Zine Clínicas de Borda 05 - Ocupação Psicanalítica (MG; RJ; ES; BA)

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OCUPAÇÃO PSICANALÍTICA


Zine Clínicas de Borda Ocupação Psicanalítica Ocupação Psicanalítica, 2023 Editora n-1, 2023 ISBN: : 978-65-81097-57-8

Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagem e a especificidade de cada obra publicada. COORDENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes DIREÇÃO DE ARTE Ricardo Muniz Fernandes CAPA E DRIAGRAMAÇÃO Thata Oliveros FOTO OCUPAÇÃO PSICANALÍTICA ESPÍRITO SANTO Bele Colares-Silva COMITÊ EDITORIAL DA COLEÇÃO CLÍNICA DE BORDAS Andréa M C Guerra Augusto Coaracy Daniel Mondoni Marta Togni Ferreira Pedro O. Obliziner

A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessário a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. 1º edição | Maio, 2023. n-1edições.org


Zine Clínicas de Borda COLEÇÃO: 1. PsiMaré (Rio de Janeiro/RJ) 2. MOVE: Movimentos Migratórios e Psicologia (Curitiba/PR) 3. ClínicAberta de Psicanálise de Santos (Santos/SP) 4. Falatrans (Juiz de Fora, UFJF/MG) 5. Ocupação Psicanalítica (Belo Horizonte/MG; Rio de Janeir/RJ; Vitória/ES; Santo Antônio de Jesus/BA) 6. Estação Psicanálise (Campinas/SP) 7. Coletivo Margem Psicanálise (Fortaleza/CE) 8. Intervenção Psicanalítica Clínico - Política às demandas da População LGBT (Rio de Janeiro/RJ) 9. Rede Sur (São Paulo/ SP) 10. Roda de escuta/grupos flutuantes LGBTQI+ (Aracajú/SE) 11. Clínica Periférica de Psicanálise (São Paulo/SP) 12. Clínica do Cuidado Belo Monte (Altamira/PA; São Paulo/SP) 13. Coletivo Psicanálise e Política e Cotidiano Refugiado (Rio de Janeiro/RJ) 14. Projeto Gradiva (Porto Alegre/RS) 15. Museu das Memórias (In)Possíveis (Porto Alegre/RS) 16. Psicanálise na Rua (Cuiabá/MT) 17. Coletivo Testemunho e Ação/SIG (Porto Alegre/RS) 18. Margens Clínicas (São Paulo/SP) 19. Psicanálise na Praça Roosevelt (São Paulo/SP) 20. Psicanálise no Jacarezinho (Rio de Janeiro/RJ) 21. Mutabis (São Paulo/SP) 22. Clínica Aberta Casa do Povo (São Paulo/SP)


Apresentação Geral


O Movimento de Ocupação Psicanalítica nasce da constatação de que o racismo adoece e faz sofrer psiquicamente. Considerando que o campo psicanalítico possui recursos exuberantes para tratar do sofrimento mental iniciamos uma prática em três frentes: clínica, pesquisa e transmissão, para trabalhar o antirracismo na interface da psicanálise com outros campos, científicos e tradicionais de saber. Em quatro estados, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Bahia, e com uma equipe de cerca de oitenta psicanalistas, entre profissionais e estudantes de graduação e pós-graduação, em sua maioria negras e negros. Somos sediados por quatro universidades públicas, UFMG, UFES, UFRJ e UFRB, e contamos com financiamento de vários editais e chamadas (Gabinetona Áurea Carolina, PBEXT-UFMG, FioCruz, ICL e ICS). Nossa proposta tomou forma em setembro de 2020 e foi fruto de pesquisas sobre decolonização, antirracismo e branquitude. Nosso objetivo geral é ocupar política, teórica e clinicamente o espaço psicológico a fim de produzir novos conceitos e práticas orientados à formação antirracista da/o profissional da psicologia, assim como promover o acolhimento e o atendimento ao sofrimento mental da população negra e intervir no pacto narcísico e hierárquico branco. Sendo estrutural o racismo e seus efeitos subjetivos, também deve sê-lo seu combate. Assim, metodologicamente, o Movimento Ocupação Psicanalítica se organiza em um tripé que associa: (1) oferta de lugares de escuta clínica ao sofrimento mental da população negra, com espaços de supervisão e estudo visando a formação nacional de profissionais e estudantes; (2) pesquisaintervenção sobre modos de sofrimento e solução psíquicas do sujeito negro e suas abordagens clínicas, por meio da escuta da vivência do racismo através de metodologias narrativas orientadas pelas escrevivências, bem como da troca de experiências nacionais entre o que cunhamos de "clínicas de borda", realizadas com moradores das periferias, quilombolas, ribeirinhos, imigrantes, vítimas da violência do Estado, militantes de movimentos de luta pela terra, comunicadores populares de favela e sujeitos que sofrem a opressão nterseccional; (3) atividades de formação e capacitação antirracistas, com produção e divulgação de conteúdo antirracista em redes iTVs e jornais comunitários, produção de documentários, virtuais, promoção de seminários e cursos dentro e fora da universidade, além de publicação de artigos e livros, participação em debates públicos e políticos, em atividades online e presenciais.


Curiosamente, dentre as diferentes epistemologias e tradições da psicologia clínica brasileira, tem sido o campo psicanalítico o primeiro a assumir sua omissão quanto à pauta do racismo. Diferentes eventos e publicações, desde a dissertação de Virgínia Bicudo em 1945 e seu trabalho de 1955, a tese de 1983 de Neuza Santos, publicações de Lélia Gonzalez na década de 1980 e a obra “O Racismo e o negro no Brasil”, se acumulam pouco a pouco na desconstrução de uma prática desimplicada, acenando para um horizonte antirracista que repensa o próprio campo trazendo o protagonismo das(os) psicanalistas negras(os) brasileiras(os). Somam-se a elas, Isildinha Nogueira (2021), Maria Lucia da Silva (2017) Cristiane Ribeiro (2020) e Geisa Assis (2021) como nomes que despontam no enfrentamento ao racismo a partir do campo psicanalítico no âmbito da pesquisa clínica. O racismo estrutural grita, humilha e adoece a população negra. Ele conforma o conjunto de políticas e práticas discriminatórias que integram a organização da sociedade nos campos público e privado e que implicam na segregação de determinados sujeitos, não sendo ainda um tema recorrente e clássico de trabalho no campo clínico de orientação psicanalítica. Dada a inflexão interseccional do sofrimento psíquico, urge atualizar a teoria e a práxis de quem sustenta o lugar de escuta, potencializando o acolhimento da voz que enuncia o mal-estar colonial que recai sobre os corpos de modo desigual. O psicanalista cidadão, que toma partido e participa do debate democrático, constrói sua posição em interface com outros saberes, considerando o real da experiência do inconsciente. A prática psicanalítica pode, assim, ser elemento de transformação das condições sociais e estruturais de desigualdade, que implica os psicanalistas a partir do aforismo “o inconsciente é a política” e da hipótese de que "é porque o Outro é Outro dentro de mim mesmo [que] a raiz do racismo é o ódio de meu próprio gozo. Não há outra raiz a não ser essa". Por isso mesmo, o enquadre simbólico do corpo político precisa ser geopoliticamente demarcado, assim como sua história, estruturalmente reenquadrada. A abordagem entre modernidade e colonialidade, indissociável na América Latina, evidencia o avesso do discurso capitalista, a ser explorado em suas consequências decolonizadoras, que aspiram romper com a lógica reducionista, instituidora da experiência europeia como universal, seja no nível do poder, do saber, do ser ou do gênero


