ZINE DO NUPP-UFF
Zine Clínicas de Borda NUPP - NÚCLEO DE PSICANÁLISE E POLÍTICA NUPP - NÚCLEO DE PSICANÁLISE E POLÍTICA, 2023 Editora n-1, 2023 ISBN: 978-65-81097-98-1 Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagem e a especificidade de cada obra publicada. COORDENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes DIREÇÃO DE ARTE Ricardo Muniz Fernandes CAPA Membros do NUPP no lançamento do Memorial da Redes da Maré DIAGRAMAÇÃO Thata Oliveros COMITÊ EDITORIAL DA COLEÇÃO CLÍNICA DE BORDAS Andréa M C Guerra Augusto Coaracy Daniel Mondoni Marta Togni Ferreira Pedro O. Obliziner A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessário a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. 1° edição | novembro, 2023. n-1edições.org
Zine Clínicas de Borda COLEÇÃO: 1. PsiMaré (Rio de Janeiro/RJ) 2. MOVE: Movimentos Migratórios e Psicologia (Curitiba/PR) 3. ClínicAberta de Psicanálise de Santos (Santos/SP) 4. Falatrans (Juiz de Fora, UFJF/MG) 5. Ocupação Psicanalítica (Belo Horizonte/MG; Rio de Janeir/RJ; Vitória/ES; Santo Antônio de Jesus/BA) 6. Estação Psicanálise (Campinas/SP) 7. Coletivo Margem Psicanálise (Fortaleza/CE) 8. Intervenção Psicanalítica Clínico - Política às demandas da População LGBT (Rio de Janeiro/RJ) 9. Rede Sur (São Paulo/ SP) 10. Roda de escuta/grupos flutuantes LGBTQI+ (Aracajú/SE) 11. Clínica Periférica de Psicanálise (São Paulo/SP) 12. Clínica do Cuidado (Altamira/PA; São Paulo/SP) 13. Coletivo Psicanálise e Política e Cotidiano Refugiado (Rio de Janeiro/RJ) 14. Projeto Gradiva (Porto Alegre/RS) 15. Museu das Memórias (In)Possíveis (Porto Alegre/RS) 16. Psicanálise na Rua (Cuiabá/MT) 17. Coletivo Testemunho e Ação/SIG (Porto Alegre/RS) 18. Margens Clínicas (São Paulo/SP) 19. Psicanálise na Praça Roosevelt (São Paulo/SP) 20. Psicanálise no Jacarezinho (Rio de Janeiro/RJ) 21. Mutabis (São Paulo/SP) 22. Clínica Aberta Casa do Povo (São Paulo/SP)
ZINE do NUPP
Uma apresentação
NÚCLEO DE PSICANÁLISE E POLÍTICA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
“Nada sobre nós sem nós” – seguimos este paradigma e iniciamos, então, com Testemunhos
Um Menino Chamado Maico
Era uma segunda feira... aproximadamente 16h45min. Era uma tarde de sol, as crianças brincavam de correr umas atrás das outras. O mais pequenininho era o Maicon, que corria sorrindo atrás do irmão e dos amiguinhos. Enquanto brincavam, a mãe costurava e o pai estava consertando a bicicleta e a lavando. A favela estava na maior tranquilidade, quando, de repente, policiais do 9º BPM entraram atirando sem direção. Só se ouviram os gritos das crianças, e sentia-se que os gritos passavam medo. O pai de Maicon sentia uma dor e lembrou rapidamente do filho, correndo na direção dos sons dos tiros. Chegando ao local, se deparou com seu filho estirado e todo ensanguentado e gritou: “Maicon não, não, não, não, não posso acreditar no que vejo”! Logo em seguida, chegou a mãe, que escutava os gritos do pai: “Maicon”!!! A mãe se aproximou e perguntou: “José Luiz, cadê o Maicon”? Ele a respondeu: “olha lá”... A mãe correu desesperadamente, botou o filho no colo e percebeu que o filho, de moreno, estava vermelho. O sangue lavava seu pequeno e franzino. A mãe o abraçou e gritou por socorro: “meu filho está morrendo”. Enquanto isso, o pai, em ato de desespero, agarrou um dos policiais e o encostou no muro: “matou meu filho, acabou com a minha vida”. A mãe notou que o filho estava morrendo e se desesperou, então o pai largou o policial, tomou o pequeno Maicon no colo e saiu gritando. Os policiais tentaram fugir, mas a viatura ficou presa a um “quebra molas”. Os moradores, então, retiraram o carro para que os policiais levassem o menino Maicon com a sua ajuda. Ao chegar ao hospital Carlos Chagas, o pequeno Maicon já estava morto. O desespero tomou conta da família. Ao voltar à favela a notícia da morte de Maicon, a tristeza tomou conta de crianças e de todos os moradores, que choraram a morte de mais uma criança. A favela entrou em luto. No dia seguinte, às 09h, Maicon voltou à favela, mas simplesmente em um caixãozinho branco, para dar aos seus amigos e parentes o seu último adeus. Foi muito choro e revolta em ver o pequeno Maicon, de dois anos, morto por tiros. Dois aninhos de vida, tirada de maneira bruta. No enterro, a parte mais dolorosa foi ver que tudo estava realmente acabado e meu filho partia sem eu poder fazer mais nada. Nós, os pais de Maicon, exigimos o respeito aos direitos humanos, que os fatos sejam apurados até o fim e que a justiça cumpra seu dever, pois sempre cumprimos com nossos deveres de cidadãos. José Luiz Farias da Silva, pai do Maicon da Souza Silva, morto em 15 abril de 1996, aos dois anos de idade durante uma operação na favela do Acari, no Rio O caso foi arquivado como auto-de-resistência, no Brasil, mas se encontra na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
