Ohpera MUDA

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ERA – MUDA -…

[até 3 de setembro de 2014] Vistas parciais (imagem-texto) e fragmentos de um filme inacabado

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… - OHPERA - MUDA - … [até 3 de setembro de 2014]

CONTOS:

OHP ERA MUDA — …-…

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OHP Era uma vez pequenos homens que tiveram a ideia de construir uma “capital do mundo” ou “capital mundial”, imaginando um Mundo-TodoInteiro que entrasse numa maquete, saciando sua vontade de brincar – como crianças que jamais atingiriam a idade adulta – de Guerra. Eles inventariam para seus fins um presente eterno, algumas histórias para gravar no mármore e máquinas de fazer desaparecer crianças-adultas. Esse projeto previa, entre outros, numa grande praça, um salão de exposição para esse povo de crianças-reis, e de sua praça principal faria uma fortaleza inexpugnável em caso de revolta, já que todas as janelas da praça deveriam estar equipadas de esquadrias de aço blindado, as portas em aço e o único acesso à praça seria fechado por uma pesada grade de ferro fundido. Sabe-se que a curta história desse conto terá deixado uma diversidade incalculável de seres sem vida e um número pelo menos equivalente de outros sem sono. Muito mais tarde, em algum outro lugar que não este, em que a história desse conto foi sentida o mais fortemente, uma criança que virou músico teria confessado, aos 80 anos, ainda criança adulto, ter ouvido essa história tarde demais, na forma de um conto. Cantarolado por um pequeno agrupamento de pessoas numa língua que não a que lhe ensinaram, esse canto evocava uma liberação. Ao aproximar-se, ele se viu diante de uma banca de jornal onde uma série de imagens o marcaria para sempre. No caminho de volta para casa, conta-se que um ruído de fundo teria se incrustado em sua cabeça e nunca mais o abandonaria. Contudo, ele passará os anos seguintes a escrever música e a tocar, dissociando o som das imagens e levando a sério essa história de um ruído que vai ao fundo. Até que um acontecimento advém. Numa turnê, ali onde nasceu, teria visto um jovem cujo modo de ser o tocara. Ele o segue com o olhar e ambos se encontram lado a lado nos reflexos envidraçados de uma loja onde tantas coisas ficam expostas à vista dos passantes anônimos. Ele enxerga então sua sombra próxima à do jovem, elas quase se tocam, quando bruscamente o jovem é raptado por outros homens vindos de carro, em que o jovem é forçado a entrar. Na confusão o jovem grita um número com a respiração cortada, pedindo aos passantes que liguem. 4 3


Na violência do momento, o músico sente que sua própria sombra foi embora com o outro, e tentará depois lembrar-se dos números que o jovem havia sussurrado, em meio ao choque, de maneira entrecortada, sem sucesso. E isso perdurou ao longo de sua existência inteira. No dia do episódio, ao voltar para casa, ele teria perguntado aos seus parentes por quê e o que fazer. Teriam lhe respondido “alguma coisa ele fez”. Desde então, isolado de seu meio que se esquivara das respostas audíveis, este músico teria perdido a razão. Apaixonado pelo jovem desaparecido, a partir de então ele não escreverá senão uns O, depois uns H, depois uns OH! distribuídos de maneira insensata entre as notas Fá e Si, entrecortadas por outras letras como C, T, E, S, notas e letras que não deveriam ser tocadas, mas ouvidas, o conjunto destinado a óperas que, mudas, fariam advir uma música, em que cantores-cantoras líricos imitariam nas ruas números, letras e ações, por vezes de maneira engraçada, destinados a ser lidos por pedestres distraídos que era imperativo desviar de suas ocupações costumeiras. Um conjunto musical que, segundo ele, numa época, teria podido salvar da morte o ser que terá despertado nele um sentimento amoroso e a música, mas que, infelizmente, sua época, mergulhada num futurismo surdo de um ontem-hoje bloqueado, não terá percebido. Pareceria que a única questão que o trabalhou até o fim teria sido como ler sua época, e a música que a acompanha. E qual música pode salvar.

