma classe 12


política nem jamais voltarão a constituir. Os trabalhadores possuem de fato uma existência sociológica e econômica e eles formam o capital variável dessa nova acumulação capitalista. Mas a centralidade da relação credor/devedor os marginalizou politicamente de maneira definitiva. A partir da finança e do crédito, o capital está continuamente na ofensiva. A partir da relação capital/trabalho, o que resta do movimento trabalhador está continuamente na defensiva e é regularmente vencido. Sem passar pela usina, a nova composição de classe que emergiu ao longo desses anos é composta por uma multiplicidade de situações de emprego, de não emprego, de emprego intermitente e de pobreza mais ou menos intensa. Ela é dispersa, fragmentada e precarizada, e está longe de adquirir os meios para ser uma “classe” política, ainda que ela constitua a maior parte da população. Como os bárbaros no fim do Império Romano, ela opera incursões tão intensas quanto rápidas, para se recolher imediatamente depois aos seus “territórios” desconhecidos, em particular aos partidos e aos sindicatos. Ela não se instala. Ela dá a impressão de testar sua própria força (ainda demasiadamente frágil), bem como a força do Império (ainda demasiadamente forte), para então se retirar. A FINANÇA: pletóricos e inúteis debates ocupam jornalis-

tas, especialistas, economistas e políticos: a finança é parasitária, especulativa ou produtiva? Controversas ociosas, já que a finança (e as políticas monetária e fiscal que a acompanham) é a política do capital. A relação credor/devedor introduz uma forte descontinuidade na história do capitalismo. Pela primeira vez desde que o capitalismo existe, não é a relação capital/trabalho que está no centro da vida econômica, social e política. Em 30 anos de financeirização, o salário se transformou de variável independente do

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sistema em variável de ajustamento (sempre para baixo no que concerne ao salário e sempre para cima no que concerne à flexibilidade e ao tempo de trabalho). TRANSVERSALIDADE: o que é preciso sublinhar nem é

tanto o poder econômico da finança ou suas inovações técnicas, mas muito mais o fato de que ela funciona como um dispositivo de governança transversal — transversal à sociedade e transversal ao planeta. A finança também opera transversalmente à produção, ao sistema político, ao bem-estar e ao consumo. A crise das dívidas soberanas confirma, aprofunda e radicaliza com pendor autoritário as técnicas de governo transversais, pois “nós todos estamos endividados”. CAPITAL HUMANO (ou o empreendedor de si): a crise não

é apenas econômica, social e política, mas também é, e acima de tudo, uma crise do modelo subjetivo neoliberal, encarnado pelo “capital humano”. O projeto de substituir o assalariado fordista pelo empreendedor de si, transformando o indivíduo em empresa individual, que gera suas capacidades como recursos econômicos a serem capitalizados, sucumbiu na crise dos subprimes. Desse ponto de vista, as situações dos países ricos e a dos países emergentes, em vez de divergir (estagnação e declínio dos primeiros e crescimento e progresso dos segundos), convergem na produção do mesmo modelo de subjetividade — o “capital humano”, que implica um máximo de “privatização econômica” e um “máximo de individualização subjetiva”. As políticas sociais, pelo contrário, instalam por toda parte um “mínimo” (um salário mínimo, um rendimento mínimo e serviços mínimos), a fim de obrigar o empreendedor de si a se lançar na concorrência de todos contra todos. Esse objetivo pode ser atingido 14


de outro modo. Na Alemanha, onde o salário mínimo não existe, contam-se 8 milhões de trabalhadores pobres. A globalização capitalista gaba-se de ter tirado milhões de pobres da grande miséria no “sul” do mundo. Na realidade, essas políticas não são incompatíveis com o neoliberalismo, pelo contrário. Elas constituem — até mesmo quando elas são conduzidas em larga escala, como no Brasil — uma experimentação para fornecer uma parte da força de trabalho adequada ao capitalismo dos países emergentes. No Brasil, entre a multiplicidade de causas da mobilização da primavera de 2013, também é preciso reter essa. Tanto a minoria saída da grande pobreza como a nova composição da classe metropolitana em vias de empobrecimento encontraram-se confrontadas não apenas com uma macroeconomia organizada segundo os mais clássicos princípios neoliberais, mas também com um Estado social de mão dupla: por um lado, serviços de uma qualidade medíocre (“serviços mínimos”) e, por outro, boas escolas, um sistema de saúde que funciona e serviços de qualidade, mas pagos. Para aceder a eles, é preciso mobilizar-se, lançando-se na confusão do darwinismo social com molho “socialista”. Foi às avessas, com realismo, que se produziu a mobilização pela “justiça social” e contra a versão do capital humano dos países emergentes. Na Europa, o processo é invertido (trata-se de desmantelar os serviços sociais “gratuitos”), mas ele atingiu os mesmos resultados. A construção de um Estado social de mão dupla foi acelerada com a crise da dívida. REFORMISMO: no capitalismo neoliberal, qualquer New

Deal é impossível para sair da crise financeira. O único reformismo que o capital jamais praticou levara às verdadeiras transformações de 1929, que foram o exato contrário das “reformas” neoliberais. Ele neutralizara a finança (o que 15


Keynes chamava a eutanásia do rentista), ele redistribuíra o rendimento por meio do consumo e dos serviços sociais e ele tocara (timidamente, é verdade) o estatuto da propriedade. Ele impusera politicamente a centralidade da relação capital/trabalho, ao passar um compromisso com as organizações do movimento trabalhador, que deram seu consenso em troca de emprego e de serviços indexados no emprego. Ele construíra um “capital de subjetividade” na figura do assalariado no pleno-emprego — coisa que, hoje, governo algum do planeta fez nem pode fazer, pois o pressuposto seria neutralizar a finança. Mesmo as recentes experiências de governo de esquerda na América Latina estão longe, muito longe, de se aproximar das condições de reformismo do capital. É claro que isso não é simplesmente culpa deles. É que as relações de força suscetíveis de impor o que quer que seja ao capital financeirizado não existem mais. As revoltas brasileiras se apressaram em lembrar essa realidade a todo o mundo — em primeiro lugar, aos dirigentes do PT e àqueles que, na Europa, apostam nas experimentações de um governo de “esquerda” na América Latina (e além dela). A RECUSA DO TRABALHO o ciclo de luta que se iniciou

em 2008, atravessando indiferentemente o “Sul” e o “Norte” do planeta, volta-se de maneira mais precisa e menos “ideológica” do que o de Seattle (2001) contra a globalização, praticando a recusa da “representação” sindical e política, a auto-organização, a utilização do que é hipocritamente chamado de redes sociais, que muita gente confunde tolamente com organização política. Mas “o que fazer” depois da espontaneidade da revolta? As ideias e as práticas estão em falta? Assumindo certo risco, avancemos algumas hipóteses, ainda que atualmente elas ainda devam por força permanecer abstratas. 16


Ao apreender a ação política como um gênero de ruptura, um acontecimento pode abrir perspectivas sobre as modalidades de expressão e de organização dos movimentos contemporâneos, fazendo emergir o impensado das revoluções dos séculos xix e xx. A formidável mobilização da “força de trabalho” metropolitana desse novo ciclo de luta (Brasil, Turquia, Grécia, Espanha e Egito) é também e ao mesmo tempo uma desmobilização geral e uma “recusa do trabalho” adaptado à valorização contemporânea, da mesma maneira que a greve trabalhadora era uma ação que tinha seu motor em uma não ação radical, na interrupção e na imobilização da produção. O movimento trabalhador existiu apenas porque a greve era, ao mesmo tempo, um não movimento e uma suspensão dos papéis, das funções e das hierarquias da divisão do trabalho. O fato de problematizar um único aspecto da luta, o aspecto movimento, foi uma grande deficiência, que fez do movimento trabalhador um acelerador do produtivismo e da industrialização, o arauto do trabalho e da crença “científica” na neutralidade da ciência e da técnica. A outra dimensão da luta, implicando a “recusa do trabalho”, foi negligenciada (exceto pelo operaísmo) ou insuficientemente problematizada pelo pós-operaísmo, que a abandonou. Depois de ter conseguido produzir O direito à preguiça, escrito por Paul Lafargue, genro de Marx, em polêmica com Le droit au travail [O direito ao trabalho], de Louis Blanc, a imaginação política comunista simplesmente o leu como um panfleto para chocar os burgueses, evitando ver nele as implicações ontológicas e políticas que a recusa do trabalho e a suspensão da atividade e do comando abriam, como possibilidades de sair do modelo do homo faber, do orgulho dos produtores e da sua promessa prometeica de domínio sobre a natureza. 17