“Um nó me cerra a voz (...). Eu Já disse uma vez que as palavras ficam mudas diante da morte. Tento escrever, mas também na escrita não cabe tudo.” (Conceição Evaristo)
Uma dor assim pungente não há de ser inutilmente Bruna Silva: Oi meu filho, mais um mês de junho que chegou isso significa que já se completaram 5 anos sem vc sem sua voz sem a sua presença sem o seu amor. 5 anos filho de pura saudades, 5 anos tbm da impunidade do descaso com a sua vida descaso de quem deveria investigar e apresentar o agente que tirou a sua vida com um tiro na lombar meu filho. Um agente público pago para servir proteger e abrigar, um agente do estado que tirou a sua vida aos 14 anos de idade. Se vc estivesse aqui, filho, vc já estaria com 19 anos já estaria com barba perna cabeluda. Vc era tão lindo, meu filho, aqui nessa terra. Vc foi tão amado por mim e por sua família, vc só nos faz falta filho, sinto muito a sua falta como eu gostaria de ouvir um: a bença mae, eu te amo... Me lembro de cada conversa nossa filho, aqui nessa vida agente fomos grandes amigos, além de mãe e filho. Vc sabia que em mim havia uma grande amiga aliada cuidadosa mãe eu era o seu fechamento lembra filho. Hoje sua mãe estar aqui tentando seguir a vida sem vc. não vou mentir meu filho minha vida sem vc ficou vazia, a vida da sua irmã tbm nunca mais foi a mesma, perdemos a vontade das coisas sabe filho a saudades quando vem. Vem daquele jeito maltratando arrebentando com tudo filho uma saudades que só dói, quem senti costuma dizer que não tem remédio que cure e é verdade filho. Ainda não inventaram remédio para esses tipo de dores, ninguém explica o que sentimos não tem cura para o coração de uma mãe que perde, enterra e 3 anos depois exuma o corpo do filho tão amado e, hoje, enterrado sem vida, sem sonhos, um menino que falava pelo o cotovelo, e hoje em silêncio porque não tem mais o fôlego da vida. Sua mãe te ama meu filho, eu sempre vou te amar vc nunca vai deixar de ser o meu filho, eu sempre vou ser a sua mãe tão amada e querida. Eu te amo, te amo, te amo. SE EU FECHO OS OLHOS MINHA MENTE DESENHA VC, TAMPO OS OUVIDOS MAS CONSIGO ESCUTAR A SUA VOZ. SÓ DE PENSAR QUE NUNCA MAIS EU VOU TE VER DÓI DÓI DOOOOIIIIIII Bruna Silva: Filho da minha vida ontem fui dormir pensando em vc, hoje eu acordei pensando em vc tb, meus dias tem sido assim seguindo a vida sem nunca me esquecer de vc. Dezembro chegou e com ele me veio lembranças. Lembranças que eu guardo comigo na minha memória e no meu coração filhote. Te amei tanto em vida que te amo ainda mais mesmo depois de morto. Sua mãe, meu filho, tem ciúmes até dos seus ossos, da sua imagem, sigo na vida ainda cuidando muito de vc. Sua mãe é só amor meu filho. Vc veio como um anjo bom em minha vida, vc trouxe luz e sentido a minha existência, vc me ensinou a ser mãe, meu amor. Vc foi o verdadeiro significado do amor de uma mãe para o seu filho. Eu te amo de mais, meu filho, obg. por vc ter sido o meu filho nessa vida. Com certeza eu seria a sua mãe nessa vida, na outra e em todas elas se assim Deus permitisse. Vc foi um presente de Deus enviado no tempo certo, me lembro de nós
sem me esquecer de nada filho. Eu continuo aqui sendo a sua mãe, a sua amiga, seu fechamento de todas as horas. Quando puder, ve se vem me ver mande um sinal filho. Mas venha nos ver, pode ser em sonho tb mas venha nos ver. Bruna Silva, Mãe de Marcus Vinícius, morto em 20/6/2018, na Maré.
Capítulo 1
INTRODUÇÃO somos o NUPP-UFF, Núcleo de Psicanálise e Política da Universidade Federal Fluminense. Neste pequeno fanzine oferecemos um gostinho do que é o nosso projeto. Convidamos o leitor a nos acompanhar entre palavras e imagens que vão contar brevemente a nossa história, trajetória atual e até projetos futuros. Pedimos licença a quem fala português para dar um aviso ao leitor estrangeiro para encontrar a versão em inglês. If you don’t read in portuguese you can find an english version of this Fun-zine and its abstract about our project on Instagram @nupp.uff . Para contar a história do NUPP vale a pena contar um pouco de como surgimos. Gostamos de contar essa história desde 2016. Neste momento, um grupo composto sobretudo por psicanalistas ligado à Escola Brasileira de Psicanálise-EBPRJ - não oficialmente designados, mas presentes – analistas que já estavam se interrogando a partir de suas práticas em âmbito público, na saúde mental do SUS, por exemplo, e em instituições fechadas de tutela do Estado que se tornavam mais inacessíveis, em um contexto político de degradação ampliada dos direitos fundamentais - se organizou como um coletivo, Trivium. Atuávamos junto a movimentos sociais. Em 2018, motivados pela parceria com o Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos, EBEP-RJ, convocamos pela 1a vez a variada comunidade psicanalítica do Rio para fundarmos em 2018 um coletivo de Psicanalistas Unidos pela Democracia.