Ao denunciar a raça como estratégia legitimadora da ocupação colonial da subjetividade e desvelar a tela do Outro ocidental, a subalternização fica evidente. Essa tela transforma coordenadas contingentes de exercício do saber-poder em linhas abissais que forjam supostos universais, ditando o modo que se quer verdadeiro, justo e humano de leitura de mundo, seccionando Norte e Sul Globais. Ao mesmo tempo, normatiza a ordem simbólica que regula os modos com que cada corpo pode ou não gozar deste e neste mundo. O inconsciente inventa truques para lidar com o discurso de cada época. Por isso, desvelar as estratégias atuais do saber-poder do discurso, como racismo em ação, permite consolidar uma práxis clínica decolonial. Descentralizamos os textos psicanalíticos a partir de uma geopolítica que se fez interpretante. Partimos do contexto brasileiro de violações, genocídio e opressão sofridos pela população negra, que é silenciado pelo discurso oficial veículado pela imprensa e pelos governantes, determinando a opinião pública. Neles se confirma o que Munanga nomeou de racismo à brasileira, sustentado por processos inconscientes denegatórios. Valemonos de quatro premissas teóricas: (1) a segregação é intrínseca ao laço social; (2) ela se organiza a partir da projeção no outro de um gozo inassimilável que perturba o próprio sujeito; (3) o processo de colonização, para se legitimar, inventou o conceito de raça, tomando a branquitude como ideal que sub humaniza corpos não-brancos, sede do ódio e da projeção do pior; (4) a práxis clínica precisa nomear esses processos e operar sobre o gozo que os estrutura. Preparamos, assim, o campo de debates conforme os princípios metodológicos e conceituais da psicanálise, testemunhando uma prática decolonial e antirracista abaixo relatada.


Ocupação Psicanalítica Minas Gerais


“ Pelo menos agora a gente tá conseguindo brigar pelas coisas, porque antigamente a pessoa lá vai empurrando a gente e a gente vai encolhendo sem saber o que falta, agora não, agora a gente correndo atrás, também por causa desse monte de apoio a gente tomou força, então vamo lá!” Adélia Souza do Kilombo Souza - Minas Gerais


I - Princípios de articulação interna Por construção coletiva, o Ocupação Minas funciona por decisão horizontal e execução transversal. Isso quer dizer que não há voto ou representante entre nós. Cada um toma ou não a palavra e se manifesta por sua própria conta e risco, recebendo do coletivo os efeitos de sua fala. Nossas decisões obrigatoriamente passam pela diferença horizontal radical. O efeito desse modo de produção de poder é o conflito na base, e não o consenso no fim. Antes a construção coletiva debatida, confrontada e, enfim, afirmada positivamente. Nesse sentido, do impasse dialético, buscamos a afirmação do novo dentro da estrutura do já estabelecido, numa lógica dialética afirmativa (Badiou, ano). II - Como trabalhamos esses princípios na prática clínica? (A) Fundamentos Clínicos A prática clínica que considera o inconsciente, o real e o gozo imersos na rotina de corpos racializados, generificados e classializados a partir de discursos dominantes, mescla-se a uma diversidade de possibilidades de desenhos. Partimos de dois em Minas Gerais: atendimento clínico individual e conversações psicanalíticas. Os atendimentos clínicos individuais acontecem por demanda, semanalmente, em espaços físicos ou virtuais, garantidos pela equipe de voluntários, com supervisão quinzenal. As conversações psicanalíticas são o carro-chefe da abordagem junto aos coletivos, acontecendo com quilombos urbanos e coletivos já organizados de estudantes negras/os, sendo sua regularidade aquela necessária a cada intervenção realizada. Como lembra Gonzalez, a consciência é o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber”. Por isso, o trabalho com o inconsciente visa mobilizar a palavra, as lacunas da memória e o corpo de gozo. “O não saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção” (Gonzalez). A memória fala pelos equívocos da consciência, que tenta se articular como ideologia dominante. Por isso, a psicanálise é uma arma contra toda forma de opressão que adoece.


(B) Conversação e Intervenção nos Quilombos Além da clínica individual, as conversações são nosso eixo de trabalho com os quilombos urbanos e com os coletivos universitários. A proximidade do coletivo com a universidade, desde a sua origem, já se mostrou muito profícua. Em Minas Gerais, a UFMG é uma parceira que nos coloca a trabalho e mobiliza pensar as implicações do racismo estrutural em duas vias: na sua incidência na vida de estudantes negras/os e os desafios de seu enfrentamento pela equipe de profissionais que cuidam da assistência estudantil de quem se enquadra nos níveis de baixa condição socioeconômica, em sua maioria jovens negras/os. A partir do conhecimento do projeto que orienta a práxis do coletivo, foram realizadas conversações com a equipe da FUMP, principalmente de profissionais à frente da organização e do atendimento de estudantes residentes nas Moradias Universitárias (MU), tanto localizadas em Belo Horizonte, quanto em Montes Claros. As conversações contingenciaram a emergência dos impasses da prática destes profissionais e, ainda a abertura de um espaço para a localização da impossibilidade de desconsiderar a raça como componente que, tanto causa o sofrimento subjetivo e cria uma demanda de atenção dentro desta especificidade, quanto se ramifica, por sua qualidade estrutural, nas construções hierárquicas, epistemológicas e institucionais dentro da universidade, implicando, portanto, a equipe que está na ponta, lidando diretamente com estas/es estudantes. Na cena urbana, recebemos uma demanda, mediada pela UFMG, de um quilombo urbano para intervir em um caso de saúde mental grave, que estava “adoecendo todo o Quilombo”. Tecendo essa intervenção, percebemos que esse sintoma se conectava com o coletivo, atravessado pelo universal da violência estrutural e cotidiana, advinda do racismo. Nossa chegada teve como aposta a acolhida pelo cuidado, incluindo uma visita in loco, desde o início um fazer junto. Conhecer o Quilombo e as pessoas que lá residem tem construído e sustentado a transferência que faz o trabalho acontecer. Entrevistamos quatorze dos trinta e quatro moradores pertencentes às quatorze famílias que lá residem. E ao longo de quase dois anos construímos a intervenção, organizada em


