COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS A Coleção de Zines das Clínicas de Borda Psicanalíticas Brasileiras, aberta a novos fascículos, nasce da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadas e inconformados com a resposta clínica de seu fazer e de sua formação face à realidade nacional brasileira, exposta à brutalidade e à violência estrutural. Trazem experiências múltiplas e plurais, sem necessariamente criarem um mínimo comum, nas quais experimentam o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, meios de formação. Nasceram da resistência dos movimentos sociais, em reação a genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, deslocamentos migratórios, nas periferias, praças, estações, ocupações, quilombos. Seu fazer é produto da rua e dos modos possíveis de cuidado a que o enlace transferencial na direção do tratamento psicanalítico dá visibilidade e nome a corpos apagados no cotidiano. Instituem elementos necessários na teoria e na prática, revisitando as clínicas públicas e populares, datadas dos tempos de fundação do campo psicanalítico com Sigmund Freud. Reviradas pela experiência do Sul Global, em elipse, olham o avesso do espelho e atravessam suas fronteiras. Marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos modos de partilha e de presença. Saem definitivamente do modelo burguês do consultório individual. Recebem os analisantes, tanto online, quanto em cadeiras expostas ao sol, a fim de escutarem seu sofrimento. Colocam o pagamento em xeque, não mais no cheque. Trazem a marca de sua região, de sua língua, das ricas expressões dos dialetos brasileiros. Distribuem-se em cada canto do país e questionam o modo de circulação do capital e de resposta do inconsciente às violações cotidianas. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica psicanalítica e da lógica excludente da formação do psicanalista, enfim, sua presença na polis. Elas não estão todas reunidas aqui. A coleção, aberta, aguarda novas presenças nessa escrita histórica. A psicanálise mudou. A gente queria que você soubesse.
Zine Clínicas de Borda MUTABIS MUTABIS, 2023 Editora n-1, 2023 ISBN: Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagem e a especificidade de cada obra publicada. COORDENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes DIREÇÃO DE ARTE Ricardo Muniz Fernandes CAPA E DIAGRAMAÇÃO Thata Oliveros COMITÊ EDITORIAL DA COLEÇÃO CLÍNICA DE BORDAS Andréa M C Guerra Augusto Coaracy Daniel Mondoni Marta Togni Ferreira Pedro O. Obliziner A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessário a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. 1° edição | outubro, 2023. n-1edições.org
Título: Coleção Clínicas de Borda Autor: MUTABIS Medidas: 14x21 Número de páginas: Assunto geral do livro: Psicanálise de rua Palavras chave: Psicanálise; Clínica pública; Política; Clínica de borda ISBN:
Zine Clínicas de Borda COLEÇÃO: 1. PsiMaré (Rio de Janeiro/RJ) 2. MOVE: Movimentos Migratórios e Psicologia (Curitiba/PR) 3. ClínicAberta de Psicanálise de Santos (Santos/SP) 4. Falatrans (Juiz de Fora, UFJF/MG) 5. Ocupação Psicanalítica (Belo Horizonte/MG; Rio de Janeir/RJ; Vitória/ES; Santo Antônio de Jesus/BA) 6. Estação Psicanálise (Campinas/SP) 7. Coletivo Margem Psicanálise (Fortaleza/CE) 8. Intervenção Psicanalítica Clínico - Política às demandas da População LGBT (Rio de Janeiro/RJ) 9. Rede Sur (São Paulo/ SP) 10. Roda de escuta/grupos flutuantes LGBTQI+ (Aracajú/SE) 11. Clínica Periférica de Psicanálise (São Paulo/SP) 12. Clínica do Cuidado (Altamira/PA; São Paulo/SP) 13. Coletivo Psicanálise e Política e Cotidiano Refugiado (Rio de Janeiro/RJ) 14. Projeto Gradiva (Porto Alegre/RS) 15. Museu das Memórias (In)Possíveis (Porto Alegre/RS) 16. Psicanálise na Rua (Cuiabá/MT) 17. Coletivo Testemunho e Ação/SIG (Porto Alegre/RS) 18. Margens Clínicas (São Paulo/SP) 19. Coletivo Psicanálise na Praça Roosevelt (São Paulo/SP) 20. Psicanálise no Jacarezinho (Rio de Janeiro/RJ) 21. Mutabis (São Paulo/SP) 22. Clínica Aberta de Psicanálise (São Paulo/SP)