(Manifestação após a morte do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, na praia da Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro foto PUD (05/02/2022).
Essas inquietações passavam, e passam ainda, pelo fato de que a saúde mental dos brasileiros não tem como atravessar ilesa a um cotidiano que nos permite dizer com ex- Ouvidor-geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Pedro Strozenberg, que o Brasil é o país com os maiores números absolutos de mortes por conflitos armados. No tocante ao Rio, o agravo de saúde mental dessa realidade está a tal ponto alarmante que exige resposta urgente do Estado que se queira democrático de direito. O fato é que populações inteiras, hoje, no Rio, têm na violência armada, letal, um fator de adoecimento psíquico da maior gravidade. Das crianças aos idosos, constatamos populações apavoradas, melancolizadas, adoecidas. Mais ainda, quando têm o próprio Estado como responsável por crimes desse tipo, os efeitos psíquicos, subjetivos, são experimentados de forma ainda mais agravante. A conivência do Estado – que deveria proteger - ou parte dele, e da sociedade que o encobre, que assiste sem pudor a tal obscenidade social é algo tremendamente adoecedor, nos dizem. Então: registrar, pensar, tratar os efeitos psíquicos subjetivos da violência armada e do racismo de Estado tem sido o campo de investigação e de ação de nossos trabalhos. Mas como desmontar o desmentido de uma sociedade que não quer ver nem rejeitar este horror? Nesse sentido, desde o início de 2018 o Projeto se colocou como objetivo fazer uma parceria com a Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro – DPERJ. E isto feito, tem sido, de fato, muito importante para a realização do nosso trabalho. A DP é parte do Estado, do Sistema de Justiça do Estado, não é mesmo? E uma parte que reconhece o dano causado por outros setores desse mesmo Estado, no caso os órgãos de segurança pública e parte do sistema de justiça. Pois então, isso em nossa clínica faz toda a diferença, porque uma parcela grande do adoecimento psíquico é a negação do ocorrido, ou a sua naturalização, sua descriminalização. Para tratar, esta clínica se torna uma clínica-política. Um lado importando para o outro: neste caso do desmentido ou da naturalização da violência, a política - da população que tem acesso ao campo da justiça junto à Defensoria -, serve à clínica para que se inicie o processo de luto. Por outro lado, a clínica, mesmo no mais estrito senso, também pode servir por acréscimo até, às conquistas políticas. A experiência, os relatos e escritos que chegam nesta nossa clínica, nos fazem testemunhas. Nos deixarmos ensinar por eles implica que não nos subtraiarmos, e eticamente nos coloquemos na transmissão, podendo igualmente fazer ato desses registros, que naturalmente tangem o campo da política. Isso, por sua vez, produz avanços clínicos de novo, além de políticos. Como esta parceria aconteceu? Fomos buscar ajuda na Defensoria Pública em 2017, quando conhecemos o projeto da Ouvidoria da Defensoria Publica do Rio, o Circuito de Favelas por Direitos, dele participamos, então, indo às favelas mais conflagradas pela violência, segundo o CESec, e isso nos momentos mais difíceis, justo após as chacinas. Quando recebemos esse convite, nos pareceu tão relevante
que logo o estendemos aos demais colegas do Trivium e do PUD, e alguns aceitram vir conosco. Além disso, precisávamos aprender a resistir ao desmonte dos direitos com quem resiste há séculos em nosso país, com inteligência, invenções, arte, solidariedade e de tantas formas.
Índios, Negros e Pobres, Bandeira da Mangueira escola de Samba Foto autoral de exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Foram 1 milhão e meio de mortos no Brasil, nos últimos 35 anos –Instituto de Pesquisa em Economia Aplicada-, mesmo quem não perde familiares, mas vive nas regiões de violência, perde muitas aulas, muitos atendimentos na saúde pública, e vive tendo medo de entrar e sair, entre outras graves dificuldades. No NUPP, desde 2020 temos duas ações – são pesquisas-intervenção-, ambas coordenadas pela professora doutora Renata Costa-Moura, que integra o Laboratório de Psicanálise e Laço-Social – LAPSO, previamente fundado no ICHF desde 2005, no Instituto de Psicologia e no Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFF /GT CNPq. A pesquisa como um todo se intitula: Psicanálise e Política: subsídios para uma política pública de reparação psíquica por violência de Estado como direito fundamental em democracia. E as duas ações são: _ Clínica do Trauma e Reparação Psíquica, que se realiza em parceira com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro –Rede RAAVE. Oferecemos atendimento individual e coletivo orientados pela psicanálise; registramos e pesquisamos os efeitos psíquicos da violência de Estado/política no Rio de Janeiro, _Cotidiano Refugiado, que se dedica a refletir sobre o contexto de refúgio e também atua com atendimento psicanalítico a pessoas em situação de refúgio
ou em migração forçada na cidade do Rio de Janeiro, no contexto da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da ONU na UFF e através da parceria com o Centro de Atendimento aos Refugiados São Vicente de Paula, localizado no bairro de Botafogo, RJ. Tivemos solicitação e autorização de alguns dos que participam do NUPP, emprestando um pouco de suas vidas, suas ações e artes, por aqui, também em imagens.