conversação uma vez por mês, atendimentos individuais e um trabalho de oficina com as crianças. O Quilombo foi reconhecido como tal em 2019, após uma luta intensa dos moradores, que atravessados pelo universal do racismo, incorporado na violência de Estado, vivenciaram o risco iminente da expropriação da própria terra. A resposta construída foi: “Somos um Quilombo”. Resposta essa que não aconteceu sem efeitos no coletivo e nas singularidades. Sintomas como bulimia, alcoolismo, uso de drogas, ansiedade, angústia surgiram ou intensificaram. O nome Quilombo respaldou a luta jurídica de um modo de vida que já era marca desse povo. “Descobrimos que a gente já vivia como quilombo, só não tínhamos esse nome”. Tendo em vista o conceito de Gonzalez, que consiste no reconhecimento das marcas de africanidade na constituição da sociedade e cultura brasileira frente à sua negação, que caracteriza o racismo à brasileira, a ideia de Quilombo se apresenta como proposta de constituir povo e resistência. Típico fenômeno brasileiro, os quilombos se apresentam enquanto "sistemas sociais alternativos", "brechas no sistema escravista" (NASCIMENTO). E nessa construção do ser [3] ou tornar-se Quilombola, testemunhamos as cicatrizes da colonialidade em cada sujeito, num modo em que quanto mais jovem a geração, menos impacto com relação às violências sofridas. Nossa aposta continua sendo a escuta, uma escuta que nos faz revisitar, avançar e questionar a teoria, buscando a construção de uma psicanálise brasileira implicada com a nossa história, uma história de violência e silenciamento de um povo que se junta, aquilomba e resiste desde 1500. Implicar o sujeito com seu sintoma, avisados de que o Outro colonial atravessa todos os corpos brasileiros. Recuar diante do risco de incorporar o saber, sentar para tomar um café, e escutar o que surge é a aposta da nossa prática antirracista. (C) Clínica individual e Lógica de Supervisão Realizamos o compartilhamento da prática num modelo de formação que inclui a população atendida, o profissional clínico e a experiência psicanalítica, que se descompleta na necessidade de transformação e superação da lógica europeia e branca que sempre vigorou no modelo clássico da Psicanálise. Nessa proposta clássica, a supervisão exclui o público atendido e se assenta na experiência de saber-poder acumulada, reproduzindo uma lógica hierárquica e centralizada de


saber, poder, ser e gênero. Ela se assenta no racismo linguístico, nas estruturas coloniais de gênero, nos episódios de racismo cotidiano e na imposição da branquitude. Aqui, numa proposta de ecologia de saberes, o público e o saber tradicional, ao lado do clínico e do saber acumulado, se descompletam numa lógica orientada pela horizontalidade estética e gramatical de códigos de vida e de pertencimento. Para isso, as vivências clínicas das psicanalistas serão ouvidas, tanto por supervisores, quanto por intervisores, advindos de campos disciplinares que podem ser distintos dos da psicanálise, como por plurivisores, que guardam os saberes tradicionais locais. Assim, a orientação do trabalho conjuga: 1.Supervisão estadual quinzenal com orientação freudo-lacaniana coletiva dos casos atendidos individualmente no estado; 2.Intervisão interestadual: a partir das supervisões são extraídos casos clínicos com questões a serem discutidas pelos intervisores, referências intelectuais e políticas dos estudos sobre o racismo, não necessariamente psicanalistas, nos encontros ampliados com a participação de todos os estados; 3.Plurivisão interestadual em implantação: também com casos que trazem questões extraídas das supervisões, o objetivo é contar com a participação de referências dos saberes populares e tradicionais, que historicamente são suporte para muitas pessoas e coletivos em seus territórios. Aqui também cada estado traz a cada vez um caso, compartilhado com os demais. III - Como trabalhamos esses princípios na transmissão? O Coletivo Ocupação Psicanalítica é constituído por pessoas comprometidas com o rigor teórico dos conceitos fundamentais da psicanálise lacaniana, mas também comprometidas com uma re(visão) do nosso campo de saber, uma vez avisadas de que todo saber formalmente constituído, sem exceção, traz em sua base os instrumentos necessários para a reprodução da colonização do Outro. A partir desse ponto, gostaríamos de destacar um ponto que já se demonstrou muito caro às pessoas do Coletivo: escutar nossas mais velhas. Pode parecer estranho se comparado aos espaços de formação em psicanálise nos quais seus membros imbuídos de douto saber passam


horas proferindo seminários que são muito caros a qualquer psicanalista em formação. No Ocupação esse saber é muito caro também, mas não se sobrepõem àquele proferido por nossas Griôs, nossas guardiãs das palavras como ensina a ancestralidade africana, como Maria Lúcia da Silva, Sônia Rodrigues, Vilma Dias, entre outras. São mulheres negras psicanalistas que se dedicam ao atendimento e supervisão de pessoas negras, mesmo alijadas de espaços psicanalíticos formais em muitos momentos da vida. São mulheres que emprestaram seus corpos lacanianamente aos seus pacientes por décadas, mesmo que esse empréstimo muitas vezes não “coubesse” nos conceitos fundamentais da psicanálise conforme eram lidos por muitos psicanalistas até então. Nunca foram mulheres alforriadas, são psicanalistas negras atrevidas que são escutadas atentamente por cada psicanalista, negro e não negro, do Coletivo a cada vez que transmitem sua prática clínica. Falar das Griôs é o que sustenta a troca-transmissão com cada chegante e cada chegado no Ocupação. É lugar de encruzilhar saberes, de diferentes tempos e modos, com diferentes aprofundamentos teóricos e clínicos. Um espaço que busca se reinventar a cada vez, com seus furos, para acolher o desejo de quem chega, porque essa é uma decisão de cada pessoa que decide se aproximar do Coletivo. Longe de ser idealizada e fixa, essa forma de transmissão é construída a muitas mãos e se reinventa sempre que se faz necessário, tendo como horizonte a orientação a aproximação de um discurso antirracista que se aproxime até se fundir com uma prática verdadeiramente antirracista. As formas de trocar-transmitir se pretendem diversas e abertas. A orientação da psicanálise, corroborada por Paulo Freire, nos demonstra cotidiariamente que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, as pessoas se educam entre si, mediatizadas pelo mundo”. Por isso, a cada curso, a cada espaço de formação, a cada grupo de estudos, todas e todos são convidades a se apresentarem a partir do próprio desejo para transmitir, o que sabem ou o que têm se dedicado a aprender. Jovens analistas, experientes analistas, griôs, encruzilham seus saberes para que outras elaborações possam ser possíveis, para que os que escutam possam se nutrir e abrir novos caminhos. Laroyê Exu!