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Montmartre en 1848 – 1850. Foto de Gustave le Gray

ERA Conta-se que ERA esconderia, em suas viagens no tempo, números, cifras e contos. Que ela imaginava combinações de cifras que precediam os títulos de seus contos, reunindo fragmentos de ideias sobre distintos momentos ao longo de um período de tempo bastante extenso. Aliás, ela os chamava de “eras” e tomava o cuidado de dizer que tratava-se justamente de “áreas”, zonas habitáveis, segundo ela. Não havia para ela uma ORDEM clara com uma progressão, um único fio que sustentasse o todo numa só direção. Ela faz crer que estende vários fios em direções diferentes, frequentemente abandonados no decorrer de longos períodos, o que daria a seus contos a aparência de se desfiarem. Esse esfiapamento era, segundo ela, uma condição indispensável para dar lugar ao que poderia acontecer sem ela, ao mesmo tempo em que lhe insuflava o tom justo para receber esse inesperado e vislumbrar uma retomada dos contos, que de fato ela retomava aqui e ali, sem jamais terminá-los. Seu gosto pelas cifras era um fato poético e sonoro. Ela empregava por exemplo o 9 para começar e lembrar de seu primeiro conto cujo título parecia ser “As Ante-coisas”. O 0 servia para os contos “entre-atos”, o 5 para o conto mais atual. Isso ia se complexificando. Assim, por exemplo, o 579003 levava como título “Adjacente, espaço vazio ao lado de alguém”. Esse conto era muito importante para ela, pois ele devia lembrar que é impossível compreender uma das eras sem sentir até que ponto ela é a adjacente não finita de uma outra, infinita, e que é sua condição de infinitas que lhes permite viver lado a lado. 56


E ela notava que se, por acaso, uma das eras – que correspondia a zonas habitáveis, não se deve esquecer – viesse proibir o movimento infinito de construção do outro, obstruindo o lugar vazio, esse adjacente necessário entre ambos, esse espaço de jogo possível para cada uma, essa zona de encontros sem pressupostos, ocupando-o, proibindo-o desde o início ao outro, controlando-o, violando-o por toda parte, que então uma guerra aterradora não podia senão destruí-los a ambos, e pregava, nesse caso, uma espécie de chamamento à greve do Ainda-vivo para trabalhar nessas formas de ocupação e a recriar nessas tréguas, por toda parte onde fosse possível, fendas, espaços únicos a permanecerem como possíveis, como refúgio distante daquilo que nos é contudo tão próximo. Administradores de seu tempo, descontentes em vê-la perder seu tempo sem nada terminar, preparar áreas para socar sementes, plantar e cantar em desordem pedaços de contos a um público de poetas e perdidos/as banidos, a forçaram a aceitar uma instrução precisa: criar uma divisão do tempo segundo acontecimentos unicamente humanos e determinantes, escolhidos como pontos de partida, e registrando um só grande acontecimento que se faria notar para cada compartimento-época, que se abriria e se fecharia para sempre, épocas que se desdobrariam sob a forma de progressos sem retorno. Relata-se que Ela não teria conseguido conciliar sua concepção poética com uma ORDEM existente que lhe impunha a invenção de um TEMPOLINEAR-ÚNICO. E a lenda diz que ela teria dado cabo da vida deixando seus contos inacabados, que ela os teria completamente desfiado até o fim, contando-os em segredo a uma amiga próxima com medo de que os funcionários os destruíssem, ou até os queimassem. E que ela teria transmitido à sua amiga uma técnica ancestral de comunicação em pensamento que lhe permitiria transmitir em silêncio os contos a outros, sem recorrer a longos rolos de papel, nem dizê-los em voz alta. Outros sustentam que ela teria perdido a razão e, ao entrar no Grande Salão de Exposição “Espaço das Invenções” dos Administradores, ela teria começado a bater a cabeça contra cada vidro de uma longa parede envidraçada, de maneira sistemática, uma vez no vidro, outra em cada barra metálica, separando as chapas de vidro, barras ou linhas retas, que ela confundira com os Grandes Acontecimentos que deviam, conforme a visão dos Administradores, marcar os momentos de passagem entre as eras, sem retorno, sem possibilidade de diálogo entre elas, de transposição.