RUPTURA: em todo acontecimento político, misturam-se

necessariamente diversas linhas, que coexistem e podem se compor ou se opor e se combater. Uma linha (de interesse) instalada na atualidade das relações de poder, de significações e de dominações estabelecidas é uma linha (do desejo ou do possível) que suspende as relações de poder, neutraliza as significações dominantes, recusa as funções e os papéis de comando e obediência implicados na divisão social do trabalho e cria um novo bloco de possibilidades. A linha do movimento tem causas, persegue objetivos e abre à luta um espaço previsível, calculável e provável. A linha da não mobilização a partir da suspensão das leis do capital se engaja em um processo não calculável, imprevisível e incerto, que Félix Guattari pensava poder apreender apenas pelo viés de um “paradigma estético”, pois a subjetividade e as instituições devem ser inventadas, mas segundo uma lógica completamente distinta daquela do trabalho ou da fabricação. Um acontecimento político não muda primeiramente o mundo nem a sociedade, mas ele se limita a operar uma reversão de perspectivas da subjetividade e a abrir a passagem de um modo de existência para outro. A ruptura do acontecimento constitui apenas um esboço e um começo, cuja realização é indeterminada, improvável e até mesmo “impossível”, segundo os princípios do poder estabelecido. É claro que uma luta política só pode articular dois momentos do acontecimento, passando continuamente de um a outro (do possível à sua realização e inversamente). Mas para se desenvolver e para ganhar consistência, a linha do não movimento e da recusa do trabalho permanece estratégica e deve transformar a linha de interesses e de instituições. A ruptura vem da história e, a partir do momento

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não histórico1 e intempestivo da ruptura, ela deve retornar à história para transformar as relações de poder e a subjetividade. Essa dupla dinâmica bastante heterogênea, bem como a existência e as relações dessas linhas constituem o problema da organização política contemporânea. Os possíveis criados pela ruptura no acontecimento constituem a problemática política em torno da qual se desencadeia a batalha política pela sua realização ou pela sua neutralização. O que se chama de “traição”, “cooptação” e “reformismo” não vêm depois, mas são alternativas presentes desde o início na luta. Rebater a linha de criação de possíveis e sua realização na linha de relações de poder estabelecidas, separar a linha do movimento da linha do não movimento e jogar uma contra a outra é o objetivo da instituição capitalista e da “esquerda” sindical e política. DESTITUIÇÃO/INSTITUIÇÃO: as duas linhas de ação política criadas pela ruptura do acontecimento traçam caminhos diferentes. Reconhecendo as relações de força atuais, a linha da mobilização se engaja em um dualismo do poder para desfazer as instituições do capitalismo. Os dualismos do capital não são dialéticos, eles são reais e é preciso desfazê-los realmente. Sem uma destituição dos três “nomos” (pegar, partilhar e produzir), que são emprestados a Carl Schmitt pela sua radicalidade, concisão e pertinência para definir toda 1 Com Nietzsche, podemos apreender o sentido de intempestivo que a recusa política implica: “Onde houve atos que os homens foram capazes de realizar sem que estivessem primeiramente envolvidos por essa nuvem não histórica?” (Considerações extemporâneas, Da utilidade e desvantagem da história para a vida, I), sem sair da história e das suas relações de poder e de sentido? A história não é feita por aqueles que se inserem na história ou que a reorganizam, mas por aqueles que se opõem ao seu curso. 19


ordem política, o desenvolvimento da linha da não mobilização é quimérico. Sem a expropriação dos expropriadores (“tomar” não apenas as imensas riquezas capturadas pela financeirização e pela austeridade, mas também a expropriação dos know-hows e dos territórios existenciais), sem um questionamento radical do individualismo apropriativo (“partilhar”) e sem desfazer o conceito de “produzir” a partir da fonte mesma da ação — a não ação —, nenhum processo de uma nova instauração é possível. Reconhecendo os possíveis criados, a linha da desmobilização se engaja em fazer proliferar a multiplicidade dos processos de subjetivação (e suas instituições), que são não apenas políticos, mas também são existenciais e não totalizáveis segundo as necessidades da primeira linha de luta contra a lógica do capital. As modalidades de expressão, de luta e de organização não são as mesmas nas duas linhas. Donde a dificuldade em pensar o após “insurreição”, já que nem o partido nem os sindicatos estão à altura de pensar e de manter junta essa dinâmica ao mesmo tempo nova e dupla. REPRESENTAÇÃO: a recusa da representação está profundamente ancorada na nova composição de classe e encontra suas razões de ser nas condições da ação política contemporânea. A representação política pressupõe a identidade do representado, enquanto a linha de desmobilização produz precisamente uma suspensão das “identidades” estabelecidas. A representação implica funções e papéis que estabelecem hierarquias e desigualdades. A recusa do trabalho (metropolitano) opera uma suspensão dessas hierarquias e desigualdades, afirmando a igualdade e, portanto, um “para além” das divisões da sociedade em interesses. A representação vem preencher a ruptura e fechar a brecha aberta pela criação dos possíveis, rebatendo as 20


subjetividades e as instituições em devir sobre as identidades e as relações de poder estabelecidas; razão pela qual, atualmente, os movimentos desaparecem tão rapidamente do espaço público. As condições para estabelecer sua autonomia política ainda não foram inventadas. O POSSÍVEL: alternativamente às definições economicistas

do capitalismo (cognitivo, cultural, imaterial etc.), Guattari propõe chamar à economia uma economia dos possíveis. O capitalismo (e seu poder) se define em primeiro lugar como um controle absoluto sobre o que é possível e sobre o que é impossível. A primeira palavra de ordem do neoliberalismo foi “não há alternativa”, quer dizer, não há outros possíveis além daqueles enunciados pelo mercado e pela finança. E a crise das dívidas soberanas repete o mesmo bordão: o homem endividado deve pagar, pois não há outras possibilidades. O que é expropriado pelo crédito/dívida não é apenas a riqueza, os know-hows ou o “futuro”, porém, mais fundamentalmente, o possível. O desejo não remete estritamente à libido ou simplesmente à pulsão, mas ao possível (Deleuze, Guattari). Há desejo quando, a partir da ruptura de equilíbrios anteriores, aparecem as relações que eram impossíveis antes. O desejo é sempre reconhecível pelo impossível que ele levantou e pelos novos possíveis que ele criou. O desejo é o fato de que, lá onde o mundo estava fechado, surgiu um processo secretando outros sistemas de referência. MÁQUINAS E SIGNOS: as máquinas estão por toda parte,

exceto na teoria crítica. Elas formam uma espécie de “capital constante social” constituído fundamentalmente de computadores e de máquinas digitais. Os signos são os motores semiológicos dessas máquinas, eles constituem a “linguagem” a-significante por meio da qual elas se comunicam 21


entre si, com outros não humanos e com os humanos. Máquinas e signos formam enormes redes que são dispositivos de valorização e produção de subjetividade, bem como de controle policial. A transversalidade da finança só é eficaz porque as máquinas e os signos funcionam transversalmente à sociedade em seu conjunto. As máquinas digitais miniaturizadas e os signos também atravessam a matéria, os corpos e os objetos, que são a partir de então animados, não apenas metaforicamente (como na teoria do fetichismo marxiano), mas também realmente, pois eles percebem, recebem e transmitem informações. O capital é uma relação social, mas que não pode ser reduzida à intersubjetividade. As relações são em seu conjunto maquínicas, quer dizer, compostas de humanos e de séries cada vez mais numerosas de não humanos. O capital é antes de mais nada uma máquina social, da qual decorrem as máquinas técnicas. O CAPITAL É UM OPERADOR SEMIÓTICO: o capital é

um operador semiótico e não linguístico — a diferença é grande. No capitalismo, os fluxos de signos (a moeda, os logaritmos, os diagramas e as equações) agem diretamente sobre os fluxos materiais, sem passar pela significação, pela referência, pela denotação — todas categorias da linguística, que é incapaz de revelar o funcionamento da máquina capitalista. As semióticas a-significantes (moeda, logaritmos etc.) funcionam independentemente do fato de que elas significam alguma coisa para alguém. Elas não são capturadas pelo dualismo significante/significado. Elas são signos operatórios e “signos de poder”, cuja ação não passa pela consciência nem pela representação (ação diagramática). O capitalismo é maquinocêntrico e não logocêntrico.