Chadrac Kembilou Nguma La joie du perroquet
A alegria do papagaio dança típica do Congo
E quem mais tá junto com a gente nessa empreitada? Para fazer a pesquisa ganhar o mundo, os pesquisadores do NUPP foram ouvir e aprender com pessoas e movimentos sociais. Agregando às trajetórias de atuação no campo dos direitos humanos que alguns de nós já tinham, eles passaram dois anos e meio, antes de fundar a pesquisa, indo aos grupos sociais, nas favelas de Manguinhos, Maré, Jacarezinho, Babilônia, à aldeia indígena do Maracanã, em Niterói foram à cozinha popular do MTST, e outros lugares, para a realização de um trabalho inicial, porém muito aguerrido. Tiveram também oportunidade de ouvir e participar de reuniões com a Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro, fundada em 1963, o Movimento Negro Unificado, o Movimento Parem de Nos Matar, o Quilombo Raça e Classe, 2 Coletivos de Educação Popular e prévestibulares, e na FIOCRUZ reuniões com os egressos das Universidades oriundos de favelas. Eis algumas parcerias, formais ou informais, que se acrescentaram aos movimentos sociais, entidades científicas ou jurídicas. . Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro . PPGPsi UFMG .PPGF Paris 8 .Fiocruz-ENSP- PPG Saúde e Direito Humano . Secretaria Municipal de Direitos Humanos de Niterói- Dir. Nadine Borges . FAFERJ fundada em 1963 Rio e Niterói & Seção São Gonçalo . Redes da Maré . Mães da Maré . Mulheres do Salgueiro / São Gonçalo . Circulando Afetos/ Rede Quimera . Instituto de Cultura e Consciência Negra Nelson Mandela – desde 1990 . Movimento pretas, Londres/ RU . Helena Kennedy Center for International Justice- SHU University / RU . Centro Primo Levi- Paris / França . Institut Convergences Migrations / ICM- França . Juristas pela Legalidade Democrática . ABJD .AJD .IAB . PSILACS
Capítulo 2: Pesquisa-Intervenção Psicanálise e Política Subsídios para uma Política Pública de Reparação Psíquica Como Direito Fundamental em Democracia Foi, então, por essas andanças que duas demandas dos movimentos sociais se dirigiram a nós: o cuidado em saúde mental para a população afetada pela violência armada nas favelas e a produção de dados qualitativos. Nossa primeira resposta foi, então, oferecer nosso corpo de clínicos para atendimentos individuais e coletivos segundo uma metodologia que fomos elaborando ao longo destes anos desde 2016 à 2019 quando escrevemos o projeto, e, 2020 quando oficializamos o NUPP na UFF e no LAPSO da UFF/ GT. CNPq. Nosso objetivo é subsidiar uma política pública de atenção em Saúde Mental voltada para pessoas em situação de vulnerabilidade social, afetadas pela violência e ilegalismos das ações do Estado. Como dissemos, o Brasil um dos países com os maiores números absolutos de mortes por conflitos armados — e para dizer isso trazemos nossa forte referência e interlocução colaborativa, o Grupo Geni/UFF, quando indica que mais de 60 mil pessoas são assassinadas por ano no país, especialmente jovens pretos, pobres e periféricos.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos alertou para o problema da letalidade policial no Brasil, destacando negativamente o RJ e emitindo recomendação ao país para garantir assistência psicológica às vitimas desta violência. Junto aos movimentos sociais, ouvimos demandas que estruturam o trabalho na Clínica do Núcleo de Psicanálise e Política da Universidade Federal Fluminense: tratamento e pesquisa qualitativa. Por isso nosso objetivo é não substituir, jamais, mas, antes, subsidiar uma política pública de atenção em Saúde Mental voltada para pessoas em situação de vulnerabilidade social, afetadas pela violência e ilegalismos das ações do Estado. Orientados pela psicanálise em um trabalho transdisciplinar e intersetorial, criamos um dispositivo clínico-político que alia Escuta-Intervenção à inovação da Conversação Clínica acompanhada de um trabalho de Escrita Colaborativa, do qual serão os autores, nomeados. Inspiramo-nos em metodologias inovadoras de cuidado, que permitem a produção de escritos de uma memória do presente. Trabalhamos o tripé problemático: violência e seus efeitos sobre a saúde mental como direito humano fundamental; trauma na clínica psicanalítica e na experiência social e o trabalho de reparação psíquica. Construímos acordos de cooperação com a DPERJ e a FAFERJ, para atendermos grupos de até 5 pessoas por grupo, com profissionais e estudantes da psicanálise/psicologia e letras da UFF e UFRJ; realizarmos encaminhamentos e cerca de uma dezena de atendimentos individuais. O Comitê de Ética em Pesquisa analisa o projeto, que já contempla as exigências protocolares. A produção conceitual redundou em livro a ser publicado e vários artigos. Temos visto que os próprios moradores atingidos, ao retomar a palavra estancada pela dor ou silenciada e não sem variados desafios práticos e subjetivos, acabam se engajando, singularmente, no processo coletivo de registro de suas próprias experiências e vivências devastadoras e saídas próprias. Vamos discernindo nossa aposta de que tomar a palavra, não como objeto de pesquisa, mas como protagonista de sua história, engajando-se em uma escrita coletiva pode constituir, a cada vez, um dispositivo para tratar o trauma da violência de Estado. Temos muito trabalho à frente “Precisamos parar a máquina de fazer cadáveres negros. Quando matam um menino na favela, matam também a mãe e uma família inteira”, como nos disse uma mãe que teve seu filho brutalmente assassinado por um agente da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ). Se já não soubéssemos pelos dados de pesquisas, a experiência cotidiana na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Rio de Janeiro, em geral, já nos mostraria os efeitos dessa política de segurança pública: o genocídio e encarceramento em massa de jovens negros, culminando num verdadeiro processo de melancolização dos moradores afetados pela VA (violência armada) que sofrem com a impossibilidade de acesso a direitos elementares como ir e vir, estudar, e se profissionalizar, além da impossibilidade de vivenciarem seus lutos, vivendo, antes,