TERRITÓRIOS DE FORMAÇÃO Contamos aqui a história e as práticas de um grupo que eventualmente consegue operar como coletivo de psicanalistas, endereçando a formação em psicanálise numa perspectiva pública. Tão interessante quanto as invenções e propostas alçadas no caminho são as contradições e percalços em que esbarramos. Esbarrões, como não é de se espantar, que tocam as dimensões de classe, raça e gênero, que permeiam o mercado do saber – do qual a psicanálise, como qualquer campo de práticas e do conhecimento, não está isenta. O ponto a que chegaremos é o de práticas coletivas de formação em psicanálise em torno do estudo teórico. Práticas que se estabelecem em praças na cidade São Paulo, em que cadeiras de praia são colocadas em círculo e encontros de estudo são estabelecidos. E pensamos o público não só nas praças, mas também nas circulações online desses estudos, na perspectiva de uma plataforma que permita propor e organizar pessoas dispostas a sustentar espaços de formação teórica. Para dar vida a isso, daremos vários passos atrás, até quando estávamos engatinhando. Recuperar os traços que remetem à origem do Mutabis, nos convida a uma construção que se descobre atravessada pelos territórios da nossa própria formação. Territórios eles mesmos entrecortados por determinações de classe, raça e gênero, que produzem e reproduzem segregações no tecido urbano, mas também no tecido imaginário e simbólico dos caminhos desejantes dos aspirantes a psicanalistas. O que é um(a) psicanalista? Fim da década de 2000, bairro de Higienópolis, São Paulo, faculdade privada, jovens brancos recém formados em um curso de psicologia. Mesmo que não se pergunte de fato, de algum modo a resposta padrão a esta questão já pairava no ar, nas mentes e bocas. Consultório particular, divã, pessoas brancas, aparência sedutora, roupas caras, bairro de elite, carros, cafeteira, tapete, sofá confortável, quadros de pintores europeus, música “erudita” de fundo, belas luminárias, sessões caras, agenda lotada. Primeiro nos sentimos atraídos pela teoria, seduzidos por sua complexidade, suas trilhas cheias de mistérios, a excentricidade, a aura de um saber que soava acessível para poucos e parecia guardar a promessa de que adquiri-lo seria o mesmo que diferenciar-se: ter um lugar entre os “sabidos” da psicanálise. Sair da universidade, no entanto, lançaria um certo grupo desses jovens em uma vereda incômoda, da qual não tínhamos pista alguma sobre seu ponto de
início e rumos. Como “começar” um consultório? De saída, repartir o aluguel de um conjunto comercial e dividir as salas e horários nos parecia uma opção viável e promissora. Juntamo-nos em seis recém-formados, dentre os quais metade miravam tal ideal de psicanalista. Mas como “conseguir” pacientes? O estranhamento que nos leva hoje a marcar esses verbos com aspas traz as marcas de um percurso prático-crítico percorrido desde então e o alerta quanto ao avanço acelerado e capilarizado dos modos de fazer do neoliberalismo. Nada leva a crer que dessas iniciativas não pudesse ter surgido uma ‘startup’ ou que não estivéssemos pensando em termos da ‘prospecção’ de pacientes. Não só as determinações imaginárias ou o lugar simbólico ideal de psicanalista reproduzem exclusão. Também o atravessamento real do modo de produção material que nos impele aos modos de competir, aos jovens aspirantes a psicanalistas no esforço de se inserirem um "mercado da psicanálise", em busca de "clientes psicanalisandos". Naquela época os celulares eram bem mais limitados, o mundo mal usava as redes sociais da internet, então dar um nome pomposo ao nosso grupo, fazer