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FORÇA: para apenas começar a instituir o que emerge da

ruptura do acontecimento e para nós podermos nos dotar de modalidades de organização macropolíticas, uma condição final e fundamental é requerida: a capacidade de bloquear a valorização capitalista e a possibilidade de estabelecer relações de força, de mantê-las e de abrir espaços de poder duráveis. Em uma luta de classe assimétrica, é inútil nos apresentarmos como embaixadores ou diplomatas. O capital não precisa de nenhuma mediação, pois, se não for ameaçado, ele não tem motivo algum para pactuar com quem quer que seja. A relação de força é demasiadamente favorável. Ele pode fazer quase tudo o que quiser. A luta de classe é conduzida de maneira determinada e com toda a violência necessária tão somente pela classe que foi recomposta em torno da financeirização. O real ainda é dominado pelas “leis” do capital, entre as quais a mais temível é a introdução do infinito na produção e no consumo. Impossível definir uma política sem uma análise do capital, por um lado, e sem uma prática de luta e de uso do contrapoder, por outro.

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capĂ­tulo 1


Renda, lucro e imposto — três aparelhos de captura

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O professor: Diga-me, meu filho: de onde vêm todas essas riquezas? Você não as pode ter juntado sozinho. A criança: Elas vêm de papai. O professor: E ele, de onde ele as conseguiu? A criança: Do vovô. O professor: Ora! E como elas chegaram ao vovô? A criança: Ele as tomou. [goethe], citado por Marx em O capital, citado por Carl Schmitt

O que acontece ao homem endividado na crise? Qual é sua principal atividade? A resposta é muito simples: ele paga. Ele deve expiar sua falta — a dívida — pagando sem cessar impostos, porém não apenas impostos. Desde 2007, uma nova grande apropriação/expropriação está em curso. A precedente está na origem da crise atual. Ela começou no fim dos anos 1970 e conduziu a uma concentração inaudita da riqueza. Nos Estados Unidos, país eminentemente neoliberal, 1% dos americanos detém 40% da riqueza do país. Em 30 anos, 99% dos americanos viram seus rendimentos aumentarem em apenas 15%, enquanto os 1% mais ricos viram seus rendimentos explodirem, aumentando em 150 vezes. Essa primeira apropriação econômica foi casada com uma igualmente inaudita expropriação política da democracia. Como lembra o neokeynesiano Joseph Stieglitz, que está longe de ser um revolucionário, os 27


neoliberais conseguiram impor um “governo do 1%, para o 1%, pelo 1%”. Para conceber a medida (ou a desmedida) da apropriação neoliberal, é preciso considerar menos o rendimento do que o patrimônio. Aqui, a desmedida salta aos olhos. Tomemos dessa vez o exemplo francês. De acordo com o Insee, em 2009 os 10% mais ricos em termos de rendimentos beneficiavam-se, em média, de um nível de vida 6,7 vezes maior do que os 10% mais pobres. Caso se considere, por outro lado, o patrimônio, os 10% mais ricos detinham em 2010 um patrimônio médio 920 vezes maior do que os 10% mais pobres. As grandes instituições europeias e mundiais do capitalismo explicam por meio da conjuntura a segunda grande expropriação organizada pelas políticas de austeridade. A conjuntura serviria tão somente para colocar em ordem as contas do Estado, depois do que seria possível pensar na produção e no crescimento. Organizada principalmente pelo imposto, essa segunda apropriação é, na realidade, estratégica. Como compreender essas políticas de austeridade que antes de mais nada são políticas fiscais? Que papel e que função desempenha o imposto nas estratégias capitalistas? Toda teoria econômica, seja ela ortodoxa ou heterodoxa, gostaria de nos fazer acreditar que a apropriação é função da “produção”, que a distribuição remete à contribuição e que os fatores “trabalho”, “capital” e “poupança” levam à produção. Para redistribuir, é preciso primeiramente produzir e para ganhar é preciso primeiramente dar, afirma o bom senso dos economistas, que esperam soluções políticas para a “questão social”, para o crescimento e para o aumento da produtividade. Tudo viria depois da produção, mesmo o imposto e sua função distributiva. Mas é exatamente o inverso que é verdadeiro. Longe de 28


dependerem da produção ou do crescimento, a apropriação e a distribuição são os pressupostos delas. No capitalismo, a apropriação se exerce mediante a ação de um aparelho de captura de três cabeças: lucro, renda e imposto.2 Antes de mais nada, é preciso observar que sua ordem hierárquica e sua distribuição mudam segundo as diferentes sequências da dominação capitalista. Se até os anos 1960, o lucro desempenhava um papel central na apropriação em relação à renda e ao imposto, com o advento do neoliberalismo a relação se inverte: a organização da expropriação da população e o comando se efetuam primeiramente a partir da renda (financeira) e do imposto. Depois da crise da dívida privada e soberana, a relação muda ainda uma vez e o que passa ao primeiro plano é a captura exercida pelo imposto. O governo capitalista encontra-se diante da necessidade de mudar muito rapidamente a articulação e a hierarquia desses três aparelhos de captura, donde o recurso aos “governos técnicos”. Uma primeira redefinição do conceito de produção Entre o fim dos anos 1970 e o início dos anos 1980, o neoliberalismo operou um deslocamento estratégico decisivo, que se manifesta pela hegemonia da renda financeira e do imposto em detrimento do lucro. Para apreender essa bifurcação, é preciso se desfazer do conceito economicista de “produção”. O conceito de produção capitalista não implica apenas, por um lado, o capital industrial e os capitalistas industriais e, por outro, o trabalho e os trabalhadores, mas também a 2 Utilizo o aparelho de captura de três cabeças de Mille plateaux [Mil platôs] (renda, lucro e imposto), substituindo a renda fundiária pela renda financeira. 29


moeda e o imposto como suas verdadeiras e indispensáveis condições. A moeda e o imposto precedem e fundam tanto a organização do trabalho como o mercado. A “ciência econômica” padrão reduz não apenas a moeda a um simples numerário capaz de facilitar as trocas, mas também o imposto a uma extração “improdutiva”, pois tanto a moeda como o imposto remetem a centros de poder (em sua maior parte do Estado), que não emergem do mercado, mas, pelo contrário, fundam-no e tornam-no possível. Conhecida desde a Antiguidade, essa origem política, não mercantilista, não produtiva e não econômica, deve ser elidida para dar lugar ao mito da coordenação espontânea dos agentes econômicos pelo mercado.3 A moeda e o imposto sempre dependem de um dispositivo de poder (Estados nacionais, mas também instituições transnacionais, como a Europa ou o sistema bancário e financeiro). Eles são dispositivos que iniciam as relações de poder econômico ao distribuir não apenas as funções de cada um na divisão social do trabalho, mas também aparelhos de captura definindo os direitos de propriedade. Para definir o que nós chamamos de pós-fordismo, não é suficiente descrever as mudanças que intervêm na organização do trabalho (trabalho cognitivo, imaterial, produção 3 O que a economia desconhece é a origem política de seu objeto: “Os imperadores otomanos quiseram, como Carlos Magno, controlar as operações de comércio e introduzi-las em estruturas estáveis. Assim, eles instituíram os mercados em um país no qual eles eram extremamente raros. Pelos documentos subsistentes, conhece-se 29 dessas fundações, que se situam entre os anos 936 e 1002. […] Na prática, a criação de um mercatus era acompanhada da instalação de um ateliê monetário, para que esse lugar dedicado às transações comerciais fosse regularmente alimentado com dinheiro. O imperador concedeu esses lugares de emissão aos poderes locais, aos condes, aos bispos e aos cambistas” (Georges Duby. Guerriers et paysans. Paris: Gallimard, 1973, p. 152). [Guerreiros e camponeses. Lisboa: Estampa, 1993] 30