um constante processo de revitimização nos próprios equipamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) e na participação nos raros processos de inquérito, bem como por meio da mídia e da naturalização da sociedade e dos responsáveis pelo controle externo das instituições de segurança pública. Proporcionam ainda mais sofrimento também as ilegalidades perpetradas por agentes da PMERJ, que ficam claras quando percebemos que nem o impedimento da Suprema Corte brasileira no estabelecimento de uma série de restrições na realização de operações policiais nas favelas durante a pandemia, a ADPF 635, foi obedecida: ao invés disso, a PMERJ cometeu as maiores chacinas em favelas da história do RJ. Assim, visando acolher as vítimas e familiares de vítimas desta realidade de guerra, o NUPP/UFF tem ido a diversas favelas do RJ, reunindo-se com diversos movimentos sociais, profissionais da saúde, da assistência social, operadores do direito e mesmo instituições de Direitos Humanos com o objetivo de fundamentar sua clínica e colaborar para a formulação de um atendimento próprio no âmbito do SUS que leve em conta tal realidade das favelas do RJ. Realizamos, assim, atendimentos clínicos orientados por uma prática que entendemos ser antirrascista, baseada em uma “psicanálise em elipse decolonial” - termo utilizado pela psicanalista Andrea Guerra - nos servindo de autoras(es) que pensam a relação entre a constituição do negro e da branquitude a partir do colonialismo. A partir de tal dispositivo clínico, então, temos colhido os efeitos psíquicos da VA, que tem se expressado em fenômenos depressivos e melancólicos, ou mesmo em sintomas de despersonalização e condutas inconscientes de suicídio, e não raro no surgimento de doenças coronárias, hipertensão e diabetes. Diante desse cenário, perguntamo-nos, como pensar uma política de cuidado aos sobreviventes afetados pela VA que considere a realidade política, social e histórica brasileira e que atue nas especificidades dessa clínica? De fato, a literatura a respeito da VA e as sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos têm nos mostrado a insuficiência da configuração atual da RAPS na atuação diante dessa conjuntura bárbara, atuando na culpabilização das vítimas e em uma aposta na medicamentalização. Apostando numa outra direção, como possível resultado do trabalho, assistimos os sujeitos que chegam até nós, antes paralisados diante da dimensão traumática de suas perdas, erguerem-se diante dos coletivos e dos movimentos sociais bradando o lema de diversos coletivos de mães em todo o país: “do luto à luta”. Isso tem sido possível porque o NUPP/UFF, posicionando-se como uma clínica-política, não prescinde da dimensão do coletivo, uma vez que isso significaria sustentar uma clínica que apenas atenuasse o sofrimento dos sujeitos afetados pela VA, produzindo apenas ajustamentos e silenciamentos diante de suas experiências. Assim, as atividades do NUPP/UFF preveem também a realização de grupos de conversação e escrita colaborativa com os afetados pela Violência Armada, além de fóruns de estudos com os moradores de favela e atividades de formação voltadas para profissionais do SUS. Entendemos que uma Reforma Psiquiátrica que não inclua
uma política pública de cuidado aos afetados pela VA ignora as próprias diretrizes da RAPS, a saber, o respeito aos direitos humanos e a promoção da equidade, bem como o reconhecimento dos determinantes e condicionantes sociais de saúde. Nós mesmos então nos coletivizamos, unindo-nos de fato e organicamente a mães e familiares de VE a organizar uma REDE de ATENÇÃO a AFETADOS pela VIOLÊNCIA de ESTADO - junto à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro
RAAVE / DPERJ Em 14 de setembro de 2022, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro lançou – de modo presencial e em seu canal institucional no Youtube – uma Rede de Atenção a Afetados pela Violência de Estado (Raave), composta pela própria Dperj e por grupos de psicologia e psicanálise ligados a universidades ou inseridos em organizações não go- vernamentais (Ongs) e instituições da sociedade civil organizada de renome e reconhecimento público. Visamos não substituir ou apagar a lacuna de uma política pública voltada para tal população, e sim colaborar com insumos para a sua realização e posterior implementação. Com o Nupp-uff, temos convidado mães, pais e demais familiares atingidos pela violência de Estado a falar, a escrever, a transmitir. Com a Rede Raave/Dperj, entendemos cada vez mais que a representação advocatícia que dá ao sujeito acesso ao direito de defesa de familiar vítima de Estado e ao devido processo legal já tem efeitos de uma primeira resposta no âmbito da responsabilidade do próprio agente do dano, o Estado. A Defensoria Pública, sendo parte do Estado, do Sistema de Justiça do Estado brasileiro e fluminense, tem um lugar simbólico fundamental. De corpos anonimizados que sofrem a violência pública estatal, portanto, nossos parceiros do Sistema de Justiça de alguma forma os elevam a sujeitos do direito que, com nossa participação, têm