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Sua amiga próxima, ferida para sempre por sua morte, teria tentado escrever algumas linhas no seu conto “o adjacente”, sem chegar a fazer mais do que descrever o muro envidraçado onde ERA deu cabo da vida, antes que os guardas viessem buscá-la. Eis suas linhas: “Uma separação assim construída por um muro envidraçado transparente não o parece para um distraído que tentasse atravessá-lo. Nessa gestão da divisão dos espaços, um encontro entre o dentro e o fora não seria possível senão pela Imagem e bem menos pelo Som, pois o vidro está ali justamente para conter, por vezes até mesmo para isolar o mais possível o Som, porém não as imagens. A mais minúscula chance de que do sonoro algo mais deslize para o interior dependeria das fendas na juntura entre as grandes chapas de vidro e o metal que as retêm. Porém, diante de uma parede envidraçada, esconde-se um muro. Não há mais vista. Não mais podendo, em momentos escolhidos, nada abrir nem fechar concretamente, não há mais, na parede envidraçada, janela alguma. Ou então há uma sobrecarga de janelas virtuais que se dão a ver e se dispõem umas, outras incessantemente. Diante da grande parede envidraçada não há mais fragmento. O Fora parece um Dentro-Achatado. Ele é negado, capturado pelo interior que o torna seu Inteiro-Dentro. Aos crédulos da transparência nada parece escapar. Só que nada permanece opaco, como o ar que não pode ser desenhado. Essa repartição do espaço entre um dentro e um fora assim definidos isolaria aqueles-aquelas situados no interior, tanto do calor como do frio, assim como de eventuais intempéries dos acontecimentos exteriores, dando-lhes ao mesmo tempo a impressão de abarcar um vasto exterior assim demarcado e enquadrado. A luz ambiente em torno fica assim canalizada no interior por toda a superfície das paredes e a luz interior artificial coloniza para além das fronteiras de seu dentro tão confortável. Ao repartir harmoniosamente os espaços envidraçados em chapas retangulares de tamanhos ligeiramente diferente, os caixilhos metálicos fazem esquecer, por usa vez, a separação que a Transparência já tinha ocultado. Não há mais vista, pois tudo está aparentemente diante de si no primeiro plano. Uma sensação de vertigem emerge então como se estivéssemos no interior, submersos num aquário, e que desde fora não temos escolha senão visualizar esse enclausuramento. Minha amiga talvez tivesse preferido que não houvesse aquário algum, nem parede envidraçada, nem TRAGÉDIA, mas passagens.” 78


Antigo cemitério de Gypse, hoje Parc des Buttes-Chaumont

MUDA Conta-se que no seu tempo livre, um escriba, ou um sofer stam, ou um aj ts’ ib, “aquele que pinta-escreve”, teria retranscrito fragmentos das notas deixadas por dois operários da G. E. S. G. F., ou Grandes Empreendimentos dos Salões Gerais das Feiras de sua época, citados aqui como “aqueles que olham”. Esses artesãos teriam deixado observações liminares sobre o dia em que se puseram de acordo para aplicar uma técnica excedentária àquela que lhes era ordenada habitualmente, e a respeito da qual tinham combinado não falar em voz alta. Pôr à prova essa técnica equivalia simplesmente em confirmar a prática de seu oficio à sua maneira, visto que ao final, ela foi sendo utilizada, discreta mas amplamente. Eles se propuseram a escrever tarde da noite, já em casa, os pensamentos que lhes viessem à mente por associação livre no momento de realizar suas tarefas habituais, descrever aquilo diante do que eles se encontravam, entre outros, o lugar, o solo, a tarefa encomendada, o entorno, enfim, começar um diário imaginário, no qual eles esperavam – sem poder divulgá-lo demais – compartilhar suas inquietações num tempo em que a guerra civil, embora não reconhecida oficialmente, castigava. 89


Ambos faziam parte de um comitê encarregado especialmente do solo das construções, de suas lajes e emendas, e o mais importante, da “dilatação da construção”, visto que toda construção está sujeita a uma espécie de movimento imperceptível, mínimos abalos, ela vibra! E é preciso saber lidar com isso para evitar um excesso de fissuras... Sua posição lhes havia permitido compreender melhor do que ninguém que, aconteça o que acontecer, seja qual for o trabalho feito, num certo momento haverá “fissura”. “Nenhum sarcófago, mesmo de concreto, não conseguirá reter sem fugas uma nuvem tóxica. Um solo, mesmo de concreto, desgasta, não está isento de erosão, é poroso e entra em contato com a água no ar, o vapor da água e a umidade e o gelo, depois o degelo, o amoníaco e a reação sulfúrica interna... podem fendê-lo”, anotaram “aqueles que olham”. Suas notas transcritas pelo escriba constatam que a primeira tentativa de aplicar sua técnica fora ritmada por pausas e prosseguiu até o final da tarefa do dia, para a qual bastava uma chave de fenda, um martelo, quatro mãos e que consistia em: - Retirar a borracha gasta que encobria uma fenda num chão de cimento. - Raspar o interior da fenda. - Retirar tudo o que pôde se alojar lá dentro, poeira ou pedrinhas que penetraram na fenda ao longo do tempo. - Cobrir a fenda com uma borracha nova. Concretamente, especificavam eles em seu diário, “essa borracha, por sua elasticidade, deveria servir de ‘junta’ entre as grandes placas de cimento que, para não se fenderem um pouco por toda parte, necessitavam tanto da fenda como de uma junta flexível para limitar a dois um ‘espaço de jogo’. Espaço de abertura certamente mínimo, porém necessário entre os blocos, visto que o cimento, assim como o concreto, sem que se perceba, se mexe e encolhe, e que um edifício em si vibra sempre.” Mas o que chamou a atenção do escriba são algumas linhas do diário a propósito da forma de uma serpente, que o longo pedaço de borracha preta lhes evocava. Essas notas se referiam a uma recordação em torno de uma aldeia chamada Walpi. Eis um extrato dessas anotações reportadas pelo escriba: “No coração do verão, em agosto, quando a cultura do milho está ameaçada pela seca, os habitantes de Walpi, de Walla, que quer dizer ‘um espaço ou fenda nas falésias’ e que significaria para os MOKIS ‘lugar da distância’, entram em contato durante as cerimônias dançadas com as cascavéis muito perigosas sem 10 9