cinco zeros, papel da inovação e do conhecimento etc.). A passagem do fordismo ao neoliberalismo pressupõe mudanças tão ou mais importantes no funcionamento da moeda e do fisco. Nem mesmo o fordismo, clímax do capitalismo industrial, começa com a produção, mas com a moeda e com o imposto, que implicam novas modalidades de apropriação, de distribuição e de medida. Realizada através das políticas fiscais e monetárias e de “nacionalizações”, “a eutanásia do rentista” keynesiana é assimilável a uma espoliação (apropriação) reformista da “renda”. A gestão da moeda e do fisco implementa políticas voltadas para a promoção do “capital industrial” e do emprego. A partilha relativa dos ganhos de produção nas fábricas e a definição de uma tímida “propriedade social” por meio do Estado social correspondem a novas normas de distribuição fixadas primeiramente pela moeda e pelo fisco. A “produção” propriamente dita apenas reproduzirá e alargará progressivamente essas apropriações e distribuições “originárias”. A passagem ao pós-fordismo faz-se da mesma maneira, invertendo primeiramente as funções keynesianas da moeda e do imposto que, em vez de neutralizar a renda, desenvolvem-na: privatizando a emissão da moeda e abrindo-se, assim, à privatização de tudo o que o New Deal tinha relativamente socializado; utilizando o imposto para mudar a “natureza” do welfare (transferências maciças de renda às empresas e aos ricos, que se tornaram “novos beneficiados”, enquanto à população foram reservados serviços sociais mínimos); e impondo uma nova medida (“financeira”) e um novo direito de propriedade (capitalismo dos credores, quer dizer, proprietários das ações e dos títulos).

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O dinheiro nasce do imposto? Talvez seja na crise, muito mais do que no começo da sequência neoliberal (momento no qual ela desempenhou um papel determinante), que se compreende a função do imposto e sua complementaridade com a moeda. Em Mil platôs, nós podemos encontrar uma análise dessa complementaridade que a crise torna manifesta. Se “a moeda é sempre distribuída por um aparelho de poder”, sua circulação e sua rotação, bem como a equivalência bem/serviços/dinheiro, se estabelecem mediante o imposto, que faz do dinheiro um equivalente geral. “É o imposto que cria a moeda e é o imposto que monetariza a economia.” A moeda não tem uma origem mercantil e de troca, mas ela tampouco deriva do trabalho. A moeda é indissociável não do comércio e do trabalho, mas do imposto — instrumento de poder que é estrangeiro e independente do mercado. No circuito econômico, o imposto desempenha um papel fundamental, e isso desde a Antiguidade, como demonstra o exemplo da Grécia. “O imposto sobre os aristocratas e a distribuição de dinheiro aos pobres são meios de reconduzir o dinheiro aos ricos”, pois os pobres utilizam o dinheiro para comprar terra, para produzir e para pagar os impostos sobre o que eles produziram. A moeda emprestada retorna aos ricos “com a condição de não ser interrompida e com a condição de que todos, ricos ou pobres, paguem imposto, de tal maneira que se estabelece uma equivalência moeda/bens/serviços”.4 Esse mesmo funcionamento está na base das performances do capitalismo depois da crise de 1929, como se os americanos, com o New Deal, tivessem descoberto o que os 4 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mille plateaux. Paris: Minuit, 1980, p. 552. [Mil platôs. São Paulo: 34, 1995] 32


gregos sabiam há muito tempo: “que pesados impostos dos Estados são propícios aos bons negócios”.5 O imposto sobre os aristocratas é assimilável à expropriação da renda operada pela “eutanásia do rentista” keynesiana e a distribuição de dinheiro aos pobres, à distribuição de rendimentos organizada pelo welfare. Todos (ricos e pobres) pagam impostos elevados, suscitando a gritaria contra a expropriação, de modo que o dinheiro retorna aos “ricos”, garantindo o fechamento e a realização do ciclo econômico e dos altos lucros. Nem a distribuição de rendimento por meio do salário e do welfare, nem as importantes taxas de tributação constituíram obstáculos à “produção”, pois o Ocidente jamais conheceu taxas de crescimento tão contínuas e elevadas como depois da guerra. Foram as lutas políticas dos anos 1960 e 1970 que, levando o salário direto e o salário social a se tornarem variáveis independentes, corroeram os lucros e obrigaram o capital a uma mudança de estratégia. A necessidade de uma outra “economia” jamais é econômica, mas é sempre e tão somente política, pois o crescimento, o lucro e o desenvolvimento são relações de poder, antes de serem relações econômicas. É preciso inverter o esquema da economia política (e mesmo do marxismo do primeiro Livro I de O capital): primeiro o escambo, depois a troca e a moeda como meio de equivalência, circulação e pagamento, para finalmente chegar à extração do aparelho de captura do Estado exercido pelo imposto. Pelo contrário, é preciso começar pela constituição política de um estoque de moeda, mas é precisamente o imposto — e não a troca —, que cria a equivalência e a medida de bens e de serviços, que permitirá à moeda funcionar. À luz do que se passa desde 2007, nós 5 Gilles Deleuze e Félix Guattari. L’anti-Œdipe. Paris: Minuit, 1972, p. 234. [O anti-Édipo. São Paulo: 34, 2010] 33


podemos apenas acrescentar que o aparelho de captura do imposto monetariza a crise, mais do que o crescimento. É o imposto que garante a equivalência de bens e de serviços que o mercado e a moeda não são mais capazes de garantir (o mercado colapsa e a moeda não circula mais, particularmente entre os bancos!). Decidindo quem deve pagar (os não responsáveis pela crise) e onde se deve ir recolher o dinheiro (aos credores e aos bancos responsáveis pela crise), o imposto garante a reprodução inteiramente política de uma “economia” que, por si mesma, será sempre incapaz de funcionar segundo as divisões políticas fundamentais que a constituem (credores/ devedores, capital/trabalho etc.). O governo da crise, o qual é chamado de “técnico” ou de “saúde nacional”, é eminentemente político. E seu instrumento político fundamental permanece sendo o imposto. Se o imposto conserva a renda e o lucro, garantindo sua reprodução que, a curto e médio prazo, não abre caminho para uma nova produção, para um novo crescimento ou uma nova acumulação, o reembolso da dívida não se faz a partir de uma riqueza futura (novo crescimento), mas a partir de rendimentos atuais. É nesse sentido que ele é assimilável a um confisco político. O imposto não garante a monetarização das instituições em pane sem ao mesmo tempo representar a “medida” da crise. Ele serve de garantia para as políticas de austeridade, para a apropriação de rendimentos da população e para a distribuição que, realizada em favor dos credores, o capitalismo continua a organizar mesmo no interior da crise. Ele constitui menos uma medida da produção do que do poder e do controle exercido sobre as populações. Em última instância, o imposto mede a capacidade de os governos imporem as políticas de austeridade e o nível de aceitação dessas mesmas políticas por parte da população. 34