Ocupação Psicanalítica Espírito Santo


“O Coletivo Ocupação Psicanalítica se constitui para mim como um espaço de formação atento ao nosso tempo. Acredito que, por escutar tal tempo, nós nos inclinamos diante dos sofrimentos e estratégias inventadas pelas populações negras e indígenas em nosso país. Nesse espaço, entendo que nos implicamos em enlaçar o rigor formativo, o encontro com outros saberes, a experiência clínica de cada integrante, a produção de conhecimento e os tensionamentos escutados através das vozes, dos diversos territórios do país, em busca de uma prática psicanalítica mais brasileira, mais negra e indígena. Investimos, por fim, em uma prática psicanalítica que possa responder ao tempo brasileiro racista, logo, uma prática psicanalítica antirracista. Laís Andrade Vitório Psicóloga, Psicanalista em formação e Integrante do Coletivo Ocupação Psicanalítica - ES (UFES)


Nossa história aqui em terras capixabas surge desse belo encontro com os outros coletivos de psicanalistas, mas é impulsionada pelo contato com o Fórum de Juventudes do Território do Bem. O Fórum é um coletivo que reúne movimentos sociais de juventude de um território periférico da capital, assim nomeado pela própria comunidade como forma de resistir à criminalização da juventude negra e às violências de Estado. Em meio à pandemia, uma das lideranças compartilha com a psicanalista Sônia Rodrigues os desafios enfrentados pelos jovens e a necessidade de cuidado com a saúde mental. A clínica-escola da UFES ainda não havia retomado as atividades e as ações de ensino, pesquisa e extensão aconteciam exclusivamente em formato remoto. Foi assim que começamos: no primeiro semestre de 2021, um grupo de psicanalistas e psicólogas que já tinham trajetória de trabalho clínico e de atuação política no enfrentamento do racismo topou o convite do Fórum de Juventudes e se juntou a estudantes de psicologia da UFES para constituir o núcleo capixaba do Ocupação. Nossa atuação foi se constituindo de fora para dentro da Universidade. Com o Fórum de Juventudes, realizamos uma conversação online, quando pudemos escutar de cada jovem suas experiências, demandas e expectativas. Desse encontro, surgiram demandas de escutas individuais por um psicanalista, pessoas que atravessavam situações de urgência subjetiva, jovens que estranhavam a possibilidade de ter um lugar de fala só para si, outros que eram instigados pelas ações no território. Também surgiu um modo de trabalho clínico que articulava a escuta dos coletivos com as escutas de cada um, delineando nossos três eixos de trabalho: 1) Produção de saber: implica a inclusão do racismo como pauta de pesquisa em psicanálise e seu enfrentamento como orientação política. Tem sido feito por meio de uma retomada da bibliografia nacional de autoras/es negras/os, da produção e releitura de conceitos psicanalíticos, além da utilização narrativas, escrevivências, conversações e casos clínicos atendidos no âmbito do projeto. Temos participado da pesquisa interestadual com as escrevivências e as clínicas de borda, e acolhido projetos de iniciação científica e de mestrado que focam na pauta racial. 2) Transmissão: visa construir espaços de aprofundamento de estudos e supervisão clínica para psicólogas/os, psicanalistas e estudantes, além da formação continuada e apoio a psicólogos pretos recém-formados para o


trabalho na clínica. Além de participar dos grupos de estudos e cursos interestaduais, construímos nossos próprios momentos de estudos e discussão de casos clínicos. Também realizamos uma disciplina optativa na graduação sobre as dimensões clínicas e políticas do racismo, utilizando autores que tomamos como referência, como Fanon, Neuza Souza e Lélia Gonzalez. Na pós-graduação, organizamos um Seminário de Pesquisa interinstitucional, junto com a UFMG e a UFRJ, sobre a utilização das Escrevivências como método de pesquisa, no diálogo com a psicanálise. Neste ano, temos investido em estudos sobre a clínica psicanalítica, fortalecendo nossos espaços de supervisão e intervisão, com convidados de outras áreas que são referências no debate antirracista, e a plurivisão, que dialoga com saberes tradicionais e pessoas de referência para a comunidade negra. 3) Clínica: inclui a oferta de atendimento clínico para a população negra, em formato individual ou por meio de conversações coletivas, primeiramente online e depois também presencial. Essa oferta vem ocorrendo sempre mediada pelo contato com os coletivos. No Território do Bem, fizemos outras rodas de conversa presenciais, quando os jovens puderam conversar sobre saúde mental, a vivência de situações de racismo e de lutas coletivas, trajetórias de vida dentre tantos outros assuntos que brotavam em meio a uma associação livre coletiva. Para despertar o desejo de falar, utilizamos diferentes recursos que evocam a experiência da negritude, como uma música da banda Olodum e o som dos pandeiros do grupo cultural Reis de Congos de São Benedito - Ticumbi de Conceição da Barra. Considerando o território como um remanescente urbano das grandes migrações do Norte do Estado para a capital, por perda das terras para a invasão da monocultura do eucalipto, tivemos a oportunidade de conversar sobre como memórias coletivas do passado se atualizam no presente. Ressignificar a herança propicia o trabalho da constituição de novos sentidos. Que se possa quebrar, a partir do coletivo, aquilo que no particular é motivo de sofrimento. Essas conversas reverberavam também nas experiências de análise, que acolheu as partes das várias histórias e narrativas que não cabiam nos encontros coletivos, seja por não estarem ainda passíveis de serem ditas, seja por representarem feridas abertas e dolorosas. Nas análises, escutamos sobretudo histórias de mulheres negras com trajetórias de violências concretas e simbólicas, atravessadas pelo racismo e pelo sexismo. Também homens, jovens e adolescentes que puderam de alguma forma


