Nietzsche, o bufão dos deuses

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NIETZSCHE, O BUFÃO DOS DEUSES © n-1 edições, 2017 © Maria Cristina Franco Ferraz, 2017 Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada. coordenação editorial Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes assistente editorial Isabela Sanches projeto gráfico Érico Peretta preparação Humberto Amaral revisão Roberta Vasconcelos A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.

n-1 edições São Paulo | Maio, 2017 n-1edicoes.org



Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) F434n Ferraz, Maria Cristina Franco Nietzsche, o bufão dos deuses São Paulo: n-1 edições, 2017 ISBN 978-85-66943-38-2 1. Nietzsche, Friedrich Wilhelm (1844-1900) 2. Ecce homo - crítica e interpretação I. Título 94-1208

CDD: 193 CDU 1 (430)


“Aqui cresce algo maior do que aquilo que somos”: eis nossa mais secreta esperança… friedrich nietzsche (Aurora, § 552)



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Ecce homo : “Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal” “ouçam-me”/ caso Pohl 10 _ Wagner 11 _ editores 15 anzol 28 _ leitores 29 _ europeu 40 “pois eu sou tal e tal”/ caso Malwida/ idealismo 50 ex-centricidade 65 _ antissemitismo 69 história 82 _ Zaratustra 85

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Zaratustra: do “trágico” ao trágico Zaratustra: sacralização/mitificação 93 _ Fênix 93 gravidez 101 _ pêdân 104 _ Selbstaufhebung 112 o “trágico” 119 _ “terceiro olho” 126 _ paródia 129 a “grande saúde” 137 _ o trágico 148 _ hybris 155

163 Ecce homo : genealogia e epitáfio o pai/a morte 164 _ túmulo paterno 178 mãe e irmã: “canaille” 186 _ incidente Lou-Rée 186 a “querida lhama” 201 _ eterno retorno 209 mulher 216 _ “eterno feminino” 218 _ “ecce” 226 epitáfio 229 _ sacrifício 230

241 Posfácio 249 Referências bibliográficas 253 Sobre a autora


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Ecce homo: “Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal” “ouçam-me”/ caso Pohl 10 | Wagner 11 | editores 15 | anzol 28 | leitores 29 | europeu 40 | “pois eu sou tal e tal”/ caso Malwida/ idealismo 50 | ex-centricidade 65 | antissemitismo 69 | história 82 | Zaratustra 85

Ecce homo: “Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal” 93

Zaratustra: do “trágico” ao trágico Zaratustra: sacralização/mitificação 95 | Fênix 95 | gravidez 103 | pêdân 106 | selbstaufhebung 114 | o “trágico” 128 | “terceiro olho” 128  paródia 131 | a “grande saúde” 139 | o trágico 159 | hybris 157

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Ecce homo: genealogia e epitáfio o pai/a morte 168 | túmulo paterno 182 | mãe e irmã: “canaille” 190 | incidente Lou/Rée 190 | a “querida lhama” 205 | eterno retorno 213 | mulher 220 | “eterno feminino” 222 | “ecce” 230 | epitáfio 233 | sacrifício 234

245 Posfácio 253 Referências bibliográficas


Ecce homo: “Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal”

No prólogo a Ecce homo,1 texto autobiográfico escrito a partir de 15 de outubro de 1888, Nietzsche explicita as razões imediatas que o levaram a “dizer quem ele é”. Se o filósofo se encontra diante de sua verdadeira grande tarefa de se dirigir “à humanidade com a mais pesada exigência que lhe foi jamais colocada” — “a transvaloração de todos os valores”2 —, é obrigado a se dar a conhecer, pois, como escreve, “a desproporção entre a grandeza de minha tarefa e a pequenez de meus contemporâneos manifestou-se no fato de que não me ouviram e nem sequer me viram”. Assim, em 1888, ele chega a duvidar da própria existência: Vivo de meu próprio crédito; seria um mero preconceito, que eu viva?… Basta-me falar com qualquer “homem culto” que venha à Alta Engadina no verão para convencer-me de que não vivo… Nestas circunstâncias existe um dever, […] que é dizer: Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo não me confundam! (p. 39) Neste trabalho, farei referência à tradução de Ecce homo feita por Paulo César de Souza (São Paulo: Max Limonad, 1986), alterando-a por vezes a fim de aproximá-la ainda mais do texto original. Quanto às demais citações de Nietzsche, traduzo-as diretamente do alemão a partir da edição crítica de Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Em meu texto, as obras do filósofo frequentemente terão os títulos abreviados. A fim de diminuir a quantidade de notas ao máximo, decidi, além disso, incorporar as referências bibliográficas ao corpo do trabalho. Todos os grifos são do autor. 2. Traduzo Umwertung aller Werte por “transvaloração de todos os valores”, procurando conservar, como no original, a repetição enfática do termo “valor” [Wert] na expressão cunhada por Nietzsche, bem como a ideia sugerida pelo prefixo um–, que tanto pode indicar movimento circular quanto uma mudança, como em Umbau [transformação arquitetônica] e em Umpflanzung [transplantação], para citar alguns exemplos. 1.