cartões de divulgação e espalhá-los pelos estabelecimentos e escolas da região foi nossa resposta. No percurso dessa nossa elaboração do passado, um recalque territorial de súbito nos arrebata: no tal cartão, a troca do nome do bairro onde de fato estávamos, Santa Cecília, pelo nome do bairro vizinho, Higienópolis. O primeiro se encontrava, em uma época ainda anterior à fetichização e gentrificação recentes, majoritariamente habitado pelo que costuma-se chamar de classe média. Ainda hoje segue povoado por uma população oriunda dos estados do nordeste brasileiro, fato que marca a cultura do bairro, por exemplo, com as inúmeras “Casas do Norte” que vendem alimentos tradicionais da região, mas também pela alta concentração da população em situação de rua que ocupa as calçadas do bairro, estes de várias regiões do Brasil, do norte e nordeste em específico, e da América Latina. O segundo, bairro de classe alta,, prédios luxuosos, academias, supermercados, colégios e faculdades caras (uma delas na qual se formou em Psicologia esse grupo pré-Mutabis). Em uma das fronteiras que separam Higienópolis de outros bairros, uma linha estabelece concretamente a segregação: uma via elevada para automóveis chamada de “Minhocão” pelos paulistanos, que denuncia para quem tem olhos a
divisão entre riqueza e pobreza, dependendo do lado para onde se vira a cabeça. Na mesma época em que dávamos os primeiros e ingênuos passos no mercado da psicologia clínica, moradores de Higienópolis faziam jus a parte do nome do bairro e divulgavam um abaixo-assinado contra a construção de uma estação de metrô em uma de suas principais vias, a Avenida Angélica. Manifestavam preocupação com possíveis “ocorrências indesejáveis” decorrentes da inauguração de uma estação no local. "Eu não uso metrô e não usaria. Isso vai acabar com a tradição do bairro. Você já viu o tipo de gente que fica ao redor das estações do metrô? Drogados, mendigos, uma gente diferenciada...", palavras de uma psicóloga(!) residente no bairro, em entrevista a um jornal na época. Não há muito tempo voltamos nosso olhar para essa espécie de recalque originário desse grupo de psicólogos recém-formados que, futuramente e com uma composição diferente, nomearíamos Mutabis. O fato de decidirmos grafar Higienópolis em nosso cartão de apresentação mostra que aderíamos a uma espécie de lógica publicitária, onde o significante substituto esconde dos olhos do Outro nossa condição proletária de aspirantes a empreendedores da clínica, para sustentar um imaginário higienizado, filiado à elite, pois afinal, não é isto um(a) psicanalista? Nessa composição mercadológica, foram propostos e divulgados cursos e mais cursos de temática psicanalítica. Estes tinham mais ou menos ibope, e aconteciam mediante o uso de uma sala que havia no prédio onde os seis jovens recém formados alugavam um consultório. Uma correria, não correspondente aos ideais que um dia inflaram certo horizonte do que "seria um psicanalista". Vale ressaltar que a parte desse grupo original que levaria ao Mutabis era composta por pessoas que estavam vivendo experiências de atuação em políticas públicas no SUS e no SUAS, como trabalhadores em tempo integral. Seja pelo trabalho clínico, seja pela experiência no SUS e no SUAS, ou ainda pelos percursos heterogêneos e descontínuos em pós-graduações e escolas de psicanálise, aquele grupo e aquelas aspirações caíram. Retomava-se, agora já com alguns anos de experiência, a questão do que seria formar-se como psicanalista, mas com outras bases. Já sem o sexteto recém formado, com outros horizontes e bagagens, especialmente de uma formação clínico política nas políticas públicas – foi de um encontro em torno disto que surge o Mutabis. A experiência clínica em políticas públicas era um ponto comum, central em nossas formações como psicanalistas.