ultrapassar a dimensão do sofrimento para falarem sobre desejos, memórias e vida! Com o objetivo de fortalecer redes institucionais de enfrentamento à violência e ao racismo, realizamos conversações também com atores das políticas públicas da equipe da Secretaria de Saúde do Município de Vitória, que atende pessoas em situação de violência; com os mandatos das vereadoras de Vitória, Camila Valadão e Karla Coser, sobre a política de saúde mental do município; com a Secretaria de Direitos Humanos do Estado, especificamente articulando nossa participação no Núcleo de Saúde Mental do Centro de Referência da Juventude - CRJ Guarapari, com possibilidade de expansão para os demais CRJ do estado e com a Associação de Moradores do Bairro Coroado de Guarapari para realização de rodas de conversa e atendimentos que venham a ser demandados junto ao grupo de mulheres daquela comunidade. Também conversamos com coletivos da UFES: estudantes, professores, projetos de extensão e equipes de servidores que atuam na assistência estudantil. Em março de 2022 realizamos, em parceria com a Diretoria de Ações Afirmativas e Diversidade - Daad/Proaeci da UFES, uma série de encontros com estudantes negros. Inspirados pelo dispositivo das Conversações e pelo livro Tornar-se Negro de Neusa Santos Souza, buscamos construir remotamente um espaço de conversa com o intuito de escutar as experiências de ser um estudante negro na Universidade. Escutamos falas e silêncios tecendo-se num fio intricado com narrativas de sofrimento e estratégias de superação diante das experiências de racismo institucional e do compartilhamento das trajetórias e descobertas realizadas a partir da entrada na universidade. Agora que as aulas retornaram presencialmente, realizamos um novo ciclo de encontros nos espaços da Universidade, dessa vez tomando como causa a obra viva de Grada Kilomba, destacando sua indagação: “Quem pode falar na universidade?” Algumas das narrativas que escutamos foram elaboradas por meio de escrevivências, já outras compareceram como produto daquilo que reverberou em cada estudante após nossas conversações. Seguem alguns trechos de escrevivências.


“Do fôlego que nos foi tirado, do fôlego apertado. Do fôlego da cobrança, hoje tiro a possibilidade de me dar um descanso, de saber que eu posso respirar e agir quando eu quiser agir. Que eu posso ser produtiva e fraca, que eu posso ser criativa e errada. Que eu posso ser mansa e agressiva. Que eu posso ser pesquisadora e ativista. Que eu possa ser o que eu quiser.” Karen de Araújo Pereira, estudante de psicologia da UFES, integrante do Ocupação-ES


Ocupação Psicanalítica Rio de Janeiro


"Preciso falar. Estou com os milicianos em cima de mim. Não quero virar mártir de ninguém! Quero que minha luta seja reconhecida sem que eu tenha que ser morta. Por fim, repito, estou cansada, mas estamos na luta. Estou muito entusiasmada, porque estou muito puta! " Patrícia Félix da Vila Vintém - Rio de Janeiro


Há no Brasil o estereótipo da figura do psicanalista, geralmente um homem, branco, recluso em seu consultório, enquanto aguarda o paciente que se deitará em seu divã. Um fato relevante e pouco conhecido entre nós é que a psicanálise chegou neste país Brasil pelas mãos de uma mulher negra: Virgínia Bicudo, a primeira psicanalista brasileira. E o apagamento dessa posição de destaque e coragem de Virgínia Bicudo é parte do projeto colonial ainda em curso, que relega o povo negro ao lugar da invisibilidade e da coisificação. Uma das causas que move nosso projeto é dar visibilidade e condições para a tomada deste lugar político do negro, que foi apagado pela colonização. Através da psicanálise buscamos dar subsídios para as soluções, ideias e invenções do povo que constrói e movimenta nosso país, na luta contra o racismo estrutural e contra a violência de Estado. Nossa aposta se faz na formação do analista, advertido do fato de que o povo negro é o contingente que faz girar a engrenagem do capital, através de mecanismos de controle dos corpos, da precarização do trabalho, do genocídio da juventude negra e outras formas de violência estatal que engendram o sofrimento psíquico. E também naquele que é escutado, pois a experiência analítica representa uma possibilidade de se tomar a palavra e a partir dela, recontar uma história. Na direção de tomada da palavra contamos com o Portal Favelas, dispositivo de insurgência popular criado por lideranças e comunicadores populares de várias favelas do Estado do Rio, que através de programas de televisão, rádio, jornais e redes sociais busca levar ao conhecimento da população e da grande mídia institucionalizada a violação sistemática de direitos humanos pela polícia nos território periféricos, assolados pelo genocídio promovido pelo Estado. Desde 2019 o Portal Favelas conta com a presença do psicanalista junto aos movimentos políticos de base popular. O eixo Rio de Janeiro do coletivo Ocupação Psicanalítica foi desenvolvido a partir de uma pesquisa de Pós-Doutorado realizada no Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que se dedica ao estudo da intervenção psicanalítica junto aos movimentos sociais para enfrentamento da segregação e da violência de Estado. O trabalho está ligado à superação do medo de falar sobre as constantes violações de direitos em seus territórios e seus corpos. Os psicanalistas do Ocupação Rio, em sua maioria negros e negras, extensionistas da graduação em Psicologia, pesquisadores da Pós Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ e de outras Universidades como a UFBA, além de psicanalistas que não se vinculam à universidade, atuam no eixo da clínica, atendendo pessoas encaminhadas pela Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro através da RAAVE (Rede de Atenção a afetados pela Violência do Estado), pelo Movimento dos Trabalhadores sem Terra-MST e pelas lideranças de favela. Atualmente, estamos avançando também para o atendimento de povos indígenas, primeiramente através da população Tupinambá, juntamente com o Ocupação Bahia. Sendo povos de primeiro contato, foram os primeiros a resistir à catequese e às armas coloniais. Hoje pedem socorro por apresentarem uma taxa altíssima de suicídio entre os