acesso a uma possibilidade de trabalho como sujeitos do desejo. Nossa parceria, assim, nos permite, por vezes, como ocorreu nas Redes da Maré – a presença conjunta de representantes das clínicas da Raave, de ouvidores da Defensoria e de um defensor, além do movimento social que nos recebia –, partilhar a inauguração de iniciativas como a do memorial em que figuram escritos os nomes dos mortos na Maré, dando-lhes um lugar, um lugar público. Por óbvio, por sinal, um trabalho de memória social, ainda que simboligênico, não tem o condão de desfazer o que já foi feito. Entretanto, estamos trabalhando junto à Justiça que busca demarcar a facticidade do dano, do crime, e tem efeitos reais sobre a transferência que se coloca a trabalho conosco. O alcance disso, auxiliado pelo elemento terceiro que vem com a presença do analista, certamente recai, em alguma medida, sobre o próprio desmentido social. Sem dúvida, isso significa muito para nosso trabalho. Ao mesmo tempo que reconhecemos a dimensão irreparável que permanece para
cada um que viveu tais tragédias, cabe-nos, desde a psicanálise, dar lugar ao sujeito que insiste, que resiste e que porta um nome, um desejo que o causa, de forma a favorecer a realização do trabalho de luto. Quando o real é reencontrado em um trauma por violência de Estado, é fundamental o reconhecimento jurídico, social e cultural dessa violência com relação ao tratamento, tendo em vista que um negacionismo é, usualmente, o que se segue desde o Brasil-colônia. Apostamos nesse trabalho conjunto. Posicionamo-nos ao lado dos que também solicitam ao Poder Judiciário brasileiro reparação integral, memória, verdade e justiça, junto à Comissão da Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania do atual governo, para que se responda e se estendam as respostas oriundas da Justiça de Transição brasileira às vítimas atuais – em especial, que as respostas aos danos materiais ou morais não deixem de abarcar as reparações indenizatórias simbólicas e psíquicas –, não somente às vítimas do período de ditadura, mas igualmente`aquelas dos dias atuais por violência de Estado. A reparação da violência pretérita precisa incidir sobre a violência de Estado atual. Unimo-nos, enfim, à transmissão dos coletivos que tinham e ainda têm a participação de psicanalistas nessa causa: as Clínicas do Testemunho, a Clínica de Filhos e Netos de Pessoas Torturadas na Ditadura Civil-Militar Brasileira, o Grupo Tortura Nunca Mais, a clínica do Instituto de Estudos da Religião (Iser) e o Núcleo de Atenção Psicossocial a Afetados pela Violência de Estado (Napave), no Brasil, e as clínicas que nos inspiram desde a Argentina, o Chile e outros em países do Cone Sul que viveram o mesmo flagelo. Acompanhamos os movimentos quer de juristas pela legalidade democrática, quer de familiares, a partir desse trabalho clínico com dimensões políticas e societárias de que participamos. Muitos partícipes falam em querer gritar para o mundo, até. Dar lugar ao sujeito pode passar por dar lugar ao seu grito, como voz, e com ela à fala. Sendo o grito já uma expressão, como o são os pesadelos, é preciso acolhê-los e também conduzilos à voz e à fala. Na experiência de cada um, antes e depois da perda da morte, quais palavras feriram, relegando-o/a a um lugar oposto ao de Antígona, um lugar de não ousadia, de submissão silente diante do Outro? Nossa operação se dirige a um sujeito não esmagado pela anulação, o impedimento, o assujeitamento ao Outro. O sujeito pode surgir entre um pesadelo e outro. Quando a subversão analítica opera trazendo o sujeito à luz, algo de uma resposta distinta daquela do Outro opressor pode surgir e, por essa via, dar lugar a uma palavra que invente uma posição subjetiva, não sem suas perdas, mas com um atravessamento realizado em alguma medida pelo luto que terá sido possível nesse trabalho. Singular e coletivo, o trabalho de contorno dessa perda, a cada vez, desaloja um pouco a fixidez de nossos traços constitutivos como formação social. São populações afetadas, 1,5 milhão de mortos nos últimos 35 anos, um país colapsado em grande parte por ter aos poucos negligenciado seus mortos, seu despedaçamento. O oxigênio, a baforada de ar, vem da fala e da escrita justamente das pessoas que realizam esse trabalho de luto, de produção dessa perda, de seu registro e testemunho, ensinando-nos a fazer diferente
e inclusive reposicionando nossa práxis analítica. Com o Nupp-uff e a Rede Raave/Dperj, não estamos sós, nem melancolizados. Nessa lançamento da RAAVE (do YOUTUBE da DPERJ) tem pessoas de Manguinhos, Maré, Jacarezinho, Alemão, Baixada, Acari, Penha, São Gonçalo, Niterói, Rocinha, e de outros territórios. Sobre o NUPP-UFF muito nos orgulha a menção do Ouvidor Geral, Guilherme Pimentel e do Defensor Geral Rodrigo Pacheco marcando duas presenças como representantes das 7 clínicas à época (hoje somos 13), no caso a presença do NUPP-UFF ao lado do pioneiro NAPAVE, que nos ensinou os primeiros passos e nos ensinam e inspiram desde os tempos das Clínicas dp Testemunho. Além destas falas que não podíamos deixar de agradecer publicamente aqui, pode-se assitir no video, uma fala –tão impactante—que lembrava quando as pessoas dali chegavam com cabeça baixa, chorando, sem força alguma... e estavam ali, testemunhando como forma de luta. É Monica Cunha que profe esta fala. Também diz da fundação do Movimento Moleque, após perder seu filho, fala de sua entrada no luto –com luta – quando percebe que ela tinha direito ao luto – por meio do trabalho na época, do Centro de Reparação Psíquica do Iser / Napave. DO LUTO À LUTA.