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Nesse momento de sua existência, extremamente preocupado com a eficácia de sua obra, Nietzsche se exaspera com o fato de ser pouco lido, sobretudo na Alemanha, e mais ainda com o fato de, mesmo quando lido, ser objeto de toda espécie de mal-entendidos. Para avaliar o grau de exasperação de Nietzsche, é necessário conhecer certas circunstâncias ligadas à sua situação de total isolamento. Tal situação se evidenciava, em primeiro lugar, nas dificuldades crescentes com que se defrontava para atrair leitores para seus livros. A fim de apreender toda a dimensão do impasse no qual o filósofo se encontrava, deve-se conhecer em detalhe os desdobramentos de sua relação com o circuito editor–público. Por outro lado, se os mal-entendidos que cercavam sua obra por vezes apenas configuram o contexto de Ecce homo, mais frequentemente ainda tais confusões se inscrevem de forma explícita nesse livro. Para ler um texto complexo como o Ecce homo, torna-se, portanto, imprescindível ter uma ideia mais precisa das circunstâncias que envolviam de forma imediata sua produção. Veremos que a entrada no texto pelas margens permitirá dar conta dos elementos internos, como o tom da obra e os traços específicos de seu estilo. Partamos de uma polêmica praticamente contemporânea à redação de Ecce homo, que autoriza uma primeira abordagem ao texto, permitindo ao mesmo tempo uma visão global da situação de isolamento que atormentava Nietzsche. Trata-se de uma polêmica breve, suscitada principalmente nos meios wagnerianos pela publicação de O caso Wagner, em 16 de setembro de 1888. Cada momento dessa polêmica, suas consequências e efeitos ressoarão direta e indiretamente em Ecce homo.

“ouçam-me”/ caso Pohl

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Em 25 de outubro de 1888, o wagneriano Richard Pohl publica um artigo com o título paródico “O caso Nietzsche”, no número 44 do Musikalisches Wochenblatt [Hebdomadário musical]. Na época, o hebdomadário era dirigido por E. W. Fritzsch,

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editor de todas as obras do próprio Nietzsche anteriores à terceira parte de Assim falou Zaratustra, tendo adquirido os direitos autorais antes em mãos de Schmeitzner. Pohl se apoia em um trecho de O caso Wagner no qual Nietzsche afirma ser percorrido por outros pensamentos quando ouve a música de Wagner e, tomando tal passagem ao pé da letra, acusa o filósofo de ser um “típico não músico”; pois, prossegue, “para o músico, é absolutamente impossível pensar, durante a música, em outra coisa senão na própria música…” (in Janz, Biographie iii, p. 370). Desenvolvendo uma lógica psicologizante já anunciada no subtítulo igualmente paródico de seu artigo (“Um problema psicológico”), Richard Pohl interpreta O caso Wagner como expressão da inveja e da frustração que Nietzsche mostraria enquanto compositor, reduzindo a um mecanismo psicológico bastante primário o complexo fenômeno do afastamento do filósofo em relação a Wagner, ao idealismo e ao romantismo alemães. Em resposta ao equívoco expresso e reforçado pelo artigo de Pohl, aliás muito difundido nos meios wagnerianos, em diver- Wagner sas passagens de Ecce homo Nietzsche mencionará múltiplos aspectos de sua relação com Wagner, fazendo um balanço basicamente positivo do encontro entre os dois. Procura então dissociar da ruptura entre ambos qualquer elemento de ordem estritamente pessoal, chegando mesmo a revelar: “Neste assunto, guardei para mim tudo o que era decisivo: eu amei Wagner” (p. 143). Ou então a afirmar que “Richard Wagner foi, de longe, o homem mais aparentado [verwandteste] comigo…” (“Por que sou tão sábio”, § 3). Ao mesmo tempo, reafirma sua aversão ao músico, considerado como “decadente típico” e “alemão do Reich”: “O que nunca perdoei a Wagner? O haver condescendido com os alemães; o haver-se tornado alemão do Reich… Onde reina, a Alemanha corrompe a cultura” (p. 71).