sacrificá-las. Os OXID-EM-TUDO relatam sua surpresa, e viam nesses dançarinos domadores de serpentes, o que eles não são. Na realidade, é um diálogo onde o animal vivo e os dançarinos formam uma unidade mágica cuja finalidade bem prática é de fazer advir uma tempestade salvadora, superando ao mesmo tempo o temor às serpentes e aquele que suscita a tempestade. A serpente participa voluntariamente – ou ao menos sem utilizar suas faculdades de animal feroz – das cerimônias que duram dias inteiros, o que em outras mãos seria impossível sem domar, sem força... Não se trata, nessas danças, de imitar os animais, mas de os integrar sob a forma a mais direta, como atores participantes, não para ali serem sacrificados, mas como intercessores, a fim de fazer chover. Os OXID-EM-TUDO pensam que se trata para os MOKIS de obrigar as serpentes elas mesmas a interceder. Na realidade, isso me foi contado de outra maneira. Não se trata de obrigar, nem de domar, nem de sacrificar, mas de lembrar à serpente que sua forma ziguezagueante é também a de um relâmpago, e que ele tem nele a possibilidade de fazer advir. Para isso, as serpentes são trazidas da planície do deserto e permanecem próximas dos humanos durante dezesseis dias em que recebem cuidados num quarto subterrâneo chamado kiwa. Ali elas são cuidadas, lavadas na água santificada em que foram despejados todo tipo de remédios. Depois se os atira com firmeza sobre dois quadros realizados com areia no solo da kiwa, de maneira que o desenho, representando quatro serpentes-relâmpagos e uma massa de nuvens de onde saem quatro relâmpagos de cores diferentes em forma de serpentes, correspondendo aos quatro pontos cardeais, se mistura ao corpo da serpente que se mistura por sua vez à areia colorida. Isso faz com que haja união entre o desenho que simboliza a aspiração a, o desejo de, e o corpo da serpente que, ao tocar essas pinturas, se lembra que ‘ela é o relâmpago’ e assim as apaga. Os OXID-EM-TUDO descrevem isso de outro modo, pois eles pensam que as pinturas na areia são destruídas no contato com as serpentes, e não veem talvez o quanto elas trocam de pele, nem o quanto eles mesmos trocam de pele, eles sublinham sobretudo um comando lançado pelos MOKIS para obrigar as serpentes a trazer a chuva. Mas é antes uma forma de reconhecimento dos MOKIS, por esta cerimônia da necessidade de ajuda das serpentes, e as serpentes assim consagradas se tornam, ao unirem-se aos índios, 10