Capítulo 3 Pesquisa-Intervenção Psicanálise e Política no Cotidiano Refugiado É a partir da mobilização de estudantes da UFF, atuantes no campo humanitário e inquietos com a questão do refúgio e migração forçada, reconhecidas como dos mais graves impasses sociais contemporâneos, que, em 2019 é criado o Projeto “Cotidiano Refugiado”. Logo ficamos sabendo da existência da Cátedra Sérgio Vieira de Mello do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados na UFF, e até chegamos a colaborar como parte de seu Comitê Gestor por um tempo. Inicamos em Jardim Catarina, na grande Niterói, e em seguida, nos vincluamos ao nosso atual campo de intervenção: o Centro de Atendimento aos Refugiados – Associação São Vicente de Paulo – ASVP, na zona sul do Rio de Janeiro. Realizamos acompanhamento clínico de orientação psicanalítica à população em situação de refúgio que apresenta essa demanda, incluindo crianças, adolescentes, adultos e idosos. Para entrar na clínica, é necessário ser discente de pós-graduação ou profissional em formação permanente. Organizamos supervisões coletivas, onde os demais discentes de psicologia podem participar, também e colaborar na transmissão. No CSVP fazemos supervisões intersetoriais e clinicas de forma revezada menais. E no NUPP quinzenais. Como funciona o Projeto? Então, quem entra no projeto faz uma formação inicial semanal de um semestre, com estudos e debates muito relevantes e específicos do campo; chamados de Módulo 1. No Módulo 2, já no segundo semestre, são trabalhadas questões mais propriamente clínicas, da literatura psicanalítica com refugiados. No momento estamos planejando formar uma rede dos Projetos clínicos no Sistema de Cátedras SVM da ONU-BR. Iniciamos contato com UFG e PUC-RIO. No exterior, tecemos constantes interlocucões com o Centro Primo Levi de Paris, e com o Instituto Convergence Migrations, composta de 5 Universidades francesas, que mantém colaboração no pós-doc de um de nós, e já tivemos a satisfação de co-organizar um Colóquio internacional com pesquisadores brasileiros exilados, de várias áreas, também co-organizado por um destes pesquisadores exilados, a filósofa Márcia Tiburi da Universidade de Paris 8. Temos traduzido textos de distintas localidades do mundo para nosso estudo e para nosso futuro livro. Um fenômeno tão complexo como esse nos ensina que só há trabalho possível quando em articulação com uma viva rede de saberes, agentes e instituições que perpassam a saúde, assistência social, justiça, educação, economia, política, cultura e mais. Assim, nos colocamos à serviço desta tarefa que se faz no cotidiano, sendo ela intersetorial, transdisciplinar e transcultural.
Fundação do Programa de estudos Indianos, Justiça Federal RJ — em fase anterior ao NUPP que nos serve de experiência e interlocução até os dias atuais.
Grupo de Refugiados artistas
Mas o que é o exílio? Por que as pessoas pedem abrigo em outro país? De acordo com a Lei Brasileira de Refúgio nº 9.474/1997, o refugiado, diferentemente do imigrante, é aquele que: “devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país”. Dessa maneira, trata-se em geral daquele que vivenciou graves violações de Direitos Humanos em seu país ou não possui acesso a seus direitos mais básicos por não ser reconhecido como cidadão. O sofrimento no processo de exílio Ainda que garantido a partir de importantes pactos e convenções globais, o direito ao exílio, na prática, não isenta os solicitantes de refúgio das violências que lhes ocorrem. Tentando sair de seus países, muitos caminham por dias até conseguirem atravessar as fronteiras ou precisam fazer uso de meios ilegais para chegar em outros países, ficando à sorte de todo tipo de acontecimento: tráfico de pessoas, violências físicas, sexuais, psicológicas e mesmo as condições inumanas dos lugares em que precisam caminhar, como densas florestas ou oceanos, não raramente os levando a graves adoecimentos e a morte. Além disso, os procedimentos burocráticos de conquista do status de refugiado os fazem permanecer em condições subumanas nos países em que chegam: para muitos, ocorre de terem seus direitos negados e acabam se submetendo a condições de trabalho análogas à escravidão para sobreviverem. O exílio de alguém demandando refúgio por si só é uma experiência traumática de esvaziamento de ancoragens simbólicas fundamentais, e de uma certa experiência de “nudez do direito”, como chamou o escritor Emille Zola. A situação pode ser vivida com um severo desamparo. O exílio forçado, com efeito, muitas vezes leva o sujeito a necessitar do cuidado do outro, até para sobreviver. Juridicamente a experiência também é de não pertencimento. Bom, quanto a nossa metodologia, ela se inspira nas mesmas coordenadas da Clínica do Trauma e Reparação Psíquica do NUPP-UFF, ou seja, a metodologia da conversação psicanalítica ( CIEN da Associação Mundial de Psicanálise/ Judith Miller) e de práticas de oficinas de escritas criativas e colaborativas. Propomos essa forma inventiva de ouvir os migrantes, de modo a escutar o que há de singular em um sofrimento coletivo e até mundial, possibilitando poderem falar livremente e a partir de uma ética da psicanálise, sobre as experiências que vivenciaram, e até mesmo endereça-las por escrito, ou visualmente, ao outro da Cidade, da cultura. Muitas vezes o atravessamento possível do trauma tem implicações sociais, jurídicas, educacionais, de modo que esta clínica também precisa ser intersetorial,
e pode levar tempo, mas, a pesar de não haver garantia a priori em psicanálise, podemos dizer que já vemos avanços importantes em alguns. Não recuamos diante das dificuldades, porque sabemos que quando não pode ser dito nada que tangencie o trauma, ele também não pode ser esquecido incoscientemente. Mesmo querendo esquecer, o retorno sintomático se faz, podendo ser cada vez até maior. Assim, entendemos que mesmo os pesadelos, as dificuldades escolares, enfim, são formas de dar contornos ao indizível, e avançar com algo de si. Como então, permitir que os migrantes e refugiados falem de seus traumas? Testemunho de atendimento com migrantes / refugiados Quando chegamos à ASVP, nos deparamos inicialmente com um grande número de famílias, muitas delas com crianças e adolescentes. Os adultos, comumente, falavam muito pouco, mas éramos sempre surpreendidos com as crianças correndo para lá e para cá, brincando umas com as outras. Nos momentos em que os adultos se reuniam com os voluntários e trabalhadores do Centro, então, ficávamos com as crianças. Propúnhamos, a partir de uma contação de história, uma questão que pudesse ser também disparadora do que as crianças vivenciaram em seu processo de migração. Em uma das experiências contamos a história de um extraterrestre que estava vindo para o planeta Terra. Ao fim, perguntávamos às crianças o que o ET deveria levar para a viagem, uma vez que ela seria muito longa e desconhecida. Certa vez, ouvimos: “comida y vestido”. Quando perguntada sobre o porquê dessa resposta, disse que a comida era porque o ET sentiria muita fome no caminho, e o vestido era para que não sentisse falta de sua mãe. Foi quando ficamos sabendo que em um ato desesperado de fuga de seu país de origem, a mãe da criança fora presa e a criança seguiu dias a pé pela fronteira acompanhada apenas de seu pai e seus irmãos. Sua mãe havia lhe costurado um vestido e entregue de presente antes de partirem. Durante o trajeto, o vestido rasgou. A criança não tinha notícias da mãe há meses.