Manifestando sua natureza “soberana”,6 ele se limita a instalar um governo autoritário que suspende o já frágil sistema democrático. Os aparelhos de captura da crise Assim, nós encontramos a apropriação fiscal não apenas no início da sequência “financeira”, mas também no interior da crise que ela provocou. As causas da crise da finança não residem na especulação e na avidez doentia dos traders, mas no fato de que o aparelho de captura da renda financeira não garante mais nem a apropriação da mais-valia social, nem o controle das relações de distribuição, de exploração e de dominação que a tornam possível. As dívidas soberanas parecem ser o centro e a origem da crise. Na realidade, elas são uma simples consequência da falência dos bancos americanos e do sistema financeiro transnacional. A crise não reside na incapacidade de os Estados reembolsarem as dívidas que eles acumularam para salvar a finança. Ela consiste mais fundamentalmente no bloqueio da valorização capitalista e no fracasso da acumulação obtida pelos créditos (a crise de subprimes). Dois títulos da imprensa de julho de 2012 apresentam as razões reais da crise: “O dinheiro de super-ricos escondido nos paraísos fiscais atinge 21.000 bilhões de dólares”. Esse artigo do Financial Times prosseguia tentando salientar que a soma é mais próxima de 32.000 bilhões, que corresponde 6 O sentido e o alcance do imposto aparecem menos no imposto sobre o rendimento do que no imposto indireto. Não apenas porque esse último não é progressivo e constitui a maior parte dos impostos coletados pelo Estado, mas também porque ele representa uma parte do preço das mercadorias determinada fora e independentemente do mercado. Os preços de mercado se acrescentam a esse fundamento político e não econômico. 35


a mais da metade da dívida mundial. Nós somos expropriados para reembolsar os credores e nosso dinheiro vai diretamente para os diferentes paraísos fiscais. Ainda mais interessante é o título do jornal Le Monde: “Apple (primeira capitalização da bolsa com 623 bilhões de dólares na Nasdaq) possui mais de 81 bilhões de dólares nos paraísos fiscais, Microsoft, 54 bilhões, Google, 43 bilhões e Cisco, 42 bilhões”. É o subtítulo do jornal Le Monde que explica a razão da crise: “Eles não sabiam o que fazer com esses despojos de guerra”. A mesma situação caracteriza as grandes empresas multinacionais cotadas na bolsa. Elas estão sentadas em uma montanha de dinheiro que elas não sabem onde e nem como investir. A riqueza acumulada não encontra mais onde e nem como se valorizar. Um valor que não encontra mais do que alimentar sua própria valorização recai ao nível de vulgar equivalente geral — moeda de pagamento. Ele não é mais capaz de comandar nem o trabalho, nem a sociedade, quer dizer, ele é incapaz de organizar uma nova exploração/apropriação. O capital não consegue mais “sugar” a produtividade da sociedade. Essa função é a partir de agora delegada ao imposto, que não apenas garante as funções de captura anteriormente preenchidas pelo lucro e pela renda, mas também organiza a coerência entre os três dispositivos de captura. O capitalismo é de maneira indissociável um modo de produção e um modo de predação. Quando ele não consegue mais garantir a predação pela finança e pela produção, a crise intervém. A continuidade da predação é então garantida pelo imposto. Em todos os países europeus atingidos pela crise, é a máquina do imposto que é massivamente ativada para organizar as transferências colossais de dinheiro para os dois aparelhos em pane: a renda e o lucro. Os governos técnicos 36


são antes de mais nada governos para e de fisco. As assim chamadas políticas de “austeridade” são na realidade políticas de múltiplos confiscos “forçados”: desde os impostos propriamente ditos até os confiscos dos salários (redução do salário mínimo), os confiscos das despesas sociais do Estado-providência (os cortes sombrios nas despesas sociais e, sobretudo, nas aposentadorias) e os confiscos por meio do aumento dos preços. O último, e não o menor dos confiscos, é representado pelas “privatizações”. Para pagar a dívida, os Estados colocam os bens “públicos” à disposição de empresas privadas. Os jornais franceses falam de “bombardeamento fiscal” para se referir aos 30 bilhões de novos impostos anunciados pelo governo socialista. Como definir, então, o que se passa na Grécia, na Espanha, em Portugal e na Itália, onde o aumento dos impostos não tem comparação com o suposto bombardeamento fiscal francês?7 A intervenção dos Estados em favor da finança aprofundou ainda mais as desigualdades (diferenças de classe), reproduzindo, assim, as verdadeiras causas da crise. O impossível reformismo (o impossível New Deal) Na crise, o imposto desempenha a função de destruir as formas de capital (constante e variável, quer dizer, empresas e assalariados) que não se conformam com a lógica da valorização financeira e, a partir dessa destruição, desempenha ao mesmo tempo a função de construir uma eventual nova 7 Terceira economia europeia, a Itália foi submetida, nos últimos quatro anos (governo Berlusconi e governo Monti), a reformas para “assegurar as contas”, que confiscaram 329,5 bilhões de euros da população italiana, dos quais 55% são constituídos por novos impostos. 37


sequência de acumulação. Historicamente, o capitalismo se desenvolve entre esses dois momentos: a guerra (e, em particular, a guerra civil) serve para redesenhar suas relações de poder. Mas o que nos parece caracterizar a situação atual é a impossibilidade de praticar as políticas reformistas e, consequentemente, a centralidade da destruição, em particular, dos “direitos do trabalho” e dos “direitos sociais” da força de trabalho social. A concordar com os jornais e a escutar os especialistas e políticos, todos são culpados (os trabalhadores, os aposentados, os desempregados, os doentes, os beneficiários sociais etc.) — exceto os financistas e os banqueiros. As nossas elites são cegas ou cínicas? Com a crise, nós assistimos à nova versão do “pensamento único”, caracterizada por um refluxo do real, que não é apenas subjetivo. Há também razões “objetivas” para essa cegueira e para esse cinismo: a saída para a crise por um novo New Deal está fechada, pois o reformismo se tornou impossível. As elites não podem ver as causas da crise que, no entanto, estão diante dos seus olhos, pois “reformar” a finança seria colocar em causa o capitalismo ele mesmo. De certa forma, elas estão encurraladas no cinismo que, aliás, assumem com pleno prazer. O reformismo do capital recobre um curtíssimo parêntesis na história do capitalismo, estendendo-se por menos de 25 anos (do fim da guerra a 1970). Ele foi o fruto de uma conjuntura política muito particular, dominada pelas guerras entre Estados e as guerras civis, pelo aumento de movimentos revolucionários e medo do comunismo, e pelas condições econômicas e políticas específicas das instituições do capital elas mesmas. Desse último ponto de vista, o reformismo é impossível porque foi elidida a heterogeneidade potencialmente contraditória que existia ainda no pré-guerra entre capital industrial e capital financeiro, entre Estado e capital, entre 38


as instituições do movimento trabalhador e as do Estado, e entre propriedade privada e propriedade pública. O fordismo primeiramente, mas sobretudo as políticas neoliberais depois produziram uma imbricação entre Estado (tanto em sua função administrativa como representativa), finança, indústria, propriedade privada etc., a qual torna absolutamente impossível qualquer opção reformista. As críticas keynesianas dirigidas à especulação e à bolsa são absolutamente inaudíveis hoje, pois a finança é tão simplesmente o motor da economia e do poder. A produção subjetiva da crise O imposto assume um papel central até mesmo do ponto de vista subjetivo, pois ele se funda na expiação da “falta” que constitui a dívida. Quando a dívida é “pública”, ela não é honrada nem sua falta é expiada individualmente, mas sim coletivamente por meio do imposto. Ele age como um vetor poderoso da transformação de cada um em homem endividado. A dívida resulta de uma mnemotécnica que contribui para a construção de uma (má) consciência e de uma culpa — condições subjetivas para manter a promessa “coletiva” de reembolso que as dívidas contraídas pelo Estado contêm implicitamente. O Estado, os governos técnicos e as mídias devem investir uma energia considerável para tornar as populações europeias tão culpadas por uma dívida que elas jamais contraíram e, consequentemente, responsáveis por faltas que elas jamais cometeram. A enxurrada de leis, de discursos, de textos e de palavras é diretamente proporcional à amplitude dessa fraude. No interior da crise, os governos técnicos agem para construir uma memória da dívida não dos indivíduos, mas de povos inteiros. A violência das 39