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fazedoras de chuva e intercessoras. Perto do final da cerimônia, as serpentes são agarradas vivas em plena mão e mesmo em plena boca e depois são largadas na planície como mensageiras. As serpentes são pintadas como ambivalentes pelos OXID-EMTUDO, elas são, ora inteiramente isto, ora inteiramente o contrário. Em Waili é sutilmente diferente, a meu ver. Pois este momento em que a serpente se mistura ao desenho que lhe lembra seu lado relâmpago é como uma brecha, não exclusão, nem julgamento, mas potencialidade de, apelo para devir na relação aquilo que o outro vê em nós. Afinal, nós, que trabalhamos nas fendas perto do solo, ainda que artificial, nós sabemos que há um mundo subterrâneo escondido debaixo da terra, e que ninguém jamais poderá espoliá-lo inteiramente, pois isso se aparenta com o tempo dos sonhos.” O escriba anotou por sua vez embaixo do fragmento simplesmente isto: “Há diferentes tipos de fissuras mais ou menos profundas, no interior de um edifício, no exterior, rente a uma parede, no solo... Se isso fissura é que há causas estruturais. O modo pelo qual se fissura o concreto assim como o tempo de aparição das fissuras são para esses que se dizem experts na matéria, indicações pertinentes de seus diagnósticos. Assim, eles observam a orientação da fissura, é ela vertical, horizontal, oblíqua e sua localização na obra. Esses especialistas se entregam a tratamentos tais como a auscultação..., métodos não destrutivos que se aparentam às radiografias, às coletas e análises em laboratórios, prescrições, restaurações (medicamentos)... Eles podem falar em ‘patologia do material’ e se aplicam em reduzir ‘os elementos que favorecem a propagação da patologia.’ Eles propõem assim, por exemplo, ‘sistemas que permitem à água não penetrar’. Mas uma brecha é também um espaço ou um momento em que não obedecemos, em que recusamos de nos submeter a essa dinâmica e onde agimos em função do que consideramos como desejável ou necessário. É uma recusa-e-criação, uma dignidade. As brechas podem ser pequenas ou grandes, mas elas existem por toda parte. E a filosofia pode começar pelo encontro com um amigo”.

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— Nenhuma linha seria escrita a propósito de um cinema esquecido pelo centro, afastado das grandes cidades. Uma caixa preta como as outras, com uma grande tela e, ao fundo da dita sala, a fotografia de um projecionista que não projeta mais pendurada na parede da cabine de projeção. Esse cinema teria sido abandonado e algo que não tem nome, ou nome conhecido em nossas línguas, teria aberto um caminho a partir desse abandono. Três aberturas se revelaram possíveis, desde então, nas quatro paredes que o rodeavam no início. Duas laterais, uma ao fundo. Elas teriam forçado um lugar, e não deixaram tão sozinha a única abertura possível num cinema: a janela que cada filme propõe. Uma de suas novas aberturas é uma janela concreta com alguns vidros quebrados por onde uma planta teria crescido entre o fora e o interior desse cinema. A segunda abertura é menor, quase uma claraboia, e a última é uma abertura sem moldura, surgida na parede do fundo, ali onde havia uma cabine de projeção. Assim, esse cinema abandonado abriu espaço para a experiência do sem imagem que seria o refúgio de toda imagem. O invisível ali. Projetores muito grandes tendem a massacrar o que querem mostrar, ao passo que o que conta é o que não se vê.

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…“Era uma vez uma lavanda num pote que teria crescido melhor nas alturas das encostas ensolaradas das montanhas e próxima a dois humanos. Todos três partiram em busca de uma quarta pessoa... e de uma floresta. A quarta pessoa publicara um anúncio: ‘Vendo vinte e oito hectares de floresta virgem. Excelente terra vermelha, fauna selvagem, orquídeas originárias..., vistas fantásticas para o monte nativo. Com papéis e impostos em dia. Por razões financeiras alheias a nossa vontade, não pudemos concretizar nossas ideias. Com exceção de urbanização, ficamos no aguardo de propostas.’ Chegados a seu encontro, os dois primeiros e a planta não expuseram suas motivações profundas ao proprietário. O casal se surpreende: você não tem carro, ainda é longe daqui? Mostrando a planta no vaso, dessa vez é o proprietário que se surpreende: Vocês só têm isso de bagagem? Não sem dificuldade, o grupo encontra alguém que aceita passar pela barreira da polícia para entrar na zona do terreno. O motorista do táxi, o proprietário da terra, a planta, o casal percorrem assim longamente subidas e descidas, com vista para a terra vermelha. O proprietário tinha um aparelho que lhe permitiria, acreditava ele, detectar sua posição em qualquer lugar do globo, em qualquer condição climática, nas vinte e quatro horas do dia, e não o largava, nem com os olhos, nem das mãos. Enquanto as baterias de seu aparelho o abandonavam pouco a pouco, e sem descer do automóvel – estranho lugar de transação –, ele pedia ao motorista que parasse, de tempos em tempos, a fim de observar as entradas, à direita e à esquerda, tentando identificar o portão de seu terreno. 14 13