Ecce homo: “Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal”

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Revela, assim, o alvo até então não muito explícito de seu ataque contra Wagner: a influência corruptora do “alemão do Reich”.3 Além disso, ao enumerar os traços característicos de sua própria natureza belicosa, o filósofo explica que suas invectivas, longe de representarem algo de pessoal, correspondem, antes, a estratégias destinadas a atingir um alvo maior. Como exemplo, menciona seu ataque contra David Strauss e contra o próprio Wagner: nunca ataco pessoas; sirvo-me da pessoa como de uma forte lente de aumento com que se pode tornar visível um estado de emergência geral, porém dissimulado, pouco palpável. […] Foi assim que ataquei Wagner, ou, mais precisamente, a falsidade, a bastardia de instinto de nossa “cultura”, que confunde os sofisticados com os ricos, os tardios com os grandes. (pp. 55-56)

Em seu artigo contra O caso Wagner, Richard Pohl opera ainda uma outra leitura que encontrará igualmente eco nos meios wagnerianos. Assim como J. V. Widmann em artigo publicado mais tarde no jornal Bund de Berna (20-21 de novembro de 1888), Pohl interpreta erroneamente uma alusão contida no “Segundo post scriptum” de O caso Wagner, em que Nietzsche afirma conhecer um único músico ainda capaz de compor uma verdadeira abertura. Pohl entendeu que, em tal afirmação, Nietzsche se referia a si mesmo; na verdade, a alusão da frase era outra: o compositor Heinrich Köselitz, amigo do filósofo, por ele rebatizado de Peter Gast (ou Pietro Gasti). Partindo de um representante típico dos círculos wagnerianos, esse gênero de interpretação não podia, porém, surpreender Nietzsche tanto assim. Oferecia-lhe até mesmo uma ocasião oportuna para esclarecer a distinção, sobre a qual insistirá diversas vezes em Ecce homo, entre sua relação com Wagner — a quem exprime gratidão pelo “idílio de 3.

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Cf. também o capítulo sobre “O caso Wagner”, pp. 143-144.

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Tribschen” (cf. pp. 69-70), pelos momentos felizes vividos na residência do compositor, perto de Lucerna — e seu contato com os wagnerianos, a respeito dos quais escreve: não tenho razões, tenho apenas um esgar de desprezo nos lábios para os wagnerianos […]. Sendo, em meus instintos mais profundos, alheio a tudo o que é alemão — de tal modo que a simples proximidade de um alemão retarda-me a digestão —, o primeiro contato com Wagner foi também o primeiro instante de minha vida em que respirei: eu o senti, eu o venerei como o país estrangeiro [Ausland], como o oposto, o protesto encarnado contra todas as “virtudes alemãs”. (p. 70)

Um pouco mais adiante, no segundo parágrafo do capítulo sobre Humano, demasiado humano, quando Nietzsche afirma que seu afastamento de Wagner remontava ao primeiro festival de Bayreuth — distância que, aliás, se inscreve nitidamente na obra publicada em 1878 —, o filósofo aponta sua artilharia pesada contra seus verdadeiros adversários do momento: Que havia acontecido? Haviam traduzido Wagner para o alemão! O wagneriano havia se assenhoreado de Wagner! […] Nós, os outros, que sabemos muito bem a que artistas refinados, a que cosmopolitismo do gosto a arte de Wagner fala, estávamos fora de nós mesmos ao reencontrar Wagner ornado de “virtudes” alemãs. Acredito conhecer os wagnerianos, pois “vivi” três gerações deles, do falecido Brendel, que confundia Wagner com Hegel, aos “idealistas” das Folhas de Bayreuth, que confundem Wagner com eles próprios; ouvi toda espécie de confissões de “almas belas” sobre Wagner. Meu reino por uma palavra inteligente! Em verdade, uma companhia de arrepiar os cabelos! Nohl, Pohl, Kohl com graça in infinitum! […] Pobre Wagner! Onde havia caído! Tivesse ao menos se lançado entre os porcos! Mas entre alemães!… (pp. 107-108)

Ecce homo: “Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal”

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Ecce homo, o desconcertante texto autobiográfico de Friedrich Nietzsche, é uma das obras mais singulares da filosofia. Escrita de 15 de outubro de 1888, quando o autor acabava de completar 44 anos, até as vésperas de seu colapso, no início de janeiro de 1889, é nela que Nietzsche diz “a que veio”, como “se tornou quem ele é”. Mas é nela também que ele assume o papel de comentador de sua própria obra, percorrendo todos os seus livros anteriores. Com um tom virulento, carregado de humor e de desprezo, Ecce homo é tão fascinante quanto hermético. Daí a importância deste Nietzsche, o bufão dos deuses. Aqui, Maria Cristina Franco Ferraz lança luz sobre o contexto do surgimento da obra, incluindo as imbricadas relações de Nietzsche com sua família, editores, amigos e inimigos, a partir de uma pesquisa de fôlego sobre as cartas do filósofo. Com leveza, graça e acuidade extrema, o leitor se vê conduzido ao coração do pensamento desse desconstrutor de metafísicas. Trata-se, portanto, de uma leitura fundamental tanto para quem deseja desbravar a filosofia do martelo de Nietzsche pela primeira vez, quanto para quem já está habituado a suas pancadas.


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