O ESPAÇO MUTABIS A nossa proposta inicial ainda era desenvolver um trabalho remunerado, numa perspectiva privada, ainda que acessível. Nossa principal diretriz, nossa pergunta norteadora era “o que gostaríamos de ter visto no início da nossa formação como psicólogos e não nos foi apresentado?” Especialmente como uma inquietação tomada a partir da psicanálise. Essa volta é um pouco mais longa, ela exige reinterpretar a largada. Tem um pouco mais a ser dito sobre essa diretriz inicial. Acontece que olhando daqui, vemos mais claramente que lá nossa intenção já tinha um alicerce ético-político mais militante do que empresarial. A ideia era simples no final das contas: gostávamos muito das nossas pesquisas na pós-graduação e conhecíamos um tanto de gente trabalhando com temas incríveis que nos pareciam de suma importância serem transmitidos mais amplamente. Estávamos no meio de um caldo de produção acadêmica de altíssima qualidade. Um tanto de gente pesquisando, a partir da psicanálise, temas pouco ortodoxos, com perspectivas críticas e articulações teóricas inventivas e novas. Isso deveria chegar até o pessoal que está no início da graduação! Daí já havia uma proposta de torção desse vetor supostamente reto e unidirecional que propõe da graduação até o doutoramento (às vezes mais, vai da coragem e paciência de cada um), uma linha cujo final está o acesso ao lugar de professor. Enfim, uma carreira acadêmica onde só no fim você tem acesso aos degraus da hierarquia de onde finalmente pode transmitir o que fez pra quem tá chegando. E se ao longo desse percurso a gente pudesse já ir retornando os resultados pro começo da linha? Como essa linha seria daqui pra frente com essas novas pessoas chegando já influenciadas pelo que tem um pouco mais a frente? E se essa linha reta pudesse ser mais como um rabisco, cheio de espirais? Mais ainda: e se esse espaço de troca não precisasse acontecer dentro da universidade? Quando desistimos dessa primeira proposta, isto é, quando ainda cobrávamos e emitíamos certificados, estávamos dando palestras e cursos livres a partir de dentro de uma galeria de arte independente no centro de São Paulo, enquanto transmitíamos ao vivo pela internet pra facilitar o acesso de quem não pudesse chegar ali – e isso alguns anos antes desta prática ser generalizada, com o modelo híbrido e assíncrono habitual desde a pandemia de COVID-19. Em resumo, a ideia anterior era a de organizar a brincadeira pra que
saísse barato pro público que tivesse interesse ao mesmo tempo em que a gente pagasse a melhor hora-aula possível pra quem estivesse palestrando. O método era simples: garantíamos um valor base digno pago a quem palestrasse. Com essa base de cálculo e os nossos custos técnicos, era fácil determinar qual era o mínimo de inscrições para que o evento acontecesse e o excedente era dividido por porcentagem sempre maior para quem palestrava, um pouco para o espaço que nos acolhia, o mesmo ou menos para nosso caixa. Nós mesmos não tirávamos lucro daí. Só ganhávamos algum dinheiro quando éramos os palestrantes. Então tínhamos na prática um projeto que tentava alinhar uma subversão da (mercado)lógica universitária a um incentivo profissional de quem estava começando o percurso de pesquisa dentro de uma espécie de micro-modelo de economia solidária. Outra forma de circulação e distribuição do capital (financeiro e simbólico), na qual era necessário abrir mão da acumulação de lucros: na tentativa de promover um dispositivo em que as pesquisas da pós interferissem na graduação, que, por sua vez, pela promoção do diálogo, intervinha na pesquisa pós-graduada. Era frequente que o público trouxesse questionamentos e dúvidas a respeito do conteúdo de um modo que nos ajudava a rever pontos da pesquisa. Muitas transferências estabelecidas nesse momento seguem até hoje, em outras circunstâncias de trabalho.
RUMOS ÀS PRAÇAS E ÀS BORDAS Nos apaixonamos por esse modelo, mas paixão é paixão né? Logo acaba. O que houve? Bom, o que houve foi que na prática estávamos oferecendo horas complementares baratas. Muito rapidamente o presencial se esvaziou e o online (que era ao vivo e a gravação disponibilizada posteriormente) seguia sendo a preferência . Tínhamos um público majoritariamente formado por alunos de graduação que viam em nós uma fonte de certificados bacanas de horas complementares a preços módicos, sem nenhuma exigência de comprometimento. Mas, e agora (que nossos modelos iniciais, mais mercadológicos, não pareciam mais apelar aos nossos próprios desejos)? Foi necessária uma nova reflexão para poder nomear a nossa atual perspectiva. Foi aí que num almoço pra decidir o cronograma do próximo semestre, lá na metade de 2018, decidimos que o cronograma era abandonar essa proposta, usar o dinheirinho de caixa que ainda tínhamos para comprar cadeiras de praia e nos juntarmos ao Psicanálise na Praça Roosevelt. Nossa ideia, porém, foi de fundar um grupo de estudos na praça ao invés de operarmos clinicamente. Esse foi o disparador para que o Mutabis se transformasse em outra coisa. Aliás, está no nosso nome: mudarás. É a nossa única garantia. Agora, estávamos quinzenalmente na Praça Roosevelt, ao lado do coletivo clínico que lá comparecia semanalmente, mas com a proposta de sustentar um percurso teórico em psicanálise, que lá começava e segue até hoje. Ocupávamos o espaço, a clínica e o Mutabis, com cadeiras de praia. Essa composição conjunta aos sábados, 11h, já era um modo de posicionamento à margem dos modos clínicos e tradicionais da psicanálise. Convém contar um pouco do primeiro encontro do grupo de estudos na praça. Anunciamos nas nossas redes a chamada, nomeamos de “grupo de estudos” e no tema dizíamos “psicanálise e instituições públicas”. Esse primeiro encontro já foi o instante de ver alguns problemas: “grupo” não parecia um significante desejável; também “instituições” e mesmo essa colocação da psicanálise numa relação de adição com essas instituições pelo conectivo “e”.