Conversas preenchiam a espera e o proprietário atual evocava a antiga proprietária de seu terreno como quem ‘veio de um país que declarara guerra a muitos outros, e a companhia tendo chegado antes dela, e ali permanecido por muito tempo explorando as terras’, dizia ele. Aos poucos relaxou e referiu-se vagamente a uma separação que o deixara prostrado e que lhe fazia perder a cabeça. ‘Falar de amor, afinal, os filósofos só falam disso’, se desculpava. Quatro horas passaram-se assim, cada um preocupado com seu objetivo, o motorista para ir o mais longe possível e ganhar o máximo da corrida, o proprietário para afastar seus pensamentos pesados e encontrar o lugar e vendê-lo, e que ele não visitava há anos, e o casal para chegar a uma terra em que pudesse se reencontrar e plantar a lavanda que começava a sofrer com essa errância toda. Chega um momento em que o casal não aguenta mais e pede para parar, pouco importa onde, para descer e respirar. Já fora do carro, o proprietário admite que ele não encontra seu próprio terreno. Todos se despedem e prometem mandar notícias. Entremeadas que estão ‘coisas-seres-e-situações’, quando se trata de cuidado, de uso e do habitar, o possuidor desse conto assim como da floresta do conto permanecerá não identificável. Afinal, uma floreta não tem porta, mas dez mil entradas possíveis. Nenhum documento jamais estará à altura de um fragmento de terra e do que ali acontece. Quanto à lavanda, ela foi plantada bem mais tarde, a tempo de o casal que se perdeu ter voltado a si.

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-… Antes que o sol se pusesse, a questão tinha sido levantada: “Jamais um lugar o chamou?” Não cabe a este conto, nem a nenhum grupo de contos, estender-se sobre a maneira pela qual essa questão chegara às grandes cidades hostis, ou sobre como surgiram reuniões “entre lugares”. A questão do chamado, de como ouvi-lo, assim como a do lugar, preocupam todo tipo de seres. Daí que mesmo sem textos, mesmo sem imagens, mesmo sem sons, as questões sobrevoam, trespassam e tocam. Por isso um vagalume debilitado, com a extremidade do abdômen adoentada, emitindo luzes mais fracas do que normalmente, teria sugerido que a “luz do ser vivo” estava em crise. Que havia cada vez menos lugares onde torná-la visível. “Eu sou um lugar”, disse ele, “que necessita um lugar onde meu lugar encontre refúgio”. Sem porta-voz, pois não era uma história dos humanos, porém daquilo que eles haviam esquecido, mais precisamente, abandonado, um relato perdido, levado por seres sem voz, faz irrupção. Concretamente, era uma vez humanos em uniformes. Acreditando poderem impor pelo terror seu governo a todos, esses humanos tinham entre seus projetos o de estender-se “sobre o rio” para construir o maior complexo esportivo que pudessem imaginar... Um rio muito, muito largo, em cujas margens foram construídos calçadões para os passantes que viessem admirar os reflexos na água. Para tanto, em sua loucura, era preciso cobrir parte do rio com entulho. E para conseguir entulho... decidiram demolir um grande número de casas, desfigurando bairros inteiros, onde ergueram imensas colunas de concreto e cinzas, sustentando intermináveis autopistas. E sob algumas delas – a ideia não era nova – implantaram centros de detenção e de tortura para seus opositores. Colocá-los “sob autopistas” para que nenhuma voz vinda dali fosse audível lá fora. Ocupados demais com os horrores, entre autopistas ultravisíveis e desaparecimento de corpos ainda em vida, lançando-os vivos nesse mesmo rio no meio da noite, esses humanos em uniforme esqueceram completamente, largaram, melhor dizendo, a construção do enorme complexo esportivo.