Reprodução colaborativa de desenho de criança em situaç ão de refugio / Dinâmica do ET
O trabalho do NUPP também realiza uma pesquisa internacional. Temos o desejo e nos esforçamos para colhermos frutos do que plantamos há muitos e muitos anos. No NUPP temos membros residentes no México, Argentina, França, Inglaterra e, em breve, colaboradora em Taiwan. Afinal, como diz o historiador Luiz Antonio Simas, no seu livro O Corpo Encantado das Ruas: “Que diabos fazer? A nossa tarefa não é apenas resistir. Já não é mais suficiente. É reexistir mesmo; reinventar afeições dentro ou fora das arenas e encontrar novas frestas para arrepiar a vida de originalidades, encantarias e gritos”.
Já dizia uma paciente do projeto: TENHO VONTADE DE GRITAR PRO MUNDO.
NUPP-UFF ( alguns de nós)
Participantes do Evento Démocratie au Brésil organizado em Paris com Márcia Tiburi e Marie-Caroline Saglio, com pesquisas e pesquisadores forçados ao exilo, prof. Michel Agier / EHESS, IRD, ICM.,Kowawa Apurinã ( Purus, Amazônia, instituto Pupykary, UFF, Suzette Kourliandsky ( Almaa, UERJ) e mais participantes da RAAVE ( Bruna Silva redes da Maré, José Luíz Silva / Acari; Guilherme Pimentel Ouvidoria da DPERJ )
Mais alguns registros de ações do NUPP: 1. NUPP-UFF na ALERJ participando de ações do PAREM DE NOS MATAR - coletivo ao qual pertencemos:
2. NUPP-UFF promovendo debate ANTIRRACISTA:
3. NUPP-UFF construindo evento internacional pela Democracia no Brasil:
4. NUPP UFF construiu conjuntamente audiência pública na OAB:
5. NUPP -UFF participando de atividade na Rocinha:
Foto realizada pelo NUPP no lançamento do Memorial da Redes da Maré Marielle Franco PRESENTE!
Título: Coleção Clínicas de Borda Autor: NUPP - NÚCLEO DE PSICANÁLISE E POLÍTICA Medidas: 14,8x21 Número de páginas: 32 Assunto geral do livro: Psicanálise de rua Palavras chave: Psicanálise; Clínica pública; Política; Clínica de borda ISBN: 978-65-81097-98-1
COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS A Coleção de Zines das Clínicas de Borda Psicanalíticas Brasileiras, aberta a novos fascículos, nasce da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadas e inconformados com a resposta clínica de seu fazer e de sua formação face à realidade nacional brasileira, exposta à brutalidade e à violência estrutural. Trazem experiências múltiplas e plurais, sem necessariamente criarem um mínimo comum, nas quais experimentam o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, meios de formação. Nasceram da resistência dos movimentos sociais, em reação a genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, deslocamentos migratórios, nas periferias, praças, estações, ocupações, quilombos. Seu fazer é produto da rua e dos modos possíveis de cuidado a que o enlace transferencial na direção do tratamento psicanalítico dá visibilidade e nome a corpos apagados no cotidiano. Instituem elementos necessários na teoria e na prática, revisitando as clínicas públicas e populares, datadas dos tempos de fundação do campo psicanalítico com Sigmund Freud. Reviradas pela experiência do Sul Global, em elipse, olham o avesso do espelho e atravessam suas fronteiras. Marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos modos de partilha e de presença. Saem definitivamente do modelo burguês do consultório individual. Recebem os analisantes, tanto online, quanto em cadeiras expostas ao sol, a fim de escutarem seu sofrimento. Colocam o pagamento em xeque, não mais no cheque. Trazem a marca de sua região, de sua língua, das ricas expressões dos dialetos brasileiros. Distribuem-se em cada canto do país e questionam o modo de circulação do capital e de resposta do inconsciente às violações cotidianas. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica psicanalítica e da lógica excludente da formação do psicanalista, enfim, sua presença na polis. Elas não estão todas reunidas aqui. A coleção, aberta, aguarda novas presenças nessa escrita histórica. A psicanálise mudou. A gente queria que você soubesse.