Depois de sermos batidos pelo processador que foi esse encontro, ficaram apenas “Estudos na Praça” que é o nome do projeto até hoje. E quando ainda designávamos o tema, ele era “práticas públicas em psicanálise”. Não é o caso de descrever todo esse primeiro encontro, mas convém contar que agregamos pessoas que vieram por conta da proposta publicada na internet, como também pessoas que estavam ali para serem atendidas pelo Psicanálise na Praça Roosevelt. (Aliás, Mutabis e Psicanálise na Praça Roosevelt são confundidos até hoje. Talvez isso mude um pouco agora que estamos também em outra praça onde não há clínica.) Essa mistura, porém, foi fundamental para que víssemos o principal equívoco da proposta inicial, que era supor um percurso e, oferecê-lo: "venham fazer um grupo de estudos na praça sobre psicanálise e instituições públicas". Isso era apenas levar para a praça mais ou menos o que fazíamos antes no modelo privado e gerador de certificados de horas complementares. Quem veio - e vieram umas 15 a 20 pessoas naquele primeiro encontro - pôde nos fazer esse favor de mostrar, ainda que indiretamente, que não seria assim como pensávamos e que se havia razão de estar ali, era outra. Até hoje estamos descobrindo nossa razão de estar aí em tudo que estamos. Onde estamos? Na praça? Na internet? Hoje vai ficando cada vez mais claro que o trajeto que percorremos deve estar na borda.
TIRAMOS NOSSOS NOMES Os estudos na Roosevelt deram frutos e tínhamos de novo um espaço de sustentação do nosso desejo. No entanto, o Mutabis não era só a roda de cadeiras quinzenalmente aos sábados na praça. Começamos a pensar em fazer do site e das nossas redes sociais uma plataforma para novos projetos que agora se alinhavam a essa perspectiva que vinha se produzindo e que na época chamávamos de “clínicas públicas”. A coisa toda foi tomando forma e essa forma é um tanto fluida até hoje. Nossas redes sociais ficam dedicadas à divulgação dos nossos eventos mas também de tantos outros conteúdos como notícias, podcasts, documentários, eventos de outros coletivos, de núcleos de pesquisa, etc. No site¹, desenvolvemos um formato pensado a partir do tripé da formação em psicanálise. Tiramos de lá os nossos nomes e deixamos apenas o fluxo de ideias e os projetos. Tudo ainda está em experimentação, mas a proposta é que haja projetos de estudo teórico, um mapeamento dos locais onde há atendimento clínico e também projetos para supervisão. Esse último pé é o mais difícil. Mas antes de falar dele, que ainda é uma intenção, precisamos falar do que já foi feito e do que isso produziu. Nossa dedicação mais direta é aos projetos de estudo teórico e pensamos que essa seja nossa marca desde lá de trás. Gostaríamos de apenas somar esse nosso traço às clínicas que já vêm se produzindo, ao invés de formarmos nossa própria clínica. Nossa intenção com as práticas clínicas públicas, portanto, é apenas mapear o que está acontecendo e também nos colocar em diálogo com esses coletivos, além de procurar promover espaços de diálogo entre eles. É por essa via que esboçamos, por exemplo, algumas ideias a respeito da supervisão: procurar pela promoção de espaços de troca entre essas clínicas de rua de psicanálise voltados para supervisão, o que talvez fosse melhor chamar de intervisão… mas aqui tudo é esboço ainda. O fato é que nosso desejo é de nos sustentar enquanto um espaço inter-coletivos, uma espécie de ponto de intersecção nos fluxos desse movimento plural que vem surgindo a partir da psicanálise. Movimento que chamamos de público, já chamamos de psicanálise de rua, a céu aberto, agora temos flertado com esse significante “de borda”. A partir daqui podemos dizer de algumas elaborações que nossa prática vem nos permitindo. ¹ www.mutabis.org