apropriações e dos confiscos é seu instrumento privilegiado, pois somente o que machuca é impresso na memória e somente o que agride pode marcar e se inscrever na consciência (Nietzsche). O nível de violência econômica e discursiva utilizado pelos Estados, pelos mercados e pelas mídias parece ser proporcional à resistência oposta pelos povos à fabricação dessa memória da dívida e à recusa de interiorizar o sentido de culpa, a má consciência e a responsabilidade. A avaliação e a medida A sucessão rápida das sequências capitalistas (keynesianismo-fordismo/neoliberalismo-pós-fordismo/grande crise desse último) suscita algumas considerações mais gerais. Os três aparelhos de captura constituem três máquinas contábeis que avaliam, medem e distribuem o valor e a mais-valia de maneira específica. Cada aparelho de captura possui seus princípios de avaliação/comparação, sua própria medida e seu próprio regime de propriedade que coexistem, mas sua hierarquia se modifica segundo a conjuntura política. A medida pelo “tempo de trabalho” é uma das medidas possíveis à disposição da máquina de captura capitalista. Ela teve uma função hegemônica durante a dominação do capitalismo industrial. Sucessivamente, nós vimos se estabelecer a medida e a apropriação pela renda financeira e, a partir da crise, a medida e a apropriação pelo imposto. O imposto, a renda e o lucro funcionam a partir de duas operações complementares: avaliação/comparação, por um lado, e apropriação monopolista, por outro. Conjuntamente, avaliação e apropriação delimitam um regime de propriedade. 40


O aparelho de captura “lucro” organiza a avaliação das “atividades” que serão “comparadas, relatadas e subordinadas a uma quantidade homogênea e comum que é chamada de trabalho”. Mas o trabalho não preexiste ao seu aparelho de captura, ele decorre desse último. Não se deve pensar um trabalho e uma produção que seriam em seguida apropriados pelo capital. É, ao contrário, a apropriação que define o trabalho. O conceito e a realidade do “trabalho” são instituídos pelo capital. “O trabalho e o sobretrabalho são exatamente a mesma coisa, um se referindo à comparação quantitativa das atividades, e o outro, à apropriação monopolística do trabalho pelo empreendedor.”8 O regime de propriedade do “lucro” é a propriedade privada dos meios de produção detidos pelo empreendedor. A sequência neoliberal, por outro lado, não é mais fundada na avaliação dos “trabalhos”, mas na avaliação das possibilidades de investimento e na rentabilidade das empresas, do que resultam os novos procedimentos de avaliação/comparação, que requerem novas regras contábeis, diferentes daquelas do “trabalho”. O ROE (Return on Equity) é a “medida” da performance econômica exprimindo o ponto de vista do acionário sobre a firma. De uma pequena porcentagem de lucro anual nos fins dos anos 1980 se passa gradualmente a 10% e depois a 15%. Atualmente, um bom número de empresas do CAC 40 obtém 20-25%. A apropriação não é mais exercida pelo empreendedor, mas pelo credor. O regime de propriedade hegemônica é sempre privado, mas ele está fundado na propriedade do título do capital. O aparelho de captura da crise é o imposto. Ele introduz outras modalidades de avaliação/comparação e, portanto, 8 Ibidem, p. 551. 41


de medida. O imposto assegura uma comparação/avaliação inteiramente política dos bens e dos títulos e ao mesmo tempo uma apropriação que não é mais garantida pelo mercado. A dimensão política que está no fundamento do mercado emerge violentamente desde que os “automatismos” do mercado colapsam. Aparentemente, o regime da propriedade não é mais privado, mas “público”, pois é o Estado que eleva o imposto. Na realidade, hoje se tornou impossível distinguir o Estado do capital, a propriedade “pública” da propriedade “privada”, pois a coleta do imposto visada pelo Estado vai diretamente para os bancos e os nichos dos credores em paraísos fiscais. Carl Schmitt Resumamos: a produção pressupõe uma apropriação e uma distribuição originárias que, no caso do capitalismo, produzem-se a cada nova sequência (fordismo, neoliberalismo e crise da dívida). É o aparelho de captura que define as condições da produção e da distribuição (crescimento) e não o inverso. Essa “verdade” encontra-se não apenas em Marx e Deleuze/Guattari, mas também em um autor tão distante deles quanto Carl Schmitt. Pode parecer estranho convocar esse último, mas como Marx já lembrava na sua época, é frequentemente mais útil se interessar por pensadores reacionários do que solicitar pensadores reformistas. Não é difícil encontrar críticas da economia em autores como Rancière, Badiou e Agamben, mas essas teorias têm o defeito de estabelecer uma separação radical entre a política e a economia, formulando uma concepção economicista do capitalismo. É mais raro encontrar pensamentos, como o de Carl Schmitt, considerando que, no capitalismo, 42


a economia é a política. Tomado como o profeta da autonomia do político, ele se revela antes como o enunciador de sua impossibilidade no capitalismo do pós-guerra, a ponto de modificar a fórmula datada da época da “reforma” alemã, cujus regio, ejus religio, em um impressionante novo adágio “cujus industria, ejus religio”.9 Como Deleuze e Guattari, ele nos ajuda a sair de toda concepção utilitarista, contratualista e convencionalista da economia. Essa última começa sempre pelo escambo, pela troca, pelo capital mercantil e pela relação entre livres contratantes. Substituir o começo mercantil por um incipit político é o maior mérito desse pensador reacionário. Carl Schmitt critica, por outro caminho e por meio de outros conceitos, o pensamento “liberal” e sua pretensão em neutralizar a natureza política da economia ao transformá-la em “economics”. Do alto do seu saber científico, a “economics” afirma que a resolução política da “questão social” remete ao crescimento da produção e do consumo, que só se explicam e funcionam a partir das leis do mercado. O ponto de vista de Schmitt enuncia, pelo contrário, que a economia é a modalidade contemporânea do político, de modo que a divisão internacional do trabalho constitui a “verdadeira constituição da Terra”.10 Todo regime econômico-político é construído e organizado a partir de três princípios, aos quais nem mesmo o capitalismo escapa, que são três significações distintas da palavra “nomos”. O substantivo grego nomos vem do verbo grego nemein e significa, em primeiro lugar, tomar. A palavra alemã nehmen, que serviu para Schmitt construir 9 Carl Schmitt. La guerre civile mondiale. Alfortville: Ère, 2007, p. 60. A fórmula original significa literalmente “tal príncipe, tal religião”. Nessa nova formulação, em lugar do poder, nós temos a indústria, a economia.

10 Ibidem, p. 81. 43


numerosas etimologias, possui a mesma raiz linguística. Em primeiro lugar, portanto, “nomos” significa “tomada, conquista”, isto é, “apropriação”. Toda nova sociedade (e toda nova sequência da dominação capitalista) começa pela apropriação e pela conquista que, depois de Marx, poderíamos chamar de uma “acumulação primitiva”. Até o capitalismo, essa fase consistia na apropriação/expropriação da terra como um pressuposto de todo direito e de toda economia. Para o capitalismo do século xx, pelo contrário, Schmitt propõe a expressão “apropriação da indústria” (Industrienahme) para traduzir a primeira significação de nomos nas condições do capitalismo industrial. “A tomada de posse do conjunto dos meios de produção, a grande apropriação industrial moderna, substituiu doravante o antigo direito de despojo e das apropriações de terras primitivas dos tempos pré-industriais.”11 Esse método de conquista pela indústria se distingue das velhas apropriações, que eram feitas unicamente “pela agressividade e pelo poder agudamente destruidor dos instrumentos de poder empregados”.12 Apenas a posse de um grande espaço industrial permite a apropriação do espaço mundial e, portanto, do governo de uma economia-mundo. A segunda significação de “nomos” é “partilhar, produzir partes”, isto é, dividir. Designando o “meu e o teu”, o nomos define a propriedade e o direito. A apropriação, por sua vez, requer e torna possível a medida. O fruto da apropriação — o que é adquirido pela “conquista, descoberta e expropriação” – deve ser “medido, pesado, dividido”. Como em Deleuze e Guattari, a avaliação-comparação e a apropriação correm juntas. Elas constituem a dupla pinça do aparelho de captura. 11 Ibidem, p. 60. 12 Ibidem, p. 81. 44