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Mas fato não imaginado por eles e pouco revelado, pedaços de entulho e escombros depositados no rio, mesclados à água, começaram a ser trabalhados pela ação dos ventos ao disseminar sementes. Durante mais de trinta anos, as raízes dos pequenos vasos de plantas abandonados pelos expulsos das casas ou prédios demolidos anteriormente a fim obter entulho puderam crescer no rio, primeiro frágeis, depois pouco a pouco de maneira segura. Sem nenhuma intervenção do homem, desse lugar abandonado, numa extensão de vários hectares, emergiu, espontaneamente, uma floresta. Infelizmente, humanos voltaram a balizar o lugar, e alguns até provocaram incêndios para recuperar e construir, outros o expõem como um lugar exótico, abrindo-o e fechando-o para visitas, enchendo-o de cartazes. Sobre a questão dos lugares, um ancião com a voz doce e mãos doentias, tremulas, se fez ouvir para dizer que existe uma infinidade de almas povoando as esferas infinitas. Salientando que mais do que uma palavra, tratava-se de um sopro, referiu-se ao de “AMAUTA”. Um sopro do ABYA-YALA. A terra cujo nome foi mudado há quinhentos anos... e sobre a qual ele diz ter vivido com seus ancestrais por cinco mil anos sem que a água fosse poluída. Ele exprimiu o quanto a questão do lugar se coloca na filosofia “amauta”, também chamada de “pensamento comunal”, horizontal, filosofia para a qual ninguém vale mais que um outro, mas cada um à sua maneira, dando lugar ao que não fala, a terra, as árvores, a água, o ar, as estrelas, a lua. Por fim, ele se interrompe e diz: “eu sussurro isso baixinho para transmitir, pois é impossível falar ou escrever assim sem que isso seja de antemão condenado por outras línguas, banido das BIBLIOTECAS MUITO GRANDES recheadas de História, mas sem sopros...” Esta voz que recita, quase canta, volta aos tempos do ABYA-YALA, tempos que nunca foram lineares e ao longo dos quais o humano não vinha à terra para sofrer, mas para viver feliz com e nesta terra. O humano não era o centro nem o eixo de tudo, mas vivia em qualquer parte, lugares a serem cuidados. Tempos em que os alimentos, os lagos não estavam cercados por arame farpado. Lugares em que os alimentos e a água não estavam à venda. “Deus, dizem os defensores desse presente congestionado”, acrescenta ele, “está acima de toda coisa, ele é a origem e a finalidade do homem.

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Vista parcial, fevereiro de 2014. Desmontagem da estátua de Cristóvão Colombo, praça Colón, Buenos Aires.

Mas para o ‘amauta’, Deus não é o Deus, é um outro, sempre ainda um outro, é a natureza, sendo nós mesmos feitos de natureza e toda coisa está conectada, as árvores são nossas irmãs, os animais são nossos outros irmãos, o sol pode ser um pai, a terra, por que não, uma mãe, a água ‘mamacocha’, é aquela que nos alimenta. Todos esses elementos estão em nós e de todas essas coisas cuja lista é infinita, temos coisas. Somos parte não de um Universo abstrato, mas desse universo de coisas infinitas em nós e em contato com. E ele disse isso tocando a parte de trás da cabeça: olhem este cérebro, ele é igual ao Universo-infinito, neste cérebro entram tantas ideias, tantos princípios, tantos conhecimentos porque não há fim para o universo. Para meu povo indígena, quando tentamos transmitir conhecimento às nossas crianças, ‘nós lhes abrimos a cabeça’, ali onde outros a fecham e enclausuram. Era simples e sábio, ele ainda respira, quando em Cuzco os sábios amautas cavavam na terra, na pedra, um buraco côncavo, na forma de uma grande bacia que depois eles enchiam de água, se sentavam dentro e observavam dali as noites, o movimento das estrelas, é dali que saíam os conhecimentos da ‘chacana’, um universo, e não uma ordem classificada do UNIVERSO CLÁSSICO, porém uma composição de harmonias variáveis. Afinal, na imensidão do espaço, não há ponto de distinção entre o alto, o baixo, a direita, a esquerda, o anterior e o posterior…”

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O encontro termina com a intervenção de um outro filósofo do qual se diz que seu tom de voz vai se apagando ao longo de suas conferências. Por isso, pensa ele, restam no ar apenas pensamentos-imagens. Mas fato não previsto, nas primeiras palavras pronunciadas, irrompe a tempestade. Cinco vezes seguidas ela interrompe o filósofo que para e recomeça, depois para. Sua conferência foi então adiada. Para dirigir-se não ao filósofo, mas a todos os presentes, os rumores descrevem uma mulher que teria se posto a cantarolar sons diversos e variados em sinal de incompreensão. Como o filósofo pôde exprimir-se longamente sem dizer uma palavra sobre o acontecimento que lhe entrecortou a fala! E ela teria dito: Colombo, esse cujo mármore estala, foi derrubado! Colombo dorme, finalmente ele caiu! Ele pede para fazer análise!! E ele não é o único, há outros... Algumas vozes emergem conjuntamente nesse instante para anunciar: kãnêyxaktux ‘ûkumuk. O que em Maxakali quer dizer que “os aparelhos de registro teriam sido atingidos” A reunião e este conto terminam assim, sobriamente, sem final.