jovens, com situações de automutilação, alcoolismo drogadição e sem espaço de terra para viver. Nessa clínica praticada às bordas do sistema, ouvimos os efeitos da segregação étnico-racial e buscamos intervir no tratamento do gozo racista através do enfrentamento do racismo estrutural, que se presentifica na política de extermínio nas favelas, no campo e nas aldeias indígenas. Através de um dito que corre nas redes podemos escutar a máxima que vem servindo de arma de defesa contra o extermínio autorizado pelo estado colonial: “O racismo não está ficando pior. Está sendo filmado”. Tomando lugar na ideia de uma outra globalização, tal como proposta por Milton Santos nos anos 80, quando os oprimidos se apropriaram das novas tecnologias para fazer frente à unificação dos mercados e ao aumento do racismo sustentado por uma farsa da imprensa comercial, hoje o morador da periferia e da floresta toma lugar numa espécie de contra colonialismo digital, mudando o lugar ocupado pelo panóptico. Ao tomar a câmera na mão e escrever sua versão da história, publicizar sua narrativa, rompe com o lugar de objeto do olhar imperial. Através de escrevivências aquilombadas, inspiradas em Conceição Evaristo e Abdias Nascimento, avançamos na leituras de escritas que não se fazem apenas com papel e lápis, mas com poesia, pichação nos muros dos becos, samba e funk que se espalham nas redes, vídeos de passinhos e contos ganham mundo pelo universo digital. Assim, uma das marcas constitutivas da clínica de borda praticada pelo Ocupação Rio é a tomada da favela, dos camponeses e dos indígenas como protagonista em suas invenções coletivas, através da tomada de voz que interrompe um silenciamento histórico e intervém na cena pública por meio de um processo de politização dos espaços de poder instituídos pela opinião pública alienada. É o morador da favela, do território que pode dizer o que lhe ocorre e provocar a ruptura do imaginário racista que o aprisiona em um lugar subalterno, que autoriza toda uma sociedade a autenticar a versão estampada cotidianamente nos jornais: que o jovem morto não era um cidadão, mas um bandido. Nesta cena o que está em jogo é a mulher negra, o homem negro ou negre, o indígena como um sujeito que pode ocupar lugares diferentes daqueles veiculados no laço social como incompatíveis com o real de seu corpo, que no imaginário do racismo estrutural porta características representativas de um resto repulsivo e inconciliável com a imagem ideal da branquitude. No eixo Ocupação Psicanalítica Rio de Janeiro trabalhamos para que o saber ameríndio e a negritude fale, seja escutada, produza, escreva e sobretudo que sua transmissão mobilize àqueles que estão indiferentes a ela. É fundamental que sua invenção esteja à frente de ações de enfrentamento da colonialidade do poder e do epistemicídio, permitindo que possamos aprender com um saber-fazer que mesmo que venha sendo interrompido, e invalidado, resiste e tem tornado o Brasil a potência de subversão estratégica que visa um mundo multilateral e não mais calcado em uma estrutura binária colonial.


_Nossa prática se fundamenta da seguinte forma: atendimentos clínicos realizados por uma equipe de psicanalistas; _Eixos de transmissão da psicanálise voltados para a formação de nossa equipe, tanto em pesquisas na graduação quanto na pós graduação, considerando a extensão universitária como eixo fundamental para o acesso democrático da produção e transmissão do conhecimento; _Supervisões coletivas periódicas dos atendimentos clínicos; _Intervisões e plurivisões, mecanismos inventados pelo Ocupação para ampliação e descolonização da escuta clínica; no primeiro contamos com experientes intelectuais que desconstroem a visão patriarcal da branquitude, para onde endereçamos nossos casos clínicos em um momento de questionamento de questões clínicas pós supervisão. O segundo dispositivo é onde podemos dirigir nossas inquietudes metodológicas e clínicas para mestres dos saberes tradicionais - lideranças de movimentos populares, quilombolas, indígenas - a partir de onde somos furados (reorientados) frente à nossa própria posição colonial no fazer cotidiano. Produzimos ações nos territórios junto à defensoria pública e a RAAVE, escutando a população que sofre as chacinas nas favelas e tornando essa enunciação publicizável, dando visibilidade para àquilo que insiste em ser escondido. Realizamos supervisão e qualificação das equipes de Saúde Indígena da DSEI em Ilhéus, Bahia juntamente com nosso núcleo do Recôncavo Baiano. _ Em nosso seminário de pesquisa sobre Aquilombamento, coordenado pelos quatro estados em modo aquilombado, estudamos a organização coletiva de quilombos e aldeias indígenas como forma de produzir uma brecha no sistema escravagista e colonial, interrogando a partir da psicanálise outros modos de organização grupais diversos do modelo da Igreja e Exército, tal qual Freud havia pensado a estruturação inconsciente dos grupos no texto de Psicologia das Massas de 1921. O protagonismo da leitura de autores negros, mulheres quilombolas e indígenas em articulação com a psicanálise é fundamental para a decolonização dos conceitos clássicos. Entre os nossos fundamentos clínicos está principalmente a orientação lacaniana pautada na ética de fazer existir a dimensão da falta e operar o desejo como condição para o sujeito ser tomado como humano no laço social. Nesse sentido, a questão que igualmente nos orienta é como possibilitar que os subalternizados e


segregados possam encontrar sua posição desejante frente a uma realidade que os aniquila? Para além da letra de Freud e Lacan, nosso fundamento teórico se assenta em uma “psicanálise brasileira comprometida com a construção de uma clínica que não recuse a realidade histórico-social de nosso país e que leve em consideração o impacto dessa história na construção das subjetividades” (Maria Lúcia da Silva, 2017, p. 87). Na invenção desta “psicanálise à brasileira”, “psicanálise da não-subalternidade”, como afirmou Makota Celinha, está em questão a dimensão particular de como as formas de poder, de exploração e dominação se dão nos territórios invadidos e subjugados pela lógica da Colonialidade e que podem ser reproduzidos na transferência em qualquer processo psicanalítico. Assim, nossos norteadores teóricos são Lélia Gonzalez, Neusa dos Santos Souza, Isildinha Baptista Nogueira, Franz Fanon, Achille Mbembe, Grada Kilomba e outros autores que na tentativa de enfrentamento do epistemicídio, se debruçaram sobre o sofrimento mental a partir da ficção da raça, tendo a psicanálise como motor conceitual. A propósito do combate ao epistemicídio, neste momento, enquanto conversamos com o leitor, trazemos à público do nosso primeiro ciclo de oficinas em Educação Popular em parceria com o Portal Favelas, ciclo este protagonizado por lideranças e intelectuais orgânicos das favelas. Falando em ciclo, convidamos o leitor _ se já não esteve nessa posição _ a se imaginar em um ciclo onde é difícil olhar para trás e encarar todo tipo de dor e massacre de sua gente, mas esse olhar que advém da escuta do lugar de fala é necessário para acessar as referências dos que ficaram e reunir condições de seguir em frente. A repetição deste ciclo é o que vive o negro e o indígena no Brasil. Sequestrado de sua terra natal, ou tendo sua língua, cultura e povo dizimados, os que sobrevivem tentam se reinventar neste país e construir um lugar possível nas bordas do sistema. É nos ciclos que cada sujeito pode operar, sustentar ou desistir que o coletivo Ocupação Psicanalítica Rio de Janeiro quer fazer corpo de escuta para uma possibilidade de que se possa falar e se orientar a partir da própria história. A clínica de borda no Rio de Janeiro tem como marca a extrapolação dos muros da universidade, se direcionando à escuta dos sujeitos vitimados pela necropolítica na cidade e no campo. Nossa aposta é que a escuta das experiências singulares, atenta aos elementos que escapam ao coletivo e igualmente atenta às peculiaridades de uma realidade latinoamefricana (GONZALEZ 1988), sustentando as contradições que lhes são próprias e sem desprezar as marcas que a cultura imprime sobre a língua e sobre os corpos, atualiza a potência transformadora da clínica e possa permitir que os sujeitos aprisionados pela lógica colonial escapem das identidades alienantes que os nomeiam como o pior e não simplesmente responder ou submeter-se a este lugar que lhes foi dado pelo discurso dominante.