Em sua origem, o conceito de nomos designa uma partição e uma repartição específica e concreta de terras, mas “se você me perguntasse nesse momento o que constitui hoje o nomos da terra, eu responderia sem nenhuma hesitação: é a partilha da terra em regiões industrialmente desenvolvidas e em menos desenvolvidas”. É essa a verdadeira constituição “material” da terra. A terceira significação de “nomos” remete à produção (“apascentar, gerir, utilizar, produzir”). “Trata-se do trabalho produtivo, que se desenvolve normalmente com base na propriedade. A justiça comutativa da compra e da troca pressupõe tanto a propriedade resultante de uma primeira partilha, da ‘divisio primaeva’, como a produção. Esse terceiro sentido de nomos retira seu sentido das diferentes maneiras de produzir e de transformar os bens”.13 A crítica da troca e do mercado é sem ambiguidade. Esses três conceitos de nomos são contidos e articulados pelo que nós chamamos de economia — domínio de diferenciação que se pretende heterogêneo ao político. Lênin e Marx são, aos olhos de Schmitt, autores que não cederam inteiramente às sereias da produção, tal qual ela é considerada pelos economistas. Pelo contrário, eles foram buscar os fundamentos “políticos” do capitalismo na apropriação, na expropriação e na propriedade. Enquanto Marx considera a acumulação originária e sua violência apropriativa como as condições necessárias ao nascimento e ao desenvolvimento do capitalismo, Lênin vê no imperialismo e na colonização a apropriação que, sozinha, pode fazer face à questão social do fim do século xix e do início do século xx; os economistas, por seu turno, estimam que a “produção” é suficiente para resolvê-la. 13 Ibidem, p. 53. 45


A transformação revolucionária da “produção” pressupõe tanto para Marx como para Lênin “a expropriação dos expropriadores” e uma nova concepção da divisão e da partilha do que é meu e do que é teu, quer dizer, da propriedade. Mas isso também era verdadeiro, com modalidades reformistas, para o New Deal. Em Marx, a revolução deve se voltar contra os três conceitos de nomos, na ordem descrita por Schmitt. “Toda violência do ataque culmina na expropriação dos expropriadores, quer dizer, no processo de apropriação” — da “grande apropriação industrial”. Com a expropriação dos antigos proprietários, “surgem novas possibilidades de apropriação, a bem dizer consideráveis, seja na forma de propriedade ou de função social”.14 Expropriação e propriedade são condições políticas, tanto hoje como ontem, de toda mudança social e política. Nós podemos tirar algumas conclusões. O conceito de produção não deve ser limitado ao trabalho produtivo na fábrica. Não basta tampouco estendê-lo à atividade da sociedade no seu conjunto, pois ele também tem como conteúdo e pressuposto a apropriação e a divisão. O político não pode ser definido pela organização do “viver junto” ou pelo estabelecimento de um “mundo comum”, já que o viver junto e o mundo comum — obsessões das ciências sociais — são marcados, ab initio e em seu devir, por uma apropriação e por uma divisão preliminares e fundamentais. A “guerra civil” e o Estado social A maneira schmittiana de abordar a questão do Estado social escapa à sua redução (operada pelo pensamento econômico e sociológico) a simples funções de redistribuição 14 Ibidem, p. 60. 46


e de pacificação do laço social. Schmitt faz dele o terreno de expressão de uma “guerra civil” surda, da qual a crise da dívida está escrevendo um novo capítulo. Na crise contemporânea, os liberais — sob o véu da redução de despesas improdutivas do Estado social e da eliminação das pressões burocráticas que limitariam o crescimento — travam uma batalha decisiva pela apropriação exclusiva desse aparelho de captura, essencial ao funcionamento da economia capitalista. Aqui, também é preciso inverter o ponto de vista dos economistas e assumir a função política do Estado social. No capitalismo, segundo Schmitt, a questão da “apropriação” se torna aguda quando a função principal do Estado consiste, como no caso do Estado social da “proteção social de massa”, em distribuir ou redistribuir o produto social. Mas, antes que um Estado desse tipo possa distribuir ou redistribuir o produto social, ele deve tomá-lo, seja por meio de impostos, de confiscos, da distribuição de emprego, da desvalorização monetária ou por outros meios diretos ou indiretos. Resta o fato de que as posições de distribuidor e de redistribuidor são verdadeiras posições políticas, posições de poder que se tornam elas mesmas objeto de uma apropriação e de uma partilha. Sob esse ângulo, também a questão da apropriação continua a ser colocada.15

No fim da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha vencida instituiu um Estado radicalmente diferente daquele que exerceu a violência necessária para a “acumulação primitiva” e mesmo do Estado que acompanhou a revolução industrial: o Estado social. A associação do conceito de Estado 15 Ibidem, p. 64. 47


ao “conceito de social, que todos os partidos das democracias europeias retomaram” no pós-guerra, é sintomática de uma profunda transformação da natureza e do exercício da soberania. O Estado social é uma nova forma de Estado, que não tem mais muito a ver com o Estado-nação, cuja progressiva, mas inelutável desaparição é lamentada por Schmitt, pois ele perdeu sua autonomia. Suas funções e suas modalidades de ação estão subordinadas à lógica econômica: “É a estrutura especificamente econômica e industrial que determina a problemática” do Estado. O sistema político e o sistema administrativo devem ser “adequados ao desenvolvimento científico, técnico e industrial da sociedade”.16 “Estado”, “social” e “economia” são termos que devem ser sempre compreendidos como categorias e realidades atravessadas pelo conflito de classe, de modo que o Estado social deve ser sempre apreendido como o “despojo” de uma luta entre as forças que compõem a relação de capital. É dessa maneira que ele será compreendido pelos neoliberais.17 Schmitt também chama de Estado social o Estado total. Sob a sua pluma, o termo não remete ao todo poderoso Estado totalitário. Ele constitui antes um sintoma de fragilidade, de derrota e de decadência dos antigos princípios 16 Ibidem, p. 144.

17 Denis Kessler, número dois do sindicado patronal na França (Medef ), em um documento que marcou a tomada da sua direção pelos empreendedores da finança e do seguro, fala assim do “despojo”: as empresas devem “reinternalizar” a proteção social que elas externalizaram durante o fordismo ao delegarem-na ao Estado. Em 1999, ele avaliava em 2.600 bilhões de francos o despojo que as despesas sociais representam para as empresas de serviços. A privatização de mecanismos de seguro social, a individualização da política social e a vontade de fazer da proteção social uma função da empresa estão no coração do projeto patronal neoliberal (“A refundação social”) (L’avenir de la protection sociale. Commentaire, n. 87, automne 1999). 48


éticos e políticos do Estado. Depois de 1945, Schmitt não está mais certo de que se possa chamar ao conjunto das instituições de Estado que estão em curso na República Federal Alemã (RFA) de Estado, já que ele foi inteiramente transformado pelo processo constituinte alemão que, a partir de então, pensa em conformidade com o “mercado”. Na realidade, esse processo que começou com o nascimento do capitalismo foi intensificado e acelerado primeiramente pelo neoliberalismo e em seguida pela crise da dívida. Essas considerações de Schmitt foram suscitadas pelo debate que se desenrolou na Alemanha “a propósito não somente da economia social de mercado, mas também de uma questão constitucional: pergunta-se pelo sentido que pode ter esse Estado federal e esse Estado de Direito social que quer instituir a lei fundamental da RFA”.18 Schmitt criticava os partidários do Estado social de minimizar o problema da “apropriação”. Os liberais e, em particular, os ordoliberais não reconheciam a natureza política da apropriação e da partilha (divisão), pois eles parecem negar que seja preciso tomar de uns para dar aos outros. Schmitt, ao contrário, vê se perfilar por trás do Estado nascido depois da Segunda Guerra Mundial uma “ética da guerra civil” “disfarçada pelo Estado social de democracia e de paz”.19 O que o neoliberalismo e a crise da dívida nos lembram brutalmente é essa realidade política, já que a intensificação dessa “guerra civil de baixa intensidade” se desenrola em torno do aumento dos impostos (de quem tomar, quer dizer, a quem e como impor novos impostos?) e das despesas (de quem e como distribuir os rendimentos que são fruto da apropriação?). Desde o New Deal, o Estado social 18 Carl Schmitt, La guerre civile mondiale, p. 57.