PÚBLICO, GRATUITO, DEMOCRÁTICO? É aqui que voltamos à largada, àquela diretriz inicial desde os tempos de cursos privados. Nossa abordagem talvez sempre tenha sido topológica. Antes queríamos dobrar o plano da carreira acadêmica, fazer aquele origami que transformasse aquela folha reta em uma coisa mais interessante. Hoje entendemos que não apenas nosso fazer, mas o desses tantos que fazem a “psicanálise de borda”, é um fazer que precisa ser lido em sua torção topológica. Isso nos parece fundamental. Pra tentar tornar claro, podemos tomar a coisa por um exemplo: pouco antes da pandemia já começavam a circular pela internet algumas listas de locais que oferecem atendimento psicológico gratuito. Nessas listas eram colocados em série desde clínicas-escola de faculdades de psicologia, até os CAPS, passando pelos projetos como Psicanálise na Praça Roosevelt, Clínica Pública de Psicanálise da Vila Itororó, Clínica Aberta da Casa do Povo. Podem estar listadas em série essas propostas? O que produz essa série? O que faz conjunto aí é o significante “gratuito” que se sobrepõe ao “público”. Pensamos que esse equívoco ressoa também em outro que é quando vem para a discussão o significante “democrátco”. Sempre que as iniciativas dos coletivos de psicanalistas são trazidas para a discussão, é imprescindível tomar o cuidado de não permitir que “democratizar” e “tornar público” sejam tomados como simples equivalentes de gratuidade. Talvez seja mesmo hora de procurar por outras nomeações para nossas iniciativas, para nossa intenção, para aquilo que nos constitui e a que nos filiamos em termos ético-políticos. Parece um bom começo nomear essas iniciativas pela via da “psicanálise de borda”, pelo simples fato de que isso permite tomar a coisa pelo seu caráter de torção topológica. Afinal de que borda falamos? O equívoco é claro e já pode ser descrito com precisão: está equivocado quem toma nosso fazer como simples ação de levar a psicanálise até a periferia do capitalismo (que ocupa tanto o centro da metrópole quanto a margem), como se estivessem os levando um serviço caro até um público que não pode pagar. Público não pode ter aqui o mesmo sentido que tem na pesquisa de marketing, quando integra o sintagma “público alvo”. É preciso que seja atributo indissociável da noção de democracia. Portanto, tomar o democrático como sinônimo de acessível economicamente é considerar o “dēmos” e jogar fora o “kratía”. Sabemos que o povo (dēmos)
é formado dos 99% que não tem acesso ao poder (kratía) que o dinheiro representa. Daí que se torna imprescindível disputar o espaço público para que possamos, enquanto povo, exercer poder sobre ele que é, por definição “para todos”. Quando psicanalistas propõem atender no espaço público, estudar nesse espaço, se formar nesse espaço, sua ação não pode ser entendida como levar um serviço caro para fora da fronteira econômica onde reside. A psicanálise não é um serviço, é, entre outras coisas, uma aposta ética e política. Vemos a nossa aposta, em conjunto com a de outros coletivos, como uma aposta de levar a psicanálise ao encontro do que não chega a ela e não de onde ela não chega. Atender ou estudar nas bordas não é levar a psicanálise para doá-la como quem doa comida a quem não tem. É expor a psicanálise desde sua teoria até seu fazer clínico para fora do feudo sócio-econômico de onde ela não sai. Daí que quando vamos às bordas não é para levar nada, é para buscar. Quando a psicanálise é efetivamente tornada pública, apostamos que ela se transformará para se manter ela mesma. Esse resultado que ainda está por vir, uma psicanálise pública, democratizada, que sofra o deslocamento de poder que o devolve para o sujeito, nos parece a versão que o nosso tempo nos pede do gesto freudiano que a fundou. Nos caberá então, enquanto psicanalistas, absorver o que nos é dado. Estamos nas bordas do nosso saber para nos formar de modo a poder atuar para fora da interioridade do privilégio, do individualismo. Não estamos aí pelos menos privilegiados, estamos (cientes de nossos privilégios que nos permitem agir) bordeando um caminho para não nos tornamos aqueles que crêem na distinção entre dentro e fora. Há, porém, uma particularidade da psicanálise que talvez a torne relevante na luta política. É o fato de termos condições de formalizar uma proposta de coletividade para além da massa homogênea. Não somos todes iguais… melhor: não em tudo! E é em nossa singularidade que está a condição do conjunto: o que nos permite nos reconhecer a todes como semelhantes passa pelo reconhecimento da diferença, a começar pelo reconhecimento da nossa própria. Para isso uma análise pode servir, levando um sujeito a reconhecer sua radical diferença, que o separa de sua alienação e permite que se relacione com o outro como um igual nessa condição – ao invés de procurar os “seus” e dividi-los dos “outros”.