Ocupação Psicanalítica Recôncavo Baiano


“Para exemplificar um pouco, eu vou trazer algumas passagens que eu tive pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e que só consegui fazer algumas relações e pensar melhor sobre isso [a referência ao racismo] depois que entrei para o Ocupação. Porque me gerava incômodo, mas eu não sabia como descrever, eu não sabia como dizer (…)”


Aqui, em terras baianas, o Ocupação Psicanalítica teve início a partir de duas frentes distintas de trabalho. A primeira esteve relacionada aos desafios clínicos observados por professores e psicólogos quando da oferta, em parceria com a Pró-reitoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis (PROPAAE), de um serviço de Plantão Psicológico voltado à comunidade discente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia durante a pandemia de Covid-19. Esses desafios, em grande medida, estavam relacionados aos impactos psíquicos produzidos pelo racismo estrutural e institucional sobre a vida das(os) estudantes. A segunda, por sua vez, estava voltada para a importância de fortalecer, tanto no domínio do ensino quanto da práxis psicanalítica dentro da Universidade principalmente num território como o nosso, formado majoritariamente por pessoas negras -, as discussões sobre os impactos sociais e psíquicos do racismo, bem como implementar ações sistemáticas de ensino, extensão e pesquisa sobre o tema, . Foi a partir daí que, em outubro de 2021, demos início às atividades do Ocupação BA. Constituímos, por aqui, desde então, uma equipe de trabalho heterogênea, formada por pessoas negras e não negras, que hoje é composta por professores e estudantes de Psicologia da UFRB e por psicanalistas voluntários de Santo Antônio de Jesus e de Salvador, que tem atuado de forma sistemática e engajada na constituição de uma clínica psicanalítica antirracista. Tal como os demais núcleos do Ocupação Psicanalítica, nosso trabalho na Bahia está orientado por três dimensões que, embora diferentes, encontram-se enodadas, compondo um trabalho cuja complexidade envolve a singularidade dos desafios do nosso território e a organização transversal do nosso Coletivo, pautada em princípios clínicos, éticos e políticos comuns. Vamos a elas: 1º A dimensão clínica: Inclui a oferta de atendimento clínico individual para a população negra e indígena. Temos atuado em três frentes distintas de trabalho: (i) atendimento à comunidade discente, que é voltado, sobretudo, para o acolhimento de estudantes cotistas da UFRB, a partir da disponibilização de um serviço de Plantão Psicológico em formato remoto. Essa atividade é organizada em parceria com a Pró-reitoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis da Universidade e objetiva, futuramente, constituir-se como um programa de assistência estudantil em saúde mental continuado; (ii) atendimento ao Grupo Mulheres de Fibras da Associação


Comunitária de Sapucaia. Essa atividade, que atualmente funciona em formato remoto, mas que planejamos, num futuro próximo, estender para a presencialidade, está direcionado a um grupo de mulheres, quase todas negras, que se organizam em uma cooperativa de agricultores familiares. Esse trabalho se dá em parceria com as profissionais do Posto de Saúde da comunidade de Sapucaia e conta, na sua programação, também com a organização futura de rodas de conversação a partir de temas levantados junto à população local, tais como: racismo, machismo, violência doméstica etc.; (iii) atendimento ao povo Tupinambá. O atendimento aos povos indígenas é um novo braço do trabalho clínico do Ocupação e tem se constituído como um desafio para o próprio alargamento das fronteiras teóricas e clínicas da psicanálise. As relações com o território, a diversidade de cosmologias, os múltiplos movimentos de resistência contra os processos de colonização, as expressões religiosas, os rituais de cura, a centralidade da natureza para constituição de modos de relação com o mundo etc., compõem uma miríade de conhecimentos que descentram tanto a nossa escuta quanto nossa cognoscibilidade do mundo. Especialmente na travessia dos tempos políticos obscuros que enfrentamos recentemente, com a intensificação dos processos de etnocídio dos povos indígenas brasileiros, temos percebido um processo grave de padecimento físico e mental que tem reclamado nossa atenção. Nosso atendimento ao povo Tupinambá aldeado no município de Ilhéus tem sido cuidadosamente pensado a partir de uma articulação com a rede de saúde indígena local, assim como com as principais lideranças indígenas da região. Acreditamos, como nos alertou um profissional de saúde da região, que é preciso pisar naquela terra para que comecemos a pensar com a cabeça daquele lugar. Isso, em grande medida, parece fazer ressoar aquela frase lacaniana, admoestando-nos da impotência de nossa razão Ocidental: “Eu, eu penso com meus pés, é somente aí que encontro alguma coisa de duro”. Importante, por fim, ressaltar que nossa clínica tem uma orientação de trabalho que conjuga os dispositivos da supervisão, da intervisão (cujos supervisores são êxtimos ao campo da psicanálise e possuem um reconhecido saber nos estudos sobre o racismo e nas práticas políticas antirracistas) e da plurivisão (cujos supervisores são intelectuais orgânicos, isto é, são pessoas que, por seus saberes populares e tradicionais, são reconhecidos como importantes referências para coletivos e pessoas do território em que vivem).


2º) A dimensão da transmissão: O Ocupação BA tem se ocupado com a formação continuada dos estudantes e dos profissionais vinculados à sua equipe de trabalho. Nesse sentido, para além da participação nos cursos e eventos interestaduais, mantemos um grupo de estudos continuado, o grupo das quartas-feiras, em que priorizamos o estudo das questões raciais no Brasil e no mundo. Nesse grupo, elegemos sempre, para nosso letramento racial, autoras e autores negros (Fanon, Lélia-Gozalez, Isildinha Nogueira, Neusa Santos Souza, Mbembe, Grada Kilomba, Cristiane Ribeiro, etc.), assim como convidamos, para debater conosco, pesquisadoras e pesquisadores que têm trabalhado com a constituição de uma clínica psicanalítica antirracista e decolonial. O Ocupação BA também ofereceu recentemente um curso de extensão online intitulado ‘Introdução à teoria lacaniana’. O objetivo foi contribuir com a formação/qualificação da nossa equipe de trabalho, uma vez que entendemos que não devemos nos descuidar, um instante sequer, dos fundamentos teóricos que dão sustentação para a clínica que estamos construindo em nosso Coletivo. O curso contou com professores convidados de cinco estados brasileiros e com importantes parcerias institucionais. Também organizamos no final do ano passado, o 1º Seminário do Ocupação Bahia, em que debatemos os fundamentos epistemológicos, éticos e políticos da nossa práxis. 3º) A dimensão da produção de saber: implica a inclusão do racismo - suas causas e consequências) como pauta de pesquisa em psicanálise, assim como suas repercussões no campo clínico e seu enfrentamento no campo político. O Ocupação BA tem participado da pesquisa interestadual “Aquilombamento”, que se debruça sobre o estudo das lógicas de constituição dos grupos,visando entender as formas hegemônicas e contra hegemônicas de circulação do poder no laço social e suas consequentes repercussões subjetivas.