19 Carl Schmitt. Ethique de l’État et État pluraliste. In: Parlamentarisme et démocratie. Paris: Le Seuil, 1988, p. 149. 49


é o terreno de um conflito entre forças políticas e sociais, pois é mediante esse dispositivo que é decidido de quem tomar e a quem dar. Nos textos de Carl Schmitt do pós-guerra, reencontramos o teor do debate que se desenrolou na época da fundação do Estado social, que vê em seu centro (como, aliás, indica o curso de Foucault Nascimento da Biopolítica) não apenas o conceito de “social”, de “sociedade” e de “socialização”, mas sobretudo o conceito de “apropriação”, de “propriedade” e de “distribuição” como pressupostos da “produção”. Singularmente negligenciada pelo trabalho de Foucault sobre o ordoliberalismo, a questão da propriedade está no centro do debate da época, que coloca em evidência, ao contrário do que se passa hoje, as concessões que o capital teve que fazer para sair da crise de 1929. Concessões que se referem ao que há de mais sagrado para os capitalistas — o direito à propriedade privada — dão a medida da intensidade da relação de força instituída pelo movimento operário e revolucionário no fim da guerra. Como afirma o jurista Hans Peter Ipsen, citado por Schmitt: “Isso supõe a substituição de um sistema de propriedade individual centrado no interesse pessoal e submetido a regras gerais de direito público sobre a propriedade por um sistema de integração plural graças ao qual os grupos sociais até agora excluídos da propriedade começam a ganhar acesso a ela”.20 Na realidade, essa substituição da “propriedade individual” é particularmente visível no Estado social, nos serviços públicos e nos “seguros” que cobrem a doença, a velhice, o desemprego etc. É contra essa relativa sobredeterminação do Estado social pelas instituições do movimento operário e pelas reivindicações de classe, institucionalizadas em direitos sociais 20 Citado em Carl Shmitt, La guerre civile mondiale, p. 58. 50


e serviços públicos, que se desencadeou o neoliberalismo, e decerto não contra as funções do aparelho de captura do Estado, nem contra sua frágil produtividade, nem tampouco contra o peso crescente que ele representaria em relação à economia privada. A crise mostra, pelo contrário, sua poderosa ativação. O Estado social do pós-guerra tornou possível uma nova distribuição e, portanto, um novo regime de propriedade, mas sempre sob o comando do capitalismo de Estado. O acesso ao que Castel chama de “propriedade social” era condicional, posto que indexado ao trabalho (ou melhor, ao emprego). Essa condicionalidade foi a maneira de reconhecer e de ao mesmo tempo neutralizar a força política do movimento operário. Uma vez que as lutas e as reivindicações dos anos 1960 e 1970 colocaram em questão essa condicionalidade e uma vez que, a partir do fim dos anos 1970, a força do movimento operário declinou, os neoliberais não tinham nenhuma razão para aceitar essa “apropriação” de “improdutivos” no “espólio” social. O que os liberais visam por meio da crise não é um Estado mínimo, mas um Estado livre da influência da luta de classe, da pressão das reivindicações sociais e da ampliação dos direitos sociais. A crise da dívida mostra sem nenhuma ambiguidade que o que está em jogo no Estado social é a apropriação, a divisão e a produção. A questão não é o equilíbrio orçamentário. A luta diz respeito aos três conceitos de nomos: “quem” se apropria, “quem” distribui e “quem” utiliza o “espólio” social. A crise da dívida é a batalha política pela apropriação definitiva do Estado-providência pelas forças neoliberais. A crise não é um simples fracasso econômico, mas uma falha da relação política de apropriação, de distribuição e de produção. Não é o crescimento que poderá desenhar uma saída da crise, mas novos princípios de apropriação, 51


de propriedade e de produção. O capital e o neoliberalismo estão na impossibilidade de pensá-los pois, como a via reformista está bloqueada, eles só podem colocar em funcionamento políticas autoritárias e populistas. Um alargamento do conceito de produção A concepção não economicista da produção necessita de um último e fundamental alargamento, pois a produção também é fundamentalmente “antiprodução”. O conceito talvez seja a contribuição mais importante de Deleuze e Guattari à definição da natureza do capital, pois ele nos livra da admiração que Marx ainda nutria pela sua produtividade e desvela seu lado “demente”, “destruidor” e “irracional”. O aparelho de captura, que nas sociedades pré-capitalistas era transcendente à produção (a aristocracia, classe não produtiva, confiscava uma parte da produção feudal), tornou-se imanente a ela. Ao mesmo tempo que o capitalismo produz riqueza, ele produz necessariamente pobreza e miséria. Necessariamente porque, na realidade, o capitalismo não visa a produção de riqueza, mas de valor, de valor que se valoriza e de lucro que produz outros lucros, ao infinito. O que implica que o crescimento é uma solução perversa ante a questão social e o problema da justiça, já que ele é ao mesmo tempo produção e destruição. Podendo produzir apenas na medida em que há apropriação privativa, o capital só pode reproduzir as desigualdades e as diferenças de classe que o crescimento deveria resolver. A produção e a antiprodução são indissociáveis e representam um trabalho de Sísifo, um trabalho infinito, mas que, reproduzindo continuamente a “falta” que ela deveria suprir, choca-se hoje contra a finitude física, biológica e material do mundo, do planeta e do ser vivo. 52


É atualmente ponto pacífico que a desterritorialização capitalista não é relativa, mas absoluta. Desterritorialização não significa apenas destruição da força de trabalho, das capacidades produtivas, das técnicas, das mercadorias e de modos de consumo considerados obsoletos para criar outros e para, destruindo-os por sua vez, criar outros novamente. Desterritorialização também significa destruição da terra, do planeta e do ambiente que tornam a vida possível. O capitalismo não possui território em si. Ele se apropria dos territórios para explorá-los e, uma vez explorados, ele os abandona para se apropriar e explorar outros, para abandoná-los em seguida, e assim ao infinito. Carl Schmitt, com o seu conceito de “apropriação da terra”, compreende unicamente uma parte das implicações dessa apropriação: “A história universal é uma história dos meios e dos métodos da apropriação: da apropriação de terras dos tempos nômades e dos feudais-agrários e das apropriações de mares até a apropriação industrial com sua distinção entre regiões desenvolvidas e não desenvolvidas”.21 A apropriação da terra por parte do capital é intensiva, pois ele a esgota, da mesma maneira que ele esgota o ser vivo e seu ambiente. O capital trata a terra, a matéria e os seres vivos que ali proliferam como “objetos” exploráveis. A apropriação extensiva (colonização, imperialismo e divisão do trabalho) vai de par com uma apropriação intensiva (esgotamento dos recursos naturais, poluição industrial e nuclear, desequilíbrio climático etc.). Tanto Bruno Latour como Michel Serres colocam dramaticamente a questão ecológica de uma “Gaia”, para um, e de uma “Biogeia”, para o outro, sem jamais evocar, ainda que furtivamente, o capital e a dinâmica do capitalismo. “Esquecimento” tanto mais surpreendente quanto a 21 Carl Schmitt, La guerre civile mondiale, p. 63. 53


pretensão de fundar uma “nova política” não pode fazer a economia de uma confrontação com o capitalismo e com suas leis, que a crise impõe a todos, até mesmo aos filósofos. O capital contém em germe e desde sempre não apenas a dominação da terra e de não humanos que a povoam, reduzidos a objetos apropriáveis e exploráveis, mas também sua possível destruição atual e eventual.

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