FAZER-SE PRAÇA E CIRCULAR DISCURSOS Os projetos do Mutabis mudaram também diante da pandemia do COVID19. A perspectiva de ocupar uma praça, em um modelo na-rua de funcionamento já não era possível e a internet se tornou o único lugar onde as nossas atividades passaram a ocorrer. Esta transição, no entanto, não se deu sem conflitos: como reproduzir uma lógica que funcionava a partir da praça como operador em um ambiente como a internet? Elementos como os transeuntes e o clima já não estavam presentes da mesma forma, assim como a liberdade de olhar para outros espaços (e o céu), além da impossibilidade de encontrar-se num pós-praça para dividir uma cerveja. Dizemos que estes elementos não estavam presentes da mesma forma pois acreditamos que não tenham se apagado por completo. É no contexto da pandemia que as questões acerca da formação do analista - na rua, no público e na borda - ressurgem. E que se condensam em uma espécie de cisão dos projetos do Mutabis, antes centralizados na Praça Roosevelt e na tentativa de efetivá-la online. Entra "em tela" a criação de um projeto desenhado por um membro do Mutabis e por uma recém-graduada (até então, externa ao coletivo). De tudo isto, podem ser recolhidas algumas consequências. Neste projeto, que é endereçado ao Mutabis, são repetidas as perguntas: ”o que fazer agora que me formei?” e “o que eu gostaria de ter visto em minha graduação?”. A (re)atualização destes questionamentos entra em uma longa discussão, que já estava em andamento, sobre o que é o projeto ético-político do Mutabis e qual sua localização no campo da psicanálise. O que passa pelo resgate do desejo que já se anunciava na nossa primeira ocupação da Praça Roosevelt, mas também pela entrada de uma nova membra, depois de anos em que o Mutabis era sustentado por um trio, que possuía uma configuração específica. Homens, brancos, vindos de uma formação que passava pela pós-graduação e que residiam em bairros médio-centrais na cidade de São Paulo. A decisão de integrar uma nova pessoa acontece não só por uma transferência de trabalho, mas por um alinhamento ético (fruto das discussões) e também por laços afetivos. No entanto, não é sem uma angulação diferente: o Mutabis agora é sustentado por três homens brancos e uma mulher preta, que mora a duas pontes de distância do centro de São Paulo, egressa do PROUNI e que deseja, também, uma formação possível em sua borda, na praça de sua casa.