Bahia Edna Abadia Fernanda de Andrade Ivin Lais Medrado Reinaldo Santana Vanessa Calumbi Gabriela Medeiros Fabíola Conceição Sousa Manuela Rocha Cauê Ribeiro Catiane Ferreira das Neves Jônatas Raine Eduardo Arantes de Souza Maiara Silva Marcus Santiago Josimar Souza Santos Marcelo Fonseca Gomes de Souza Espírito Santo Laís Vitório Fábio Santos Bispo João Otávio Vieira Carvalho Almeida Jean Fabricio Sales Gomes Júlia Cibele Gomes Santos Isabele Colares da Silva Sonia Rodrigues Saulo de Sousa Castro Valéria Moreira Teriquelhe Rossana Amorim Pontes Camila Silva Nelo Luizane Guedes Mateus Lucas Xavier Silva Miriã Oliveira Tayná Fagundes Ana Clara Monteiro Zetum Jean Fabrício Marconi da Conceição Daniel Andressa Riguête Davi Marcarini Zon Ellen Horato do Carmo Pimentel Raiani Dercilia da Silva Taynah de Marillack Maia Monteiro Flávia de Melo dos Santos Indira de Paula Nunes Pinto Rossana Amorim


Minas Gerais Tayná Celen Geísa Gonçalves de Castro Bárbara de Faria Afonso Cristiane Ribeiro Andréa Guerra Omar David Moreno Cárdenas Marina França de Souza Késsia Brito Marianna Ferreira Pedro Donizete Ferreira Renally Xavier Lais Comini Beatriz Dagma Alessandro Santos Peter Augusto da Silva Amanda Oliveira dos Anjos Elen Tamara da Silva Rodrigues Barros Renata Mendonça Ianca Fernandes Vitor Pimenta Gabriela Antunes Ferreira Marcela Fernanda de Souza Caique Belchior Rio de Janeiro Mariana Mollica Isabela Oliveira Yan Ribeiro Sofia Smid Lucas Correia da Silva Leila Silva Lemes Paulo Vitor Gama Vitória Natália Gisele da Hora Bruno Emanuel Maria Júlia Avena Vilma Dias Carmem Costa Gabriela Nunes Paulina Rosa Rafaela Leocadio


Referências ABUD, C; SILVA M. L; KON N.M. (org.) O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. 1a. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017. ALMEIDA. Sílvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Ed Pólen Livros. 2019 CASTRO-GOMEZ; S. GROSFOGUEL, R. (comp.) El Giro Decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Siglo Del Hombre Editores. Bogotá: 2007. DUSSEL, Enrique. (1993). 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade: Conferências de Frankfurt. Tradução: Jaime A. Clasen, Petrópolis: Editora Vozes, 1993. FREUD S. (1921). Psicologia das massas e Análise do Eu. Tradução: Maria Rita Salazano Moraes. Obras incompletas de Sigmund Freud: O mal-estar na cultura e outros escritos. Autêntica. Belo Horizonte: 2020. GONZALEZ, Lélia, “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984. SOUZA, Neusa dos Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes do negro brasileiro em ascensão. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1983 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. 2ª ed. Paris: N1 Edições, 2013. KILOMBA, Grada. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó. WALLERSTEIN, Immanuel. World-System Analysis. London: Duke University Press, 2004. LACAN, J. (1976). Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines, in Scilicet 6/7. Paris: Seuil, pp. 5-62. LUGONES, María, “Colonialidad y género”, Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, 2008, pp. 73-101. SILVA, Maria Lúcia da. In: KON, Noemi Moritz (org.) O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. 1a. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017. QUIJANO, A. Colonialidad del poder y subjetividad en América Latina In: CASTAÑOLA M.; GONZÁLEZ. M. (coord.) Decolonialidad y Psicoanálisis. Ediciones Navarra. Cuidad de México: 2017. MUNANGA Kabengele Munanga, “Nosso racismo é um crime perfeito – Entrevista com Kabengele Munanga”, Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 8 set. 2010, Disponível em: <https://fpabramo.org.br/2010/09/08/nosso-racismo-e-um-crime-perfeito-entrevista-comkabengele-munanga/>. NASCIMENTO, M. B. (1985). O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Afrodiáspora: Revista do mundo negro, Ipeafro, SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”:Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. SP: USP, 2012 (Tese, doutorado) SEGATO, Rita. O Edipo Negro: colonialidade e forclusão de gênero e raça. In: ___ Crítica da colonialidade em oito ensaios e uma antropologia por demanda. Rio de janeiro, Bazar do tempo, 2021, p. LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: A transferencia (1960-61). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.



COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS A Coleção de Zines das Clínicas de Borda Psicanalíticas Brasileiras, aberta a novos fascículos, nasce da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadas e inconformados com a resposta clínica de seu fazer e de sua formação face à realidade nacional brasileira, exposta à brutalidade e à violência estrutural. Trazem experiências múltiplas e plurais, sem necessariamente criarem um mínimo comum, nas quais experimentam o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, meios de formação. Nasceram da resistência dos movimentos sociais, em reação a genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, deslocamentos migratórios, nas periferias, praças, estações, ocupações, quilombos. Seu fazer é produto da rua e dos modos possíveis de cuidado a que o enlace transferencial na direção do tratamento psicanalítico dá visibilidade e nome a corpos apagados no cotidiano. Instituem elementos necessários na teoria e na prática, revisitando as clínicas públicas e populares, datadas dos tempos de fundação do campo psicanalítico com Sigmund Freud. Reviradas pela experiência do Sul Global, em elipse, olham o avesso do espelho e atravessam suas fronteiras. Marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos modos de partilha e de presença. Saem definitivamente do modelo burguês do consultório individual. Recebem os analisantes, tanto online, quanto em cadeiras expostas ao sol, a fim de escutarem seu sofrimento. Colocam o pagamento em xeque, não mais no cheque. Trazem a marca de sua região, de sua língua, das ricas expressões dos dialetos brasileiros. Distribuem-se em cada canto do país e questionam o modo de circulação do capital e de resposta do inconsciente às violações cotidianas. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica psicanalítica e da lógica excludente da formação do psicanalista, enfim, sua presença na polis. Elas não estão todas reunidas aqui. A coleção, aberta, aguarda novas presenças nessa escrita histórica. A psicanálise mudou. A gente queria que você soubesse.


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