Vista parcial, 18 de março de 2014.

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#21 JEOVASA RAÑEÍE’Y (ORE ÑEÉ RUETE) 1. A – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a 1. A – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a 2. Aiporami arojae’ô – ô – ô – ô – ô Então eu canto um canto desencantado ô – ô – ô – ô – ô 3. Nde yvarapy – y – y – y – y – y – y – y – y – y – y – y – y 3. Por teu mundo – e – e – e – e – e – e – e – e 4. Nde remimbo jeguakava 4. Por teus filhos jeguakava – ô – ô – ô – ô – ô – ô – ô – ô – ô – ô – ô 5. Ndevy che yvarapi 5. Por esse mundo do qual também faço parte 6. Aipo Ñamandu yvaroka – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a 6. É isso, Ñamandu, por teu mundo – ô – ô – ô – ô – ô – ô – ô – ô 7. arojae’o – o – o – o – o – o – o – o – o – o – o – o – o – o 7. Eu canto um canto desencantado – ô – ô – ô – ô – ô – ô – ô 8. Ñamandu arojae’o 8. Ô Ñamandu! 9. Opa marãngua ete 9. para que passem os males que nos sufocam 10. Nê mba’e ra’ã rovapy 10. para que seja legal a travessia da qual fazemos parte 11. Aipo rity’i – i – i – i – i – i – i – i – i – i – i – i – i 11. para que as palavras do nosso esforçado canto (mba’ ea’ ã) 12. Aipo ñane mba’ea’ã – a – a – a – a – a – a – a – a – a – a 12. também tenham o mesmo sentido, a mesma graça, a mesma grandeza, a mesma luz, a mesma força (interior) das palavras do teu canto esforçado (mba’ ea’ ã). 20

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Danรงarinos Hopi sobre uma Kiva.

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Tradução francês-português: Peter Pál Pelbart

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Os contos (imagens-textos) aqui publicados, escritos por A. Riera, fazem parte de um material mais amplo, referente a um filme inacabado na data de 3 de setembro de 2014, trabalho em curso com o grupo Ueinzz. UEINZZ : Adélia Faustino, Aílton Carvalho, Alexandre Bernardes, Amélia Monteiro de Melo, Ana Goldenstein Carvalhaes, Ana Carmen del Collado, Arthur Amador, Eduardo Lettiere, Erika Alvarez Inforsato, Fabrício Lima Pedroni, Jaime Menezes, José Petrônio Fantasia, Leonardo Lui Cavalcanti, Luis Guilherme Ribeiro Cunha, Luiz Augusto Collazzi Loureiro, Maria Yoshiko Nagahashi, Onés Antonio Cervelin, Paula Patricia Francisquetti, Pedro França, Peter Pál Pelbart, Rogéria Neubauer, Simone Mina, Valéria Felippe Manzalli. Na página 20, excerto do livro: Kosmofonia Mbyá-Guarani, Guillermo Sequera -Douglas Diegues, Mendonça & Provazi Editores, São Paulo, Brasil, 2006, p. 80-81. Agradecimentos: cacique Mario Leoncio Barrios et Anaomar Iris Santana, Enrique Mamani (Organización de Comunidades de Pueblos Originarios), Sergina Morte et Javier Ortuño (ativistas afro-descendentes de Buenos Aires). Nuria Enguita y Pablo Lafuente, Olívio Jekupé, Tupã Minrin da aldeia Krukutu Em especial a Daniel Bohm, Enrique Vega, Peter Pal Pelbart, Jorge Zulueta, Jacobo Romano, Catherine Chevalier, Lore Gablier, Marine Boulay, Alejandro Zanelli, Thomas Macdonough e Dean Inkster. Durante as apresentações nos dias 3 e 17 de setembro, 1, 15, 29 outubro, 12 e 26 novembro, o pequeno cinema ao ar livre foi concebido com Andreas Maria Fohr. Editado por n-1, setembro de 2014.

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… - OHPERA – MUDA - … [até 3 de setembro de 2014] Vistas parciais (imagem-texto) e fragmentos de um filme inacabado

RIERA - UEINZZ

Apresentações:

3 e 17 septembro, 1, 15 et 29 outubro, 12 e 26 novembro 2014, quando o sol começa a se deitar

Encontro ao lado do atual CECCO, Centro de Convivência e Cooperativa, antigo galpão tornado refúgio provisório para as atividades da cinemateca – entre as quais um cine-clube — depois do incêndio de 1957. Entrada 5 do parque do Ibirapuera.

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