Embora não seja deste lugar que esta entrada se dá, não é sem tais marcadores que ela acontece. É o que permite dizer que o Mutabis já não é mais um coletivo branco, nem de homens, nem de classe média. Esta entrada se dá pela via do trabalho: na sustentação de um projeto novo chamado de Biblioviária. Este foi a efetivação da proposta de fazer do site uma aglutinação de pessoas desejosas por trilhar coletivamente um destino literário, isto é, uma trilha de leitura e de formação conjunta, que pudesse ser proposto por qualquer pessoa, contanto que houvesse um mínimo compartilhamento ético-político com os integrantes do Mutabis. Nosso papel seria o de dar condições materiais para a divulgação e prática de grupos online, além de propor alguns destinos literários. Outro projeto que se manteve online durante a pandemia foi o Estudos na Praça. Este contou com a estrutura remota e online inventada pelo Mutabis para procurar manter vivo o desejo de seguir a formação, durante a pandemia. Muitos dos que iam à Praça Roosevelt presencialmente mantiveram a prática online. Por bastante tempo na pandemia, a frequência tornou-se semanal. Os estudos, afinal, tornaram-se um modo de apoio e de conexão com o mundo externo, naquele doloroso e incerto momento, especialmente no início da pandemia. Nestes dois projetos que se mantiveram online, a lógica de praça retorna. Agora com uma posição mais incisiva acerca do próprio projeto político, no qual o Mutabis seria o chão-comum para que interessados possam se encontrar e discutir psicanálise. A ideia de pensar o Mutabis também como uma praça provoca algumas reflexões. Uma delas é pensar a centralidade de quem ocupa o Espaço Mutabis: de fato, o que faz esse espaço se sustentar é que existam pessoas (psicanalistas, transeuntes, pessoas que chegam pelo próprio processo de análise, artistas, estudantes de psicologia) que estão dispostas a sentar-se em uma praça e discutir psicanálise. Nesta disposição, muitas vezes também se apresenta um interesse em outro modelo que não seja uma repetição do institucional-escolar-curso, mas mesmo os que chegam com tais expectativas se deparam com um modo diferente de circulação do saber, das possibilidades de fala e das próprias escolhas de cronograma e dos textos. Tal como uma praça, é a circulação e interconexão dos seus elementos constitutivos que caracteriza sua ação, e que também permite medir os efeitos que os projetos possuem. Não raras as vezes que evocamos a proposição de Lacan sobre a circulação dos discursos, procurando sempre
distinguir a posição de quem é proponente de um destino literário, ocupando a fala para isto, com a de mestre ou professor universitário. Aos proponentes de um itinerário na Biblioviária ou da discussão de um texto no Estudos na Praça, restaria um lugar de instigação do desejo de saber, muito mais do que ser laureado como "aquele(a) que sabe". As lógicas coletivas que aí ressoam fazem lembrar o fato de que abrimos mão do termo "grupo" para designar os estudos feitos, seja nas praças, seja online. Outro ponto é poder articular uma potência que as praças possuem, e em específico na cidade de São Paulo, enquanto lugar de encontro e de formação. Nas praças são realizados eventos, bailes, comícios, campanhas de vacinação, e por que não, psicanálise? Pensamos que uma praça é a conjunção entre um espaço vazio e o seu compartilhamento por uma comunidade. Tenha ela elementos de jardim, de fonte, de descanso ou de lazer, uma praça se configura pelo espaço vazio que é delimitado num espaço maior. É a partir deste vazio que o espaço é designado enquanto praça, e que pode ser chão para a construção dos sujeitos (aqui, políticos) na cidade. Ora, nos parece que colocarmo-nos como uma praça pode ser justamente a sustentação de uma ética compartilhada entre a cidade e a psicanálise, à medida em que é o vazio que permite o desejo emergir, circular, ocupar outros lugares e cavar novas perspectivas. Atualmente, no ano de 2022, os projetos do Mutabis seguem se dividindo em Estudos na Praça (agora, na retomada presencial) e Biblioviária. O primeiro é o segmento da primeira ocupação na Roosevelt somada à tentativa de ocupar outras praças, e o segundo segue no modelo online proposto na pandemia. Ambos projetos partem deste alinhamento radical a ideia de praça, à medida que se constituem a partir de um espaço vazio, mas com uma diferença importante: o Estudos na Praça está, de fato, nas praças de São Paulo, e a Biblioviária, desde seu início, é pensada no formato online, para que inclusive permaneça online mesmo após o retorno seguro às ruas. Esta diferença não é sem consequências para os projetos, dado que ser online permite que pessoas do Brasil inteiro possam participar de sua composição, ao mesmo tempo que restringe tais encontros ao ambiente virtual. O exercício de rememoração e de reconstituição da história do Mutabis, feito para este zine, situa em uma boa hora também as questões relativas ao futuro. Agora, no retorno às praças principalmente, mas na continuidade dos projetos online também, é que temos nos deparado
com um esvaziamento de participantes, uma resistência que comparece transversalmente em todos nossos espaços. Diante deste cenário que nos encontramos, surgem questões: estaríamos diante de uma certa falência do comum em todas as suas esferas, inclusive na prática em espaços públicos? Ou ainda, quais são as consequências imediatas e a longo prazo de dois anos de pandemia e quatro anos de um governo que levou a sério seus projetos neoliberais e necropolíticos? Veremos o que o futuro nos reserva: mais uma crise, uma quebra, características de nossa trajetória até o momento e presente em nosso nome. Mudarás.